domingo, 24 de fevereiro de 2019

" UM FUTURO AMIGO DOS IDOSOS ..."




Caminhando pela mata, num domingo primaveril, desocupado e leve, reflectia eu, no silêncio aconchegante do verde que me envolvia, sobre um artigo que li recentemente no Jornal "O Público", respeitante a um tema que inevitavelmente, em situação normal, nos tocará a todos : o destino que o futuro mais ou menos remoto, dará às nossas vidas.

Quando eu ainda leccionava ( numa escola que foi da vida inteira, com um corpo docente praticamente estável, também da vida inteira ), de quando em vez, meio a rir meio a sério, nos intervalos ou nos "furos", em torno de uma mesa ou num dos sofás da sala dos professores, calhava vir, a sacramental conversa de circunstância : "um dia havíamos de ir todas para o mesmo lar.  O que é que acham ?  Ia ser divertido.  Íamos lembrar as histórias  por que passámos, íamos falar dos assuntos que nos interessam, íamos ter tardes intermináveis de tertúlias infindáveis, e serões à lareira, de risos e memórias, de partilhas e cumplicidades.
Cada um, de acordo com as suas capacidades, motivações e gostos, seria uma mais valia para o grupo.  A confiança e a amizade fariam o resto ...
E claro, íamos ter infinitas embirrações, manias, discussões e "caduquices" !!!  Já pensaram como ia ser animado ?  Bem mais animado seguramente, do que o que provavelmente se desenhará no nosso horizonte, de acordo com os figurinos actuais ..."
Ríamos, dizíamos uma outra laracha a propósito, encompridávamos  o pensamento pelos tempos vindouros, como se dessa forma pudéssemos espreitar adiante ... E pronto ... não passava disso mesmo !

É que,  "esse dia" surgia ainda remoto nas nossas vidas.  Era um cenário considerável, mas tão distante na verdade, nas nossas mentes, que não nos causava qualquer apoquentação real !
Afinal ainda faltava tanto para nos aposentarmos, tanto para envelhecermos, tanto para sequer equacionarmos a necessidade de nos colocarmos essa questão !
Éramos jovens, podíamos tudo, atravessávamos a idade de produzir em pleno, éramos profissionais denodados, mães e pais de filhos ainda pequenos, em idade escolar alguns, menorzinhos outros ... e esse assunto vinha e ia com a leveza de uma preocupação que a bem dizer, ainda não o era.
Conformava simplesmente, uma espécie de brincadeira com que nos experimentávamos.

Contudo, o tempo passou.  E como passou rápido !
Alguns de nós também já passaram do mundo dos vivos, e de outros, vamos sabendo com frequência demais para nossa mágoa e tristeza, que se encontram injustamente em vidas precárias, já sem qualidade ou esperança.
E de repente, parece que esquecemos que haveria um dia em que o "tal dia" nos ficaria mesmo mesmo ao virar da esquina.  E chegamos a surpreender-nos ... nem chego a perceber bem porquê !...

E o nosso devir está aí.  O passado, o presente e o que será o futuro, parecem ter-se sentado rapidamente na nossa mesa, parecem ter ocupado um lugarzinho na nossa cabeceira, por cada manhã que despertamos ...
Os filhos estão criados e criam outros filhos. As casas paternas ficaram imensas pelos espaços vazios que albergam.  O nosso tempo individual também se agigantou.  Os projectos são tão relativos quanto o tempo de que teoricamente disporemos.  E finalmente, não poderemos ignorar ou fingir que não percebemos, que o tal dia se aproxima a passos largos.
Há que delineá-lo, então.  O futuro que ainda tivermos, convém que possamos nós mesmos, defini-lo.
Pelo menos, eu penso assim.  O que eu quiser, dentro do que eu puder, exijo que me caiba a mim decidir.

É aí que se prende o artigo que referi e que posto abaixo, da autoria da jornalista Alexandra Campos do jornal "O Público" e que deixo à vossa consideração.

Em Portugal, esta solução para o destino sénior, poderá ainda classificar-se de uma miragem, creio. Contudo, parece começar a dar os primeiros passos, e parece-me também ter a simpatia e a adesão da maioria das pessoas eventualmente abrangíveis, no futuro.
Não acredito que possa vir a considerar-se com expressão social, já na minha geração, infelizmente.  Seria utópico nisso acreditar.
Pesando embora a sensibilização geral favorável a este modelo de futuro geriátrico, esbarra-se objectivamente, como sempre, em todo o tipo de obstáculos materiais, institucionais, políticos, legais, económicos e até culturais, que na verdade, do ponto de vista prático, serão barreiras muito difíceis de ultrapassar num país de parcos recursos e de carências múltiplas aos mais variados níveis.
Levará tempo até que Portugal se torne de facto, um país "amigo dos idosos" !

Mas que seria tão simpático que dele pudéssemos usufruir ... lá isso, seria !!!



ENVELHECIMENTO -    Jornal  "O Público"   - 22 de Fevereiro de 2019

Vamos envelhecer juntos? Cohousing dá os primeiros passos em Portugal

A “habitação colaborativa sénior”, uma “espécie de república”, mas com regras e serviços de apoio partilhados, pode ser uma alternativa aos lares de idosos e à fatalidade de os mais velhos viverem sozinhos.
                                                      Alexandra Campos 


Na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto apresentaram-se vários modelos de Cohousing 

Kerstin Kärnekull tem 75 anos mas parece ter menos dez. Há um quarto de século que a arquitecta sueca escolheu viver no primeiro projecto de cohousingdo no seu país, uma experiência de habitação “colaborativa” para a “segunda metade da vida”. 
Localizado em Estocolmo, o Kollektivhuset Färdknäppen inclui 43 apartamentos com um a três quartos, uma pequena cozinha e um espaço comum com 350 metros quadrados, onde os amigos se encontram. “Quando envelhecemos, não há nada mais importante do que estar com outras pessoas”, enfatiza.

No Färdknäppen, há turnos para preparar refeições, há turnos para fazer limpezas e há turnos para toda uma série de tarefas. E todos colaboram. É “uma escola de democracia”, sintetiza. Nesta comunidade com 56 pessoas entre os 53 e os 93 anos, cerca de dois terços são mulheres. 
A já longa experiência tem corrido bem. Mesmo aquela ideia feita de que viver em comunidade acaba com a privacidade é um mito, assegura a arquitecta. “Tive um amante durante cinco anos e ninguém percebeu”, graceja.


Kerstin esteve nesta sexta-feira na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto a descrever, perante uma plateia maioritariamente grisalha, como funciona o seu projecto de cohousing, como evoluiu o conceito — que surgiu na Dinamarca nos anos 70 do século passado, e como esta opção de vida revelou ser a mais acertada no seu caso. “Dizem que se ganha 10 anos por viver num lugar como este”, afirma, jovial.
A arquitecta partilhou a sua experiência na conferência internacional “Cohousing em Portugal — Viver Sustentável”, que foi organizada pela associação Hac.Ora Portugal Senior Cohousing, uma associação sem fins lucrativos fundada em 2018 e que é liderada pelo ex-presidente da Câmara Municipal do Porto Nuno Cardoso.

Uma “espécie de república”

O ex-autarca está convencido de que a “habitação colaborativa sénior”, uma “espécie de república”, mas com regras e serviços de apoio partilhados, é a alternativa aos lares de idosos e à fatalidade de os mais velhos ficarem a viver sozinhos quando não têm retaguarda familiar e não lhes resta outra hipótese. “Já há lares de idosos que são fantásticos do ponto de vista físico. O problema é que a institucionalização faz-se muito tarde e as pessoas chegam muito dependentes. O ambiente acaba, assim, por ser sempre um bocado deprimente. E não há soluções para os séniores mais activos”, lamenta.


Exemplos de habitação partilhada

Em Portugal são poucas as iniciativas conhecidas de cohousing, mas há uma em Águeda, já com meia dúzia de anos, fundada por uma instituição particular de solidariedade social, "Os pioneiros", que, em 2012, criou uma “aldeia sénior”, hoje com 18 idosos, que vivem num aglomerado de pequenas casas, com o apoio de profissionais.

Mas há vários projectos a germinar. A Santa Casa de Misericórdia do Porto (SCMP) tem dois: um que passa pela recuperação e reabilitação de "um antigo bairro destinado a mulheres viúvas" e outro, "um núcleo muito restrito", a instalar num imóvel da instituição, dentro de um ano e meio. 
"Poderá revelar-se uma boa aplicação prática deste modelo e servir para provar à população que é possível", explicou o provedor da SCMP, António Tavares, na conferência desta sexta-feira, no Porto.

Em Lisboa, segundo Paula Marques, vereadora da autarquia, há um projecto com este espírito que já tem dois anos: um equipamento "intergeracional" instalado no Bairro Padre Cruz, que inclui "creches e espaços de acompanhamento de jovens" no rés-do-chão e residências assistidas nos andares de cima, apenas para idosos com autonomia. 
O projecto foi promovido pela Câmara Municipal de Lisboa e é gerido pela Santa Casa da Misericórdia da capital.
No encontro, Guilherme Vilaverde, da Fenache (Federação Nacional das Cooperativas de Habitação Económica), adiantou que já se está, com algumas cooperativas, a idealizar vários projectos, mas é preciso "legislação e financiamento".

Mas se alguém pensa que este é o renascer de comunidades hippies está enganado. “Esse movimento está ultrapassado”, afirma Cardoso. 
No cohousing cada família tem garantido o seu espaço pessoal, mas não existe apenas um modelo. Esta é “uma ideia de liberdade”, cada grupo “vai definir as suas regras”, apesar de também haver projectos de cohousing institucional, até para os mais jovens, diz. 
Tendo em conta o acelerado envelhecimento em Portugal, os idosos são, porém, a prioridade. 
Outros países europeus já entraram há muito tempo na corrida e Espanha está neste momento “a fervilhar de projectos”.

Mas se o cohousing vem “ampliar o leque de oferta habitacional” e contribuir para a “regeneração urbana e para a sustentabilidade ambiental”, ainda carece de enquadramento legal em Portugal, afirma o ex-autarca que foi recebido já pela comissão parlamentar para a lei de bases da habitação, onde quer que este modelo venha a ser contemplado.

