quarta-feira, 10 de outubro de 2012

" GRILHETAS "




Ontem...algures em Lisboa ...


" Falta-me a coragem !... "

Estas palavras ecoam-me, com som de tristeza e desalento, nos meus ouvidos ...

Mas a Vida é feita de coragem !
Coragem para nascer, desde logo, tendo à espera o desconhecido, que é o pior que nos pode esperar em qualquer circunstância, do nosso caminho.
Porque o desconhecido assombra, angustia, faz o coração disparar.
Ter coragem para acordar, encontrar o sol ou a chuva lá fora, e na vida ... e saber dançar nela, é coragem pura !

É preciso coragem para o amor ...
Pôr um filho no Mundo, é um acto de coragem .
Perder alguém muito nosso, que nos abandona, sem que nada possamos fazer ( porque o destino sentencia implacavelmente ), e mesmo assim conseguirmos continuar em frente, é um acto de coragem !
A resistência às injustiças, à indignidade, ao abandono, ao esquecimento ... são actos de coragem ...
A luta pela sobrevivência diária, o combate pelo direito a ser-se Homem, a força de erguer a cabeça na incerteza da tempestade ... também ...
O desespero que nos leva a alcançar o tronco que flutua, no último minuto, quando o sopro da vida ameaça deixar-nos, é coragem ...  É não desistência !...
O reunir forças, sabe-se lá de onde, e pensar que elas são candeia que nos ilumina a estrada, quando tudo está  escuro  à  nossa  volta, e  não  se  vislumbra  mesmo  estrada, sequer  um  atalho ... é coragem !...
Continuarmos a reclamar-nos gente, quando nos sentimos meros farrapos humanos ... o que é, senão coragem ??!!...

Há atitudes e decisões, que só se conseguem tomar, se a tivermos.
A coerência, a honestidade, a lisura, a verticalidade, a humildade até, neste Mundo corrompido e doente, são exemplos disso.
Há escolhas que só quem a tem, admite ...

A renúncia é dos mais surpreendentes actos de coragem.
Confunde-se com cobardia às vezes, pode confundir-se com falta de ética, pode confundir-se até com estupidez ou burrice ...
Mas abdicarmos de nós mesmos em função de outrém, merecedor ou não, em função de princípios, valores, convicções, obrigações morais e outras, é um suicídio antecipado, é uma eutanásia praticada e assumida, para os quais é precisa suprema coragem !

Porque coragem, como muitas vezes levianamente se confunde, não é ausência de medo ... não é conseguir entrar no quarto escuro sem saber o que lá se vai encontrar.
Para mim, só seres de eleição a possuem na sua essência, e a praticam, porque ela é de nós para os outros, com prejuízo e anulação de nós mesmos.
Ela é saber sair de si, é o oposto do egoísmo, do egocentrismo, do autismo de interesses e conveniências ;  é abnegação total, é dádiva, muitas vezes não reconhecida, valorizada, menos ainda agradecida !...

Escolher abandonar alguém no caminho, se esse alguém nos for razão de vida ... escolher dobrar a esquina, deixando para trás apenas um derradeiro olhar comprido, lágrimas e dor, e levarmos em frente um coração feito em pedaços, só porque conseguimos esquecer-nos e anular-nos ... porque tem que ser assim, ou sentimos que tem que ser assim, não é mais que aquela coragem que poucos detêm ...
Fazermo-nos eterna e definitivamente prisioneiros de arames farpados, ou de grades de masmorras, cujos cadeados nós próprios trancamos e de que deitamos fora a chave, e com ela a felicidade um dia sonhada ... bom, se não é coragem ... então o que é ???!!!

Talvez eu seja utópica na análise de tudo isto.
Talvez eu seja "naïve" ...  Talvez eu arranje justificações para atitudes que tenham tudo menos nobreza, e seja tonta ... apenas porque preciso acreditar que não sou tonta !...
Talvez a destituída ou pouco clarividente seja eu, ao abonar benefícios, para posturas, que se calhar os não deveriam merecer ... talvez eu precise acreditar que há ainda seres humanos assim ... despojados, altruístas, superiores, em suma ...
Não faz mal se ainda consigo ver o Mundo com alguma cor, se ainda tenho alguma capacidade de aceitação, benefício de dúvida, ou de creditação àcerca do Homem !...

Falta-te coragem ... confessavas ...

Não falta não !  Tens sim a coragem que eu não tenho !...
Vai restar-te talvez uma tranquilidade de consciência e uma paz de espírito ( dizem que se dorme com elas na almofada ... ), que não terá preço, suponho, que representará dever cumprido e sossego de coração.
Só desejo que consigas viver o resto dos teus dias, alimentado por essa convicção, aconchegado pelo altruísmo de te teres tornado, por "moto próprio", um ser que se supõe vivente, mas na realidade não o é, um ser que não existe, apenas atravessa a Vida, invisível da sorte, enjeitado do destino ... um "zombie", nos dias e nas noites que te couberem ainda , espalhando a felicidade, a paz e a esperança, nos corações que vão supor "ad eternum", que lhes coube o mérito de efectivamente o terem merecido !...

Perto de ti, sou de facto um arremedo de gente, uma aprendiza imperfeita, egoísta e sempre lutadora pelos MEUS sonhos e convicções ... porque tenho consciência absoluta de que a Vida é só uma, já  me sobra pouca para o conseguir, e de facto, não tenho o que pensas não ter ... CORAGEM !!!...

Se  me  leres ... sê  feliz !!!  
Talvez  o  mereças  mais  que  ninguém !!!...




Anamar

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

" SEI LÁ SE VOU POR AÍ !!! "



Por que vai embora a energia da madrugada, e o meio do dia me quebra a força e a esperança ?
Nas alvoradas, quando só o céu escuro, o piscar das estrelas, e a luz difusa de uma lua ( que apenas um quarto do mês tem a pujança de nos encher a alma ) brilha ... posso tudo !

Nessas horas imprecisas de silêncio absoluto, em que só os entes semelhantes a mim, pairam, em que voejam pelo meu quarto seres que me coabitam, silenciosamente, não se revelando, mas sentindo-se ... quando o som do silêncio, mais embala do que assusta ( ainda que o nevoeiro cerrado feche a noite lá fora, como hoje, indefinindo os contornos e as sombras ) ... nessas horas, eu tenho poder.
Nessas horas, eu ordeno à mente e ao coração, centros decisores do meu eu, tudo o que faz sentido, tudo o que é porque deve ser, tudo o que sinto, porque é isso que tenho que sentir.

E sempre me sei tão poderosa, que acredito que mal Vénus durma, as estrelas fechem as pálpebras aos poucos, e os seres turbulentos do dia que amanhece, comecem desordeiramente ( como tudo o que é diurno, tudo o que só tem cor à luz do sol ), comecem, dizia, a atormentar-me ... eu, como uma amazona na garupa de um corcel, bem hirta, dominarei os medos, as angústias e as dores.
Tenho a certeza que conseguirei !...

Por que será que só sou capaz, no reino das irrealidades, no reino do sossego e dos silêncios, quando sou muito mais eu e eu, simplesmente, do que eu e os outros ?!..
Por que será que só então tenho certezas e convicções, só  então  vejo  claro,  ironicamente  quando  a  escuridão  paira  afinal  por  todo  o  lado ??!!

E aí, um alívio de alma percorre-me.
O peso de toneladas que carrego, liberta-me, sinto-me a começar uma estrada, uma estrada com saída, sem horizonte que a limite ;  uma estrada com sol, campos verdes a bordejá-la, flores, muitas flores ... e algumas sombras de repouso.
Uma estrada de Primavera.  Não uma estrada de Inverno, nem sequer de Outono.
Mas um caminho, com um norte, não a passadeira em que percorremos quilómetros, sem sairmos do mesmo sítio ... mas um trilho com destino !

Destino ...  Acho que é o que falta nesta minha vida, em que, como diz a Bia, pareço viver por viver ;  em que acaba semana, entra semana, e vegeto, hiberno, encerro, morro voluntariamente, todos os dias um bocadinho.

Há manhãs, em que como hoje, a cama me embalava como há muito já não acontecia.
Dormia profundamente às dez e meia ;  dormia e dormiria, e havia uma recusa absoluta em mim, de me levantar.  Fi-lo, porque a isso me obriguei.
Começa agora o tempo em que a cama é salvação, é "ninho", é reduto aconchegante, onde não se sentem cansaços, mágoas, onde o coração não chora, onde a mente está entorpecida, onde os olhos estão cerrados, onde a dor mora menos.

Porque os dias são um pavor.  Hoje é um deles.
Ninguém conseguiria perceber, eu não saberia explicá-lo, ainda que o quisesse, com toda a eloquência de que me pudesse servir.
Ninguém conseguiria perceber, por que, neste café cheio de gente, escrevo com as lágrimas a saírem-me dos olhos, com um buraco claramente definido aqui dentro, com uma desesperança que me aterroriza, com uma dor, dor física mesmo ( eu sinto-a, juro ! ).
Sei que está aqui pelo peito, algures ;  sei que sobe à garganta, porque me aperta numa espécie de sufocação anunciada, sei que galga aos olhos, porque mos descontrola, e à mente, porque ma escurece, como naqueles dias de Inverno em que o céu fecha de repente, no anúncio de tempestade que se avizinha.
Sinto os farrapos de mim a boiar em mar revolto, e não vou jamais conseguir recuperá-los, e reorganizá-los em puzzle construtível !...
E dói, dói muito ... desafia-me a resistência, que nunca sei até onde vai durar ...

E cada hora do dia que vou ter que enfrentar, é um calvário, são grilhetas que arrasto nos pés, são toneladas de vazio que carrego ... E extraordinariamente, o vazio, que seria a ausência de tudo, é um "carrego" com o peso do Mundo, que não me assume significado ou expressão, para ter que o ir atravessando.

Este post é devastador !
É quase ilógico que o coloque aqui.  É uma exposição pessoal que não teria por que fazer, que não tenho por que fazer.
Mas acreditem, é a máscara do oxigénio que preciso, para conseguir respirar neste momento ...

