segunda-feira, 26 de novembro de 2018

" SIMPLESMENTE ... "




" Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu p'ra sempre ... "
                                                       
                                                               Miguel Sousa Tavares

Esta reflexão é dum pragmatismo que subscrevo em pleno.

Ao longo da sua vida, o Homem digladia-se, exaspera-se, desespera-se ... mata e esfola, pela posse, pela jurisdição, pela disputa de tudo o que considera pertença sua. Dos bens materiais, aos valores emocionais e sentimentais, tudo lhe parece passível de controlar, gerir ... possuir !

A filosofia budista, da qual me sinto próxima em muitos aspectos, ou pela qual nutro pelo menos profunda simpatia, fala-nos de dois princípios básicos, absolutamente meritórios, defensáveis ... e até indiscutivelmente  lógicos, eu diria, que, assimilados e interiorizados, nos simplificariam muito a vida, enquanto seres mortais, em trânsito por aqui.
Um deles, subjaz à postura do desapego que todos nós deveríamos praticar.  O desapego ao que nos rodeia, o desapego ao que detemos, o desapego por expectativas, certezas imaginárias, convicções instaladas.  Em suma, desapego por tudo o que tomamos como certo, garantido e até devido ... já que normalmente nos "concedemos" direito a privilégios, a futurologias favoráveis, a certezas invariavelmente garantidas, só porque ... merecemos, "temos direito" ... exigimos ...

O outro princípio de que pouco nos lembramos ou consideramos, prende-se com a impermanência da realidade que vivenciamos.
Nada é de facto mais real, do que a impermanência efectiva de tudo.
Bem ao contrário, a cada dia, a cada momento, em cada segundo ... tudo muda, varia, altera ...
Nada nunca é absolutamente certo, garantido, exacto ... A  vida é de precariedades, incertezas, dúvidas.  E dúvidas, porque nada pode de facto, ser tomado como certo e seguro.
O que nos rodeia é efémero ... nós, somos seres efémeros !
Talvez esse seja mesmo, o real encantamento da existência !
Talvez essa seja mesmo, a mola impulsionadora das nossas vidas !

Desconhecendo o que podemos atingir, desafiando o que ansiamos alcançar, lutando e superando-nos para o atingirmos, podemos levar o sonho à realidade, sem obsessões doentias, sem truculências, sem atropelos ... com respeito pelo outro, com relativização da importância das coisas, com uma visão mais humanista, civilizada e de menor sofrimento.
Tenho para mim, e com isso procuro viver, que na verdade, nada possuímos.  Nada nos pertence.
Chegámos sem nada.  Dessa forma partiremos.
Tudo é transitório.  Somos meramente seres "em passagem" !

Ao longo dos já razoáveis anos em que ando por aqui, tenho procurado mentalizar-me dentro destes princípios de vida.  Tenho procurado minimizar as afobações, as competições, as disputas ... as angústias e as ansiedades, e com isso, valorizar apenas o que importa.  Com isso, procurar uma gestão inteligente, equilibrada e não desgastante, daquilo que vou vivendo.
E para mim, o que importa é tudo o que se vive e guarda, no domínio do coração.
Refiro-me a emoções experimentadas, a sentimentos partilhados, a momentos inesquecíveis, a memórias indeléveis ...
Património nosso... enriquecedor, imprescindível, inalienável ...

Já perdi muitas coisas.  Já deixei muitas pessoas "insubstituíveis", pelo caminho.  Já me desapontei, já chorei, já me senti sem norte.  Já me vi como criança abandonada no deserto.  Já me indignei por me achar injustiçada.  E já acreditei que não mais seria capaz de sonhar e ter fé, de novo.  Já me senti tão desesperançada, que o único trilho que enxergava, na neblina escura de breu, era a desistência de tudo e de todos ... a desistência até de mim própria !
Mas como o Mestre afirmou, pedras no caminho, são todas para reunir, construir, reabilitar ... reerguer !

Hoje, caminho com todo o meu espólio, bem dentro de mim.
Hoje, procuro em cada topada, perceber qual o obstáculo que me dificultou a marcha.  Para contorná-lo, com sabedoria, furtando-me ao doloroso e ineficaz confronto.
Hoje, resguardo com todo o carinho do mundo, a memória dos que amei muito ... vivos, ou mortos.
Procuro adocicar os azedumes do dia a dia.
Hoje, procuro um aperfeiçoamento gradual.  E acredito nele.
Hoje, não dispenso ninguém que me dê a mão, que me sussurre ao ouvido, que me faça rir ou mesmo gargalhar.
Procuro agarrar com todas as minhas forças, os que me cercam e me são importantes.  Os que compõem a minha história.  Os de perto e os de longe ... porque todos cabem na caixa que tenho no peito.

E todos, indistintamente, são a minha fortuna, a minha riqueza, a minha herança ... aquilo que me acrescentou e faz de mim, eventualmente, um  melhor ser humano, mais justo e complacente.

Nada detemos.  Nada nos pertence.  O nosso único património é o que somos, aquilo em que nos tornamos diariamente, numa luta pertinaz de aprendizagem e aperfeiçoamento constantes !

Anamar

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

" RETRATO "




E Sintra cheirava a terra molhada.
Não que chovesse, mas já chovera, seguramente.  Aquela humidade e aquele friozinho que emanam do chão, que amarinham da mata, que trepam as árvores, que cobrem os muros, são incomparáveis.  São marca, são imagem, são registo.
Sintra só é comparável a Sintra !...

Um sol fraquinho espreitava de quando em vez, através de nuvens encasteladas, umas vezes com ar ameaçador, outras com uma bonomia contemporizadora.  Frio a sério não se sentia.
Mas aquela doçura própria de um Outono já avançado, não deixava dúvidas ... a estação  vai  adiantada !
Os muros verdejavam com os musgos atrevidos, os troncos ajeitavam em si as heras trepadeiras, as hortênsias podadas na hora certa, jaziam junto aos jardins, aguardando a remoção.
As folhas tombadas, nos ocres, amarelos, castanhos ou vermelhos, atapetavam e afofavam as veredas.
Os passos ecoavam no estalido da gravilha ...
As casas exibiam a sua aristocracia própria.  A ancestralidade que lhes confere pose e dignidade, impõe-se.  E há silêncio.  Apesar de tudo, Sintra continua a ter remansos de silêncio.  Lugares de intimismo.  Espaços de interioridade ... Nichos de reencontro.  Reencontro com nós mesmos e reencontro com as nossas linguagens da alma e do coração ... Clareiras de conforto ...

Sempre a vejo com olhos de gratidão.  Sempre a sinto como ninho embalador.  Nela sempre busco o calor de uma história ... a minha, que se foi escrevendo episódio a episódio, por bocas e palavras diversas, ao longo dos tempos !

A Pena e o Castelo empoleiravam-se na mansidão do contra-luz que descia.
E havia uma aguarela pintada naquele caixilho de moldura.  E havia por ali, pairantes, lugares, emoções e sentidos.
Lugares etéreos, muito próximos da eternidade.  Sonhos sonhados, extintos ou não, dependurados dos castanheiros do caminho.  Desejos refreados que circulam nas veias, p'ra cima e p'ra baixo, sem contenção ou limite.  Memórias indeléveis desenhadas em cada esquina, impressas na pele e na alma ...

Sintra, para mim é tudo isto.
E juro que tudo isto, nela vi ...
Retrato de  mulher espreguiçada nos tempos, adormecida no alcandorado da serra, embalada no gorgolejar dos riachos, acariciada  pela brisa perpassante, envolvida na bruma sombria dos penhascos ... coroada por aquela lua cheia que espreita gloriosa, no breu da noite ...
Xentra, Cynthia ou Suntria ... lenda, mistério, silêncio e magia ...
Ou ... simplesmente SINTRA, mítica e mística ... numa tarde de Outono !...

Anamar

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

" JÁ LÁ VAI O TEMPO ... " ( escrito a 12 de Novembro )




Já lá vai o tempo em que eu ficava "jururu" no dia de hoje !
Sorumbática, nostálgica, apreensiva ... triste mesmo.  Triste, porque mais um ano se esgotara, mais uma esquina tinha sido virada, mais encurtado tinha sido o caminho ... E tudo isso me angustiava a ponto de querer apagar, se pudesse, este dia, do calendário.
Não apreciava felicitações a propósito,  fazia por esquecer a data, já que a achava uma pirraça da vida que põe o tempo a comandar os nossos destinos, num desafio perfeitamente desigual, injusto, e contra o qual não há armas que detenhamos.
Amanhecia desgostosa, parecia carregar um peso e um desânimo absurdos.
Repetia para mim mesma uma frase que sempre ouvi ao meu pai : " Os dias são todos iguais ... Nós é que temos a audácia de achar alguns diferentes dos outros !"
O meu pai chegou a esquecer a data do seu próprio aniversário, pela pouca importância que lhe atribuía...

Uma vez, na porta da escola, uma aluna ... já adulta ... a propósito de mais um dia que findava, disse-me, em jeito de despedida : " mais um dia !... "
Escutei esta doutoral afirmação, e retorqui-lhe : " ou menos um ... "
Olhou-me de alto a baixo e com um certo ar de comiseração, não desarmou e contra-argumentou de imediato : " p'ra si talvez menos um ... para mim, seguramente mais um !... "

Fiquei a pensar na coisa, e o espectro da inevitabilidade do transcurso demasiado rápido do tempo, caíu-me em cima.   Cá estava ... eu afinal, pensava bem ... Por cada ano que passa, é menos um que temos para viver, neste corredor sem marcha atrás ...  Que triste, isto !!!

E o meu aniversário, como outras datas igualmente marcantes do calendário, pesavam-me chumbo !  Como poderiam as pessoas ficar eufóricas, felizes, alegres ... só porque mais um ano havia passado ??!!

Mas isto, já lá vai o tempo !...