Num país de proprietários

Ainda júnior em Portugal, a habitação partilhada já tem longos anos em vários países. 
São muitas as iniciativas de cohousing, como demonstrou Sara Brysch, arquitecta e doutoranda da Co-Lab Research na TU Delft (projecto holandês), que explicou que este conceito é “bastante flexível”. Pode resultar em cooperativas de residentes, em grupos de construção (caso da Alemanha), em soluções de cessão de uso (caso de Espanha).
Também a propriedade dos espaços pode ser privada, colectiva, cooperativa ou então poderá optar-se pelo arrendamento cooperativo (modelo que predomina na Suécia). A ideia é ter casas ou apartamentos independentes (equipados com todos os serviços essenciais de uma habitação, com quartos, casa de banho, cozinha/kitchenette, zona de estar) e um espaço comum partilhado, com sala, cozinha, lavandaria e, eventualmente, quartos para convidados.
A arquitecta deixou claro que o cohousing  “não é uma comuna, não é um condomínio fechado, não é uma cooperativa de construção nem é co-living, porque o modelo mais comercial não inclui a participação dos residentes”. E, frisou, é essencial assegurar a criação de parcerias, financiamento e envolver autarquias.


Em Portugal há um obstáculo: somos um país de proprietários (75% das famílias compraram as casas onde vivem). É uma questão cultural, mas que pode ser ultrapassada. 
Ainda temos energia e este é o modo de vida que nos interessa”, atesta a economista Luísa Bernardo, que seguiu com interesse a conferência. “Nós somos potenciais vendedores das nossas casas”, diz, lembrando a frase de uma mulher que optou por este modelo: “Disse ao meu filho: eu é que vou sair de casa."

Anamar

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

" ELES ... "




Eles vivem connosco.  Porque nós o quisemos, não que eles se tivessem imposto.
Eles dividem o nosso espaço, partilham-nos as preocupações, escutam-nos os silêncios, acarinham-nos.
Eles olham-nos nos olhos, mesmo quando mais ninguém nos olha nos olhos.  E "conversam" ... dizem-me  tantas coisas ... ao seu modo ...
Eles  buscam-nos  o  colo e o calor, quando  os  filhos  já  o  deixaram, há  muito, e  foram  às vidas ...
E também já me secaram as lágrimas, ou lhes tomaram o sal quando elas escorriam rosto abaixo ...
Esperam-me na porta, quando na fechadura a chave me anuncia.  E não me perguntam de onde ... e porquê ficaram ali, sós.  Esperam-me simplesmente.  E "sorriem" ... ou quase sorriem ...
Ouvem a minha música, partilham do meu sol.  Aceitam as minhas festas, ou os meus ralhetes mal humorados, em dias menos fáceis ...

Eles são os nossos companheiros de percurso.  São os seres que apelidamos, injustamente, de irracionais e com quem dividimos a vida.
Não pedem, não reclamam, não reivindicam.  Têm a generosidade que muitos humanos não têm.
São extensão da nossa família.  Ou pelo menos, devê-lo-iam ser ... sempre !

Já conheci alguns, ao longo dos anos.
As suas histórias cruzaram-se com a minha, até que o destino lhes pôs um ponto final.
Até hoje a sua ausência me aperta o coração.  De todos guardo momentos, ocasiões, memórias ... sempre gratificantes, sempre felizes ... eternas.

É uma angústia quando adoecem.  Não se queixam.  Percebemos que não estão bem pelos sinais que vão deixando, se os soubermos olhar.  São discretos.  Buscam muitas vezes o isolamento.  Escolhem um lugar silencioso e tranquilo para se aninharem, por forma a não perturbarem.
Até na morte têm dignidade.  Uma imensa dignidade !
Foi assim com o Óscar, a Rita, o Nico, o Gaspar ... e todos os outros que passaram por mim.

A sociedade, infelizmente, ainda desprotege brutalmente os nossos bichos.
Como tratá-los como merecem, com os valores astronómicos que nos são exigidos, por cuidados de saúde, por acompanhamento médico, pela simples alimentação ?!...
Mas como negar-lhes também, esses mesmos direitos ?!
A responsabilidade que sobre eles nos cabe, o amor que lhes devotamos e o respeito que lhes é devido, impõem-se-nos.  Afinal eles são, como dizia ... extensão da nossa família !

Fui impelida a escrever este texto, que na verdade  de novo nada traz , ao regressar com o Chico, de mais uma consulta na Faculdade de Medicina Veterinária.  Exames inconclusivos, diagnósticos generalistas ... pode não ser nada ... pode ser tudo ... mais um exame a ser feito ... duzentos euros, o valor ... quando mais do que isso já foi gasto ...
E pergunto-me : "Como poderão tantas pessoas de recursos precários, encarar uma situação destas ?  Como poderão tantos idosos de parcas possibilidades financeiras, acorrer ao tratamento do seu amigo de fim de linha ?...  Às vezes, o único que lhes ficou !... "

Instituições quase sempre a viverem exclusivamente de voluntariado, de ajudas beneméritas de particulares ... gente anónima que por amor e carolice, nas ruas, apoia, protege e defende como pode, são as únicas estruturas que, com todas as dificuldades e carências que conhecemos, ainda vão dando a resposta possível à realidade que nos rodeia.
Partidos políticos ( ridiculamente preocupados com provérbios ... ), talvez devessem tentar implementar uma política real de apoio na saúde, aos companheiros que connosco dividem as vidas.
Isso sim, seria legitimar os seus direitos.

Afinal, eles estão desde sempre, connosco,  no Planeta Terra !...

Anamar

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

" A PROPÓSITO ... "






O sol acabou de descer no meu horizonte visual  lá longe onde os prédios o desenham, como uma bola de fogo bem iluminada, num laranja aceso de fim de tarde.
Os dias azulam, são claros e luminosos, como se a Primavera já por aqui estivesse.  Do que me lembro, e não sei porquê, sempre Fevereiro assim nos surpreende.
Entretanto no Havai, os ventos sopram a 300 quilómetros por hora, e há neve nos pontos altos. Manifestações de uma Natureza zangada com o Homem, que a manipula e destrói.

Os pássaros, mal a primeira luz da manhã se anuncia, começam os gorjeios de acasalamento no plátano das minhas traseiras.  Oiço-os no silêncio do meu quarto, quando os olhos ainda não se me fizeram ao dia que começa.  É altura da construção ou reparação dos ninhos.  Daqui a pouco começam as posturas, e depois ... o ciclo da vida retoma a marcha.
Dizem-me que já há andorinhas por aí.  O Alentejo tem os postes de alta tensão, ponteados de cegonhas, em ninhos que não chegaram a abandonar, uma vez que as alterações climatéricas parecem não justificar já, a debandada  para outras paragens.
As mimosas douram as ramagens, os folhados breve se encherão dos pequenos bouquets brancos que os adornam generosamente e as azedas cobrem os campos de um amarelo claro e luminoso repleto de vida !

Amanhã é uma vez mais  no calendário recente, dia de S.Valentim.  Dia do amor, da paixão, dos sentimentos exacerbadamente valorizados, numa manobra de marketing consumista, importada artificialmente das estranjas.
O vermelho impera, associado ao calor de fogueiras afectivas e emocionais, como se os sentimentos se medissem por termómetros coloridos.  Os corações, as rosas vermelhas, as roupas íntimas sugestivamente escarlates também, com pormenores de tapa-destapa eróticos ... as caixas de chocolates afrodisíacos, são as peças de um puzzle que tenta vigorar pelo menos pelas vinte e quatro horas que completam o dia catorze de Fevereiro de cada ano ... São acendalhas de uma fogueira que se assopra, no desejo de que o desejo se acenda, custe o que custar ... Só porque sim !!!

Entretanto a violência entre as pessoas, dispara.  As estatísticas denunciam números assustadores de mulheres vítimas, por cada dia que passa.  Provavelmente de homens também.  De crianças, apanhadas no fogo cruzado de relações que se desfazem ... seguramente ...
Essas, nem chegam a entender o porquê ...
E há também a violência psicológica, mais fria e cortante que a física.  Existe no silêncio, funciona na chantagem, na manipulação, na ameaça ... grassa na miséria, na submissão e no medo.  Quando as alternativas de vida escasseiam ...
Alberga o ódio, semeia a solidão e a dor.
É cirúrgica, matreira, falsa, desapercebida ... quase sem rosto ...
Coexiste com o desamor. É cinza de brasas apagadas.  É desmantelo de derrocadas moribundas.
Destrói e mata.

E amanhã, lamentavelmente, é mais um dia de fazer de conta.  Como se os sentimentos nos caíssem no coração, por decreto. Como se a nossa alma se engalanasse, só porque a página do calendário o decidiu ...

Os amores são muitos.
Os verdadeiros, os reais, os sentidos, os que  tocam a sério as fímbrias do nosso ser não carecem de hipocrisias ou justificações vazias, para existirem.  Não precisam de se exibir socialmente. Não têm mês, dia ou hora para ser.  Simplesmente, são ... porque são autênticos, indeléveis e eternos.
Não necessitam de tradução, porque quem os vive tem códigos de entendimento.
Não precisam ser ditos, porque se vêem no olhar e porque se denunciam no calor das palavras que escorrem.
São amores com história.  Aquela que se nos escreveu no peito e que as marés não apagam, porque foram cinzelados a fogo "ad eternum".
São únicos, exclusivos ... raros e um privilégio quando nos acontecem nas vidas !

Bom... sinto-me amarga.  Noto-me em desencanto.
Há largos meses que não escrevo um poema.  E eu gostava de fazer poesia ...
Talvez ela não povoe mesmo já, a minha vida !...

Anamar

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

" LAMPEJOS DE FELICIDADE "






Abrindo o Facebook, e porque é preceito desta aplicação, de quando em vez nos refrescar a memória com "memórias" nossas, postadas anos atrás - textos publicados, fotos partilhadas de eventos que vivemos, comentários de amigos, a propósito ... enfim, aquelas coisinhas que quase sempre nos aquecem o coração e adoçam a alma - surgiram-me fotos de férias  passadas no Brasil em 2015.
Foram duas semanas divididas entre a Amazónia e o Pantanal, culminando um sonho antigo, acalentado ao longo dos anos.  Mais precisa e principalmente, desde que na televisão foi exibida uma novela inesquecível, de que não perdi um só episódio : " Pantanal".

Apesar de ter uma ideia mais ou menos formada portanto, do que seria essa privilegiada região do Brasil, a distância entre a imaginação e a realidade, configurou-se num fascínio, num emaravilhamento, numa felicidade simples, plena e serena, face ao Paraíso que lá me esperava, sem que haja adjectivos sequer que as aproximem.