Poderão dizer ... sei quem dirá  : " Tretas ... nada mais que uma chamada de atenção !  Poderia escrever e guardar no fundo de uma gaveta ! "
É verdade.  Objectivamente é verdade. Poderia !
Apenas, colocando isto neste meu "canto", pareço sentir arrego de desconhecidos, sem rosto, sem voz, sem "julgamento" ... porque não me conhecem.
Pareço sentir eco, gente, pareço sentir bóias ou coletes de salvação, de salvadores que não sabem quem salvam, nem precisam saber quem salvam ... Pouco interessa!
Pareço sentir menos solidão, pareço sentir-me espaldada, pareço inventar suportes, pareço escavar um "buraco no deserto" para onde clamo o que não interessa, e que preocuparia, ou molestaria  outrém ... pela simples razão de que aqui, eu não sou nada para ninguém, e ninguém é nada para mim ... que não sejam ouvidos moucos, e olhos que lêem e viram a página ...
Mas talvez me tenham ajudado, ainda assim !...

Mas hoje, como diria José régio, no seu espantoso "Cântico Negro" ... " não sei por onde vou,  não sei para onde vou " !...
Eu,  nem  sequer  sei  quem  sou,  nem  tão  pouco  sei,  "se  não  vou  por  aí " !!!...


Anamar

domingo, 7 de outubro de 2012

" BREU !... "



"  BREU "  foi o título que escolhi para este meu post, que de meu tem muito pouco, à excepção de uma confrangedora dor, e uma solidariedade profundas pelas gentes do meu país .... indiscriminadamente afinal ... porque  somos  sempre  "os mesmos",  os que estão  na mesma barca!...

Nem sequer é o "NEVOEIRO"  de que nos falava o Mestre, vaticinando afinal uma cerração tão espessa e cega, que  não deixa passar um só raio de sol !...

É uma mágoa opacizada, é uma revolta  já quase silenciosa ... é um desespero, a cheirar a morte antecipada nos corações !...

Ai   PORTUGAL  de milénios gloriosos, de histórias de coragem e desafio ... serás mesmo capaz de te ajoelhares aos pés, de quem sem pudor ou vergonha, já te espezinha ??!!...

Deixo-vos Pessoa, e uma mulher sem rosto, sem nome, sem casa, sem comida .... uma mulher que são todas as mulheres, todas as mães, todas as avós da minha terra ...
As  Evas,  do  PRINCÍPIO  e  do  FIM  de  tudo .... do  Paraíso  que  não  temos, e do Inferno  em  que vivemos ... apenas  com  um  CORAÇÃO  ainda  a  pulsar ... e  noventa  e  nove  anos .......para  que reflictam !!!...

 ( Clique no título,  para abrir o vídeo )

Idosa de 99 anos passa os dias a pedir na rua para ajudar a família desempregada - País - Notícias - RTP





Anamar

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

" TENHO PENA ... "





" TENHO PENA DE SÓ MORAR NA MINHA PELE, QUANDO A TERRA É TÃO GRANDE "

Esta frase consta do diálogo entre duas personagens, de um livro de Simone de Beauvoir que estou a reler, e saltou-me do livro como uma faísca atinge um pinheiro, fulminante e inesperadamente ... tipo, "é isto ... exactamente o que pressinto em mim " !...
A precariedade do meu "invólucro", com tanto, para lá deste quarto e desta janela !
A pequenez do que conseguirei viver enquanto por cá andar, e tanto que é o viver das vidas todas por aí, tanto que é o VIVER, afinal !...

Há um ano eu enganava, por esta altura, esta sensação claustrofóbica existencial, pois dentro de um mês iria partilhar mais um retalhinho de outras vidas, miscigenando-me com outras peles, nesta Terra de facto tão grande.
E invejo profundamente, a idade e a disponibilidade de quem coloca uma mochila nas costas, e simplesmente segue, cumprindo um espírito viageiro, que pressinto desde sempre em mim.

É por ele, que me sinto incompleta ; é por ele, que sempre me falta uma fatia ;  é por ele, que a insatisfação de qualquer coisa inacabada coexiste comigo em permanência,  e que a angústia de saber que os horizontes escondem horizontes, sem que eu  tenha "passada" que os atinja, me é absolutamente sensível !...
É por ele, por esse espírito inquieto e em turbulência, que sei injusto o quinhão cada vez mais reduzido e curto, que me distribuíram à chegada.

Só me deram mente, coração, espírito e sonho, para deles fazer o que quisesse.

Com a mente torturo-me, porque feito um bicho-carpinteiro, não sossega nem me dá tréguas ;  questiona-me, confronta-me comigo mesma a cada segundo que respiro, coloca-me problemas em permanência, e questões que parecem desafiar a inteligência que me distribuíram também, mas não em quantidade suficiente, estou convicta ...

Com o coração amo destemperadamente, sofro na mesma proporção, dilacero-me, porque é pequeno demais para tudo o que lá quero meter dentro, desgoverna-se e perde-se nos percursos, frequentemente, deixando-me a mente  "à  nora" ;
descompassa o ritmo, pela utopia, pela insanidade que o caracteriza, pela falta de clarividência, prudência e recusa de racionalidade.
É rebelde, é indisciplinado ;  é muito, muito pouco inteligente, e é recorrente no enviesado dos caminhos que sempre escolhe ...  e tem memória curta, curta demais ...

O espírito, é este companheiro irreverente, travesso, irrequieto, que me projecta para lá dos meus muros e me confronta comigo mesma.
Mas como um cavalo sem freio, não se deixa dominar, domar, sequer orientar nos trilhos para onde me leva ...
O espírito é o écran onde se projectam os meus filmes, onde existe a dicotomia do que sou e do que talvez devesse ser, onde o razoável e o louco se degladiam sem piedade, onde o meu direito e o meu avesso, jogam de gato e rato.
O espírito é o que tira as noites para me atormentar, nas horas de insónia e de solidão ...
É o que me faz sentir a mais feliz e a  mais infeliz dos mortais ... enfim, é de alguma forma, a "tribuna" onde me são lidas pela Vida, as "sentenças", favoráveis ou não !...

Resta o sonho ...
Do sonho disponho em excesso, incontidamente, na liberdade, na leveza, no etéreo  provocador  rodopio, de bailarina em pontas, no bailado da sua vida.
Com o sonho mergulho e arrisco-me constantemente, porque nunca olho primeiro, o que me espera no fundo do abismo.
Com  o  sonho  entrego-me  razoável  ou  irrazoavelmente, aposto sem limites, ( quando bastaria "ler" atentamente ), para que percebesse estar a tomar uma canoa furada !...
O sonho, é o que ainda me faz levantar em cada manhã, como se esse fosse o dia do meu "jackpot", e a ausência dele, o que me faz chorar ao deitar, e desejar morrer quando o sol dormiu, o céu se apagou, e as primeiras estrelas começaram a anunciar-se, sabendo que tudo se repetirá, exactamente igual, no dia seguinte ...

Sinto que cada vez sonho menos, e sem ele, a esperança parte, a coragem também, e o desencanto toma conta de mim.  A ingenuidade  do acreditar fácil, abandonou o meu coração há muito, embora incoerentemente, num cantinho esconso do meu peito, como uma criança, acredito infantilmente, que de uma cartola pode continuar a sair um coelho !!!...

Hoje sinto-me sem ar ;  hoje, feriado, pouco movimento, muitas coisas fechadas, ausência de gente, em clima de fim de semana antecipado, tenho uma solidão mortal dentro de mim.
Desci para tomar um café, porque me apavora pensar, que como todos os dias, vou estar sentada frente àquela vidraça, de onde nem já a minha gaivota se aproxima, frente àqueles telhados desalinhados, naquele silêncio absoluto de casa desabitada, a ver o laranja lá ao fundo, com o sol a descer de mansinho, até que os seus últimos raios do dia, tombem sobre Sintra, e sobre o mar de Sintra, que ainda fica noutro horizonte que visualizo na minha mente e no meu coração, mas obviamente não, da minha janela ...
E sufoco, a pensar que mais um dia se exauriu, inglória e irreversivelmente, sem história, sem rumo, sem ter valido a pena, afinal ...

E  lamento, lamento  que  com  uma  Terra  tão  grande, eu  viva  confinada  e  condenada  a  morar  na minha  única  e  imperfeita  pele !!!...

Anamar 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

" A D. AUGUSTA "



Tive  ontem  conhecimento  através  da  porteira  do  meu  prédio  -  a  D. Leonilde, que vive connosco há trinta e sete anos, que faz parte da "mobília", que foi para ali acabada de casar, e que neste momento, como a maioria dos condóminos "militantes", já é avó ... Já vos digo do que tive conhecimento.

Vou apresentar-vos um pouco melhor a D. Leonilde, a pessoa mais humilde, mais prestável e mais amiga que conheço, nestas condições.
É o "bombeiro" de serviço no prédio, para tudo o que é solicitada. Ela faz o seu trabalho inerente ao lugar que ocupa, presta horas como empregada, a quem esporadicamente a solicita para trabalhos mais complicados, ou às velhotas que já os não podem fazer, dá recados necessários, por vezes, entre condóminos, encarrega-se da compra das flores oferecidas aos que já partiram, que já são bastantes e continuam nas nossas memórias, trata da minha Rita quando estou fora, e das minhas plantas ( se calhar melhor que eu ... ), e claro, como lhe "compete", põe-nos ao corrente das novidades das redondezas ( o que normalmente ocorre lá em baixo, na entrada do prédio ).
É generosa, solícita e humilde, sem ser subserviente.
É o que se costuma dizer, uma "jóia" de pessoa !...

Ora bem, apresentada que está a D. Leonilde, cabe-me agora falar do que me levou a escrever este post, porque foi algo que ocupou o meu espírito algum tempo.