Hoje, olhando à minha volta, e com a inevitável maturidade que a vida nos confere, percebi que daqui em diante, prefiro fazer contas de somar e não de subtrair ...
Percebi que nada disto faz sentido, já que a "foice" poda a esmo, sem lógica ou determinação ... e não são os anos vividos que nos garantem o "bilhete" de ida  para já ou para mais tarde, antes ou depois de ... como se houvesse uma escala a ser respeitada ... uma seriação a cumprir-se ... um determinismo macabro a sentenciar-nos ...
Percebi que o que importa é que estou por aqui, é que acordo em cada manhã, olho o céu azul ou os castelos de nuvens, e espreito o sol descarado ou tímido, à minha espera ...
O que importa é poder andar se não der p'ra correr ... é poder sorrir se não der p'ra gargalhar ... é poder dormir no embalo dos meus lençóis ... e sentir o afago de uma noite em paz ...
O que importa é poder respirar e sorver toda a saúde de que disponho, mesmo que de quando em quando, uma dorzinha aqui ou ali, me lembre que estou viva !
Percebi como é delicioso abraçar todos os que amo.  Rir, mas também chorar ou emocionar-me com todos os amigos ... Perto ou longe ... sabê-los lá ... sempre !
Ter a bonomia da aceitação.  Ter a paz da compreensão.  Ter a generosidade da partilha.
Percebi que caminhar custa ... que a vida é um parto difícil, mas que nos deposita no colo a felicidade e a alegria  de um  renascimento diário !  E sem isso, não teria a menor graça ou sabor !...
Percebi que mesmo com desencontros, mágoas ou dissabores, nada chega à segurança e ao conforto daqueles em cujas veias corre o nosso sangue.  E que ainda que não no-lo digam ... sempre são e serão nosso porto de abrigo ... nosso farol no nevoeiro, nosso esteio no futuro !...
E que  há futuro ... enquanto  eu quiser !  E que  há  esperança  e sonho enquanto  eu  acreditar !
E que esse sonho tem a dimensão do aqui e agora.  Não importa que seja pequeno, próximo, modesto ...  É o sonho que HOJE eu sou capaz de sonhar !  É o MEU sonho, simplesmente !...

Já  lá  vai  o tempo  em  que  o 12  de  Novembro  tinha  a  cara  de um bicho- papão na minha vida ...

Hoje, estou grata a essa vida que me ensinou ( quero acreditar que não tardiamente ) o valor exacto da sua essência, o milagre  magnânimo de poder envelhecer saborosamente, sem sustos, exigências ou tormentos.  O privilégio de me sentir abençoada pelo que foi, pelo que é ... e sem ansiedade sobre o que será ...
Agradecer à vida a capacitação, a inteligência e a humildade de saber receber e acolher no coração, tudo o que ela me vai oferecendo ...

E que em vez de me sentir amarga e escurecida na alma, possa abrir todos os dias a janela de par em par, e maravilhar-me  com todas as cores, embriagar-me com todos  os cheiros, extasiar-me com todos os sons, como se fossem grinaldas de rosas, enfeitando o meu coração !...               
     ... porque eu fui, sim, muito abençoada !

Anamar

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

" UMA MULHER SEM IDADE "





Dentro de dias aniversario.
Não, ainda não sou septuagenária !  Falta algum, razoável tempo para que o calendário dos Homens o determine.
Isso não me representa uma preocupação relevante,  por eventualmente me poder atormentar a ideia remota, de que o "caminho" se faz  caminhando irreversivelmente em direcção àquele momento comum a todos, mais cedo ou mais tarde, pelo simples facto de estarmos vivos e termos a condição humana.
Não penso muito nisso, intencionalmente, pois não me permito deprimir-me com algo que foge ao meu controle.
Bem ao contrário ... e porque me sinto viva e bem viva, tenciono retirar dos meus dias, do meu caminho, dos meus sonhos ... toda a mais valia possível.

Diariamente aceito para mim, com ambas as mãos, as braçadas de flores silvestres que o destino me deposita no colo.

Diariamente me deixo impregnar dos aromas, das cores, dos sons da vida ... porque a mereço e acho que me são devidos.

Diariamente me deixo extasiar com as bênçãos derramadas, sem que o peça.  Sem que o mereça ... tantas vezes !

Diariamente procuro encantar-me com os milagres operados em meu redor :  o sorriso no rosto dos meus netos,  os seus sucessos, as suas dificuldades ... o que de bom lhes ocorre, e o que de menos bom os surpreende.  O despontar da Teresa, dia após dia, os primeiros passos, as primeiras palavras ...
As angústias e incoerências duma adolescência a instalar-se, da Vitória ...
A iniciação difícil no mundo adulto, do António e a ingenuidade,  a criancice, a brincadeira constante e a meiguice do Kiko ... Porque tudo isso é vida ... é destino.  Tudo isso é a história da minha continuidade ...

Diariamente, agradeço o milagre da amizade quente e generosa dos meus amigos.  Todos ... Os  que estão  perto  e  os  que  de  longe  continuam  a  "saber-me" .  E  são  felizmente,  muitos !

Diariamente agradeço todas as curvas e curvas da estrada, palmilhadas às vezes com neblina cerrada, outras, com sol claro e céu transparente ...
Toda a coragem, a firmeza e a determinação ... mesmo quando fica difícil e parece não haver já, horizonte !...
Porque seguramente esse é o caminho que me foi dado a percorrer.

Diariamente agradeço o milagre de todo o amor que generosamente me envolve.  Do possível, e do nem sempre possível.  E o poder bastar-me com ele, com gratidão na alma e esperança interminável no coração !...

Não, ainda não sou septuagenária !  Aliás, sou uma mulher sem idade!
Tenho a força de uma juventude que me anima e faz acreditar.
Tenho os sonhos de uma adolescente com as hormonas aos saltos ... ainda ... sempre !
Tenho a fé e a aposta dos meus trinta, quarenta ... talvez cinquenta anos.  E tenho a maturidade que as rugas e os cabelos que não deixo embranquecer, me conferem !  São sinais. São marcos ... são pedras do caminho, com que, como o Mestre, vou construindo os meus castelos !

Amo a vida.  Amo acordar incoerentemente, dia após dia.  Amo surpreender e surpreender-me.
Amo o desafio.  Derrubo o cinzentismo.  Enjeito o estabelecido ... se o não quiser.
Contrario o imposto ... só porque sendo, terá que ser ...
Não ... tenho em mim a força do "não", se o entender.   E cada vez mais, o livre arbítrio das minhas escolhas.   Não baixo a cabeça a convenções. Não me escravizo ao bem parecer.  Tenho em mim a irreverência, quase sempre gostosa e não arrependida ...
E  um  coração  pleno, quando revejo  os  meus  trilhos, no  colorido  da aguarela que  os pintou !...

Esta, sou eu !

E não, ainda não sou septuagenária !!!...

Anamar

terça-feira, 6 de novembro de 2018

" APONTAMENTO "



Faz hoje sessenta e nove anos que os meus pais casaram.
Acordei com o coração doído, os olhos marejados e um aperto no peito.  O pensamento foi indo, debaixo de um édredon que não me aquecia a alma, e o cinzento do exterior  penetrava pela vidraça franca do meu quarto.

Sei que era um Novembro talvez como o de hoje, no Alentejo interior, na aldeia onde eu viria a nascer um ano depois.  Os meus pais já não eram jovens. Ele com quarenta e oito anos, ela com vinte e nove.  Ele ia num segundo casamento.   Ela, não.
Um e outro tiveram-me como prenda de laço e fita, como bênção do destino ... como sonho  concretizado e corporizado numa menina trigueira  como a terra que lhe dava  berço, de cabelo escuro e olhos castanhos.  Era e viria a ser até ao fim dos seus dias, a razão das suas vidas.
Sendo pessoas humildes vivendo exclusivamente do trabalho do meu pai, nunca nada faltou contudo,  naquela casa, na minha educação, na minha formação como pessoa de bem, detentora dos valores e princípios que para sempre viriam a nortear o meu destino.

Já passou muito e muito tempo.
Nenhum dos dois cá está para lembrar.  O meu pai partiu há vinte e seis anos ... a minha mãe, há meses.

Acordei com o coração doído, os olhos marejados e um aperto no peito. 
Acordei com os abraços que não lhes dei, espalhados na almofada.  Com as saudades que não partem e as memórias teimosas coladas no pensamento. 
Acordei estranhamente mais órfã, com o desconforto de roupa desaconchegada ao corpo, que nos deixa entrar o frio impiedoso.
Acordei com a nostalgia do irremediável.  Com a dor do que não é, porque não pode voltar a ser.  Com a ansiedade e o desejo do reencontro com a pessoa que eu fui, no tempo que já não me pertence ... porque o tempo não pertence a ninguém ...
Acordei com a estranheza de não mais me poder sentir a menina das tranças, a prenda de laço e fita, a bênção da vida dos meus pais ...

Lá fora chovia.  Uma gaivota planava, lançando o seu grasnido pelos ares.
Era Novembro outra vez ...

Há sessenta e nove anos, haveria sol ?...

Anamar

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

" DEIXANDO VOAR ... "



Olhei o plátano aqui das traseiras.  Quase todo ainda revestido de folhagem verde ... pasme-se !
Em anos transactos, nesta altura em que o Outono já se instalou, em que as alamedas das matas e dos jardins já se atapetam de folhas amarelas, castanhas e vermelhas, fazendo jus à típica coloração quente ... nesta altura em que o céu fecha de nuvens cinzentas escuras, carregadas e ameaçadoras ... nesta altura, dizia, o plátano já se havia despido.  Se não totalmente, pelo menos as folhas remanescentes, jamais eram verdes ainda !