Bom, mas a razão por que escrevo este meu post, não se prende exactamente com o intuito de descrever o que foram, de facto, esses dias.
Verifiquei e reli outra vez, todos os comentários tecidos por quem visualizou as fotos de então.  Entre eles, saltaram-me aos olhos algumas palavras deixadas pela minha filha mais nova.
Relembrava nelas, com um saudosismo perceptível, os tempos em que a série passava, num enlatado semanal de todos os episódios, aos sábados fim da tarde / noite.  Era ela então adolescente, com dezassete anos.
Como eu, fascinada pelas belezas naturais e pela magia que o Pantanal encerra, era também assídua e entusiasta espectadora.
E como a exibição era longa ... e como não havia na altura possibilidades de rewinds, gravações em box ou outros artifícios que permitissem uma visualização mais ao nosso jeito, carecia assegurarem-se por perto, alguns mantimentos e vitualhas que fizessem daqueles fins de dia, sem outros especiais programas em vista, verdadeiros e indeléveis picnics.
Era uma delícia ... tostinhas no forno com queijo derretido e paio alentejano, chocolate quente, um ou outro docinho ... e mais o que lembrássemos na altura.
Se era Inverno, assistíamos mesmo  na televisão aos pés da cama, no quente dos cobertores.  Era um ritual quase sagrado e muito gostoso !...

E ali ficávamos nós duas, sem pressas, vivendo os sobressaltos com a onça pintada, os receios da sucuri ou da surucucu  traiçoeiras, olhando a garça branca rasando as águas, ou o tuiuiú descendo com a corpulência das asas esticadas.  Ali ficávamos,  deixando-nos levar pelo som do berrante dos peões, no comando das comitivas, na transumância das boiadas, ou simplesmente nadando com a Juma nas águas mansas e caladas, por onde a chalana  melancólica e silenciosa, deslizava ... 

E vivendo, magicamente, através da história contada, a vida simples, livre e despreocupada descrita numa narração que nos transportava no sonho, através dela, ao outro lado do mundo... o Pantanal !...  

Eram sábados sem pressa, eram tempos com tempo para partilha, para diálogo, para rirmos e também para imaginarmos ser possível um dia, quem sabe, nós duas, cumprirmos o desejo de por lá andar também...
Eu, realizei-o exactamente vinte anos depois.
Ela, ao rever as imagens, lembrava e dizia : " o Pantanal ... tempos em que eu era feliz e não sabia" !

A vida também é isto ... pequenos lampejos de momentos felizes ... bocadinhos de bem estar e cumplicidades,  mesmo que nem sequer o tivéssemos suspeitado !!!...

Anamar 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

" NÃO SEI BEM PORQUÊ OU PARA QUÊ !... "



As mimosas já se adornam no manto dourado que as envolve.  São uma mancha de luz que ladeia os caminhos. 
Na mata, a única mimosa que a habita, também deverá ter as ramagens de Inverno, generosamente engalanadas com as bagas amarelas como pequenos sóis dependurados.  Irei ver, um dia destes.
É uma época do ano em que o amarelo tem o privilégio de preponderar.  As azedas multiplicam-se e atapetam os campos.  As macelas competem com as margaridas selvagens, e as cantarinas seguramente já treparão as encostas da Aguda .  Não demora, os narcisos festejarão a nova estação que virá ...
É como se o sol descesse à terra e aguarelasse os nossos horizontes.

Ontem fui verificar a caixa do correio da casa da minha mãe.  Não sei bem porquê, ou para quê...
Que carta ou que notícias espero lá encontrar ?!
Fiquei com as chaves, ainda.  Não sei bem porquê ou para quê...
De lá, só retiro publicidade que entope um receptáculo sem vida.  Para ali já ninguém comunica, já não há contas de água, de luz, de telefone, a aguardarem a devida liquidação.  Para ali, já não há comunicação personalizada, só papelada anónima sem destinatários ou receptores que a aguardem.
Retiro tudo, para esvaziar a caixa.  Subo os dois degraus que separam o hall de entrada dos andares térreos.  A porta lá está, silenciosa, cerrada, muda, inerte.  Morta ... também ! O mesmo tapete no chão.  A mesma ausência de gente, a mesma solidão ... o mesmo vazio.
Há tempos atrás, metia a chave à porta e entrava.  Como se quisesse verificar que estava tudo como foi deixado. Que continuava tudo exactamente como ficou.  Que a luz que atravessa a vidraça da cozinha, ainda ilumina da mesma forma o espaço que alcança.  Agora, vazio.  Devoluto.  Frio.  Gélido.  Sozinho.  Absolutamente abandonado. Serenamente abandonado.
Como se quisesse verificar, se dúvidas tivesse, que as flores já lá não estão, que os móveis também não, que não há sons, vozes, risos, passos ou correrias das miúdas.  Como se me esperançasse que, metendo a chave àquela porta, ela se abrisse e lá estivesse a minha mãe, na salinha, com o Gaspar aos pés, com a televisão ligada no programa do "Gordo" ... aguardando a hora de eu passar para as aulas, no último adeus do dia ...
Como se esperasse ... alguma coisa ... alguém ...

Agora, já não consigo fazê-lo.
Subo os dois degraus, é verdade.  Olho para a porta, silente e imperturbável.  O tapete permanece, indiferente. Por ele, contudo, nem eu já sou capaz de passar ...
Repouso o olhar naquela porta, sem precisar mais de entrar, porque sei de cor o que está além dela, centímetro a centímetro, oiço-lhe as vozes, sinto-lhe os cheiros, dia depois de dia do que foi mais de meio século de vida !
Cá fora, bate o sol dourado da tarde no parapeito das janelas ...
"Vamos p'ra dentro ? - dizia-me, quando depois do almoço espreitávamos o vai-vem da avenida, enquanto o sol baixo de Inverno nos presenteava.  " Ainda bate aqui o sol, mãe.  Já vamos !"

Estava lá ontem, que eu sei. Quando fui verificar a caixa do correio ...
Não sei bem porquê ou para quê !...

A vida !... 
Um dia fica assim. Parada. Inerte.  Insensível.
Um dia fica assim ... uma memória que rasga a indiferença dos tempos, uma imagem a sépia, a esbater-se na luminosidade de Fevereiro ... 
A mesma rua, as mesmas janelas ... a mesma porta ... até o mesmo tapete no chão ... ainda.  Tudo igual e tudo espantosamente diferente.  O mesmo sol a bater no parapeito ... Só que o sol nunca se repete ... nada se repete.  A vida segue adiante. As histórias reescrevem-se com outras personagens, outros rostos, outros corações a pulsar ... com outros figurantes ...
A vida segue adiante ... simplesmente !

Anamar

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

" FLASHES DO QUE ME APETECE ..."



Já anoiteceu. São contudo apenas seis e um quarto de uma tarde sonolenta, de tez meio dourada, de um sol envergonhado que nem foi, nem deixou de ser.
Foi mais um dia de um Janeiro a extinguir-se, um mês decorrido já sobre o Natal, que parece ter sido apenas ontem.
Este silêncio que me aconchega, aninha-me.  É o quarto de sempre, a música de sempre, a janela com vista do alto sobre todo o casario que se estende adiante e lá longe, onde a linha do horizonte se fecha.  Daí, o meu pensamento segue então, cavalgando até onde eu quiser, e até onde eu sei estar tudo o que me apetecer lembrar, tudo o que me trouxer memórias, espaços, emoções e sentires, pessoas, sons, cheiros e cores.
Para lá, além do permitido pelos olhos, há o permitido pelo coração.  E esse, como a mente, não tem limites, barreiras ou muralhas que o confine ou cerceie.

Lá, onde o fraco sol da tarde adormeceu, fica o mar.  E esse, sei-o em cântico de languidez, em ladainha de embalo, em melopeia de adormecimento.
O mar, é o que não começa nem acaba, é o que não tem fim ou princípio, é o que vive para lá dos tempos e os eterniza para além do sempre.
E sempre, é uma palavra que não existe no dicionário dos Homens.  Como nunca.  Nunca, também não sonhamos sequer, o que seja.

E o mar não se define.  Como o Homem, que também não tem definição ou fórmula.
O mar encrespa-se irado. Roça-se de meiguice na calmaria das marés, se são rasas.  Empolga-se e agiganta-se se a lua cresce e se enfuna nas madrugadas.  Pintalga-se em espelho da poalha estelar, se a noite for mansa e escurecida.  Abrilhanta-se em prata, afogueia-se nos pores de sol, azula-se sob céus imaculados e esverdeia-se enraivecido e cavernoso, como olhos de mulher traída ...
O mar ... longe do qual nasci e  junto do qual quero ficar ... quando for ...

Hoje, não tenho sobre o que escrever.  Preciso escrever ... é o que sinto.  Entupo-me por dentro se o não faço.  A cabeça não ajuda, por entorpecida.
Vivo tempos estranhos.  À minha volta, dos que conheço, os problemas, as angústias, as dúvidas e as apreensões instalam-se.  São problemas de saúde, que mesmo nos mais saudáveis começam a anunciar-se.  São problemas existenciais, práticos e objectivos, ou mais disfarçáveis.  Daqueles mesmo que as pessoas carregam, sem que lhes venham ao rosto.  São insatisfações ou incertezas.  São medos ou fobias pelo que aí vem, quando vier e que não sabemos.  São horizontes, que pareciam tão distantes ainda, e que desataram a caminhar na nossa direcção, estreitando os caminhos, aproximando os limites ...
São também os "não problemas".  Desses, eu padeço muito, porque penso demais, acho.
Por vezes invento-os ... acho também.
Pergunto-me pelo tempo.  Pelo que tive, pelo que desperdicei, pelo que terei.  E, já aqui o disse ... tenho uma permanente e estranha sensação de últimas etapas.  É esquisito, eu sei, mas, depois de ter enterrado os meus pais, tios e todos os ascendentes sobrevivos, senti claramente que avancei um passo adiante.  Senti claramente que entrei numa calha de acesso.  Senti claramente que agora fui eu que ocupei os lugares que se esvaziaram na fila, e que serei eu que os esvaziarei de seguida ...

Um destes dias olhei as minhas filhas.
Meia idade, quase jovens ainda ... Quarenta anos,  não serão preocupantes, creio.  E achei que também a elas, o tempo não estava a poupar.
Vi-lhes rostos crispados, cansados, stressados ... com sinais dos primeiros cansaços a sério, das preocupações e dificuldades das existências.
Rostos que ainda ontem tinham luz, olhos que sorriam de despreocupação, silhuetas cuidadas, elegantes, bonitas mesmo ... revelando o desgaste da luta, mostrando o peso das responsabilidades de vidas que se foram fazendo, como se eu não tivesse dado por isso ...
Acho que as "olho / revejo", nostalgicamente, saudosamente, surpresa mesmo, como se os anos não tivessem rodado e eu pudesse espreitar lá atrás ... nos tempos, que agora percebo leves, da sua juventude.  Como se eu me tenha distraído por aí ...
Olho-lhes os primeiros cabelos brancos a espalharem-se, sem se anunciarem sequer ... e emociono-me, sem querer ... Como foi tudo, tão súbito, tão silencioso, tão em bicos ?!...
E vejo os netos, adolescentes, daqui a pouco adultos, daqui a pouco com as cargas que também lhes serão devidas ... e oxalá o sejam ...
E de novo, tudo tão súbito, tudo tão silencioso ... tudo tão em bicos de pés ...