Dizia-me ontem a D. Leonilde, que uma senhora que vive nos prédios em frente, há longos anos ( eu diria, desde sempre ), que por ali teve filhos, teve netos, enviuvou e continuou a resistir a pé firme, na sua vidinha pacata, na solidão da sua viuvez, casara de novo ...
E surpreendentemente casara, porque ela própria ( deve ser senhora seguramente com setenta e muitos ou até oitenta anos ), colocara um anúncio de matrimónio num jornal, porque segundo dizia, era-lhe terrível o isolamento em que vivia, a aridez dos seus dias sem sol, o silêncio das suas noites sem lua ( digo eu ... ).

O marido é um senhor ( agora já o sei ), mais ou menos da mesma faixa etária, solteiro convicto, e que já antevia o futuro dos seus dias num qualquer lar, porque os parentes mais próximos, ou já haviam falecido, ou encontravam-se fora do país, e como tal, e não querendo ser "empecilho na vida de ninguém", ao ver aquele anúncio, perscrutou por detrás daquelas palavras, uma D. Augusta no mesmo "barco", com vivências por certo semelhantes às suas, desígnios de resto de vida, também ... e resolveu arriscar.
Resolveram arriscar, afinal !...

E agora, desperta que estou para a situação,  já vejo a D. Augusta e o Sr. Afonso a irem tomar o seu cafezinho, a saírem até ao Parque, neste resto de dias bem soalheiros, a conversarem, de braços dados, no passo cadenciado e sem pressas que a idade lhes impõe, a irem ao supermercado às compras, enfim, na vida do dia a dia sem demais sobressaltos.
E felizes, muito felizes ( isso informou-me a D. Leonilde ) !...

Ora bem, talvez uma situação considerada normal em países  "mais arejados", aqui, neste nosso "quintal", ainda nos traz um sorriso ao rosto, e alguma surpresa à mente.
Ainda é algo inusitado, dentro dos padrões sociais costumeiros, e em particular acontecer em gerações que não as de hoje.

Fiquei a pensar naquele casal ternurento, e a questionar-me se alguma vez eu teria "disponibilidade" mental, física e emocional para tomar uma atitude destas, para arrriscar ...

Na realidade o quê?


Um restinho de vida diferente, auspicioso à partida, com um companheiro ao lado que ainda me desse o braço pelas ruas, que ainda amasse apanhar sol comigo, passear pelos campos, ver o mar ...  que  ainda  soubesse  ouvir  a  chuva  a  cair  nas  noites  de  Inverno (  mesmo que o ouvido comece a "endurecer" mais e mais ), que gostasse da minha música e a partilhássemos em silêncio, que falássemos longamente, com todo o tempo do Mundo, ou simplesmente  ... que desconversássemos até ... que esconderia atrás das costas a rosa, que depois com um sorriso de amor me ofereceria ... e que desse vida à casa que se tornara cada vez mais desertificada e vazia ??!!...
ou ...
um fracasso total, cuja gravidade talvez não fosse excessivamente penalizante, porque afinal, oitenta anos são oitenta anos ... e o tempo em que as mágoas e os insucessos deixam máculas irreversíveis e incontornáveis muitas vezes ... já foi há muito ??!!...

Pergunto-me  se  conseguiria  sair  do   "encasulamento"  em  que  vivo   ( e de que me queixo ), e teria capacidade de tolerância, habituação, cedência, partilha do meu "eu" ... do meu "eu" e das "minhas coisas", como dizemos ??!!...
Seria eu capaz de sair de uma vida já toda estratificada., toda delineada, dum  "rame-rame" e de uma monotonia que no entanto rejeito, dum figurino que se fossilizou  ao  longo  dos  anos,  de  uma  vida   só comigo  mesma ??!!...
Seria  capaz  de  sair  do  egoísmo,  ou  simplesmente  do  meu  esquema ( egoísmo é excessivo, penso ), para me encaixar numa realidade totalmente nova, diferente, com obrigatoriedades outra vez, com renúncia de muita coisa, com adaptação a outras, que sim ou não, me satisfariam ou colidiriam comigo ??!!...
De readquirir rotinas entediantes ... uma vez mais ??!!...
Seria  eu capaz de  prescindir de uma "liberdade" que adquiri,  pelo facto de ser eu comigo mesma apenas, não devendo explicações ou satisfações aos demais, e voltar a ter "asas" cortadas e horizontes limitados ??!!...

À medida que os anos passam, cada vez mais nos questionamos com a aproximação do fim da estrada, com a consciencialização da dificuldade do caminho, e de termos de o percorrer sozinhos, sem ombro ou bordão, e com capacidades em declínio.
Esse é o grande pavor, creio, que assombra as nossas reflexões, quando delas não conseguimos fugir.
Agora, qual o "preço" a pagar para alterar este estado de coisas?
Teremos  "JÁ",  ou  "AINDA" , flexibilidade  em  todas  as  vertentes,  para  sermos  também  uma  D. Augusta ??!!...

Realmente a incoerência do ser humano, a sua insatisfação permanente, as suas indefinições, fantasmas e dúvidas,  são  espantosos ... e  a  coragem, loucura ou capacidade de risco, inversamente espantosas também ...
Sabemos o que não queremos, mas raramente sabemos o que realmente queremos, ou o que realmente seríamos capazes de assumir e enfrentar, do que teríamos coragem ...

Dicotomia louca esta !!!...

O drama, é que os anos vão passando, muito, muito depressa, e a dúvida da indefinição avoluma-se até ao infinito, ou até um infinito qualquer, em que já nem Donas Augustas conseguiríamos mais ser, ainda que  o quiséssemos mesmo !!


Anamar

terça-feira, 2 de outubro de 2012

" A BARCA DA MEMÓRIA "


Veja este vídeo fantástico do MSN - Memórias da cidade do Porto no fundo do mar


( clique sobre esta frase para abrir o vídeo )

Na cidade do Porto decorre uma iniciativa cultural interessantíssima, que apelidaram da "Barca da Memória". Conforme o vídeo que aqui  posto e que retrata o evento, os portuenses são convidados a colocar em contentores que serão posteriormente selados, o que entenderem poder retratar o Porto actual.
Algo que fale dos dias de hoje, da história da cidade e dos seus habitantes.
Esses contentores, reunidos num Barco Rabelo - "A Barca da Memória" ( como lhe chamaram ), serão então, em cerimónia adequada, transportados para alto mar, e afundados a  três milhas a sudoeste da barra do Douro.
A ideia é serem recuperados em 2112, ou seja, daqui a cem anos, para que as memórias de hoje na vida da cidade e dos portuenses, sejam dessa forma - nas mais variadas vertentes - narradas e ilustradas aos concidadãos de então.

Esta iniciativa, lembrou-me o conhecido envio de mensagens em garrafas lançadas ao mar, na expectativa de que, algures num qualquer areal, de um qualquer continente, num qualquer lugar do Mundo, ao serem recuperadas, essas mensagens sejam lidas, e dessa forma tenham colocado em comunicação dois seres, que não se conhecem, que jamais se conhecerão, que talvez já nem existam,  mas  que  dessa  forma  saiam  perpetuados,  através  dessa  comunicação ...

São nostálgicas estas formas de expressão e transmissão de pensamentos e sensações, por quem assim os expressa .  É como se o ser humano, de certo modo, quisesse eternizar a sua existência, a sua pegada, algures aqui na Terra ;
Como se dessa forma se sentisse um pouco detentor e manipulador do Tempo, vencendo-o, numa espécie de passada de gigante.
É como se dissesse :  " Daqui a cem anos eu já não estou ;  mas estarei, através de quem me ler, quem me sentir, quem me perscrutar ... "

O ser humano sempre sonha com a eternidade, sempre sonha deixar o seu rasto, de alguma maneira, no Planeta.
Os namorados inscrevem corações entrelaçados e atravessados por setas, em troncos de árvores, que atravessam anos ... às vezes, vidas ;
Nas pedras deixam-se inscrições a desafiar as eras ;
Nas areias escrevem-se nomes, deixam-se pegadas e tactuam-se mãos, para a maré desfazer, indiferente ...

Em casa, não em barcas, mas em arcas, guardam-se as memórias, como se pode.  De fotos, a postais, a escritos, a flores secas, a pedras, a conchas, a bilhetes de espectáculos, a guardanapos de papel ... de tudo, essas arcas têm ( já aqui falei delas muitas e muitas vezes, e da minha compulsão em recheá-las ).
É como se disséssemos : " Passei aqui na Terra por algum tempo.    Aqui estão  as  minhas marcas ... as memórias  da  pessoa  que  eu  fui !... "

E tudo porque temos pavor do esquecimento, até mesmo na cabeça dos nossos entes queridos.
A minha mãe frequentemente diz, sobre isto ou aquilo que faz : " Depois vocês vão lembrar-se de mim, um dia !... "  ( como se nós pudéssemos esquecê-la !... )
Mas na cabeça dela, sendo algo material, permanecerá depois dela partir, e terá para todo o sempre, a marca das suas mãos.
Ela não entende que a marca individual do ser humano, não passa por nada material, mas advém sim, do espólio espiritual, afectivo, do todo global que essa pessoa intrinsecamente foi, distribuíu, doou de si mesma, na sociedade, e no seu meio restrito, junto de todos e de alguns.
Esse é que é o legado que fica.  Isso  é que imortaliza ou não, o Homem !

Sentimos pavor de não sermos realmente mais do que o pó, em que nos transformaremos ...
E o pó é volátil, o pó vai com o vento, o pó transporta um anonimato doloroso, e até os mais humildes, conscientes e realistas, sentem que é injusto ser em vão, a sua passagem por aqui.  
Que diabo ...  boa, má, louvável, reprovável ... fomos gente ... tivemos "história" !
Temos direito a um lugar na "galeria" !!!...

Recordo o  filme  que a maioria de vocês  lembrará seguramente, baseado na  novela do mesmo nome, de Nicholas Sparks :  "As palavras que nunca te direi".
O enredo da película assenta exactamente, como referi atrás, nas palavras, nos sentimentos, nas emoções, nas histórias, narradas anonimamente, encerradas e transportadas numa garrafa lançada ao mar.