Deve-se isto, à atipicidade climatérica vivida nas últimas semanas, em que o Verão parecia não desgrudar, com temperaturas elevadas, levando com toda a naturalidade, muita gente a pisar com satisfação ainda, a orla costeira da nossa terra.
Entretanto, anormalmente também, depois de uma tempestade estranha que nos atravessou ... um fenómeno climatérico meio inexplicável , pouco previsível e visto, o tempo virou da noite para o dia, as temperaturas desceram bruscamente, a chuva fez-se presente, o vento também, e pronto ... a estação outonal instalou-se a sério.
E ainda assim, com alguma benevolência connosco, aqui neste cantinho desapercebido, já que a Europa tem estado a ser fustigada por tempestades violentas com cheias gravíssimas, neve e ventos fortes , causando danos por aí fora !

Bom, mas quedei-me junto à vidraça, borrifada de gotas miudinhas, olhando o cinzento lá fora, perdendo-me pelos galhos sacudidos do plátano, e escutando o silêncio de interioridade aqui dentro.
E, porque o pensamento voa mais longe e depressa que as nuvens açoitadas pelo vento, fui-me deixando ir, sem explicação possível, aos tempos da minha infância.
Por essa altura, Évora era a minha cidade.
Morando um pouco afastada do Centro Histórico, vir até à Praça do Giraldo, exigia um motivo de razoável importância.
A minha mãe, pessoa com quem dividia as semanas, com o meu pai ausente em trabalho, não era dada a grandes passeios, a saídas de lazer, a convívios com quem quer que fosse.  Tanto quanto lembro, depois das aulas, era a casa que me esperava, invariavelmente.
Excluía-se alguma necessidade particular de uma compra, uma ida à modista ( porque por esses tempos o pronto a vestir era algo desconhecido ), uma deslocação esporádica ao dentista, o Dr. Pisco ( a criatura com a maior paciência que se possa imaginar ) ou, aí sim, por absoluto imperativo da existência, o abastecimento diário no mercado, pela carne, peixe, frutas e legumes, já que mesmo o leite nos chegava à porta, em vasilhas de zinco, aviado a contento, em medidas igualmente de zinco, e o pão se comprava na padaria, no início da minha avenida.
Outros artigos adquiriam-se  na loja do sr.Acácio, misto de mercearia e drogaria que ficava junto à padaria.

Quando pelas razões que apontei, eventualmente nos deslocávamos, eu e minha mãe, até às arcadas centenárias, era um acontecimento !
E como acontecimento que era, rodeava-se de alguns inesquecíveis rituais :  em primeiro lugar, nunca regressava a casa sem que tivesse adquirido mais alguns exemplares da minha primeira colecção de livros de histórias, na Papelaria e Livraria Nazareth, ex-libris da cidade, hoje com mais de um século de existência.
A coisa era negociada.  Eram mini-livrinhos.  Talvez cinco por cinco fosse a sua dimensão ... teriam meia dúzia de folhas ...
Havia-os a quatro tostões e havia-os a sete tostões.  Eu escolhia.  Se comprasse dos mais baratinhos, podia trazer mais um ou dois ...
Não sei qual o destino seguido por essas obras.  E tenho pena.  Penso que, de mim terão passado para uma prima um pouco mais nova, e depois ... por lá ficaram.
"Vejo-os" claramente na minha memória.  Não sei já  o nome da colecção. Lembro a "Princesa da Ervilha", o "Gato das Botas", o "Pedro e o Lobo", "Os três porquinhos " ... entre outros.
Todos os clássicos da literatura infantil a incorporavam, e imortalmente continuaram fazendo também as minhas delícias ...

Depois, era obrigatória a entrada na Alabaça, uma pastelaria fina da cidade, localizada igualmente "debaixo dos arcos", como se dizia.  O motivo era sempre o mesmo : a compra de um rim de chocolate que eu adorava, lambareira que sou até hoje.
No regresso, invariavelmente, a minha mãe contemporizava.  E porque o nosso caminho passaria pelo Jardim Público em direcção ao Rossio de S.Brás, faríamos uma pausa, num dos bancos, usufruindo de uma nesga do sol que se esgueirava através das ramagens.
Se fosse Verão, com um pedaço de sorte, teria direito a um Olá, do carrinho do vendedor que por ali parava. Os de fruta ... dez tostões.  Os de baunilha cobertos de chocolate ... vinte e cinco.
Se fosse Outono, beirando este S. Martinho que não demora, umas castanhas assadas também iam bem.  O  cheirinho  a  evolar-se  do  assador,  não  permitia  que  as  esquecêssemos ...

Cumprido o programa, impunha-se então o regresso.

E foi assim que neste dia cinzento e ocioso, em que o recolhimento me deixou por casa  juntinho à vidraça, deixei voar simplesmente o pensamento até lá bem atrás, ao túnel de um tempo que fui vislumbrando já só, por entre os farrapos do esquecimento.

E gostei da viagem !...

Anamar

terça-feira, 30 de outubro de 2018

" EM MODO SOPA DE LETRAS ... "




Não escrevo há meio mês.
Estou naquela onda de penumbra de alma, de torpor de vontade, de cansaço sem tom nem jeito.  Uma onda que me inunda e leva adiante toda a alegria de vida, que me deixa letárgica, melancólica, doce e silenciosamente sonhadora, como os gatos ao sol, nas soleiras.
E sol é o que não há.  Mudaram-me a hora e escureceram-me os meus ocasos lá longe, neste horizonte que agora some bem cedo. Arrefeceram-me repentinamente os dias e as noites também, remetendo-me ao "ninho" donde custo a sair, cada vez mais.  Estou a começar a ficar embiocada como as velhas se embiocam nos lenços negros, aos postigos, no meu Alentejo.

Encomprido o pensamento, remexo nas memórias, esquadrinho as vontades.  E concluo que precisava de entrar dentro de um "shaker" qualquer, para que, em ritmo de lambada, os miolos se agitassem, se agilizassem e saíssem deste torpor atontado em que mergulho.  Ou seja ... ficassem prestáveis.
Estou totalmente "outonada", entrando que estamos no famigerado mês de Novembro, mês carrasco e desanimador para mim.  No calendário está quase a cumprir-se mais uma data da minha chegada a este mundo, este ano mais pobre e mais triste ... sem a minha mãe comigo.
Neste momento o meu estado de amorfismo não enfileira ideias, não organiza sequer frases ou assuntos de que quisesse falar.
A mente divaga cá e lá, o pensamento voeja inquieto, como borboleta de flor em flor no auge da Primavera.
Há um atropelo de sensações, um engarrafamento de emoções e uma confusão de barata tonta em hora de ponta.
Sufoco-me com o que me atravessa, e se o quisesse ordenar, seriar, ou se calhar entender ... daria uma sopa de letras ininteligível ... até para mim mesma, creio.
Tantas perguntas que se fazem, com tantas respostas que não se dão.  Tantas dúvidas a serem clareadas, com uma manhã de nevoeiro teimosamente cerrado, em frente.

E o cansaço ... um cansaço desanimador remete-me a esta indiferença aparente, face à escorrência dos dias, face ao decurso das semanas, face ao desenrolar da vida ... que acontece, aqui mesmo, bem debaixo do meu nariz !
E experimento uma angústia existencial, p'ra variar,  que quereria verdadeiramente entender.
Experimento um desassossego, que umas vezes é angústia, outras ansiedade, outras insatisfação ... desconforto. Mas que me nauseia e mareia, como barquinho solto no mar alto, em meio de onda agitada e vento sem norte.

E os dias passam e balanço, balanço sem rumo, para cá, para lá ... como um passageiro numa gare, sem ainda ter definido o itinerário a fazer, a composição a tomar.  Desconfortavelmente indiferente, contudo.
Como se lhe fosse aleatório um destino, para norte ou para sul, pela simples razão de que em nenhuma das estações terminais existe quem o espere, ou um objectivo interessante a cumprir ...

Bom, este meu escrito de hoje, é de uma irrelevância atroz.
É imagem clara do meu estado de espírito, e uma tentativa de aliviar a pressão da válvula.
Argumento para mim mesma ter um passado recente, emocionalmente agressivo e excessivamente longo e desgastante, do qual talvez não tenha conseguido recuperar-me ainda.
A sua vivência pôs-me frente aos olhos, um sentido da existência, nu e cru, assustador.  Porém real, objectivo. Desencantatório. Precário.
Quando os pais nos partem, avançamos inevitavelmente um passo.  Sentimo-nos na "calha", ocupando o lugar que logicamente nos é destinável.  E talvez por isso, se questione com muito maior acuidade, o sentido de tudo,  o que foi e o que é.  Talvez por isso, se valore com maior realismo e desassombração, o sentido que demos / damos, ao percurso que palmilhamos dia após dia,  às lutas que travamos, ao peso do valer ou não a pena ... ao significado, afinal irrisório, de tanta coisa com que nos digladiámos ... com que nos exaurimos ...

E "invernamos" por dentro ... sei-o bem !

Anamar

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

" TALVEZ VALHA A PENA ! "





Não gosto de me reler.  Não tenho paciência e quase sempre acabo não me encontrando muito, naquilo que nesta ou naquela ocasião, então escrevi.

Mas ... o dia subitamente ficou igual a mim própria.  Amanheceu azulado, com algumas nuvens esparsas  pouco preocupantes, e veio acinzentando gradualmente.  Agora fechou por completo e a chuva meio miúda começou a cair.
Honrou no seu melhor, um típico dia outonal.
Breve será Novembro, breve completarei mais um ano de vida, breve será Natal e o calendário dobrará de novo.  Enfim ... o ritmo imparável da vida !