Estranho, tudo isto ...
Qual estranho ?! - dirá quem me ler, atestando-me insanidade real.
Não será tudo, afinal o rumo normal das vidas ?  Não será afinal este, o percurso desejável, expectável e sem demais estranhezas ?!  Não será exactamente assim que se cumprem os itinerários de quase toda a gente ?!
Acredito que sim.  Daí eu falar nos meus "não problemas" ... como se eu, ou alguém pudesse ter algum ascendente sobre o desenrolar inevitável dos tempos ... Como se a minha vontade, o meu sentir, as emoções que experimento, pudessem alterar o desenrolar dos caminhos ...
Parece-me tudo tão irrelevante, tão precário, tão pouco importante ... tão insignificante e sem sentido, como peças de xadrês  atontadas, num tabuleiro incomandável ...
Um piscar de olhos e o ontem já foi ... um suspiro, e o amanhã está quase a ir ...

Fico por aqui, neste "non-sense" que se me impôs, que me ocupou a mente, que me assalta em noites que o sono abandonou ... numa espécie de escrever ao sabor das ideias, numa espécie de libertação dos sentires, sem censura ou filtragem ...
Uma espécie de cansaço ou desencanto ... talvez seja essa a única classificação possível ...

Anamar

sábado, 19 de janeiro de 2019

" TERGIVERSANDO ..."




Um sábado de cinza, no céu uniforme e borrascoso, nas ruas de gente apressada a fugir à eminência da chuva já próxima, e também em mim, pintada por dentro com as cores frias que me rodeiam.
"Ao meio dia ou carrega, ou alivia", dizia a minha mãe, na sua sapiência de mulher velha, espaldada sempre na sabedoria do povo.
E é muito verdade.  Pelo sim pelo não, trouxe comigo o chapéu de chuva, porque eu acho que mais coisa menos coisa, o dia promete ...

Prometo também a mim própria, uma tarde daquelas ...  Daquelas que eu gosto, daquelas que nos últimos largos tempos, não usufruo.  A minha vida deu umas quantas voltas, voltas que nem sempre nos trazem, nas suas curvas, a concretização dos sonhos que idealizámos um dia.
Ou então, somos nós, como seres humanos imperfeitos, insatisfeitos e tumultuados, que acabamos, com o passar dos tempos, por nem sequer saber distinguir ou apreciar tudo aquilo de que dispomos ...

O Homem é assim !  Felizes das pessoas simples, curtas nos desejos, curtas nos anseios ... curtas nas exigências.  Simples nos sonhos, fáceis de contentar nas realizações !
Conseguem ser felizes com pouco ... que dirá com muito !...

A minha mãe era um desses seres.  Sempre se realizou com o que no dia a dia, o destino lhe propiciava.
Sorria por pouco, bastava-se com pouco, nunca "voava" alto de mais.  Coisas muito simples a satisfaziam.  Vivia para fora de si.  Em função dos outros e pelos outros.  Os seus, os da família de perto e de longe.  Não sei mesmo se alguma vez se enxergou, a si própria, com legítimos direitos a ter objectivos, vontades ou projectos.  E era feliz.  Nunca vi a minha mãe angustiada, insatisfeita ou sequer, triste !

Acredito residir aí, o segredo das coisas.
Quem se centra em si mesmo, quem reduz os horizontes ao seu mundo, forçosamente curto e egocêntrico, não consegue ver muito mais longe.  As dores são as suas, as insatisfações são as próprias, as "injustiças" da vida parecem sempre assentar-nos na perfeição.
Infelizmente, não puxei à minha mãe.  Não tenho o seu desapego, não aprendi a sua generosidade, não pratico a sua transcendência.
Não sou feliz, como acredito que quase sempre ela o foi.

Mas também sei que a "felicidade" é a maior utopia que o ser humano criou.  Lutamos por ela, negando perceber o alcance da entidade abstracta que ela é.
Talvez nos enganemos intencionalmente. Porque afinal, enquanto existe um horizonte, uma meta ou uma fasquia, encontramos razões para prosseguir, arregimentamos forças para nos ultrapassarmos e bengalas para nos levantarmos, por cada vez que sucumbimos.
Sem projectos, vontades ou objectivos, somos um pequeno barco de papel, à deriva, no sabor da corrente.

E por isso o Homem, todos os dias reescreve ou redefine  o seu próprio destino.  E por isso, a cada manhã, procura retocar o colorido do seu dia.  Para que ele não se torne neste cinzento sem princípio ou fim, apenas denunciador de borrasca à vista.
Pinta-o das cores da esperança, ilumina-o com os reflexos do acreditar, insufla-o com a energia emanada da sua própria alma.
E nada nem ninguém tem o direito de lhe roubar o enredo dessa história, ou negar a veracidade dos sonhos que desenha, porque eles são o único argumento do seu próprio filme !...
E prossegue ... assim prossegue !

Chove  agora copiosamente.  O dia fechou totalmente, e o escuro do firmamento não permite visualizar muito mais para lá.  Um pássaro desgarrado voa sozinho pelos céus fora.  Hoje, nem as gaivotas se atreveram a deixar o conforto dos ninhos, nas arribas, lá longe !...

Frente à minha janela sobranceira ao casario que se empoleira mais abaixo, agora com a tarde a caminhar já a passos largos para o seu fim, mimo-me no silêncio deste quarto, onde apenas a música ao meu lado, me embala o pensamento errante, na aragem fria que corre lá fora.
Este é o meu ninho, o meu refúgio e o meu canto !

Anamar

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

" DUAS ROSAS AMARELAS ... "




O sol descia a passos largos rumo à linha do horizonte.  Afinal, estamos em Janeiro e dentro de uma hora será a hora do repouso do rei.
Eram quatro e meia de uma tarde lindíssima, com um céu absolutamente translúcido, de um azul intenso e uma luminosidade penetrante.
As sombras já se projectavam longas no chão, uma brisa fresca corria ... e o mar continuava batendo lá em baixo, nos rochedos e no areal aos pés da falésia.
A vegetação rasteira, de carrasquinhos, camarinhas, canaviais, cravos romanos e azedas já em floração, revestiam a encosta, atapetavam os declives e forravam as escarpas.
Estranhamente, não planavam gaivotas sobre as arribas. 

Havia silêncio. Um silêncio perturbadoramente doce de chão adormecido.  Só o mar, em avanços e recuos, oscilante entre marés, mantinha o seu vai e vem de eternidade.
Eu estava e não estava por ali.  Na minha mão, duas rosas amarelas, de luz, de encaminhamento, de saudade ...

O pórtico lá estava.  O afloramento rochoso que ali se ergue, por entre a vegetação brava e rasteira, jamais permitirá esquecimento, dúvida ou hesitação.
Aquela passagem mágica entre terra e mar, aquela conexão simbólica entre o terreno e o etéreo, entre o fim e o princípio, entre o tudo e o nada, entre o som e o silêncio ... ali continua a pé firme, e continuará a desafiar as vidas, os tempos e os amanhãs ...
Aqueles amanhãs não divisáveis das curvas dos caminhos, das estradas dos homens, aquelas vidas que se vão fazendo no desfiar de gerações que se sucedem, aqueles tempos que não começam nem acabam, simplesmente porque o Homem com eles e neles se confunde ... até ao infinito !

Não foi premeditado. Não foi agendado.  Não foi culto de nada.
Foi necessidade.  Foi busca. 
Fui reencontrar o colo dos meus pais.  Fui procurar o regaço protector da minha mãe.  Fui ouvi-los, sentindo-os apenas.  Fui sussurrar-lhes da minha orfandade, sabendo que estão por ali, naquela poeira do caminho, naquela seiva dos caules despontados, naquela aragem que os levará pelos céus fora, para as águas que não regateiam destino, que abraçam e envolvem a Terra, que nunca começam nem nunca acabam ... até ao fim dos tempos !

Nove meses desde que a minha mãe me deixou.  Nove meses, o tempo que me albergou no seu ser, até me tornar gente... Os primeiros nove meses de um vazio e de uma solidão, que nada nem ninguém, nunca preencherão ...
Sentei-me nas rochas, perdi o olhar naquela imensidão sem horizonte que a limite, ouvi os silêncios, escutei as ondas, percebi o vento que passava, abençoei aquele sol dourado que descia ...
Espetei as rosas, por entre os carrasquinhos, e deixei-as iluminadas pelos últimos raios de uma tarde que cessava ... e regressei ... desalentada, sem forças ou vontade ...

Um dia, também eu estarei por ali !...

Anamar

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

" A FRONTEIRA DIFUSA "




O ser humano é um ser profundamente complexo.  Da vertente física à vertente emocional e psicológica, o emaranhado atinge tais dimensões, que nem o próprio indivíduo se pode vangloriar de se conhecer a si mesmo, quiçá gerir-se nas mais diversas situações.
Os vectores confluentes atingem tais proporções de disparidade, que transformam essa complexidade inevitável, em algo ciclopicamente inalcançável.

Além da genética, que irremissivelmente  acompanha o ADN de cada um, os factores pessoais, sociais, familiares, morais e éticos, são responsáveis pelo puzzle que se cria drasticamente, maioritariamente à nossa revelia, .
Desde que nascemos e começámos a tomar consciência do nosso "eu" multifacetado e hermético, que o nosso trabalho de construção pessoal se inicia de uma forma mais ou menos agressiva e / ou harmoniosa, por forma a inserir o indivíduo na realidade que habita.  Inicia-se todo um ajuste de integração pessoal, mais ou menos fácil, mais ou menos doloroso, dependendo  do enquadramento no qual ele deve viver.
As exigências pessoais, familiares, sociais, profissionais, éticas, morais e todas as que tendem à assimilação pelos nossos pares, no mundo em que vivemos, com a menor turbulência possível, submetem-nos a um trabalho interior exaustivo, constante e desperto em permanência.

O Homem confronta-se com a necessidade de corresponder satisfatoriamente, nas relações pessoais e em toda a interacção com os grupos com que diariamente priva.
Deve responder perante si próprio, munindo-se de todas as ferramentas necessárias para os diversos desafios, sejam individuais, sejam com terceiros.  E não é absolutamente fácil, agilizar todos os recursos de que pode e deve dispor.
Vai enfrentar os factores endógenos, mas também todos os exógenos, canalizados pela realidade que o cerca.  E são das mais variadas origens.