Esta  ideia  é  assaz  romântica,  é  emocionante,  é  nostálgica,  poética ...
Comporta em si, a remota ilusão de que um dia, alguém lerá aquelas confidências ...
Onde?  Quando ?  Quem ?
Ninguém poderá responder a nada disso ;  é como uma página da nossa vida, uma folha do nosso destino, que seguiu à deriva pelo Mundo.
Somos nós a falarmos para alguém sem rosto ; é um pouco do que somos, transportado a outros corações ;
é parte das nossas memórias, que alguém / ninguém irá partilhar com alguém / ninguém, também sem rosto, mas certamente com alma !...

Nunca o fiz, mas às vezes penso que gostaria de um dia, também embarcar nessa viagem ... largar a minha garrafa numa qualquer maré, de um qualquer mar ...
E já me perguntei, quais seriam as minhas palavras, sem destinatário conhecido ??

Afinal, talvez simplesmente encerrasse nela, um poema ...  um poema da mulher-poetisa, eleita pelo meu coração, e que tão bem dá eco à alma feminina ... Florbela Espanca 
Talvez este ... quem sabe ??!!...


                    " EU "

Eu sou a que no Mundo anda perdida,
Eu sou a que na Vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
sou crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
impele brutalmente para a morte !
Alma de luto sempre incompreendida !...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao Mundo p'ra me ver
e que nunca na Vida me encontrou !    
  
                                        Florbela Espanca ( do Livro de Mágoas )
                                                       


Anamar

"APONTAMENTO"



Nem sei por que estou aqui ... afinal são seis horas da manhã, há hora e meia que não durmo, e "ela"  chamou-me ...  Decididamente chamou-me!

A minha casa acesa com uma luz clara, mansa, silenciosa, levou-me à vidraça. Claro que ela era dona do céu. Ela já ofuscava a luz do dia  que ainda  não espreitava,  e a das estrelas que esfregavam os olhos de sono ... e de espanto.
Ela, e um pássaro branco e roçagante, dividiram o céu escuro. Talvez uma coruja em regresso a casa !

Não tenho nada para dizer, não tenho nada sobre que valha a pena fazer-vos perder tempo. Só que, agora é assim ... as madrugadas trazem-me quase sempre à realidade antes da hora, começam a massacrar-me os miolos com demasiada antecedência ... E entre  rebolar-me  naquela cama vazia, e vir "à janela"... resolvi vir abrir as cortinas e espreitar-vos desse lado, na tal hora mágica, de silêncio absoluto, de seres inquietos como eu, que se passeiam por aqui.
Comungamos das noites, dividimos as madrugadas, ouvimos o silêncio.
 Eles lá ... eu, cá ... ainda!...

Há de facto algo estranho, na noite.
A noite é uma entidade que se impõe ... tem os seus segredos e as suas histórias.
A noite é o albergue dos que circulam contra-ciclo quase sempre.
Claro que há quem conviva com ela, porque está assimilada nas suas vidas, por imposições profissionais.  Mas mesmo aí, eu acho que as cumplicidades que se geram nas noites e nas madrugadas silenciosas, é muito particular.  Não tem a ver com as cumplicidades desnudas, partilhadas no buliço dos dias confusos.
Diria que têm uma força especial. A força do comungado num segredo que o não é.

Bom, começam a circular os primeiros combóios, que certamente levam gente que adoraria estar numa cama como a que eu rejeitei.
A vida de quem tem vida!...
A minha mãe, seguramente, também já está levantada há algum tempo.  Essa aí, tem pressa em sorver o resto do tempo que lhe atribuiram para ver luas sobre luas, por enquanto.
Essa aí, faria de cada vinte e quatro, quarenta e oito horas, para que a estrada ainda se lhe alongasse ... porque ela ama viver.
De facto, tenho poucos dos genes dela !...

E vou voltar para o segundo "round" de mais uma noite sem história ... ou com tantas histórias, que me fundem a cabeça, e me trazem à janela, para lhe render homenagem ... a ela, à rainha imponente da noite ... e ao pássaro branco, talvez uma coruja ... em rota de "casa"...

Anamar

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

" A DESTEMPO "




Já  chegaste tarde ...

Tarde demais, porque até o sol já foi.  Sabes, o sol agora dorme mais cedo, porque afinal já estamos naqueles dias dourados, castanhos e vermelhos,  em que de certeza os castanheiros já perderam as folhas.
Eu apenas imagino ... porque aquele caminho também já não é mais meu ...
Talvez agora seja o tempo dos ouriços ... não sei !

A areia despovoou-se, e agora são as gaivotas que reinam.   Têm o areal por sua conta, para o seu bailado de início de dia.   Até porque o mar atroa lá atrás, e não está satisfeito nesta época.
Deixou de ser azul ou verde, e vestiu-se daquela cor que é e não é ... cinzenta, apenas rendilhada pela profusão de espuma branca, com que galga os rochedos.
As algas, essas são perenes.  Deixam-se vestir e despir, por cada maré que sobe ou desce.
A brisa, mais fustiga do que acaricia, e não demora a tornar-se vento.

Já chegaste tarde ...

Énya já não canta "Amarantine", nem "Only time", naquela aparelhagem sincopada.
Eu, esqueci as palavras, esqueci o calor, esqueci-me de mim.  Sei lá quem sou !!...
Já sou outra, outra vez, nestas mil outras que sou ao longo da minha vida.
Não há farol por aqui.  Não há sequer um pontinho luminoso, como o que brilha às vezes, na janela de um monte, perdido em nenhures, no isolamento do montado interminável, no meu  Alentejo ... e que sempre fala de gente, de família, de candeeiro aceso na mesa da janta ...
Aqui, até as estrelas ficaram por detrás dos castelos de nuvens, ameaçadoras.
Não tarda começa a chover, e a chuva sempre nos empurra para a "concha" !
Não é como a chuva abençoada de Samaná, da Jamaica ou de Sta. Lucia.  Essa, era doce, era quente, e vinha embrulhada em papel de presente, e laço de fita.
Essa, puxava-nos para dançarmos alucinadamente, abandonando-nos à sua carícia ... lascivamente, pecaminosamente !...  Mas essa tinha segredos !...
Aqui a chuva chama-se silêncio, solidão, cansaço ... escuridão ...

Já chegaste tarde ...

Os caminhos e os sítios já te esqueceram.
As minhas taças ficaram plenas de rosas secas, antúrios antes de morrerem, e alfazema dos montes.
Não sobrou nenhum espaço ... e isso era um sinal.  Um sinal que eu não percebi ...
Logo eu, que sei ler os sinais todos !...
Já pouco sei ;  e o que sei está muito enevoado, demasiado enevoado, como um tule envolvente de leito nupcial, como uma teia tão bem tecida, que quase se opacizou ... como as tais "nieblas" que me apavoram, mas que sempre atazanam a minha vida, como um determinismo ou um karma que não entendo ...
O que sei, parece um anátema nos meus dias, que "Alguém" entendeu eu merecer viver !

Pouco sei, de facto ...  Não me movo ... plano ;  Não saboreio o ar ... deixo-o entrar e sair em mim ;  Nada me dói ... estou anestesiada de vida ;  Não durmo ... perambulo pelas madrugadas, nos sonhos, como um sonâmbulo perambula na noite ;  Sou como uma folha tombada na correnteza, que avança, recua, encalha, dança, rodopia, sem ir a lado nenhum.
Mas também não tenho lugar para ir, não é ??   Que importa !!!...

Já chegaste tarde ...

Agora já não consigo achar-te mais.  Já não sei como se faz.
Perdi os rumos, esqueci as marcas, não tenho referências, os meus pontos cardeais são falaciosos.
Os caminhos que me levavam até ti, enganadores ;  sempre desembocam em rotundas que me deixam entontecida, e como a roda do hamster, intencionalmente incapaz.
Eu acho mesmo, que é essa coisa vaga que chamamos destino, que feito um diabinho brincalhão goza à minha custa, como um menino extasiado num parque de diversões, que enlouquecido, travesso, quer experimentar todas ao mesmo tempo !
Mas aos meninos a gente perdoa tudo, não é ??!!...

Agora, ainda que eu quisesse ...

... tu já chegaste tarde demais !!!...

Anamar

sábado, 29 de setembro de 2012

" MONÓLOGO "



Já te perguntaste se ainda vivo ??
Porque viver não é igual a estar vivo !...
Porque imaginares que sou feliz, é obviamente uma impossibilidade, já que ninguém é feliz  com perdas no percurso, não é ?
Cada perda é um buraco a mais, desde que chegamos até que partimos.   E não há remendos que cubram os buracos deixados aqui e ali no nosso eu, cada vez mais retalhado !...

E já te perguntaste se respiro, ou se simplesmente deixo entrar e sair o ar nos meus pulmões, que mecanicamente mantém o coração a bater ?!
Sim, porque ele apenas bate, não pulsa !   E pulsar é algo muito diferente.  Pulsar é uma coisa que nos arranca do torpor, que nos levanta do chão, que nos aquece a alma, que nos traz sorriso e luz ao rosto, e que nos sussurra ao ouvido, que é uma bênção cada dia das nossas vidas ...

 E se durmo ...  Já te perguntaste, se naquele período em que me desligo do Mundo, continuo a procurar-te, em sonhos, ou se a escuridão é tanta que não visualizo mais nada?!

E se rio ?  Isso não te perguntas, porque isso tu sabes que não acontece mais, porque nenhum condenado consegue rir ... e a Vida lê-me sentenças sobre sentenças.  E cada uma que vem, me encontra o rosto cada vez mais fechado e desistente !
Mas também já não choro ... O nó que está bem aqui no peito, consegue estrangular-me a garganta, mas já não tem força para me soltar lágrimas ( que talvez fossem misericordiosas, de alívio ) ... apenas porque já secaram todas, há muito !
Claro que não canto nem danço, ainda que a música me embale docemente, e divida comigo os dias ...