Hoje caíu-me à frente um texto escrito há cerca de um ano e meio.  Por curiosidade reli-o.  "Deixa-me ver como iam as coisas então" ... pensei.
Pois bem, é impressionante como decorrido esse tempo, nada tenha acontecido nem dentro nem fora de mim, que inviabilizasse que aquelas linhas pudessem ter sido escritas hoje.  O mesmo cansaço, a mesma impotência, o mesmo imobilismo, o mesmo desconcerto atravessam cada frase, percorrem cada linha.  A mesma inexistência esperançosa em outros dias, em dias mais coloridos e auspiciosos, em novos projectos ou sonhos, percorre cada parágrafo, que transpira uma desaposta sensível, uma falta de "gás" ... um desânimo que dói.
Há um estar rançoso e uma falta de norte ou horizonte, uma solidão e um desconforto, como um fim de festa não vivida.
Sinto-me como barco largado ao sabor das marés, subindo ou descendo ondas, arrastado sem azimute, na ausência de leme, sem esperança de âncora ou porto de abrigo.
Sinto-me com a indiferença da folha que o Outono jogou no chão, levada pelo vento, sem lógica ou coordenada. Simplesmente arremessada ...
Sinto-me tão irremissivelmente perdida como se estivesse num deserto de areias sem princípio ou fim ... como se estivesse frente a um emaranhado de trilhos alucinados, sem destino ou rumo.

E parece ser recorrente esta leitura míope e deficitária da vida, que quase sempre me toma.
Serei incoerente, imatura, exigente ... ou simplesmente utópica, desadequadamente insatisfeita, tontamente sonhadora ... infantil, puerilmente desajustada ... ou simplesmente IDIOTA ?

Seja o que for ... Cá para mim, não sei se algum dia terá remédio ou solução ...

O dia de um claro Outono fechou de chuva, por aqui.  O silêncio embalado por Énya ao meu lado, aconchega as paredes deste quarto. Só ela me restitui o sonho.
Chegam-me notícias preocupantes da saúde de amigos.  A pequena capa de malha que a minha mãe colocava nas costas, aquece-me sobretudo o coração.
Transporta o seu afago. Desperta-me a saudade infinita.
Afinal, vou estando viva por aqui.  E talvez valha a pena viver.  Se hoje a chuva cai, amanhã o céu azul voltará ... as castanhas vão regressar ... o caminho dos castanheiros deixará os ouriços pendentes, soltarem os frutos maduros ...
E o Inverno levar-nos-à  a uma segura Primavera, que será verde ... outra vez ...
E continuaremos a "pintar o céu com estrelas" ...  E continuaremos a escutar o gorgolejo das águas lá na serra, e a batida do mar impiedoso, nas praias do silêncio, onde as gaivotas mandam ... Só elas mandam !
... Porque estamos vivos  ... E talvez, afinal, valha a pena viver !...

Anamar

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

" SAUDADES "




Hoje amanheci com saudades.
Deve ser este tempo amodorrado e insuportavelmente quente ainda.  Deve ser este silêncio que me navega do coração para os pulmões, dos pulmões para os olhos, passando pelo estrangulamento sufocante da garganta ... E desta para a alma ... que só sinto e não sei de que lado fica !...
Sei que sinto saudades, de tudo e de nada, de muita coisa e aparentemente de nada em especial.
Ou então sinto saudades do impossível, que é definição onde cabe tudo.

Ah ... percebo sim ... percebo sentir uma nostalgia mortal da minha juventude.  Do tempo em que parecia ter braços para envolver os sonhos ... mesmo que eles tivessem o tamanho do mundo.
Dos tempos em que eu podia, em que eu segurava a vida, em que eu desafiava petulantemente o futuro.  Porque ainda existia muito amanhã.  Porque eu ainda tinha força, e sabia lá eu da estrada que me esperava e que me seria dado percorrer !!!...
E por isso, sabia sorrir ...
E acreditava que ainda tinha muito, e doce caminho a palmilhar.  Com garra, com voluntarismo, com esperança ... com vontade !
O que é que me foi acontecendo ???  Será só a vida a passar por mim, ou será uma incapacidade nata de resistência, de arcaboiço, de resiliência ?!

Percebo saudades do colo da minha mãe ... Como se a minha mãe ainda me pudesse dar colo ...
Mesmo quando pouco já lhe podia dizer, a ternura da sua mão a passar no meu cabelo e a doçura do seu olhar, eram o colo que me bastava.
E sim ... era como se um embalo me tirasse as dores da alma.  Era como se as portas de um ninho se abrissem para me albergar ...
Acho que só colo de mãe nos transmite este sentir de segurança, esta reposição de ânimo, protecção e coragem ...

Bom ... hoje amanheci com saudades.
Acho que saudades de mim, apenas.  Quando não estava tão cansada como agora.  Quando  geria  a minha  história  com  determinação,  com  garra,  com  irreverência,  com  loucura ...
Porque esta sempre me fez falta para colorir os dias.  Porque sempre odiei as rotinas, o previsível, o igual ... o insossamente enquadrado ...
Mas isso era quando eu vivia, e sabia rir do meu viver.
Hoje arrotinei-me, acinzentei-me, tornei-me enjoativamente desinteressante, porque deixei de fazer a diferença.  E a diferença conferia-me exactamente a capacidade da extravagância, da originalidade, do incomum. A diferença era a minha graça.  A diferença tornava-me poderosa. Não para os outros, nem pelos outros. Mas por mim. Porque me fazia sentir viva ... simplesmente.

Hoje amanheci com este raio desta sensação de claustrofobia no peito. Não consigo definir concretamente o que me falta ou o que tenho a mais, nos dias da minha vida.
Sinto-me absurdamente exigente face a ela.  Sinto-me atontadamente impreparada para vivê-la.  Sinto-me angustiadamente trapaceada pelas voltas com que me surpreende.  E injustiçada ... de certa forma ...
E em suma, na verdade sinto-me envergonhada, talvez ... Talvez essa seja a definição mais correcta, pela desfaçatez com que simplesmente me sinto injuriada por experimentar estes sentimentos ...

Oiço a voz de uma das minhas filhas, no seu saudável e jovem pragmatismo ... que se afigura como uma espécie de eco de consciência : " Tu falas é de farta.  Tens sido uma "sortuda" na tua vida !  Falta-te é uma boa razão que te dê razão às queixas de que na verdade não padeces ...  Vê se acordas!"...

E  este  eco, vira  marteladas  na  minha  cabeça.  Detesto  dar-lhe  razão.  Mas  será  que  a  tem ???!!!

Hoje acordei com saudades.  Droga .... é quase noite, e elas ainda não partiram ...

Anamar

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

" AINDA ONTEM ÉRAMOS JOVENS ...... LA BOHÈME "




Quem melhor cantou Paris ?
Quem melhor cantou uma juventude descomprometida e feliz, vivida na cidade do amor ?

Aznavour deixou-nos.  Fisicamente ... porque imortal, ele é, desde sempre!
A sua voz inconfundível jamais se silenciará sob os céus da Cidade Luz.  Cidade também chamada dos "encontros e despedidas" encerra um romantismo próprio, que tão bem e incomparavelmente, ele soube transmitir-nos em cada estrofe, em cada melodia, em cada nota, de todas as suas canções ...

Ícone da música mundial, mestre da música francesa, figura incontornável no panorama internacional, foi presente na minha adolescência, nos anos soltos da minha juventude, e nunca deixou de, conjuntamente com outras figuras igualmente míticas desses tempos áureos, fazer parte do meu imaginário, povoar os meus sonhos, perpassar pelos desejos mais ou menos inconfessáveis, comuns a uma geração com ânsia de emancipação, autenticidade, e contestação aos valores instituídos e obsoletos.
Geração insatisfeita, desacomodada, rebelde e transgressora ... a que a música dava voz.  Porque a vida é de quem se atreve a vivê-la ... e provocá-la, apanágio de um tempo, que só os poucos anos que então detínhamos, o permitia.

Aznavour, o pequeno arménio, filho de imigrantes que chegou um dia a Paris, foi reconhecido como notável performer do século.
Cantor em múltiplos idiomas, foi compositor de mais de mil canções, escreveu musicais e entrou em mais de sessenta filmes.
Teve mais de cem milhões de discos vendidos.  Foi popstar ao longo de mais de oitenta anos.
Cantor nostálgico, denominado justamente, o Frank Sinatra de França.
Sempre o amor foi cantado por si.  E esse é o principal registo que de si ficou : um expoente inigualável do romantismo.

Marcou-me indelevelmente, desde jovem.  Desde os bancos do liceu.  Desde os bailes de garagem ... dos primeiros amores, dos primeiros desgostos ...
Dos anos dourados dos "sixties", ele representa até hoje, o rosto do sonho sonhado, do romance, do saudosismo dos tempos e dos locais ... em suma, da melancolia ... da vida!
"Que c' est triste Venise", "Non, je n'ai rien oublié", "Et pourtant", " Sur ma vie", o icónico "La Bohème", são só alguns dos temas que nunca esqueceremos.
A "mulher" obviamente preponderou nas suas letras.  "She", tema do filme Nothing Hill, é um hino e uma homenagem ...  Foi hit absoluto no mundo inteiro !

Aznavour deixou-nos inesperadamente aos 94 anos, pela madrugada, na sua casa do sul de França, na Serra de Alpilles, após uma tournée pelo Japão ...
... e afinal, "Hier encore il avait vingt ans "...

Ele, e todos nós ...
Não deixou a vida ... a vida, deixou-o !...

Montmartre seguramente entristeceu e os lilases terão morrido ... tenho a certeza.
Aznavour partiu ...



Anamar

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

" E PORQUE TALVEZ ACREDITE ... "




A esta hora já se encontraram ...

Não acredito em paraísos nem infernos, nem nas convicções da Igreja Católica.  Mas sempre imagino ( e acho que quase sempre o faço em busca de reconforto ) que nada pode ficar só por aqui mesmo.
Penso que seria uma fraude sem tamanho, se o Homem se reduzisse à sua prestação terrena e física.  Somos, como seres vivos superiores na hierarquia dos viventes, seres com cognição, inteligência, racionalidade além de todos os outros atributos comuns aos restantes que connosco partilham a vida ... uma espécie potencialmente privilegiada.
O Homem adquire, trabalha, armazena know-how ao longo da sua vida.  O Homem, como um ser superior, racional e emocional, reserva ao longo da sua existência uma bagagem pessoal intransmissível que eu não aceito poder simplesmente ser delapidada no momento da sua morte.
O seu repositório individual, o legado que armazenou, será o que dá significância à sua existência terrena.  Seja de que forma for ... em átomos, moléculas, já que de matéria se trata ... seja em energia, ( a essência espiritual de cada um ), sei lá !...
Como num sistema fechado em que não há perda, não há ganho, apenas há transformação, não faria sentido que num instante único, a perda fosse, por isso,   irreparável, irreversível, injusta e inexplicável ...
Pelo menos de acordo com a minha sensibilidade.