Deve responder adequadamente na família, em todas as relações afectivas com parceiros, pais, irmãos, filhos ... gerindo-as, após gerir-se emocionalmente de forma sapiente e equilibrada.
Exigem-se-lhe por isso, padrões de equilíbrio, objectividade, determinação, afectividade, firmeza, diálogo e toda uma panóplia de outros valores expectáveis, e nos quais a família espera rever-se.

Deve responder a nível social com padrões de comportamento exemplares, determinados e enquadrados, de acordo com as regras instituídas pelas sociedades que habita.
São padrões inevitável e ancestralmente normalizados, quase sempre reféns de valores, de molduras éticas e morais, incontornáveis, e dos quais o Homem não pode abstrair ou distanciar-se.
A vertente profissional é também, e acentuadamente nos tempos actuais, determinante da conduta humana.  A competição a qualquer preço, o arrivismo, o oportunismo, as injustiças, a desonestidade e os processos menos transparentes, por um lado ... a desenfreada necessidade de obtenção de competências, como exigência de valorização, crescimento e progressão  ( como deverá ser ), por outro ... associadas às dificuldades objectivas de uma sociedade agressiva, desumanizada e gerida por valores de ter e não de ser ... empurram o ser humano para situações de stress, angústia, ansiedade, dúvidas e frustrações às quais nem sempre tem condições reais e emocionais de resposta.
Adoece-se o corpo e adoece-se a alma !

Deve responder à luz da ética que lhe impõe valores de justiça, igualdade e liberdade, respeitando-se e aos seus pares.  Estes, são valores universais !  Evitam a discriminação e o preconceito.
Aliás, falar de ética é falar de valores.  É sobretudo falar de valores colectivos. Valores sociais e culturais que foram construídos e sedimentados.
Os valores morais são, como sabemos, os conceitos, juízos e pensamentos tidos como certos ou errados, numa sociedade.  São-nos  transmitidos nos primeiros anos de vida, através do convívio familiar.
Com o passar do tempo, aperfeiçoamo-los, a partir das observações e experiências que a vida social nos impõe.
Divergem de sociedade para sociedade e de grupo social para grupo social, alicerçam-se na cultura, tradição, quotidiano e educação de um determinado povo.
Os valores éticos são mais abrangentes.  Focam-se nas características compreendidas como essenciais, para o melhor modo de viver ou agir socialmente, dum modo geral.

Há ainda valores religiosos condicionantes do ser e do estar.  Não vou, contudo, debruçar-me nesta vertente.

O ser humano é um ser profundamente complexo ... comecei por dizer.
A mente humana é um mecanismo inexpugnável !
Parece óbvio, à luz deste exaustivo e intrincado labirinto que expus.  Assim, difícil e quase impossível será, com a pressão que diariamente nos assalta,  com o bombardeamento a que somos sujeitos, o alcance e manutenção de uma sanidade mental satisfatória.
O Homem é extremamente frágil, e consequentemente, cada vez mais difusa parece ser a fronteira entre a dita "normalidade" e o "outro lado" !...

Anamar

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

" A PASSAR UMA CHUVA ... "




Os pássaros já gorgeiam lá fora.
O céu bem limpo, de um azul translúcido, reflecte um sol claro e luminoso, de beleza ímpar, como só o é, o sol de Inverno.
Os dias, reiteradamente secos, com uma ausência total de chuva, lembram o início de uma Primavera que ainda está longe de se anunciar.

Gosto destes dias mansos.
Um ano novo começou.  Mais uma maratona de trezentos e sessenta e cinco dias a reescreverem-se, se iniciou outra vez, com a normalidade de sempre, da mesma forma de sempre, com as expectativas de sempre.  A vida vai rolando, o paradigma vai-se repetindo, o tempo disponibiliza-se em cada vinte e quatro horas que sucessivamente se oferecem. Sem pressas.
As mesmas preocupações, problemas velhos tentando travestir-se de novos, sonhos antigos procurando  concretizações, esperanças mansamente adiadas.  Tudo calmo, tudo sem afobação, com a exacta noção de que, como se diz no Brasil, estamos aqui, simplesmente a "passar uma chuva "...

Talvez sejam os anos que já vivi, que me permitem olhar desta forma o que me rodeia. Com esta bonomia, sem exigência ou insatisfação.
Já não crio filhos, já não luto por emprego, já não tenho fasquias profissionais a alcançar, já não se me colocam desafios de afirmação social em nenhuma área ... porque neste momento bastam-me a "sombra e água fresca", no desenrolar dos meus dias.
Digamos que beneficio, sim, dos dividendos da plantação feita ao longo da vida.
As lutas pessoais, travadas inevitavelmente nos percursos de cada um, amainaram ou cessaram mesmo.  Somos o que somos, e nada mais temos que provar a ninguém !

Sinto-me como se caminhasse numa vereda serpenteante serra fora, no verde cálido da vegetação sonolenta.  Tudo amodorrado, meio entorpecido, silencioso ... Tão adormecido, que às vezes desconforta !
Sinto estes dias, estranhos.
Eu sei que vivemos a ressaca das festividades que terminaram ontem, no Dia de Reis.
Foi um tempo de emoções, foi um tempo de reflexões, foi um tempo de balanços, de deve e haver no trilho das existências, em que não conseguimos furtar-nos às avaliações, às recordações, às saudades.
Para mim, como já o referi vezes sem conta, foram particularmente dias difíceis.  Foi o primeiro ano em que a ausência física da minha mãe, se tornou real.  A sua cadeira à mesa, já estava vazia há alguns, poucos anos, mas a sua caminha quente, ainda lhe dava berço e conforto.  E estava ali, à distância de um beijo, de um carinho, de algumas palavras.
Este ano, o destino já lhe havia determinado outra morada, e o vazio cru e sentido, pairou.
Paira sempre, a cada momento, mas não me largou nestes inevitáveis dias.

Não sei se por isso, se também por isso, ando a pensar muito na morte.  Na morte e no sentido da vida.  Neste nosso estar aqui, a "passar uma chuva " ... algo sazonal, precário, efémero ...
Tal como a existência humana, tal como o lapso temporal que nos é destinado viver !
Rápido e curto como as chuvas que vêm e subitamente se vão, deixando a terra sumariamente molhada ... para secar logo depois, apagando os sinais da sua passagem ...

Não sei por que estes pensamentos me assaltam ... mas assaltam !
Até me assustam um pouco, pelo que sinto.  Parece que vivo como que a terminar tarefas.  Parece que não me vale a pena já, iniciar nada.  Só terminar o que comecei, para não deixar pendências.

"Deixar" ... repare-se ... "deixar" ...
Deixar, é pensamento de quem parte, de quem vai para algum lado.
Dou por mim a pensar que a colcha da cama já não vale a pena ser substituída, que já não vale a pena renovar decorações, por algumas se arrastarem pelas décadas, que depois do Chico e do Jonas, os meus gatos de seis anos, não haverá mais gatos novos a entrar em minha casa ... porque não haverá tempo para os proteger até ao fim ... E assim por diante ...
Vivo uma sensação de manutenção e só manutenção ... como se se tratasse apenas de pontas penduradas.  Aquelas pontas que só esperam remate, numa costura !

Olho a minha casa, divisão por divisão.  Sei-lhe as sombras e o sol que a penetra.  Escuto-lhe os silêncios, perscruto-lhe os ruídos familiares.  E vejo-me fora dela e dentro dela, quando for ... quando tiver que ser.  E vejo-me a perambular por ali e a vê-la, quando já não a puder ver.
Os gatos já não estarão, não haverá fruta nas fruteiras, nem roupa no estendal.  Tudo estará criteriosamente nos sítios do costume, os estores estarão na posição do costume, os raios de sol e as sombras serão as de sempre, nas horas de sempre.
Haverá apenas uma poalha ténue, dos tempos, sobre os móveis adormecidos.  A poalha que sempre é eterna e que sobrevive ... porque não é viva, simplesmente.
E eu gostaria que tudo assim fosse.  Embora  isso fosse absolutamente indiferente !

E lembro Pessoa.  E lembro a sua aceitação nunca interrogativa nem questionável ... Aprecio o seu pragmatismo, o seu desassombro e o seu desapego desprendido.  Real ... duramente real !

Eu ... eu devo ser pretensiosa ... ou tonta, porque me confundo, porque me dou importância.  Uma importância que não tenho.  Que ninguém tem.
Porque ainda me interrogo e doo, me indigno e espanto, ao olhar a vida indiferente, encolhendo os ombros, ainda  que um só dos seus grãos se tenha perdido, ainda que uma só das suas folhas se tenha desprendido das hastes ...  ainda que o equilíbrio, de alguma forma, se tenha rompido ...
O sol continuará a nascer e a por-se todos os dias em todos os recantos do mundo. As luas cheias chegarão a cada quatro luas. Virá o frio do Inverno quando findarem os calores da estiagem, a Natureza renascerá, reinventar-se-à  ...  Os brotos das Primaveras irão continuar a engalanar as matas, onde os pássaros irão acasalar.  As marés subirão e descerão "ad eternum", e os rochedos que as sabem, vão continuar a escutá-las.  O vento soprará, a chuva tombará, mansa ou bravia ... e tudo, exactamente tudo continuará da mesma forma, com uma simplicidade absoluta ... como Pessoa diz ...

Mesmo que eu não entenda !...


"QUANDO VIER A PRIMAVERA "


Quando vier a Primavera,
se eu já estiver morto,
as flores florirão da mesma maneira
e as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme

ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria

e a Primavera era depois de amanhã,
morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo ?
Gosto que tudo seja real e que tudo seja certo ;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.

Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


                                                                Alberto Caeiro  in  "Poemas Inconjuntos "

Anamar

domingo, 30 de dezembro de 2018

" SAUDADES "



O ano que termina foi um ano com marcas inevitáveis na minha vida.

Mariza, no poema do seu fado  "A chuva", diz que "as coisas vulgares que há na vida não deixam saudades ... só as lembranças que doem ou fazem sorrir ..."
Hoje, para mim,  foi um dia mais, de lembranças que doem ou fazem sorrir ...  2018 esmerou-se até ao fim, recheado delas...