Já te perguntaste se ainda vejo, ou se apenas olho o que me cerca, por insensibilidade e indiferença ??
Pois é ... É que , estranhamente, o êxtase, a paixão, o espanto e o assombro que me tornavam de novo uma criança, quando olhava um nascer ou um pôr-de-sol, quando seguia o desfazer  das ondas nos rochedos, quando pegava uma flor entre as mãos ( mesmo aquelas humildes dos campos ), quando seguia com o olhar, perdidamente, o voo da minha gaivota rumo ao infinito ...  estranhamente, esse êxtase, essa paixão, esse espanto e esse assombro, deixaram de fazer sentido, porque aconteceu o que eu diria ser impossível em mim ... fiquei indiferente, insensível, dura, distante ... adormecida no coração e na alma ( se ainda não a perdi também ) ... em suma, desaprendi de ser criança outra vez !

Já te perguntaste se tenho força para me levantar por cada manhã, se quero encarar cada dia que começa ... ou se prefiro confinar-me ao silêncio e à escuridão das madrugadas, em que o Mundo pára, em que os mortos vagueiam, e em que a vida adormece ?!...

E se sonho ??!!
Bem sabes que não !...  Afinal, há muito esqueci como é essa coisa fantasiosa com que o ser humano, masoquistamente, gosta de se enganar.
Bem sabes que há muito deixei de acreditar que "fazer de conta", minuto a minuto, segundo a segundo, ainda faça algum sentido para mim.
Bem sabes que desisti de me mascarar de eu mesma, porque se algum dia fui alguma coisa, também não sei mais onde pára !...

E o que faço hoje dos meus dias, já te perguntaste ?
Sim, porque o sol e a lua que são teimosos, continuam a dividir isto, em dois reinados : o da luz  e o da escuridão.
A escuridão acompanha-me neste momento com frequência crescente, porque nela há o silêncio, o recolhimento, a ausência de gente, à excepção dos loucos como eu.
A noite é cada vez mais dos loucos, eu acho !
E os dias ?  Nos dias tudo me é excessivamente indiferente.  Os dias são formados  pelas horas em que expio as minhas faltas, as horas em que me embriago com cálices de fel e veneno entorpecente, que me adormecem a instantes.
Nos dias, eu caminho por ínvias estradas, que nunca vão dar a nenhum lado, que nunca sequer têm fim ou saída ... porque princípio têm, continuam a ter.
Os dias são formados pelas horas do não valer a pena, as horas em que dói  ...  Às vezes dói, outras não ...
Os dias têm demasiados atalhos confusos, cada vez mais confusos, num labirinto infernal, cansativo, desgastante, vazio e frio ...  frio também ... ainda que haja quarenta graus lá fora !
Apenas porque não vale a pena ... já não vale a pena ! ...   Já não vale a pena sequer importar-me com o valer a pena !...

Podias agora perguntar-te, se ainda acreditarei na esperança.  Na esperança de alguma coisa, na esperança em alguma coisa.
Tu, que me sabes por dentro e por fora, tu que mesmo quando eu não falava, sabias o que eu dizia, tu, cujos olhos conseguiam devassar os meus, e cujas mãos eram sábias e sabiam dos meus segredos, tu, que me arrancavas doçura, e trazias à tona o melhor de mim mesma, tu, que conseguias tornar-me com uma só palavra, uma menina ingénua outra vez ... tu sabes bem, que eu não sei mais o que significa esse vocábulo, esse anseio do Homem, esse estado de espírito ;  tu sabes bem, que pior que ignorá-lo, é não acreditar mais nesse impulsionador de almas, é tê-lo matado, como contra-natura, uma mãe tira a vida ao próprio filho que gerou com o maior amor do Mundo, dentro de si !

Mas também não importa mais !...

Tu, que me conheces desde que nasci, tu, que tiveste muitos rostos, muitos corpos  ( mais ou menos escaldantes ), muitos corações ( que bateram próximo, ou longe do meu ) dentro do peito, tu, que foste infinitos cólos em que adormeci ...  tu, que enrodilhaste sucessivamente os lençóis da minha cama, que deixaste a mistura de cheiros na minha almofada, que deixaste olhares sobre olhares dentro dos meus olhos ...  tu, que acabaste sendo o nada, no tudo que me eras ...

... tu ...  já te perguntaste ??!!...


Anamar

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

" O GATO E O RATO "



Há tempo para viver, tempo para morrer, tempo para lembrar, tempo para esquecer, tempo para durar e também para acabar, para chorar e também para rir ...

Creio que a Vida tem "timings" que não se explicam, e o mestre é sempre o Tempo !

Ao sabor dele nascemos, crescemos e morremos.  Com ele, construímos e destruímos as construções de Lego, que são a nossa existência.
Tem um transcurso ilógico, ou com uma lógica que quase sempre nos escapa, ou que talvez nem devêssemos ou pudéssemos jamais apreender, embora pensemos que sim.
As suas determinações são sentenças proferidas diariamente, contra as quais pouco podemos fazer, e que independem dos nossos desejos, vontades ou sonhos.
E surpreende-nos.
Sempre nos surpreende, positiva ou negativamente, de forma nunca controlável, apesar de nos questionarmos permanentemente, e permanentemente nos pormos em causa, em todas as circunstâncias.

Como um vento de tempestade, quantas vezes varre, trucida, atropela, vá-se lá saber porquê, este ou aquele rumo que imprimíramos ao nosso percurso ( achando-o lógico, favorável, importante ),  com um indiferentismo aterrador !
O  tempo  não  mede  consequências,  não  explica,  não  se  compadece !...
É de uma imprevisibilidade que nos deixa continuamente à deriva, baloiçando-nos nas ondas, para cá e para lá, sendo tão possível chegar à costa, como morrer por cansaço, em alto mar.
Confunde-nos o tempo todo, rouba-nos todas as convicções ou certezas.  Joga connosco diariamente, com cartas viciadas, um jogo desigual, perante as quais, somos incapazes de reagir ...

Com uma ironia e um sarcasmo desafiadores, brinca connosco sadicamente, por pura diversão, como o gato joga com o rato, na agonia final.
Sacode, empurra, puxa, ignora ... para, num subtil movimento do moribundo, lhe pôr de novo a pata em cima, e lhe mostrar quão à  mercê da sua vontade, está a dele, totalmente impotente.
Resta-lhe abandonar-se e deixar-se morrer, o mais rápido possível.

Essa tortura, o tempo usa maquiavelicamente connosco,  todos os dias, e parece deleitar-se com o nosso estertor, o nosso esbracejar desesperado, a nossa incapacidade de boneco manipulado .
E também como o gato insensível, mostra o seu poder de predador sobre as presas indefesas, que somos todos nós, reféns da sua vontade e dos seus desígnios ...
Desarma-nos com "tiradas" comuns aos doidos, aos alienados, aos inimputáveis ... gozando com  a pessoa  que nós somos ;  cria-nos expectativas, alimenta-as, engorda-as, e a seguir, com um "porradão" bem forte na cabeça e no coração, deita-nos irrecuperavelmente por terra ... E ri ... ri com aquele riso escarninho, devasso, gozador, que parece saborear, típico dos que estão por cima ...

E de repente,  há um dia em que sem imaginarmos ou sabermos porquê, o que era, não é mais, o que sentíamos, deixámos de sentir, o que sonháramos, deixou de ser sonho ... e tudo volta ao antes do ser, ao antes do sentir, ao antes do sonhar, como se se tivesse fechado com o segundo parêntesis, uma frase escrita entre eles.
E perguntamo-nos, como foi que isso aconteceu ?

Bom, eu acho que simplesmente o tempo dobrou uma esquina ... tão só !
Mudou a direcção ou o trajecto desenhado, "fintou" o GPS ... como os meninos safados, fez a pirraça de nos confundir todos, e de nos deixar à nora, sem percebermos de facto, como de um dia para o outro, como num "clique", como numa imagem instantaneamente "flashada", se escreveu o último capítulo de um livro !...

E percebemos uma outra vez, que não somos mais que o ratinho impotente e agonizante, largado entre as patas do gato, que o olha de cima, com uma indiferença absoluta, e que talvez nem o coma ... basta-lhe já que o destrua !!!...

Anamar

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

" CARTAS DE AMOR ... " :)))))



As minhas noites são muito engraçadas nos últimos tempos.
Acho que isto é o preâmbulo do fim ... rsrsrs.   Perceberão porquê !

Largo o computador - que nos últimos tempos me saturou, me irrita, de certa forma mexe comigo - bem cedo.
Já não vou tendo paciência para os pps  ou outros mails, correio personalizado é raro.  As pessoas não se escrevem.
Tendo percorrido algumas "capelinhas" obrigatórias, como lhes chamo, e não tendo também muita pachorra para paleio de messengers, porque pessoas interessantes vão rareando ( sinal dos tempos ), aí pelas dez da noite, desligo e vou para a cama.
Tenho bons filmes gravados, mas até esses, raramente vejo.   Limito-me a três ou quatro canais, daqueles em que a gente não precisa pensar, especo-me frente às imagens que vão desfilando pelos meus olhos  ( é certo que a cabeça, na maior parte das vezes, sem avisar, vai indo, e quando dou por ela, onde é que já vai !... ), até que,  muitas noites, começo a percepcionar os sons, a música ou as vozes, bem longe.
É quando  percebo que já estou entre as três e as quatro, ou dizendo melhor, entre a meia-noite e a uma, de certeza.
Olho o relógio e confirmo ... é certinho e direitinho !

Digo então para a Rita, que há muito dorme ao fundo da cama : " Vá Rita, horas de ó-ó !..."  ( a quem mais poderia eu dizer isto ?!... ) ;  ajeito as almofadas ao meu gosto, olho de novo o relógio, olho o quadro a óleo do meu pai, que está perto da minha cama, como num ritual de despedida, e apago a luz.
Última  e  felizmente, não tenho muito tempo para continuar a pensar em demasiadas coisas ( e "agradeço" por isso ) ...  Adormeço.