Esta convicção remete-me a uma filosofia defensora de reincarnações sucessivas, de sucessivos regressos no sentido de um aperfeiçoamento progressivo do Homem, face ao alcance do Nirvana,  ( do sânscrito  " nibbana",  que significa " apagar", "extinguir", "cessar sofrimento" ), ou seja, de um estádio espiritual superior, de elevação e aperfeiçoamento, que constitui o princípio básico da doutrina Budista.
Amor e compaixão devem exclusivamente nortear a vida terrena, sem preocupações de busca de definições de céu, inferno ou deus.
A existência humana é um ciclo interminável de morte e renovação, no sentido da existência de paz, serenidade e alegria.
Uma vez atingido esse estado "além do sofrimento", interromper-se-ia o ciclo de vida e morte.

Não tenho conhecimentos profundos nesta matéria, contudo.
Não sou escolada em correntes religiosas, filosóficas, espiritualistas, nem em doutrinas subjacentes, sequer.  Não me meto portanto em caminhos escusos, para os quais não possuo espalda.

Tenho sim, simpatia pela ideia.  Acho mesmo que me dá um certo "jeito", considerá-la como um fim possível, digno e simpático para a existência humana.
Dessa forma, a ideia da continuidade para além da morte, é uma "solução" que me agrada, que me ajuda, que me ampara face à angústia, à dor da perda, à consciência da inevitabilidade da partida dos que amamos e da forma como encaramos a nossa própria partida.

Portanto, tudo se torna mais leve, colorido, aceitável, suportável ... menos doloroso.  Porque afinal, nada seria definitivo, tudo se resumiria a um simples e reconfortante "até já" ...
A confraternização dos espíritos seria apenas interrompida, prometendo-nos novos e futuros encontros, por aqui !...

Tudo isto, porque hoje partiu o único irmão da minha mãe, ainda vivo.  Em menos de meio ano, fechou-se o naipe dos cinco que eram a sua família de origem, e isso deu-me que pensar.
À volta disso reflecti nos considerandos que aqui expus, e acredito, como disse no início do meu texto, que  " a esta hora já se encontraram algures, por aí !... "

Anamar

domingo, 23 de setembro de 2018

" OUTONO "



E eis que chegou !
À 1,54 h desta madrugada, o equinócio de Outono cumpriu calendário.  E como um recém-nascido, veio sem mostrar ainda, o que expectavelmente o caracterizará : dias coloridos a cinza, Natureza colorida a tons doces e quentes, amaciando a estação seguinte ( que sempre se espera mais agreste e implacável ), temperaturas amenas, pingos de chuva regeneradora e saborosa ...

O Verão, este ano,  parece querer tornar-se inesquecível, nesta imposição de temperaturas absurdas, rasando os trinta graus ou mais.
Começamos a sentir alguma saturação, uma necessidade de mudança, uma renovação e um "arrumar" da alma, que este tempo introspectivo, sereno e silencioso, propicia.
Simultaneamente a nostalgia desce ... inevitavelmente, já que esta mudança de estação, nos reporta às etapas das nossa vidas físicas.
É o tempo da queda das folhas.  O tempo da interioridade e do intimismo.  É tempo de balanço, de pacificação do corpo e do espírito, e de conciliação com nós mesmos.
É paleta de Van Gogh, oferecida aos nossos olhos.  É  uma sonata ou partitura ... É uma difusa melancolia, um estado de alma ... um tempo em declive suave ... cálido e saboroso ...
O ritmo abranda, a energia trepidante da estação cessante carregada de força, adrenalina e vontades, cede lugar a uma hibernação e adormecimento interiores.
Deverão ser saboreados, como o é a doçura das compotas, que saltam das matas para as mãos sabedoras de quem lhes conhece os segredos .
É quase sempre o tempo de mães, avós, de tias velhas, de doceiras insubstituíveis, que sempre pontuarão as nossas memórias, mesmo quando já tiverem partido, ou nós esquecido os sabores irrepetíveis ... porque a criança que fomos, também não existe mais ...

Mas sempre vamos lembrar as prateleiras da despensa, sempre vamos lembrar o rapar lambareiro dos tachos e o sabor reconfortante e apetecido do pão barrado ... nas merendas das nossas vidas !
Sempre vamos recordar saudosamente os cheiros lá de casa, o fervilhar da marmelada em confecção, os bagos das romãs pacientemente preparados, as cores flamejantes dos diospiros maduros ... o insubstituível cheirinho espalhado pelo ar, das castanhas assadas que não tardam aí ...
As folhas amarelecidas tombam pelos caminhos e atapetam os lugares de passagem.  As aves migratórias já foram, e esperamos voltar a ver as andorinhas na próxima Primavera ...
A mansidão dos dias convida aos percursos cúmplices e sem pressas, pelos bosques, pelo arvoredo, pelo topo das arribas, donde se divisa um mar que promete tornar-se alteroso e imperativo, não demora ...

E percebemos que  já passou mais um ano, outra vez ...

E deixo-me inundar por uma paz silente e aconchegante.  Por todas as razões.  Pela lembrança, pela saudade, pela felicidade também ... pela cumplicidade vivida, quando as famílias ainda eram o que eram e quando ainda o eram ... sem ausências ou desistências ...
Nada esquece nas nossas vidas.  As memórias, boas e más, são o repositório feliz, o património indelével das nossas histórias.

Mas o Outono, estação em que nasci, não é o fim da história ...
Terá sempre, de facto, muito a ver comigo ... talvez demasiado !
É sonhador como eu, silencioso como eu, intimista como eu ... com uma magia particular, embaladora e doce, apenas sua,  e que mais nenhuma estação ao longo do ano é capaz de nos oferecer !...



Anamar

sábado, 22 de setembro de 2018

" CHARADA "



É tarde de mais p'ra falar da vida.
Tudo o que havia a falar já o foi.  Percebo não ter quem possa entendê-la, outra vez.  Há momentos em que viramos a página da agenda.  Percebemos que os códigos não podem mais ser entendidos por quem vier.  Há uma incapacidade de recomeçar a dizer.  Um cansaço de reabertura de cena.
Só porque o que tinha que ser, já o foi. E o tempo é o tempo p'ra cada coisa.
Não quero mais.  Seria um trabalho inglório, por muito que quisessem abrir caminhos.
Os meus caminhos já foram percorridos por quem os conheceu.  Os meus trilhos são segredos da montanha, que por ser mágica os encerrou em si.
Não se fala a mesma língua, só porque sim.  Não se aproximam emoções se as não conhecemos.  Se as não vivemos.  Se não são estória da nossa estória ...
E a nossa história teve um tempo real.  E o tempo, quando é real, vive no coração.  Não é como o tempo dos sonhos, porque esse, é eterno ... vive no espírito !

Percebo a vida encalhada em praia distante.
Percebo que não há vento, manso ou de borrasca, que consiga arrancá-la do areal.  Talvez simplesmente porque aquele areal, é o seu, de repouso, com as suas rochas e as franjas desenhadas como pinturas de Monet.
Talvez porque se esteja em tempo de marés leves, marés de dormência, que levam e trazem a canção das ondas.  Sem sustos ou angústias.
Talvez porque o meu barco se deixe apenas ir e vir, e ir e vir ... E esse, é o seu navegar ...
Talvez porque  lá esteja o canto das gaivotas livres de asas estendidas, e o som do silêncio da esperança.

Deve ser isso !
Deve ser isso que hoje me mostrou o cansaço da alma.
As vidas são curtas demais para serem escritos novos capítulos, por interessantes que o sejam.  Porque todas elas têm um fio, de meadas que desenrolam até às pontas finais.  E depois do desemaranhado desfeito, nunca a meada seria a mesma, por mais habilidade que outras mãos possuíssem, para a tecer ...
As mãos que são sábias, são as mãos que são sábias.  E os pés que percorreram os nossos caminhos, são também só aqueles que os palmilharam connosco, lado a lado ... e lhes conhecem as marcas secretas ...
Os ouvidos que conseguem escutar-nos, são apenas aqueles que sabem os nossos silêncios ... não mais ...

Chega um dia das nossas existências em que percebemos ter encerrado as vidraças ... ter fechado as portadas ... ter apagado as luzes.
Cansámos.
Esgotou-se o texto e não há paciência para reescrever outro.
Ficamos com a exibição final.
A que conhecemos, a que marcámos ... a nossa ...

Confuso, isto ... certo ?
Quem me ler deve achar que foi desta que me "passei", em definitivo.
Contudo, saudavelmente, um pouco  "outsider" nos pensamentos, nas emoções e na vida ... inquieta na alma, e fervilhante  nos desejos,  sempre o sou, em permanência ...

Anamar

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

" TUDO E NADA - balanços outonais "



O ano está a ir-se.
Entraremos no seu último trimestre não demora, e apesar do calor continuar a imperar em dias azulados de céu límpido e brisa mansa, quando passa ... sente-se já, que não é bem igual.
O sol tem um rosto mais tímido, a sua luz adocicou, os dias anoitecem bem mais cedo e a pausa da vida que é configurada pela estação que aí vem, sente-se claramente também na interioridade da Natureza.
As praias estão a ficar sós. As gaivotas farão delas privilégio de passeio.  Os areais são beijados no embalo de marés silenciosas e meigas, como véus largados em lassidão e abandono.
E tudo à nossa volta parece reduzir a urgência trepidante da pujança dos meses de Verão.  A pressa aquietou e tudo agora parece desenrolar-se numa fruição gostosa e degustante.