A minha tarde foi passada à cabeceira de uma cama de hospital, lá longe, no meu Alentejo, que guarda da nossa família quase  já só lembranças.  Das tais ...
O meu último familiar vivo, daquele clã  cujas raízes me prendiam à terra, sofreu um AVC em pleno dia de Natal. É uma prima direita ... é uma irmã para mim. Aquela que nunca tive.
É uma mulher razoavelmente mais velha que eu, é uma mulher só, a quem o destino sempre enteou.
Com uma história de vida muito sofrida, em que os escolhos e as dificuldades lhe atravancaram o caminho, foi uma lutadora, uma resiliente, uma mulher-coragem ... talhada lá, onde nascem os fortes ...
As vidas afastaram-nos fisicamente, pela geografia, pelas histórias, pelos percursos ... pelos destinos ...
Apenas fisicamente, porque a seiva circulante é a mesma, as memórias e as partilhas também.
Chorámos juntas, rimos juntas, lembrámos juntas tanto do tanto que ficou há muito, na curva da estrada !
E fizemo-lo enquanto deu.

Hoje, a minha prima desligou.  Rompeu com a realidade.  Assumiu o papel que acredito todo o ser humano assume, quando a recta é a final, e uma espécie de compaixão biológica nos toma.
Como que fechou cortinas, como que apagou luzes ... como que esticou o olhar para um indefinido ponto, de uma indefinida estrada !...
O quadro de Alzheimer, cuja patologia a vem progressivamente afectando, enfatiza ainda mais o desligamento de tudo o que a rodeia.
E a pessoa que hoje se encarquilhava naquela cama de hospital, só, rodeada dos fios, dos tubos, dos aparelhos que apitam, que piscam, que desenham as linhas de um coração que vai batendo ainda, sem que se saiba  porquê, não era já a minha "irmã" ...
Em tom sumido, balbuciando as palavras por entre o ofegar da respiração, sorrindo esmaecidamente, falou-me naturalmente da minha mãe, da própria mãe, de nós, quando crianças em casa dos avós, como se por ali estivéssemos todos, como se o ontem fosse o hoje, como se aquela árvore ancestral cujos ramos se estenderam, cuja folhagem foi esta que caducou aos poucos, ainda vicejasse e desse frutos ...
E eu, mantive como pude o ar de menina levada, igualzinho ao que fazia quando alguma diabrura me fazia acoitar no seu regaço ... Só uma que outra lágrima me atraiçoou ...

Voltei.  Voltei com o coração espremidinho e tão pequeno que caberia na cova da minha mão ...

E já sinto infinitas saudades.  Só as coisas que doem ou fazem sorrir, no-las plantam no coração ... tenho a certeza !

Anamar

sábado, 29 de dezembro de 2018

" INSTANTE ZERO ..."





Mais um ano a rondar o fim ...
Época chata, queiramos ou não.  Por mais que nos imunizemos ou que nos convençamos de imunidade face a isso, é inevitável e eu juraria ser transversal a todos, que a mente de todos nós sempre resvala para o bendito balanço do que foi, do que é e do que ansiamos que venha a ser.
Mesmo os mais "resistentes" e pragmáticos, mesmo os menos susceptíveis e os mais indiferentes, são levados a pelo menos não ignorar que a última folhinha do calendário vai virar e que mais uma fatia daquelas com que o Homem desenha as vidas, se esgotou e uma nova página em branco  a escrever-se, se abriu no bloquinho que nos coube !

E se o que passou, é sobejamente nosso conhecido, a incógnita do que virá, é algo que sempre nos deixa ansiosos, nostálgicos, sonhadores também, às vezes confiantes, outras assustados ... expectantes, indubitavelmente ...
Saúde e paz são então os votos que encabeçam mais alguns.... Quase sempre lugares comuns que bem sabemos serem utopias, ou nem sequer fazerem muito sentido.

Saúde e paz, eis os dois desejos que dificilmente estão na nossa dependência, tantos e tantos vectores, os reescrevem.  Mas pronto ... são desejos, e como desejos, legítimos !
Depois vem o amor, o dinheiro, os projectos, a felicidade ... em suma, uma qualquer sonhada realização que quase sempre achamos corolário da realização dos outros votos.
Depois vêm pequenas minudências que, cumprindo-se, nos levariam ao sétimo céu.  Mudanças de vida, intenções que se afiguram sérias, determinações do tipo "agora vai ser mesmo !"  ou "Ano Novo, vida nova !"
Tudo, pelo menos, válido para as badaladas da meia noite de 31 !

A roda do tempo continua a rodar.  Nós, grosso modo, humanos que somos, não nos reciclamos da noite para o dia.  As vontades fragilizam-se.  E a convicção de que num passe de mágica nos tornaremos diferentes, de que aqueles que nos rodeiam se tornarão diferentes também, de acordo com as expectativas por nós sonhadas ... a convicção de que o mundo se pintará com novas cores e roupagens, à medida do nosso sonho ... só porque vivenciamos um Ano Novo ... começam a desvanecer-se, à medida que o Janeiro vai cumprindo calendário, à medida que as rotinas ... sempre elas ... começam, ou melhor, recomeçam a tomar conta das nossas vidas.
E pronto ... nada de novo, afinal !  Como, aliás, se quisermos ser honestos para nós mesmos, sempre suspeitáramos que seria !...

Já não alimento ilusões desproporcionadas do possível.  Os anos que detenho, há muito me retiraram os sonhos da juventude, do coração.  Já me extirparam a fé de reviravoltas, novos caminhos, novas fasquias.  Já me acordaram sem panaceias ou panos quentes, perante as realidades.
Que são o que são.  E milagres, também só existem nas histórias.
Acho que há muito me anestesiei para encantamentos raramente surgidos.  Já há muito conheço o desencanto do "preço" das coisas.  O verdor de dias azuis, também já murchou no meu horizonte ... e apesar de saber exactamente que sempre ultrapassamos aquilo que nos foi caindo no regaço,  apesar de saber exactamente que sou resiliente ao ponto de me machucar cada vez menos com as vissicitudes do meu percurso ... sei claramente que os tempos vão sendo de penumbras que se cerram mais e mais, opacizando o meu coração, endurecendo a força da minha alma, sonegando-me a energia necessária a recomeços ... inevitavelmente !...

O ano findado, que tem agora os seus últimos estertores, mais não fez do que mostrar-me à distância, uma vez mais, a objectividade da vida, com autenticidade e sem auréolas douradas ou ilusões excessivas.
Levou-me sonhos, roubou-me afectos, maculou-me com a mágoa de saudades, polvilhou-me com dúvidas, ansiedades  e desencantos.
Termino-o mais triste do que quando o comecei, termino-o mais pobre, termino-o mais cansada !...

Bom ... não quero de nenhuma forma, amargar-vos com este sabor azedo que parece preencher - me.  Não quero contaminar-vos com estes laivos de deseperança.
Se puderem e forem capazes, deixem que os eflúvios do champanhe e a magia das passas vos tomem conta, no badalar da meia-noite.
Porque tenho a certeza ... mas tenho mesmo ... que nesses instantes, pelo menos nesses instantes, e também toldados pela euforia que se contagia, os votos que nos fazemos, os desejos que formulamos, as lágrimas teimosas de uma emoção incontida, que nos rolam nos rostos ... os abraços, os beijos e até os desejos que apenas só nós conhecemos ... são sinceros e absolutamente verdadeiros, enquanto a contagem decrescente se faz ... 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1 ............ 0 !!!!! 

O instante 1 de um ano novinho em folha, inicia-se então  !!!!...

Anamar

domingo, 23 de dezembro de 2018

" E ENTÃO ... ERA NATAL ! "






Lembrei hoje.  Hoje, porque chega uma altura da vida em que são as lembranças que comandam.
A balança desequilibra-se, é muito maior o caminho andado do que o que temos para andar e por isso, refugiamo-nos no que foi.  Essa, a sabedoria dos velhos.

Era Natal, as férias haviam começado e eu, menina, com pai e mãe ... os dois, vivos.
Sempre, o Natal que aí vinha era passado no Alentejo, em casa-mãe.  Os meus avós albergavam em torno da mesma mesa, várias gerações.  Desde a minha bisavó de que ainda lembro, tios-avós que também por ali andavam, até à geração dos meus pais com os irmãos e os respectivos filhos.
Lá nos esperava o presépio com as figurinhas de barro, todos os anos renovado e acrescentado por conta das que se iam entretanto, partindo.  Eram sempre compradas no mercado, em Évora, que nesta época tinha de tudo.
A azáfama sentia-se naquela casa.  Cheirava ao musgo do presépio, que era obviamente legítimo, cheirava às iguarias que os mais velhos iam confeccionando, aos temperos das carnes, ao frito dos doces, à canela do arroz-doce ... aos bolos a saírem do forno ...
A avó, roliça, avental à cintura sobre a saia rodada e comprida, cabelo apanhado em coque na nuca, era a abelha-mestra daquele clã.  Orientava, supervisionava, fazia, com uma maestria que ninguém igualava, com as mãos de fada que só as avós têm ...
Algumas ... ( rsrsrs )

Para a miudagem, aquilo tudo era uma festa.  O clima de alegria, união fraterna, paz e partilha ... o clima de amor ... o clima de família, pairavam. E família era sinónimo de segurança, de ninho, de pertença !
Grande era a ansiedade que trazia aos rostos, a expectativa da noite que se aproximava.  A bota na chaminé, deixada na noite da consoada, prometia pela madrugada, alguns poucos, presentinhos, trazidos pelas mãos do Menino Jesus, se nos tivéssemos portado bem no ano que findava.
Não existia Pai Natal, nem renas, nem Lapónia, nem trenó.  E os presentes sempre eram aqueles ... nem mais nem menos.  Os suficientes, porque desperdícios não eram contemplados. Excessos não existiam.
Lápis em chocolate, da Regina, sombrinhas envolvidas em papel prateado colorido, um macinho de cigarros também em chocolate, uma rima de 5 ou 6 pequenas tabletes atadas com uma fitinha de seda, a juntar a umas peúgas,  um gorro de lã ou um cachecol quentinho ... já estava de bom tamanho.
E que felicidade era, na manhã seguinte, ser acordada pela mãe que dizia : "Vai ver, vai, o que o Menino Jesus te deixou !... "

A noite da consoada, culminava com a Missa do Galo, em que era a avó que levava a criançada.
Em casa ficavam os outros adultos, na afobação do por da mesa, na preparação do que haveria de ir para o braseiro na chaminé imensa, que ocupava de parede a parede, o fundo da cozinha.
Por cima, os estendais dos chouriços, das morcelas, dos paios, das farinheiras, no fumeiro feito de varas colocadas pelo avô, exalavam em permanência um cheiro convidativo.
As tias, das solteironas que adoptavam a casa como sua, às mais novas, acabavam de confeccionar os fritos.  E havia de tudo ... as azevias de grão, as filhós, as rabanadas ou fatias paridas, os sonhos, os mexericos, a pinhoada.