O meu sono é extremamente leve.  Sempre o foi.  Devem ser resquícios da "profissão" de mãe, com marido, que, desde as filhas chorarem, chamarem, ou cair a casa, nada o tirava do "doce aconchego", e por isso apercebo-me das voltas e voltinhas que dou na cama, pela noite fora, enrolando, que nem croquete no pão ralado.
O relógio biológico é impecável.  Acontece com frequência, noite após noite, olhar o mostrador luminoso, exactamente às mesmas horas, por exemplo, 2,22 ....
E além de constatar que na noite anterior, o mesmo se verificara, ainda tenho "tempo" para achar super gira, a pontaria assaz frequente, de os algarismos serem todos iguais ... Vejam para o que me dá!

Depois, aí pelas 3.30 h / 4 h, desperto mesmo. Desperto e percebo  que não adianta muito, persistir.
Ultimamente levanto-me, porque estranhamente nessas circunstâncias, a cama ganha "picos" .  Todos sabemos isso, creio.  E fazer o quê?
Volto ao computador.
Aí é uma hora engraçada.  É a hora de perscrutar a noite, olhar o Mundo, deste lado.
A maior parte das pessoas, porque são normais ainda, estarão em "vale de lençóis", como cabe a qualquer cidadão, que não tenha motivos que o arranquem ao descanso óbvio.
Normalmente "vejo" apenas, porque evito interromper, um amigo cujo ritmo eu sei  ser exactamente notívago, que é "militante" do FB.
Há outro que "cruza" trabalho ( diz ele ), com a minha insónia, e se assim for, encalho por ali um bocado.
A última, mas não frequente alternativa, é "palear" com alguém do outro lado do Mundo, a partir de Dallas, Estados Unidos, que devido à diferença de fuso, tem seis horas a menos, e portanto está em pleno pós-jantar.
E quando dou por mim ( esta noite por exemplo ), eram seis da manhã !
Consciencializei que cada vez estou pior, que a essa hora muitos cidadãos úteis e trabalhadores deste país, já caminham para os combóios rumando a Lisboa ( aliás a circulação dos combóios já se ouve distintamente da minha casa, perto da estação ) ... que daí a pouco as criancinhas de escolas e colégios estão quase a saltar das camas, a duras penas, que a luz do sol ou não, não demorará a clarear o firmamento.
E com algum cansaço então, regresso à cama que me volta a saber bem, e consigo dormir mais umas três ou quatro horinhas.
Enfim, no cômputo global, fiz uma noite de sono, em duas fatias.   Claro que agora, que é uma da tarde, é que me está a dar a "pedrada" da insónia, e começo a ficar rabugenta como os miúdos ...

Dizia eu no princípio, que este "festival" é o preâmbulo do fim.
Isto, porque segundo se diz e se sabe, à medida que os anos avançam, a necessidade de sono diminui, parecendo que o organismo, não querendo desperdiçar os últimos cartuchos da vida, tenta rentabilizá-los, mantendo-nos mais tempo acordados, para os aproveitarmos o melhor possível.
Às vezes "o pior possível ", diria ...  Mas claro, isto é o meu mau feitio, como se sabe !

Dizia eu também, que graças às novas tecnologias, as pessoas não se escrevem ...
Este é um dos sinais mais tristes dos tempos, acho .
Lembro o tempo das grandes missivas, manuscritas ;  lembro o tempo dos postais dos correios ( quando havia menos a dizer ), dos aerogramas no tempo da Guerra Colonial, dos envelopes emoldurados com aquela cercadura de riscas enviesadas, vermelhas e verdes do correio aéreo, para o estrangeiro ...  o tempo das Boas Festas, religiosamente enviadas a familiares e amigos, pelo Natal ( no tempo em que os cartõezinhos eram baratos e a franquia também ) ... e faziam-se listas dos destinatários, não esquecêssemos alguém ...
Se estávamos de luto, os cartões de visita e os respectivos envelopes,  à  semelhança  dos  "fumos"  nas  mangas  dos casacos   ( quem não lembra ? ), eram contornados com cercadura preta ; mais larga se o luto era recente, mais fina, se já se aliviava...ou se o grau de parentesco não era tão próximo ...
Lembro o tempo em que se parabenizavam as crianças e os adultos, pelos aniversários, pelos eventos relevantes da vida ... tudo pelo Correio, tudo com letrinha mais ou menos desenhada, mais ou menos legível, mais ou menos rabiscada ...
Lembro com saudade o tempo das cartas de amor, epístolas intermináveis, também mais ou menos "inflamadas", contendo  poemas  às  vezes,  florzinhas  secas  também,  a marca  do  bâton dos lábios, em jeito de despedida !...
E lembro o tempo em que a chegada do carteiro se aguardava com desejo, curiosidade e alegria, com frequência.
Em que se olhava para o chão junto à porta da rua, porque em portas onde não existia caixa, o correio era metido por debaixo da dita ...
E os carteiros eram muito mais simpáticos, porque não nos traziam só  contas  para  pagarmos ... aliás,  as  contas  nem  vinham  pelo  correio !
Hoje, o abrir da caixa do correio é diariamente um susto, um filme de terror, porque nunca se prevê nada de bom .... rsrsrs !!!

Bem, vou ficar por aqui.
Esta "viagem" de nostalgia, está a fazer-me sentir dinossáurica, melancólica, saudosa ... Se calhar mais cinzenta que este dia nada prometedor, que faz lá fora !...

E tudo isto, porque, p'ra variar, me comuniquei despersonalisticamente, mais uma vez esta noite, com uma pantalha à frente do nariz, com o "éter" de permeio, com quilómetros galgados mais depressa do que se me transportasse nas asas de uma borboleta monarca, em plena migração !...
Porque uma coisa que chamam de Internet, rouba despudoradamente todos os dias, o lugar aos carteiros, e ao romantismo dos corações de antanho !!!...




Anamar

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

" ENLOUQUECI DE VEZ ... "



O tempo virou cá com "uma pinta" !...

Num dia estava eu esbaforida com calor, a "trabalhar para o bronze", naquela liberdade de corpos nus, cabelos soltos, gaivotas na areia ... e no seguinte, trovejava, chovia de noite ( e dava-se bem por isso ), e a temperatura começou a obrigar-nos a pensar que não é lá muito adequado talvez, ir para a rua de alcinhas, a brincar que ainda é Verão.

E não adianta querer resistir, e fingir que o sol tem o brilho e o calor de antes, e que aquelas nuvens lá ao fundo, são só as nuvens da minha vida, e nada têm a ver com o tempo atmosférico.
O sol arrefeceu, nesta "era glaciar" que começou a instalar-se lá fora, sem dó nem piedade, e que dentro de mim já se instalou há muito, ou é mesmo vitalícia !  Muito mais garantida que as reformas dos políticos ... que nunca falham !

Que fazer??

Eu até sei ... emigraria, fugiria atrás do sol.
Bastava segui-lo quando ele se põe, e não o largar mais.
Evitava esta tremenda injustiça, de por cada dia, ter que anoitecer !
Para quê?  Serve a quem, o escuro ??
Só se for aos gambuzinos, ou a quem queira esconder-se de um delito inconfessável ... e aos gatos, é verdade ... que assim se tornam todos pardos !
Os morcegos ... pois é, esses e as corujas, também gostam mais da noite.
Mas eu,  como tenho o meu lado "lunar" perenemente garantido, dispensava-a cá fora .

Já perceberam que disserto displicentemente, como quem passeia numa "Harley",  por uma estrada sem trânsito, ou seja ... deixando-me ir, se calhar apenas deixando-me ir ao sabor do passeio, pelo meio de campos planos, verdes, dourados, salpicados das cores de todas as flores que existem.
O vento, não chegava a sê-lo.  Seria só uma brisa leve, a refrescar-me o coração.
Pássaros havia-os em bandos, em formações geométricas e disciplinadas, determinados em encontrar um destino qualquer, lá longe ;
ou então endoidavam, brincando de rasar os verdes, subindo quase ao infinito, para se lançarem a pique, como os acrobatas fazem quando se soltam das mãos do parceiro, e o nosso coração cai a pique com eles ... para no último momento, ficarem presos pelos pés ... quando nós já quase morremos de susto !

E sol ... Claro que esse passeio era num dia bem iluminado, com aquele sol que parece prometer mundos com ele, que parece transportar na sua luz uma coisa que não sei o que é, a que chamam felicidade, e com que os meus contos infantis obviamente terminavam  : "  e foram felizes para sempre " !...

Esses  finais, sempre tive esperança de vir a compreender mais tarde, e pensava na altura : " Sou muito pequenina para perceber esta parte, mas depois vou entender bem " !

Por que raio contam estas coisas às criancinhas ? Por que é que nos começam a "engrupir" desde cedo ???

É  certo  que  deve  ser  o  correcto, porque geração  após  geração,  a  " Branca de Neve ",  a  " Cinderela " ,   " Os três porquinhos ",   a   " Princesa da Ervilha ",  a  " Carochinha e o João Ratão", a " Alice no país das Maravilhas ",  o "Gato das Botas " e os outros todos, continuam a pé firme.
Dá ideia que querem que fiquemos lá atrás, imbecilizados, a viajar por ali.
Muito melhor, que percebermos que afinal ao crescer, é que nunca entenderemos mesmo, a frase final das histórias, e que os berços de embalo param de baloiçar, as fadas e os príncipes são invenções,  duendes e gnomos bonzinhos não há, bruxas sim, gigantes e monstros das masmorras assombradas, avançam para nós todos os dias, e que o Silvestre ... o gato simpático e sempre enganado pelo ratinho espertalhão ... come-o mesmo, como faz qualquer gato que se preze !...

Claro que cada conto tinha uma "moral" .
Já na primária, a professora perguntava : " Meninos ... qual a moral desta história " ??

Aí está outro logro !  Porque esse conceito também acabou .  As histórias hoje, são absolutamente amorais, para não dizer imorais, que assim é que estaria certo !
Aliás, hoje não há histórias  sequer,  pura e simplesmente !
O nosso imaginário infantil com que resolveram  rechear-nos as mentes, desde que começámos a pôr os pés no chão, seria razão mais que suficiente para fazermos uma queixa na APAV, ou um telefonema para a linha protectora dos maus tratos infantis ...