Os putos voltaram às escolas.
Reencontramo-los nas ruas, de novo em bandos chilreantes e descontraídos, mochilas nas costas, livros nas mãos e conversa solta e displicente, com a leveza e a irresponsabilidade que os anos lhes conferem ...

Para mim, o ano sempre foi contado de "rentrée" a "rentrée".  Não era Dezembro nem a viragem do calendário que ditavam as regras, mas sim este início de ano escolar, com redefinições de vida ano a ano, reenquadrando horários,  ritmos, com novas e promitentes determinações, novos sonhos e disposições.
Como todas as épocas de viragem ou mudança, experimentamos uma energia poderosa, uma capacidade de renovação imensa e uma imensa vontade de reinício de qualquer coisa, do que quer que seja, numa espécie de "refresh" de vida.
Planifica-se, recria-se, inventa-se, redesenha-se um figurino novo dos nossos dias, como se com ele, o marasmo, o bafiento, o repetido e por isso entediante, sumissem, e tudo se reciclasse, a começar por nós mesmos !
É a tal época das faxinas, já o abordei em anteriores escritos, sendo que as faxinas mais apetecíveis, desejadas e necessárias, seriam as que ( se isso fosse possível ) conseguissem mesmo virar-nos o nosso avesso para o ansiado direito, que faria de nós seguramente pessoas mais dispostas, leves, corajosas, sonhadoras e crentes ...
Sairmos das rotinas salobras e cansativas, inovarmos e renovarmo-nos ... desafios quase sempre extenuantes e penosos que muitas vezes se nos afiguram inalcançáveis, são exercícios mentais vitais à sobrevivência, numa sociedade pouco contemplativa e generosa, pouco aliciante e retribuidora.

Nada fácil, contudo.
O balão insuflado que empolgou os primeiros dias, deste afã de sonhos, vontades e intenções, tende a esvaziar devagarzinho, imperceptivelmente, como tendo um furinho invisível algures por aí.
As rotinas tomarão de novo conta dos nossos tempos, que recomeçarão inevitavelmente a assumir o formato já demasiado conhecido ;  o fôlego e o empolgamento dos primeiros assomos de entusiasmo, tendem a fenecer.
A cera das velas que iluminavam caminhos vai-se consumindo, o silêncio recolhe aos claustros da alma, a cor esbate à nossa volta como os mates, ou os pastéis redecoram a Natureza, depois dos tons sanguíneos do Verão cessante.  Tudo mansamente, languidamente, espreguiçadamente  ... ao ritmo de um cansaço que de novo nos invade.

A vida deve ser isto e a força dos anos transcursos também.  De facto, não temos mais vinte anos.  Não temos mais sequer quarenta anos. E a inevitabilidade do que tem que ser, opera-se, sem apelo, sem contorno, sem volta a dar !...
Será assim com todos ? - pergunto-me.

Tenho o desânimo do perdulário.  Angustia-me a incapacidade que experimentei pela inalteração do percurso da vida.
Como queria poder recuar, rever, refazer, alterar !
Como queria não ter-me acomodado.  Não ter aceite o cinzentismo dos dias.
Como queria ter tido visão, coragem e determinação para rumar para fora de caminhos já cadastrados, e inventar os meus próprios trilhos!  Ter aberto janelas que dessem mais mundos ao meu mundo !
Como queria poder revolucionar figurinos acomodatícios, e livremente poder atirar pedradas aos charcos deixados pelas chuvas passageiras ... sem medo de me molhar ! Como queria ter a irreverência saudável dos exploradores de marés !...
Como queria ter tido coragem para dizer não, e quantos nãos fossem precisos ao longo do destino !  Como queria poder asfixiar esta insatisfação doída de vida previsível, igual e repetida !   Esta dormência latente, colada na profundidade da pele !...

Enfim, se calhar quero exactamente o que muitos quereriam, sem um pingo de originalidade ou exclusividade.
Mas pelo menos, a utopia, o sonho, este turbilhão vulcânico que me sufoca e não apazigua, fazem-me acreditar que estou viva, que não desisto, que aposto sempre e quero continuar a viver e a lutar pelo valer a pena desta minha vida !...
Por tudo e por nada ... que sempre será muito !...

Anamar

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

" LÁGRIMAS ... "




Choro pouco, ou melhor, quase nunca choro.
Ainda que os olhos se me marejem uma que outra vez, ainda assim mais por emoção do que por mágoa ... chorar mesmo, aquela coisa de abrir as comportas e deixar correr ... há muito que não experimento.

Quando o meu pai partiu, há vinte e seis anos, no que foi o primeiro grande desgosto da minha vida, lembro-me que acreditava não resistir.  E chorei, chorei muito, chorei de mais ... e fui chorando até que a dor aliviou um pouco.
E era um chorar profundamente sentido, porque era um chorar de laceração de alma, de esfacelamento de coração ... num esquartejamento da que eu era, com um misto de impotência, de sensação de irremediável injustiça, de incompreensão quase, do que a vida me estava a fazer ...
Como se não devesse ser expectável, nos já noventa anos do meu pai !...

Sempre acreditei que por todas as razões, quando fosse a vez da minha mãe me deixar, o choque seria de tal ordem brutal, que seria muito, muito difícil p'ra mim suportá-lo.   E que obviamente, de novo eu iria debulhar-me em lágrimas incontroláveis.
Afinal, a minha mãe sempre foi muito mais próxima de mim que o meu pai, vivemos uma vida totalmente partilhada e cúmplice, sempre foi uma mãe presente, dedicada, direi mesmo que abnegada.
Era extremamente carinhosa com todos nós, sempre nos colocou acima dos seus próprios interesses, disponível e generosa ... já por aqui o referi demasiadas vezes.

Pois bem, agora que aconteceu, como que sequei por dentro !
Dei por mim numa paz e numa aceitação, quase num agradecimento mudo, pelo desenlace.  Talvez incompreensivelmente, poucas lágrimas verti.  Dentro de mim, pairava uma serenidade, um carinho e ternura tais, que a contemplei longamente, por todo o tempo em que parecia dormir, pela última vez, fisicamente perto de mim.
E com uma tranquilidade, como se pressentisse que ela sabia exactamente o que ali estava a passar-se, e quisesse transmitir-me isso mesmo.
Quase não chorei, portanto.

Ao longo da vida atravessei outros desgostos, outras mágoas, dores igualmente profundas, embora de cariz diferente.
Também nessas circunstâncias constato que a minha capacidade de chorar - não de me emocionar - tem vindo em decréscimo, à medida que o tempo passa e a vida se faz.
Não é fácil neste momento, ainda que compungida com muitas situações, ainda que amarfanhada com muitas outras, ainda que enternecida quantas vezes, por outras ... que eu deixe escorrer as lágrimas soltas pelo meu rosto !

E pergunto-me : o que se passa comigo ?
Será  que  o  tempo  e  tudo o que  ele  sempre  nos acarreta,  me  endureceu ?  Me insensibilizou ?  Me roubou a capacidade de sentir, me roubou a ingenuidade perante a vida, e o deslumbramento com que sempre a olhava ?
Será que o tempo me couraçou, por incapacidade de acreditar já, em muito do que há anos atrás, eu ainda acreditava ? Será que estou a perder a capacidade de sonhar e talvez também de apostar, para não me ferir ou apenas molestar ?
E daí, por defesa, ter-me-ei revestido de uma carapaça personalística que me levanta muros face ao que me rodeia ?!...

Pois ... não sei !
Sei que me sinto árida por dentro, vezes de mais.
Sei que me sinto mais pobre, na minha incapacidade emocional.
Sei que me flagro com muita frequência com uma postura dura, intolerante  e exigente em excesso.  Sem grande margem de compreensão, de compaixão, aceitação, disponibilidade  e bonomia para com o mundo.

E nada disto é gratificante, nada disto seguramente me fará feliz, nem me aliviará a alma ...

Talvez se eu chorasse mais ... Quem sabe ???...

Anamar

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

" PARTIR ... "



O tempo de Outono que se avizinha, é propício a uma boa faxina.

A minha mãe, nos seus afãs de limpeza, chegava a esta altura do ano, e aí estava ela na revolução absoluta da casa.  Eram as cortinas, eram os cristais, eram os "amarelos", como dizia ... Divisão por divisão, tudo lhe passava pelas mãos, na habitual "limpeza grande de Outono".
Eu perguntava-me como explicar aquela alegria incontida, aquela felicidade absoluta, quando concretizava a agenda distribuída pelos vários dias.  "Hoje foi o meu quarto ... está tudo limpinho !  Amanhã cedo, será a cristaleira "...
E sorria  muito, por ver a sua casa impecavelmente asseada.  E não entendia a minha consternação, por não conseguir sequer alcançar a compreensão desse estado de espírito.
Afinal, trocar uma boa madrugada de descanso, pela lavagem criteriosa de todo o recheio da cristaleira, era para mim um "non sense", absolutamente inexplicável !... 😄😄😄

Não fui dada a prendas domésticas.  Faço o que urge fazer-se, sem nenhuma realização ou gosto.
Tenho a casa arrumada, ordenada, limpa, com a ajuda de colaboradores, claro.  Não mais !
Fanatismo não faz parte dos meus códigos, nem nesta nem em nenhuma outra matéria.

Verdade seja que a minha mãe também não precisava de "outro" tipo de arrumações, na sua vida.
Era uma pessoa mansa, em paz, sem ambições ou ansiedades.
As suas preocupações, além de ser rigorosa e criteriosamente cuidadosa com a sua subsistência, detentora exclusivamente de uma pensão de sobrevivência miserável e mínima,  ( por forma a nunca constituir um "peso" para mim, como dizia ) ... as suas preocupações, digo, eram as inerentes às netas, ao sucesso nas suas vidas, às dificuldades, se as tinham, ao futuro dos bisnetos, à saúde ou à ausência dela, quando acontecia ... pouco mais.