A avó vestia a sua melhor roupa, envolvia-se num xaile bem quente, colocava um lenço na cabeça ( o lenço das festas, que detenho até hoje ), dava as mãos à miudagem e lá seguíamos para a Igreja de Nossa Senhora da Saúde.
O frio da noite, normalmente estrelada em céu limpo e escuro, não chegava para nos arrefecer o entusiasmo.  Afinal, a igreja sempre estava engalanada, o presépio singelo mas lindo, junto ao altar, as luzes das velas e os cânticos que já se ouviam, lembravam a todos que a união e a humildade haviam descido sobre a Terra, pelo coração daquele Menino, tão risonho e bochechudo, deitado nas palhinhas.  No final da missa, todos Lhe beijaríamos o pezinho ou a perna pequenina e nua, que o prior segurava entre as mãos, no meio de uma toalha de linho.

Depois, era o regresso a casa e a alegria que nos aquecia a alma.
O madeiro de azinho, o maior que o avô guardara ao longo do ano e que só chegara à lareira rebolando desde o quintal, já que ninguém tinha força para o pegar, ardia com chamas que aqueciam e iluminavam toda a cozinha.  As cadeiras de buinho e os "mochos" para os mais pequenos, faziam círculo a distância bem razoável, porque o calor era muito e não permitia aproximação.
Mais atrás, a mesa com a alvura do linho, recheava-se de tudo quanto a tradição sempre mandou.
E comia-se e cantava-se ao Menino Jesus, puxando cada um, o cântico que lembrava.

Oh meu Menino Jesus
Da lapa do coração
Dai-me da Vossa merendinha
Que a minha mãe não tem pão

O Menino chora chora
Porque anda descalcinho
Dá-Lhe tu as meiazinhas
Que eu Lhe dou, os sapatinhos

Nossa Senhora lavava
E S. José estendia
E o Menino chorava
Com o frio que fazia

Não chore meu Menino
Não chore, meu amor
Porque são navalhinhas
Que cortam sem dor

Entrai, pastores entrai
Por este portal sagrado
Vinde adorar o Menino
Numas palhinhas, deitado


E todos ... éramos então "todos"  ainda, por ali ficávamos, rindo, conversando, cantando ... varando a noite, madrugada adiante, até que o João Pestana levava as crianças para a cama, sonhando talvez que o Mundo tinha o tamanho da cozinha da avó e que a felicidade e a paz que sentiam, seria para toda a vida !

Anamar

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

" A MORTE VERSUS A VIDA "



Nada para dar mais significado à VIDA, do que a MORTE !

Como seres vivos, cumprimos à letra os desígnios da espécie ... nascemos, crescemos, provavelmente reproduzimo-nos e morremos.
Não há como fugir.  No interregno entre o princípio e o fim, vivemos ...

A VIDA... essa complicação instituída que levamos adiante, sem recuos possíveis, com maior ou menor maestria !  Essa prova de fundo que nos desafia, nos experimenta, nos questiona dia após dia, umas vezes mais leve, outras mais dura e arrastada !
E vamo-la cumprindo, sem preparação prévia, sem livro de instruções, sem sebentas ou apontamentos.  Sem ensinamentos particulares, cursos de reciclagem, aulas de apoio ... sem direito a reescrita ... sem borracha, lápis ou  rascunho ... Sempre sem direito a rasura !
Espaldados na teoria da tentativa e erro, com mera sustentação no tacto, no bom senso, no equilíbrio de cada um ... esfolando continuamente os joelhos, ferindo-nos  para aprender, experimentando o amargo para valorizar o doce ... vamos seguindo como alguém que calcorreia, titubeante, um caminho tortuoso e desconhecido, em noite de nevoeiro ...

Há os que, alunos mais hábeis, sabedores, se calhar inteligentes ... se calhar atentos ... se calhar persistentes, não sei, a vão cumprindo com mais desembaraço, sapiência, êxito.  Para esses vai havendo uma quota de sucesso invejável.  Até parece não ser tão difícil assim, a superação de cada desafio .
Depois há os outros, aparentemente alunos relapsos, se calhar cábulas ... se calhar mandriões ... se calhar superficiais e desatentos, ou simplesmente imperfeitos ... para quem  cada etapa é uma prova de resistência, um esforço titânico.
Parece que sempre erram no desespero do acerto, parece que as intenções sempre ficam aquém dos resultados, como  "soi dizer-se" ... "parece que se benzem, mas partem o nariz " ...
E tudo parece funcionar ao contrário. São sucessivos os tiros nos pés, o desgaste e o cansaço aniquilam e destroem.
Para esses, esse tal exercício que é viver, constitui uma epopeia quase inatingível, um desiderato inalcançável, uma canseira sem tamanho !

E penosa, a vida vai-se fazendo com esforço acrescido, como alguma coisa que se vai levando aos tropeções, empurrando aos solavancos, arrastando como grilhões ou correntes.
Parece um remédio amargo que se toma às colheradas.  Perde o colorido, pesa arrobas ... Não tem graça !

Aí um dia, a morte, perto de nós, rondando e alvejando afectos imprescindíveis nas nossas vidas, chega e ceifa.  Leva-nos quem ocupou os nossos destinos, arrasta quem connosco caminhou pela estrada, atinge a nossa zona de conforto e vulnerabiliza-nos, pondo em causa convicções, certezas, pragmatismos, desvalorizando-nos verdades que eram absolutas, ridicularizando-nos bandeiras e armas de arremesso, ponto de honra nas nossas estratégias de vida .
Pomos então em causa a real importância das guerras de mágoas, ofensas, hostilidades, marginalizações e afastamentos que pautaram muitas das nossas posturas, fragilizando-nos os alicerces, abanando-nos às vezes irreversivelmente, o edifício emocional e afectivo que nos sustentava.
Pomos em causa verdades que eram defensáveis como pontos indiscutíveis, opiniões que se esgrimiam com unhas e dentes, como se não houvesse amanhã ... certezas inadmissivelmente duvidosas,  inquestionáveis, baluartes inexpugnáveis, estandartes intocáveis ...

E de repente, uma maturidade que não adveio obrigatoriamente dos anos mas sim do sofrimento, toma-nos, aclara-nos a vista, desarma-nos o coração e mostra-nos com uma transparência que até dói, como perdemos tempo demais.  Confronta-nos com a idiotia mantida por burrice ou teimosia, por prosápia ou inflexibilidade, desvenda-nos a fragilidade das trincheiras que caváramos, a inoperância das muralhas que erguêramos valorizando o acessório em detrimento do essencial, só que ... quase sempre tarde demais !
A cegueira que nos escureceu a vista tarda a dissipar-se.  Somos duros na queda, somos fundamentalistas nas atitudes e a nossa capacidade de tolerância, de humildade,  até de superação chega com atraso, irremediavelmente. A nossa capacidade de regeneração ou recriação esgotou-se.
O tempo possível escoou-se.  A ampulheta esvaziou.  A ferida necrosou e nunca mais os ponteiros acertarão a hora, nos rumos das vidas !

E foi pena.  Já não há remédio ou panaceia ...                   
A MORTE deu, tarde demais, significado à VIDA !...

Anamar

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

" RETALHOS "





Mais um Natal à porta.  Um, mais ...  Mais um ano a findar ... um, mais !
Inevitável tudo o que se sente, embora não queira sentir-se.  Inevitável a miscelânea de sentimentos teimosos e desorganizados, que em atropelo nos tomam.
Alegria, dizem as pessoas.  Sem dúvida, alegria pela reunião, pelo encontro, pela partilha e cumplicidade de sentimentos.  Pelo calor do sangue ... que se sente bem quando é do nosso, a correr  por outras veias.  Alegria, pelo calor no coração, na verdade da amizade semeada nos tempos, em cada abraço dos amigos ...
Consolo também.  Uma carícia na alma, quando estamos todos na mesma mesa e os afectos voejam, tanto quanto os sorrisos dos rostos.
E paz.  A paz que se sente por nos sabermos pertença e podermos acreditar que com sol ou tempestade nas vidas, sempre abriremos o mesmo chapéu protector, capaz de albergar todas as cabeças.
E sonho ... sonho de podermos sonhar que tudo é exactamente assim.  E sermos capazes de nunca abandonar esse sonho, embora utópico possa parecer, muitas vezes ...

Depois, Natal traz-nos também à flor da pele, mágoa, saudade, falta, tristeza ... buracos no coração que não se preenchem, feridas na alma que não saram, incertezas de futuros sonhados inacabados, dúvidas de manhãs que estão por vir, medos por tempo que se escoa rápido demais, sem que talvez tenhamos tempo de escrever a nossa história até ao fim ...
Natal acorda-nos as dores da lembrança de todos os que já não podem sentar-se na nossa mesa, traz-nos a recordação de todos os que dividiram as vidas connosco, nos momentos tristes, mas também nos mais felizes.
E inevitavelmente todos "baixam" quando  as velas se acendem, quando os cânticos ecoam, quando o bacalhau é servido, quando os sonhos e as rabanadas se anunciam, quando o brinde se ergue e nos maravilhamos, percebendo como a vida se vai fazendo, os destinos se vão cumprindo, a roda continua sempre a rodar, as cadeiras sucessivamente a reocupar-se ... porque assim é e assim será, além dos tempos ...
Todos "baixam" quando a magia nos toca e um sopro de esperança e fé, nos impregna até à alma ...

Ponho-me a pensar : em quantos Natais mais ocuparei aquele lugar da mesa ?  Em quantos Natais mais, vou erguer a taça e formular os votos ... os tais, que se perdem no éter e brotam com a força toda do meu coração e o desejo incontornável do meu espírito ?
Quantos estaremos no ano que vem, no outro e no outro ?
E contemplo, já com a lágrima a embaciar-me o olhar e o nó a sufocar-me a garganta, o lugar do sofá vazio, o que foi dito, do que rimos e do que falámos ... porque sempre há o que lembrar, porque sempre o que lembra, se repetia ... e a gente ria então ... quase completamente felizes !
E tudo voltará à normalidade.  Este ano dói muito ... no próximo, talvez um pouco menos ... e assim por diante.
Haverá outros a preparar o peru, tão bem ou melhor.  Haverá quem lembre os que preferiam arroz doce,  os que escolhiam as rabanadas ... as filhós, as azevias ... as manias de uns, as rabugices de outros ...
Haverá quem lembre o Pai Natal fantasiado que enganava a criançada... quando a criançada ainda tinha idade e inocência para se deixar enganar ...

Porque tudo continua imparável e a vida se renova, até que um dia seremos apenas um lugar na mesa, que cada vez menos, lembrarão ...

Anamar

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

" OLHA, SABES QUE DIA É HOJE ?... "



Este mês de Dezembro era um mês movimentadíssimo na cabeça da minha mãe.