Enfim, desculpem .   Vou parar de insanidades.  Isto é nitidamente já, falta de serotonina ou dopamina, porque o sol está de malas feitas, e eu não tenho dinheiro para fazer as minhas, e ir com ele, apesar de lhe ter pedido que me fizesse uma reserva para a viagem, mesmo em classe económica.
Por isso é que o meu imaginário hoje, não é o que me impingiram .   Cresci, e vim parar a uma "selva" antipática,  para  a qual  não me tinham prevenido.
O meu imaginário hoje não é infantil, é senil, e como todas as fantasias, jamais passará disso, vocês  verão !

Mas sonho ( porque no seu preço, o Gaspar não vai poder tocar ), sonho à borla, à revelia da Troika, sem impostos ou cortes, que hei-de morrer no país do sol, da lua sempre cheia e provocadora, do mar, com as algas, os corais, as conchas, os búzios, as areias doces e douradas ... e as sereias pelas madrugadas ... O país do céu azul, das florestas e pradarias, das planícies e dos picos de neves perpétuas,  das flores e dos pássaros multicores ... da música e da dança ...  num lugar onde haja um coração com o meu número, e uma alma maior ainda ...  Um país de cascatas, e rios mansos com peixes vermelhos ... onde finalmente eu tenha razões para sorrir, rir ... gargalhar insanamente ... e onde a minha história possa terminar  justamente com a velha frase das historinhas que me contaram há tantos, tantos anos : " ... e foi  feliz para sempre !... "

Anamar

domingo, 23 de setembro de 2012

" TUDO ISTO TAMBÉM É A VIDA !... "




Será  possível  que cheguei  há  um quarto de hora ao café, e já ouvi dez vezes nas mesas ao lado : " É a vida ..." ?!...
Bom, se não foram dez, foram oito ...

A população é sempre a mesma.  As células "especializadas" nos vários temas, fazem-se por mesas.
Como diz a Lena e a Catarina : " Sai desse café ! "
Mas eu sou militante, masoquista, e sempre me afeiçoo ao que não devo ... e insisto e persisto.
Já pus os "phones" nos ouvidos, procurando abafar, com Énya, a distância que me separa do "mundo".
Nas televisões à minha frente, o problema está na escolha.  Numa delas, no circo de feras da Assembleia da República, os maluquinhos degladiam-se, a repetir as insanidades do costume, nesta "rentrée" particularmente quente, e sem horizonte.
Dizem e repetem, abanam as penas de pavão ... redizem, dissertam e masturbam-se mentalmente a ouvirem-se, porque de certeza, muitos deles, mais ninguém ouve.  E realizam-se e deliciam-se ...  São os maiores da sua freguesia !

Este meu humor cáustico, é triste ...  É um esgar de tristeza, se calhar uma caricatura mais triste ainda de humor, que como eles ( os da Assembleia ), também julgo que tenho, enche o meu "ego", e não tenho de todo !!!

O outro televisor vai "parindo" sessões contínuas de desporto e mais desporto, sendo que o privilegiado é o futebol, claro ;  cá, lá ... em todo o Mundo.
Felizmente que sou suficientemente "cegueta", para daqui donde estou, só perceber que se trata de um relvado verde ( depreendo ) , e uns gajos quaisquer, com camisolas de cores contrastantes com esse verde  do tapete, aos pontapés a uma bola ...
Não sei quem são, não me interessa ... tenho raiva a quem sabe !

Na mesa ao lado, três amigos, para lá de ultrapassado o "prazo de validade" ... a "mijar p'ras botas", na "linda" expressão frequentemente usada pelo Carlos ( como se ele não fosse também lá chegar ), falam, ou de comida ou de futebol, óbvio ...
Um deles trabalhou ( cá p'ra mim, na outra encarnação ), em restauração.  Já falou de "massada" não sei de quê, em empadão de atum, em soufflé de gambas ... depois referiu o Bairro Alto como um local onde se come bem ... e o resto já não ouvi, porque já estava saciada ...
Hoje, e nos próximos dias já não vou precisar de almoçar !
Não se pode ir além do "bom dia", porque a história do AVC eu já conheço ( contada a mim e a quem tiver o azar de lhe dar uma "abébia" ), das caminhadas que faz ( percorre a cidade inteira, segundo ele ), com que vai "curando" as maleitas do corpo ( ele acredita ) ... da solidão ( eu não acredito !! )

A D. Maria dos Anjos, uma alentejana com todo o sotaque de Nisa, a sua terra natal, fala das azevias e pastéis  de  massa  tenra, que vende e com que ganha a vida.  Um  único  filho,  que se  suicidou há três anos ( overdose ), deixou-lhe duas netas gémeas, que alguém ficou cá para criar !
É "mundialmente" conhecida, em particular aqui, onde trata toda a gente por "meninos", dos zero aos noventa ...
Fala altíssimo, conta as histórias todas, as relevantes e as não tanto, a quem quer e a quem não quer ouvir.

Depois há um casal super-ternurento, discreto, muito simpático. São pessoas que sabem "estar", como se costuma  dizer.  Estão na sua mesa, lêem o seu jornal, conversam restritamente com uma ou outra pessoa, e entre si.
Ambos de cabelos grisalhos, ou melhor, o senhor, com o pouco cabelo que tem, grisalho. Tem metade da altura da mulher, é "fofinho", muito sorridente, com um rosto de bonomia, que inspira vontade de que se mime.

Aí pelo meio-dia chega o "doutor", de quem já falei num post lá para trás. Compra três jornais por dia. Um, de notícias e dois desportivos.
De um deles, sou herdeira diária, para a minha mãe.
Chega, e antes de se sentar, vai cumprimentar religiosamente os utentes de duas ou três mesas, e recolhe à sua.
O "doutor" impacienta-se sempre que há alguém barulhento, perturbador em excesso, da calma da sua leitura.
Quando está sentado ao alcance dos meus olhos, trocamos olhares de solidariedade reprovativa, porque eu também gosto do meu sossego, nesta espécie de "escritório" diário.
Ele é surdo, e usa aparelho no ouvido. Reduz o som ...  Eu, coloco o MP3 a tocar, e aumento o som !!!

"Choses" !...  ( como diria um amigo meu )

Hoje devo estar particularmente azeda, e sem estofo de resistência para muita coisa.
Tive que ir a Lisboa há pouco.  No carro, sozinha, eu e a minha mente viajante ...  Nem o rádio liguei .  P'ra quê ??
Numa passagem de peões, ao sinal vermelho, parei, obviamente.
Um dos peões que atravessava, era um jovem estudante, imberbe, como todos o são naquela idade ... de capa e batina.
Dei por mim, a meia voz, a dizer :  "Sim, sim ... capa e batina !!...  Mais um candidato ao desemprego " !...

À frente, na rua, um idoso, mais um sem-abrigo dos que povoam as nossas calçadas, a pedir esmola.
Ultimamente deixei de dar esmolas.  Ou empederni, ou defendo aquela demagogia barata de que o Estado ( que me vai ao bolso forte e feio ), é  que  tem  que  resolver o cancro  da  precariedade e da exclusão social, ( quando  estou careca de saber, que se esperarmos isso, morremos todos de fome !...  Portanto ... "balelas" ... Mas todos as dizem, não é ?? )

Na sala de espera do local onde fui, uma televisão, novamente distraía quem esperava, com mais outro programa "construtivo  e aliciante". Um daqueles excelentes programas tipo "Portugal no coração", "Praça da  alegria",  João Baião  e  companhia...Maya  e  companhia, Manuel  Luís Goucha e companhia ... etc, etc ( estão a ver o estilo ?? ) ... para atrasados mentais.  Todos a ganharem, entretanto, uma "pipa de massa" !...
Entrevistada no momento, Luciana Abreu, que conheço de propaganda jornalística, das revistas cor-de-rosa do cabeleireiro, do casa e descasa, destes pseudo-artistas de qualquer coisa ( só é preciso ter corpinho e sabê-lo usar ... ).
Meia dúzia de banalidades arrancaram-me uns quantos sopros, inspirações  profundas  de  tédio,  esgares  no  olhar  ( nada  abonatórios ... ), de impaciência ...
"Bolas" -  diria  a  minha  filha  que  pareço  estar  a  ouvir  - "Tu  realmente !!!  Embirras com tudo !!!..."

Bom, só pode ser o meu mau feitio, a velhice, o desânimo, o cansaço, a saturação da realidade de merda, em que nos movimentamos diariamente, a falta de horizontes ou perspectivas, a inexistência de objectivos ... enfim ... a angústia e a desmotivação que envolve a maioria das pessoas ... ou então ... uma "doença incurável" mesmo, que é este "mau acabamento" que recebi dos meus pais, e que nunca tive capacidade, força  ou  determinação,  para  conseguir  moldar ou alterar ... e  que  parece,  que cada vez "apuro" mais e mais !!!...

Anamar

sábado, 22 de setembro de 2012

" IN MEMORIAM "

Já morri ...

Já morri e não deste por isso ...
Não percebeste que te gritei por socorro ontem, quando o sino da igreja batia as três, e já são três outra vez, e tu não percebeste que entretanto eu morri ??!!...

E como vais então trazer-me as margaridas selvagens que me prometeste, quando a estrada dos castanheiros nos era caminho traçado??
E as violetas das pedras, nas sombras das árvores que esqueceram as suas histórias, porque tiveram princípio mas não têm mais fim ??
Deixaste secar, das encostas, as flores amarelas sem nome ;  como também deixaste o sol ir embora ... e o vento que despenteava os meus cabelos, também partiu já para outros horizontes ...
E por isso, não mos podes trazer ...
As gaivotas já não se empoleiram no alto dos postes, porque nós não estamos mais lá, e o Inverno chegou mais cedo ...
E  as  gaivotas  têm  coração  e  memória,  e  recordam-me ... acreditas ??!!

Foi tudo partindo, só na praia, no topo dos rochedos da maré baixa,  a desafiar a eternidade, continuam as pedras com que brincaste, como um código mudo, apenas para quem o sabe ler ...