Nunca a minha mãe ansiou nada além disto.  Nunca ansiou além do que a vida lhe ia dando.  Menos ainda, insatisfação foi palavra do seu vocabulário.  Nunca viveu crises existenciais, nunca se digladiou ou exigiu que os seus dias, alguma vez fossem diferentes.
Teve o que teve, foi uma pessoa frugal e simples na sua existência.  Penso  que ela nunca achou que talvez fosse merecedora que o destino lhe propiciasse um pouco mais ... ou um pouco diferente.
E assim viveu, eu diria que seguramente feliz, até aos 97 anos !

Afirmava eu no início deste post, que o Outono que ora se avizinha, é propício a uma boa faxina ...

Não falo, obviamente, dessas ânsias de limpeza  exteriores a mim.
Falo deste fervilhar de insatisfação, esta intranquilidade de alma que me atormenta, esta inércia que me toma e que parece carecer duma boa sacudidela.  Falo deste arrastar de tempos incaracterísticos e já outonais que me assolam, deste cansaço e saturação de amanheceres repetidos e sem brisas frescas a descerem-me ao travesseiro.
Falo desta desarrumação mental e deste bloqueio que me domina e me tolhe, me adormece e me narcotiza numa letargia mortalmente cansativa.
Estou como um amigo que em conversa me dizia : "Preciso de urgentemente virar a vida de ponta a cabeça.  Preciso mudar tudo.  Estou exausto !"

Eu estou exactamente assim.
Sinto em mim o cansaço de um lodaçal, o esforço do caminhar em terreno pantanoso, o desânimo de horizontes sem cor ou novidade.  O igual assusta-me.  O repetido angustia-me.  As rotinas de vida não me dizem nada.
Preciso virar páginas, sacudir pós interiores ... despendurar a vida da corda da roupa onde balança, balança e donde não se solta, numa modorra doentia ...
Preciso de viver, bem ou mal, mas "viver", e as vidas iguaizinhas, sem história, sobressaltos, desejos e sonhos, incomodam-me mortalmente. Matam-me aos poucos.
Sou uma eterna e inveterada sonhadora.  Sou uma adolescente envelhecida pelos anos.  Sou uma utópica romântica com ímpetos transgressores sempre, ao "instituído", ao "adequado", ao "expectável".
Sou um espírito inquieto e turbulento, que questiona, que se impacienta, que anseia ... que não se doma ...
Porque o que vive dentro de mim é enorme, é excessivo, é grande de mais para se espartilhar, para se acomodar, para se encaixilhar ... para se aprisionar !...

Deixar tudo para trás ... virar tudo do avesso ... e partir, partir por aí, por outras estradas, outras veredas, buscando outros céus, outro azul de mares que nunca são os mesmos, embrulhando-me noutra aragem, escutando silêncios de alma, cúmplices, ou acordes das matas distantes ...

Partir ... partir talvez fosse a solução !

Anamar

domingo, 9 de setembro de 2018

" UM BANHO DE SAÚDE "




Quem tem a Natureza à porta, às vezes desconhece a mais valia de que dispõe.
Quem vive no betão impessoal e descolorido, sabe-o bem.  O mergulhar nas potencialidades que a Natureza  nos prodigaliza, ali ao virar da esquina, é quase sempre um banho vitamínico para a alma e para o corpo.

Amanheci e estive ao longo do dia com um "calundu" daqueles ... Cansaço de fases da vida ... ressaca da "esfrega" a que fui sujeita ontem, como aqui contei ... noite mal dormida também por isso ...  ?? Sei lá ... talvez tudo e talvez nada .
O que é facto é que passei o dia naquele enrolo improdutivo e indeciso, sem iniciativa para nada.  Uma modorra chata e desmotivante que não faz, nem deixa fazer.
E o domingo a escoar-se, e de útil ... népia !  Ao menos que tivesse dormido, o que nem sequer foi o caso.

Há muito, demasiado tempo, que banira as caminhadas da minha realidade.  Sei lá ... nem sei quanto.
A situação da minha mãe até ao fim da sua vida, foi de tal maneira limitativa, absorvente e destrutiva, que me tirava toda a disponibilidade temporal, mas sobretudo toda a vontade e espírito anímico para o efeito.
Sou comodista por excelência, extremamente avessa ao exercício físico, e como tal, ginásios ou prática de outros desportos representam  uma dificuldade acrescida, que me desanima e afasta.
Caminhar ... e caminhar na mata, era a única actividade que tolerava sem grande esforço, direi mesmo, com algum gosto.

Havia deixado de o fazer, como disse.

Mas com o avanço de uma tarde sem história que teimava em se arrastar, com um sentimento de inutilidade e bloqueio psíquico, desgastante ... e sem vontade útil de outras iniciativas, escutei o desafio de um amigo que há largo tempo já, me "alfineta", confrontando-me com a perda dos meus bons hábitos de vida : "Margarida, tu eras tão persistente e agora estás preguiçosa.  O exercício é fundamental para a saúde. A tua vida é demasiado sedentária ..."  e etc, etc, etc.
E o mais grave é que é exactamente verdade !

Desta forma meio safadinha, mexeu-me nos brios, e ... ala que se faz tarde ! Uniforme de treino, ténis, mochila às costas com água, as chaves e o telemóvel e aí fui eu ... ou melhor, aí fomos nós, porque uma caminhada com companhia, é bem mais gratificante e bem menos castigadora do que fazê-la em protesto, refilando só comigo mesma ... 😄😄😄
Às vezes é só preciso um empurrãozinho ...

Uma tarde pouco quente com uma brisa fresquinha a correr, o silêncio das veredas, os aloendros em flor, o trinado dos pássaros e o verde bem reconfortante, esperaram-me na mata de sempre.
Receava o cansaço por excesso de destreino, mas a hora e meia passou agradavelmente rápida, por entre conversa, risos e algumas confidências ... ou não fôssemos nós amigos de há já muitos anos.

E pronto, deixei por lá o "calundu" que me massacrava os miolos, esvaziei a cabeça de alguma coisa do que ma perturbava, e concretizei o primeiro episódio do que espero venha a ter continuidade : a realização persistente, disciplinada e esforçada, da manutenção saudável da minha qualidade de vida !

Afinal, p'ra grandes males ... grandes remédios !...

Anamar

sábado, 8 de setembro de 2018

" NÃO SE AGUENTA !!! "



 
                                                      CONHECEM ???!!!!!  😠😠😠😠


Estou preocupada comigo mesma.
Ou então atravesso uma crise de intolerância, insuportabilidade, atingida que foi a cota de fúria, ainda a "festa" não começou ...

Eu explico :  atravessamos o famigerado mês das não menos famigeradas festividades do município onde resido.  Terça-feira próxima, comemora-se mesmo, o "dia da cidade", com o inerente feriado municipal.
Moro na zona central  e as traseiras do meu prédio, formam, conjuntamente com outros, uma espécie de praceta fechada.
Sendo logradouro privado da Câmara, este simulacro de quintalão,  é recentemente aproveitado para os programas de ar livre das festividades, quer se trate de espectáculos de rua com ou sem qualidade.
Como um espaço praticamente confinado, no meio de paredes pertencentes a prédios de sete andares ou mais, concentra em si toda a sonoridade emitida.
Palco instalado, pseudo-criação de café-concerto, mesas e cadeiras para comes e bebes.
Desde cedo, aliás desde ontem, a instalação desta necessária panóplia de infra-estruturas, mais a aparelhagem sonora, toda a instrumentação que se impõe, as colunas de som, e obviamente a bateria tinindo de afinada ... aqui foi colocada.
É claro que estando numa terra circundada por bairros de residentes muito particulares, a bateria é determinante e imprescindível.
A música  é, fundamental ou exclusivamente, metálica. Grupos "rap", absolutamente desconhecidos acredito que não só para mim, lançam incessante e insanamente para o ar, decibéis insultuosos de temas de uma qualidade que não lembra "ao careca" ...
A praceta, como referi, ajuda à coisa, funcionando como caixa de ressonância.
Pois bem, a previsão de começo oficial da desbunda é agora às 18h.  Mas receando perder um bom lugar, já temos gente instalada a pé firme, nas mesas lá em baixo.
Um bom lugar, ou direi mesmo, que um croquetezito, se os houver, já que se anunciava em complemento, "street food" ... vejam como se é fino, nestas paragens ... 💃 "oh yeah" !!!
Tudo depende da boa vontade camarária.

Vivo num sétimo andar.  Estou portanto no que se pode chamar,  de "tribuna vip".
Já fechei tudo o que podia fechar. Tentei tampões de silicone, esquecidos desde os tempos das natações. Já procurei o outro lado da casa, oposto a este.
Em vão !
Os cães dos terraços aqui à volta, estão solidários comigo, pois não entendem esta espécie de sismo, que nos abana as paredes.  E ladram furiosamente.
Os meus gatos, igualmente incrédulos, procuraram o único sítio disponível que lhes parece protector. Fugiram para debaixo da cama.  Logicamente, em vão !
Ainda não perdi a esperança de que a minha vizinha do quarto andar, com cento e um anos, seja desta vez que se fina...

Estou com uma crise de profundo mau feitio, com uma vontade assassina de fazer um bombardeamento rasante, que exterminasse a "festa" de vez !...
Tenho uma dor de cabeça dos infernos, e só me apetece gritar cá de cima que vão todos para a "puta que os pariu" !
Por que raio é coisa assente, que queiramos ou não, temos que participar do pesadelo???
Só porque há que lavar a cara, neste mês de Setembro, a uma Câmara omissa, negligente e demissionária das devidas obrigações básicas para com os munícipes, no resto do ano ?!

Por que não, acontecimentos culturais reconhecidamente qualificados?
Por que não, um bom concerto ao ar livre aqui debaixo do plátano, neste fim de Verão?
Por que não, um bailado ( já não exijo com o critério dos que ocorrem no "Ao Largo "... ) ?!
Por que não, serem convidadas figuras da área da música, de valer realmente a pena ?!
Por que razão veio, por exemplo, a Teresa Salgueiro a um único espectáculo, ainda assim a portas fechadas ?!  Com entradas pagas, claro, porque para as franquear, a Câmara parece então não possuir verba ...