Chegava o dia um e assim que a visitava, logo pela manhã me dizia sabes que dia é hoje ? E eu, que já sabia o que vinha lá, dizia, sei mãe, é o dia do Ti Tiago Nobre ... e ela, feliz ... Pois era, à meia noite o Ti Tiago Nobre, pela calada do frio do Alentejo, com o seu carapuço de almocreve na cabeça, pequenino que ele era, abria o postigo da porta na casinha baixa em que vivia, empoleirava-se na cadeira de buinho, e com a espingarda caçadeira, disparava as salvas da comemoração histórica a viver-se nesse dia, a Restauração da Independência de Portugal do jugo dos espanhóis, como ele dizia. Não, sem simultaneamente insultar os "nuestros hermanos" com uns quantos impropérios a propósito.
Nunca, ano após ano, o Ti Tiago Nobre, um velho sem idade ou condição, se esquecia do evento.
Quantos seriam os tiros que cortavam o silêncio da noite ?  Verifico que não sei.  Esqueci de perguntar à minha mãe.  Ou então, se mo disse, já o não lembro.
Deixei-a ir, imperdoavelmente sem esclarecer este ponto.  Já não há remédio !

No dia oito, dia de Nossa Senhora da Conceição, lá vinha outra ... sabes que dia é hoje ?  E eu, que já sabia o que vinha lá, sorria e dizia-lhe, sei mãe, hoje é o dia da Menina Custódia ... e ela, feliz ... coitadinha, tão novinha que morreu.  A pneumónica matou famílias inteiras, chegavam a estar dois e três enterros na mesma casa, ao mesmo tempo.  Pais, não sabendo de filhos e filhos não sabendo de pais ... Muito triste !  Mas o enterro da Menina Custódia ... nunca se viu nada assim.  O Redondo todo se "despovoou" e a acompanhou ao cemitério.  Era muito nova e muito boazinha. Toda a gente gostava dela, prestativa com todos, no atendimento ao balcão do montepio.

E eu a perguntar-me por que raio, ano após ano, a minha mãe, caindo de velha e esquecendo quinhentas mil coisas úteis das nossas vidas, não esquecia estas figurinhas ?!...

Igual a este enterro, só mesmo o do Padre Serrão ...
E aí, saltávamos para a semana anterior ao Natal ...
Olha, sabes que dia é hoje ?  E eu, que já sabia o que vinha lá, voltava a sorrir e confirmava, sei mãe, foi o dia em que o senhor Padre Serrão entregou o corpo ao Criador.  Ah pois, nunca houve um padre como ele, lá na nossa terra.  O Padre Serrão rezava a missa de alva todos os dias, e todos os dias, de Verão ou de Inverno, antes dela, tomava um banho de banheira com água fria.  Depois, lá ia para os seus afazeres.  Até ao dia em que, estando as beatas à missa, o senhor prior não apareceu.  Quem lhe aconchegava as coisas, procurou-o em casa e o Padre Serrão por lá ficara ... na banheira !
Era muito boa pessoa. Condoía-se de toda a gente e ajudava os desvalidos.  Casou os teus avós, quando o avô chegou da Grande Guerra, onde não morreu por uma unha negra, apesar da condição imposta pelo teu avô, Senhor Padre, eu casar ainda posso casar, mas eu não me confesso antes. Está bem meu bom amigo sr. Barrancos, era assim que ele dizia. Não faz mal, o meu bom amigo leva a minha boa amiga sra. Brites à igreja e eu caso-os e pronto.  E assim foi.
Nunca houve um funeral tão grande na vila ...

Funerais por funerais, ainda neste agitado mês de Dezembro, rés-vés ao seu fim, finou-se o dr. Tavares, o João Semana lá do sítio. Era o médico para todas as horas, todas as doenças e todas as eventualidades.  Não se cobrava, atendia ricos e pobres. Pagavam-lhe pelas Páscoas em merendeiras, bolos de folha e queijadas. Pelos Carnavais em pinhoadas, filhós e azevias ... pela feira de Outubro, em maçãs, nozes e marmelada ... e o dr. Tavares nunca recusou um atendimento, mesmo no pico das madrugadas, se preciso fosse ...
Quando morreu, baixou à terra apenas embrulhado num lençol.  Assim o deixara escrito.
E eu a relembrar uma outra vez, mais um famigerado dia de Dezembro num ano em que ainda não nascera, nem estava para nascer ...

Olha, sabes que dia é hoje ? E eu já esgotada de tantas efemérides registadas naquela cabecinha branca de alva, olhava-a com um ar aparentemente desolado e dizia-lhe, credo, mãe, hoje não estou mesmo a lembrar-me de nada.  Mas é Dezembro, certamente mais alguma coisa terá acontecido, sorria, meio envergonhada pela falta imperdoável do esquecimento.  Como se fizesse pouco caso de tão importantes acontecimentos.  Como se fosse uma aluna relapsa não dando conta da lição.  Então, faz anos que morreu o Pêdorra ... já não te lembras ?  Era ele que nas esquinas das ruas apregoava e apregoou tudo quanto todos deveriam saber, o que se passara, quem nascera, quem morrera, quem se casava, por quem eram os "sinais" que o sino da Matriz dobrava, o que se perdera e as alvíssaras que se dariam a quem achasse ... e por aí fora ...
Um dia o pregoeiro também calou os seus pregões.  Inevitavelmente, num traiçoeiro dia de Dezembro.  A minha mãe soube-o. Soube-o e não mais o esqueceu.  E desta vez ninguém lho apregoou !...

Era assim... foi assim ...

Olha, sabes que dia é hoje ?...

Memórias ... só memórias, o que resta de tanta gente.  Breve se calarão.  Breve se esfumarão na bruma dos tempos !
A minha mãe também não mais mo lembrará.  E eu ... bom, eu acho que já não o conseguirei mais, passar adiante ... VIDA !...

Anamar

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

" UMA NESGA DE AZUL "



O sol sempre adocica o que vemos.  Pinta, acende as cores, salpica de esperança onde poisa.
Nos dias de sol tudo parece mais simples nas nossas vidas.  Passamos a "poder", e embrulhamos os desânimos em alegria, como em papel de rebuçado.
Hoje chove e chove muito.  O céu fechou totalmente, um cinzento  borrascoso  desceu sobre tudo, como se lá por cima tivessem desligado as luzes.
É meio do dia, mas parece roçarmos o lusco-fusco.

Apesar de eu ser uma mulher de sol, que o busca nas esquinas, nos areais, nos interstícios das ramagens e que o persegue da janela, enquanto se mostra,  até que deita, lá longe ... adoro estes dias de melancolia doce, que só o Outono nos sabe oferecer.
São dias de interioridade, de silêncio, de introspecção.
Adoro olhar a chuva a salpicar-me mansamente a vidraça bem na minha frente.  Adoro olhar esta semi-neblina que opaciza a paisagem a partir de uma certa linha do horizonte, não nos deixando ver mas só adivinhar.  Adoro olhar o chão lá em baixo, completamente atapetado com as folhas que a brisa vai despindo do arvoredo agora meio despenteado e em que a folhagem que ficou, se pinta do colorido quente da estação ... dormente, sonâmbula no balanço do vai-vem da ramagem ... Como se quisesse demorar-se no estar, como se não soubesse dizer adeus ...

São dias de muita paz.  Dias de memórias.  Dias de saudades.
São dias equilibrantes, de realojamento das emoções que me moram.  Dias de casulo, dias de útero, dias de colo  em que mergulho, como se de repente estivesse escudada dos males do mundo e das agruras da vida ... porque sempre as há, obviamente ...
São dias de memórias doces ... as mais diversas. Algumas, doces mas doídas, outras doces e aconchegantes.  Todas indeléveis, inapagáveis na minha existência !

Entretanto o ano está na recta final.  É época de balanços, outra vez.  Sempre é época de balanços, queiramos ou não.  À medida que as últimas páginas do calendário caem, não tem jeito ... com elas cai-nos na mente, inevitavelmente também, tudo quanto se viveu, todo o deve e haver entre as realizações e os sonhos, toda a avaliação entre o concretizado e o planificado, toda a análise da nossa prestação no empenho dessas concretizações.
Umas vezes conseguimos o ambicionado. Outras, por vezes à nossa revelia, a vida fez-se, a contento ou não.
Sempre a vida se vai fazendo, feito maré mansa ou borrasca tenebrosa ...

Foi um ano muito difícil para mim, este que agora caminha para o fim ...
A minha mãe partiu e deixou-me mais órfã do que nunca, depois de um sofrimento arrastado e vivido por todos nós, tempo demais.  Estou ainda num período de adaptação a essa realidade, se é que alguma vez a aceitarei sem turbulência no coração ...
Fiquei exausta, exaurida em todas as minhas forças, numa impotência e numa dor atrozes.  Fiquei com um buraco no peito e uma ferida sangrante, que jamais serão consertados.
Sei que tudo isto é a vida, e que tudo isto tem a "normalidade" e a inevitabilidade que essa vida lhe confere.
Eu sei ... apenas sei ... de pouco serve !...

Depois ainda, foi um ano de muitas reviravoltas e muitos reajustes no meu percurso.  Tudo o que nos desaloja da nossa zona de conforto, determina muito desgaste, muito cansaço, muito sobressalto e insegurança.
Por arrastamento ... dúvidas, medos, interrogações ... conflitos internos  também nos assaltam ...
Vencer a inércia, seja ela qual for, implica sempre, como se sabe, um acrescido dispêndio de energia.

As saudades revisitam-me, nesta época.  Em força.  Instalam-se, fazem-se presentes, não me deixam ...
São saudades de gente, de lugares, de momentos.  São saudades de palavras, de gestos, de afectos.  São saudades também de mim ...
São memórias que não desgrudam, sendo que agora dormem na minha cama, ocupam a minha mente, apertam-me o coração, desatam-me uma que outra lágrima ... lembrando-me que, mesmo quando eu pensava que elas dormiam, apenas dormitavam ... em sonolência de sesta.
São carícias na alma, apesar de tudo ... afagos no coração ...  São o que nos fica, de tudo o que partiu e nos deixou ...

Sou  uma  emotiva  irremediável.  Uma  saudosista  inveterada.  Uma  romântica  sem  emenda ...
Enfim ... sou. como toda a gente, o somatório de tudo ... bom e mau, gratificante ou nem tanto, feliz ou dolorido ... acertos e erros ...
Mas, no meio da escuridão que se abate, procuro quase sempre uma nesga de azul ... e aguardo que a vida sorria lá do alto, acreditando que amanhã possa ser um  "outro"  novo dia !...

Anamar