Já morri e não me deixaste ver antes os teus olhos outra vez, ouvir a tua voz, ou escutar a tua gargalhada desbragada, com que aligeiravas as horas más.
Não me deixaste repousar no teu regaço uma outra vez, ou aquecer-me no teu corpo, naquele chão que guardou os contornos deixados por nós, em tardes felizes ...

E deixaste-me ir vazia, completamente vazia, simplesmente porque me deste e foste tirando, as rosas vermelhas que sempre me aqueceram o coração ...
Tal qual como me deste e tiraste também  ( com as palavras ), o querer, a esperança, o sonho e a juventude.
Foste tirando, porque sabias que eu ia partir e que tu não tinhas mãos para me agarrar, e não me deixar ir ... mesmo quando às três da tarde te gritei por socorro !

E  agora,  os pôres-de-sol  atrás  da  serra,  lá  para  os  lados  do mar ( porque ele sempre adormece no infinito, não é ? ), vermelhos de fogo, não têm quem os admire e se deixe perder em sonho, a olhá-los ... porque os olhos que os viam e os amavam, cegaram, fecharam, porque não conseguem ver mais ...

Já morri ... afogada ... submersa ...
Não nas ondas salgadas que me adocicavam o corpo, e que,  com o sol, me temperavam a pele com aquele sabor que amavas.
Mas afogada pelas lágrimas que nunca conseguiam escorrer-me pelas faces, e que o coração foi guardando, guardando, até que ... quando o sino da igreja ontem batia as três da tarde, e tu não me ouviste uma vez mais ... eu desisti ... e morri, meu amor !



Anamar

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

" RAPIDINHA "


São sete e quarenta da tarde .

É uma hora muito triste na minha casa.
Estou frente ao computador, a ver mails sobre mails, distraidamente, sem grande paciência, curiosidade, sequer fruição da beleza ou da mensagem de muitos.   Olho, mas não vejo, creio ...

Subi a persiana para que o meu quarto aclarasse um pouco, desta penumbra de fim de tarde, que se agiganta.
Ao longe o sol descia, laranja, na busca de mais um sono repousado, lá para os lados de Sintra, lá para os lados do mar.

Não entendo por que o silêncio se agiganta a esta hora, aqui em casa.  Não existe um único som.
Distraí-me e o sol poisou, e dentro de mim poisou mais um dia ... igual, exactamente igual !

Nas casas onde há gente, a esta hora o buliço aumenta.  Apronta-se o jantar, porque há quem o coma.
Nas casas em que há crianças, a balbúrdia é ainda maior ...  Sinal de Vida !
Hora de banhos, de trabalhos escolares, de luzes que se acendem, de televisões que se ligam ... enfim ... Sinal de Vida, realmente !...

Esta hora já foi muito feliz e alegre por aqui.
Faz algum tempo ...
Faz muito tempo, talvez !...

Vontade de partir, rumo a um destino sem rumo.
Vontade de ir sempre em frente, cortando linhas de horizonte sobre linhas de horizonte.  Porque depois daquele há outro, e outro, e mais outro .
Na Terra é assim ... nas pessoas, talvez não !

Escureceu ... o Outono apresta-se a bater à porta.  Afinal, dentro de três dias, pelo calendário, estará aí .
Entramos numa época do ano, que esqueceria se pudesse ...  E nasci nela !
Deve ser por isso !  Sou uma mulher outonal, nunca primaveril, menos ainda estival ...
Raramente há sol dentro de mim .  Poucos os dias em que nascem flores nos meus cabelos, frutos no meu regaço, arco-íris nos meus olhos !
Poucos os dias em que a música me soa, ainda que ao longe !   Nem a música, nem os chocalhos dos rebanhos, nem os sinos dos campanários, nem o canto dos pássaros.
A melopeia do vento do fim da tarde, para cá e para lá, como as cordas de uma harpa, tange os arbustos.
São os címbalos do paraíso, a descerem à Terra !
São as asas dos arcanjos, a adormecerem-nos  as dores da alma !
Tenho a certeza que nas areias, também as ondas, para cá e para lá, embalam os búzios e as vieiras ...
as algas só se deixam despentear... Essas nunca se deixam ir nas marés ...

Como seria bom hibernar !   Hibernar, e só acordar quando o sol se levantasse, numa outra Primavera !...
Quando as cerejeiras já estivessem em flor, os pássaros acasalassem, as borboletas tivessem deixado os casulos, e as nuvens tivessem viajado em migração, para outros destinos, lá donde vieram as andorinhas, os estorninhos e os gansos selvagens ...

Ou mesmo não acordar .
Ter a capacidade de passar à eternidade, sem dar por isso.
Deve ser bom abrir as portadas do "depois" ...
Depois do nascer, depois do sorrir, depois do acreditar, do chorar,  do sonhar,  do amar ... depois  de
imaginar  que  vivi ... depois  de  ser  eu ...
Eu, que transbordo e estou vazia, completamente vazia ;  eu, que sou a sombra abençoada da floresta e que sou a aridez da solidão do deserto ... eu, que sou fogo e sou a água que o apaga ... eu, que sou o luar e a nuvem que tolda a noite ... sou a vida e sou a morte que a destrói ... eu, que sou útero fértil de nados-mortos !...

Eu, que afinal sou e não sou nada ... absolutamente NADA !...

Anamar

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

REBECA - a " OUTRA "



A maior parte das mulheres tem uma Rebeca nas suas vidas !...

Uma Rebeca morta, como a tão bem retratada na obra de Daphne du Maurier,  ( passada ao cinema por Hitchcock na sua primeira realizção na sétima arte  - 1940 ),  ou uma Rebeca viva, que essa, na verdade vira uma "assombração" de carne e osso, contra a qual atrever-me-ia a afirmar, ser ainda mais difícil lutar.

A Rebeca morta e enterrada, tem a força que as figuras míticas encerram .  Seres cujas armas não são as que detemos, terrenas ;  são seres que pelo facto de não existirem mais, adquiriram uma auréola e um estatuto mágicos e misteriosos, que mexem com áreas nossas, os humanos, muito mais difíceis de controlar ... o imaginário e o psíquico.
O psicológico foge-nos ao controle, porque não é racionável, e o ser humano sucumbe facilmente ao seu domínio.

É com essa força do que não é racional, lógico, palpável, que alguém que já foi, continua a imperar, a dominar, a condicionar, e a infernizar a vida dos que por aqui estão.
Por isso, essa "outra", consegue impor-se, intrometer-se, e ter um ascendente destrutivo de permeio a um casal.

Conhecemos casos desses, em que a "falecida" não faleceu na realidade ;
aliás quem cá está, continua a partilhá-la, a ser acorrentado por ela, e a fazê-la "reviver" constantemente.
Fazem-se referências subreptícias, a figura velada perambula pelos espaços e pelas pessoas, há comparações subtis, e até há muitas vezes, uma servidão e uma observância religiosa, dos hábitos, costumes, esquemas de vida  passados.
Ou então, em desespero de causa, a estratégia pode ser outra ;  eliminam-se rapidamente todas as referências a essa figura indesejável, tudo quanto materialmente se lhe associa, acreditando-se que com essa "limpeza", vai também a Rebeca perturbadora !...

Admito que hoje em dia, não é já muito comum, que qualquer substituta de Rebeca se deixe impressionar e comandar, sequer se submeter tanto, a ponto do  " fantasma da defunta", conseguir ter a força do retratado no romance.
Posso dizer que essa aí, face aos tempo actuais, é mesmo uma caricatura grosseira, já distante, felizmente.

Eu diria que o que nos perturba na realidade em que vivemos, o que incomoda, desestabiliza e mexe com a mulher de hoje, são as "Rebecas" vivas que andam por aí, às vezes a fazerem-se de mortas, é verdade,  mas com  armas  sempre  em  prontidão ... as  mais  variadas !...
Essas figuras que não passam de arremedos pardos, e que de tudo fazem para se recolorirem, pensam conseguir, de uma forma demoníaca, manipular com um grau de legitimidade que se atribuem, os cordelinhos dos bonecos, com que ainda sadicamente pensam  brincar. ...

Pura ilusão !...
O "cenário" nestas situações, não é de romance ;  é aqui, no palco real, onde se jogam vidas também reais !
Só que elas desvalorizam ingenuamente, que a vida já não se faz nas penumbras de quartos escuros e ambientes de luz velada, de mansões fantasmagóricas, porque já não vivemos entre sombras, a ouvir passos do além, figuras perpassantes, fantasmas ridículos, diáfanos e assustadores.

Essas Rebecas, lembram-me grotescamente as crianças que se embrulham num lençol, onde fazem dois buracos para os olhos, e nos saltam ao caminho, na esquina de um corredor, dando um salto e soltando um gritinho, convictas de que nos pregaram um susto pavoroso, monumental, que nos poderá mesmo deixar em estado comatoso, irrecuperável ...
E nós compomos a cena, e para as deixarmos felizes, fingimos cair para o lado, deitamos a mão ao coração e fechamos os olhos ... e tudo acaba numa estrondosa gargalhada !...

Também há adultos que continuam infantilmente a mascarar-se, no dia a dia, com lençóis "aterradores", e que confiam piamente, na credibilidade da personagem que vão representando ...

Pobres Rebecas, essas ... sobretudo se tiverem nos esconsos dos corredores, Lilliths em vez de Evas, a esperá-las ...

E nos anos que vivemos, com a emancipação física, emocional e afectiva da mulher , a sua assumpção e gestão das duas entidades numa só ... já não assusta !
Lillith não voltaria seguramente a ser desterrada para o Mar Vermelho, nem preterida na mitologia hebraica ou na Bíblia dos cabalistas !...

Por isso, as Rebecas estão cada vez mais a remeterem-se às catacumbas, donde nunca deveriam ter saído ( porque o seu "reinado", na verdade, já foi ), donde se esbate o seu poder, que já não opera milagres ...
E, as assumidas Lilliths, conseguem apagar cada vez com maior facilidade, as rugas dos lençóis, e as marcas dos corpos das Evas, na vida dos seus homens, de que não abdicam facilmente !!!




Anamar