Estou farta desta bimbalhice bacoca, para calar a boca a suburbanos pouco exigentes. Gente que papa e engole qualquer coisita.
Estou farta de agendas camarárias recheadas à "trouxe-mouxe", subalternizando o grau de interesse, acredito que da maioria das pessoas, e contribuindo para a sua incultura.

Bom, espero resistir.
Entretanto, antes que mate alguém, estou a fazer uma concentração mental  muito particular, apelando à comiseração dos elementos da Natureza, quais índios da Amazónia, com a sua "dança da chuva"...

Como seria abençoada uma boa bátega de água, neste contexto !!!

Anamar

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

" O SONHO COMANDA A VIDA ... DIZEM ... "





Escrevo pouco.  Já o referi vezes sem conta.
Neste momento acho que estou tão crítica face ao que escrevo, que cada texto resulta num parto tão difícil, que custa a fazer-se.
Atravesso uma crise de criatividade, julgo, mas sobretudo, por cada escrito que escrevinho, sopeso vezes de mais da oportunidade de o fazer, do interesse ou do valor do mesmo.  E como sou demasiado perfeccionista em tudo na minha vida, acabo concluindo da inutilidade de o produzir.

Nada de novo poderia envolver as minhas palavras, pois como se sabe, já absolutamente tudo foi inventado.
Claro que qualquer tema ou assunto é sempre passível de ser abordado das mais variadas formas.
A visão de cada um.  Mas o interesse devido à minha possível, é forçosamente irrelevante e irrisório, desnecessário e redundante, face à proliferação de autores, de gente capaz e abalizada ... em suma, de gente "autorizada" no domínio das letras e da cultura, neste país !

Depois ainda, eu escrevo primordialmente numa libertação de alma, num aliviar de comportas emocionais, quase sempre.  É uma escrita intimista e personalista que caracteriza este meu espaço. Uma verborreia com pouco de pragmática, uma abordagem dos temas invariavelmente indissociável do meu "eu" interior, sendo que é sempre "ele" e a sua "saúde" real, que ditam o espírito das minhas letras ...
E isso, é obviamente domínio pessoal, de interesse ou consideração precários, por parte de quem aqui eventualmente desce a lê-las.

Tenho um amigo que descobriu recentemente as virtualidades da escrita.  O quão importante é, tantas e tantas vezes, libertar para o papel o que nos vai na alma, o que nos assalta a mente, as interrogações que nos colocamos, as dúvidas e as inquietudes que nos assolam.
Podermos "conversar" com nós mesmos, através das palavras que alinhamos, sem outro intuito ou objectivo além de olharmos como se olha num espelho a nossa imagem, de uma forma descomprometida, ou como se observa no porta-retratos o nosso rosto ali representado ... de fora para dentro, com algum distanciamento, é efectivamente uma forma de nos sentirmos vivos, e um privilégio ... acho..

Admiro muito o que escreve.  Tem uma forma de se expressar "naïf", sem pretensões de estilo, de conteúdo ou forma.  Sem preocupações de correcção ortográfica, inclusive.
Alinha tudo o que quer dizer, ao sabor do desalinho do seu próprio pensamento ... sem demais preocupações.
Escreve tal qual é, tal qual pensa, tal qual age na vida.  É uma escorrência com a impulsividade ditada apenas pelas próprias convicções, sentimentos e opiniões. Duma forma liberta, sem peias ... vernácula.
Solta as memórias ao vento, conforme o povoam.  Não tem inibições, censuras ou  medos.
Escreve com uma genuinidade absoluta.  Lembra uma criança a fazê-lo.  Tem a simplicidade de Aleixo na expressão, e um discurso  muitas vezes, absolutamente ternurento, porque ditado pelo coração que tem no peito, bem subido ... pertinho da boca !

Escreve sobre tudo e sobre nada.
Tem uma criatividade inesgotável, e as suas histórias, contadas na primeira pessoa, ou através de outras personagens heterónimas, são quase sempre deliciosas.
É um homem vivido, com muita estrada palmilhada lá para trás.  Com incursões por muitos mundos, cruzou a sua vida com muitas outras ... e de todas tem um episódio para contar.
É dotado de uma sensibilidade à flor da pele.  Tem uma curiosidade de menino que descobre a vida, e uma mescla de bonomia e irreverência face à mesma ... muitas vezes.
Ingenuidade também ... como criança grande, esperançosa e crente,  que não cresceu.

Invejo-lhe a riqueza de ideias.  O manancial de vivências. Invejo-lhe a liberdade de expressão.  Invejo-lhe mesmo a "inconsciência" com que o faz ...

Duvido que alguma vez envelheça.  Duvido que algum dia reconsidere caminhos, mesmo podendo ser prejudicado quantas vezes, por palmilhar os escolhidos.

Desejo que mantenha e nunca deixe apagar dentro de si, a chama infantil que o norteia.
Desejo que nunca desista, mesmo que um dia perceba que tudo foram histórias ...
Porque afinal, quem escreve, é sempre, em última análise,  um privilegiado contador das mesmas ...

E porque, simplesmente ...

                "o sonho comanda a vida, e o mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos de uma criança" !...

Anamar

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

" QUEM SABE ?!..."






Ando meio baratinada com tudo.  Sinto-me profundamente insatisfeita, sem referências reais, conturbada na mente e na alma que é um lugar muito especial, mais p'ra lá mais p'ra cá, que pressinto, mas não sei bem onde fica ...

Muito, muito desarticulada, desconfortável, desentendida comigo mesma.
Sinto falta de me reencontrar, se é que alguma vez o estive.  Sinto-me direito e avesso duma personalidade em que ambas as faces não colam, acertando o puzzle.
E acho que este calcorrear de estrada sem sentido, estrada que parece levar a lugar nenhum, este estado de caminheiro no deserto, este sentimento de peregrino sedento e sem nascente por perto ... me deixa assim, como dizia, baratinada com tudo !  E cansada também ... muito mesmo!

E pergunto-me, como pode alguém ser um poço tão profundo de incoerências e contradições, como eu sou ?!
Questiono-me por que na verdade estou e não estou, sou e não sou, vivo e não vivo ... tudo ao mesmo tempo, em tempo real ?!
Por que é a minha existência uma zona de turbulência permanente, numa navegação a muitos pés de altitude ?!
Por que pareço mexer-me, quase sempre, numa área meio difusa, pouco gratificante e indefinida ?!
Defeito congénito, concluo.  Algo para que ainda não inventaram conserto, acredito.

E por tudo isto, invento de estar bem com o que não tenho, desvalorizando o que tenho, como uma barata tonta, vivendo o sofrimento de perú em véspera de Natal.
E nada disto é justo, se é que nesta vida se consegue aferir, com correcção, da justeza das coisas que vivemos.
Uma coisa é certa ... que tudo isto é uma canseira desmedida, lá isso é ! E um processo desgastante e destruidor, sobretudo quando além de nós, não conseguimos subtrair ao mesmo, outras pessoas mais ou menos envolvidas.

Lembro com muita saudade muitas viagens que fiz, há anos atrás, sozinha, entregue a mim própria, numa catarse de vida que de algum modo me renovava.
Lembro aquela frase feita, mas lógica e acredito que verídica, que diz : "se algo de bom acontecer, viaje para comemorar ... se algo de mal acontecer, viaje para esquecer ... se nada acontecer, viaje p'ra fazer acontecer ..."  que me parece quase perfeita !

Sabemos contudo que, embora tenha muito de autêntico toda esta sequência de afirmações, também não é exactamente assim. Também não é liminar e simplistamente assim ...
Obviamente que nada encontramos se não o levarmos dentro de nós ... E refiro-me à expectativa utópica de que, longe do que nos molesta, teremos reunidas as condições, como num passe de mágica, de que tudo o que é negativo se varre do nosso espírito ...
De facto, tudo viaja connosco sempre.  Apenas, em contextos mais propícios e felizes, estaremos em condições de tudo enxergar com outros olhos, e mais tranquilidade teremos, maior distanciamento provavelmente,  para descobrir soluções outras ...
Também, se não estivermos equilibrados e abertos a que melhores momentos adornem as nossas vidas, não será de novo, por varinhas de condão, que tudo irá processar-se.
Uma coisa eu tenho que aceitar como verdade irrefutável : sempre, numa viagem acontece alguma coisa.  É impossível que vamos e venhamos, com as nossas vidas e os nossos corações  iguais.
Uma viagem é SEMPRE, e indiscutivelmente, uma mais valia de enriquecimento, de conhecimento, de experiência, de aprendizagem.
Mesmo quando nem tudo nos corre forçosamente de forma perfeita.
Em última análise, uma viagem é um repositório de memórias, novidades, sonhos,  jamais "deletáveis" nas nossas vidas.  É sempre uma aventura única, irrepetível e inesquecível !

Também é determinante, e é absolutamente incontestável, haver uma diferença nítida entre viajar-se só ou acompanhado.
Já viajei bastante  acompanhada, em contextos diferentes, com pessoas diferentes.
Já viajei bastante, só. 
O balanço que faço de todas essas situações é que, ou a companhia é próxima da "perfeição" no nosso quadro emocional, afectivo, de linguagem, de interesses, gostos, e obviamente sonhos ... ou ... eu diria, fica-nos, se não tudo estragado,  um prejuízo decepcionante, desanimador e frustrante das mais legítimas expectativas e "castelos" que tenhamos construído em torno dessa viagem, seguramente.
E um amargo instalado faz-nos sentir que talvez tenha sido, de alguma forma, uma perda de tempo e oportunidade ... e foi pena !!!
E nada mais revoltante que desperdiçar todo o  capital humano, de recursos materiais e de investimento de coração e alma, numa canoa que veio a mostrar-se furada ...

E repito ... foi pena !!!



Anamar