quarta-feira, 15 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 35





Comecei o meu dia, mal ... quase tolhida nos movimentos, mercê do agravamento da famigerada lombalgia que me desafia há tempo de mais ...
A noite não foi famosa, como se imagina, na inocuidade de Benurons que se riem da caixa, e nada fazem.
A caminhada foi "pro galheiro", obviamente.  Depois, a merda do dente, partido ontem, como vos contei ... não me deixou saborear condignamente, a ansiada e muito apreciada torradinha do breakfast ... Aliás, quase não me deixa é saborear nada ... ( desculpem, mas o isolamento dito voluntário e cheio de boas intenções, está a começar a fazer-me estalar o verniz ... 😃😃😃 )
Em seguida levei uma ensaboadela daquelas tipo "descasca pessegueiro", da minha filha mais velha, hipocondríaca que só, quando lhe disse que ia descer para a farmácia, para adquirir terapêuticas mais fortezinhas ...
Que não ... que ando a brincar ... que atravesso as filas do Centro de Saúde que se formam à minha porta ( vizinha que sou, do dito ), onde as pessoas que se aglomeram estão todas infectadas ... que não tenho nada que ir à rua, por nenhuma ainda que nobre razão ...e que depois não me queixe ... e blablabla ...

Até me lembrei de uma história humorística, mas real, que em tempos remotos ouvia contar, pela ironia :  a  mesma, respeita a um, hoje honorável médico, com uma licenciatura que deve ter durado três vezes o tempo curricular normal ... 😃😃😃 ).
Reza a voz do povo que o doutor X, nunca deveu grande coisa à inteligência, mas deveu sempre um medo reverencial ao seu pai, que nunca desistiu de o fazer doutor !...
Assim, em miúdo e adolescente, lá na santa terrinha, pouco participava das brincadeiras, das maroscas, das tropelias do grupo dos amigos da mesma idade.  O pai não deixava, controlava, limitava ... e meio à socapa, é que o protagonista desta história, se atrevia.
Um dia, o hoje doutor X, alinhou numa paródia com os amigos, não certamente sem ter o coração aos pulos, pela prevaricação.
Teve azar, acidentou-se com a bicicleta, ficou razoavelmente ferido, parece ... mas no meio do susto, e das dores do descalabro, o doutor X só dizia ... "Ai que se eu morria, o meu pai matava-me !"...
Tadinho do Tonito Rabiça !!!.... 😊😊

A história ocorreu-me é claro, pelo risco acrescido de, se eu, no meio de todos os cuidados, tiver a má sorte de apanhar a Covid 19 ... a minha filha mata-me !!!  Ahahah ... 😃😃😃
Esta nota de humor advém do meu conhecimento prévio, dos seus habituais fundamentalismos protectores.

Bom ... mas depois pensei : ela está em tele-trabalho ( trabalho de grande responsabilidade, que exige um rigor absoluto ) ... tem em casa três filhos ... todos com escolaridade à distância.
Sem empregada neste momento e pouco dada a tarefas domésticas ... deve padecer de um stress danado!
18, 15 e 12 anos,  fazem  prever  naquela  casa,  uma  antecâmara  bem  aproximada  do  manicómio ...

Aliás, sobre a experiência escolar ora vivida, eu, cuja vida profissional, foi exactamente a leccionação de jovens até à sua entrada universitária, escreverei alguma coisa numa outra história futura.
Sim, porque há que rentabilizar os temas, já que a coisa promete, temporalmente falando ...

Isto para não vos enjoar com a monotonia que vai preenchendo os meus dias ...
Isto, para variar um pouco das habituais e já pouco eficientes frases de ânimo, ou então de pesar, de dúvida ou de cansaço ... frases esperançosas que buscam um incentivo a quem nos rodeia, e que como um medicamento tomado em situações crónicas, cria habituação e já rende pouco ...
O emaravilhamento dos primeiros tempos,  a novidade e o "gás" que então possuíamos, começaram a esvaziar ... Creio poder afirmá-lo, generalizando mesmo.
A nossa disponibilidade de alma, apesar de espicaçada por tudo o que ainda nos vai pingando nos dispositivos que nos ligam ao mundo ... começa, penso, a claudicar razoavelmente.
Começamos a remeter-nos a um silêncio interior, próximo do silêncio que se vive nos espaços a que nos confinamos ...

Aqui em casa, o meu "tele-trabalho" passa quase exclusivamente pela escrita das minhas histórias ... pouco mais.
Ler, não consigo, pois não me concentro.  Trabalho doméstico de manutenção, os mínimos exigíveis, também é cumprido a duras penas.  Música ... sim, oiço em permanência. Acompanha-me enquanto escrevo.  Exercício físico ... vamos ver como ficamos ...
Ah ... é verdade ... estou num tele-trabalho danado, aqui na monitorização da bicharada , no jardim zoológico caseiro : dois séniores imbuídos dos medos que a idade, a prudência e uma vida doméstica até à actualidade, totalmente em paz, com territórios, hábitos e expectativas absolutamente  controlados lhes conferem ... e uma "teenager" escandalosa e inconsciente , que por ser jovem, de sangue na guelra, chegou achando que o mundo é dela e aqui o "pedaço" também ... deixam qualquer um alucinado e a bater razoavelmente mal !...
Gestão complicada ... afianço-vos !!!

Depois ... preciso dos meus afectos como do pão para a boca, preciso de beijos reais, de abraços reais, conversas reais e não à distância de uma câmara vídeo ... preciso duma boa discussão ( pode mesmo ser daquelas de telefone desligado e tudo ... 😄 ), preciso de ver caras além das máscaras, preciso de gente de carne e osso e não apenas o eco das suas palavras ...
Hoje, preciso mesmo disso tudo !!!... 😢😢😢

E por agora, já têm com que se entreterem ...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

terça-feira, 14 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 34




E a minha vida é isto ...

Começou o dia com o rosto de um lindo dia primaveril ... céu praticamente limpo, sol claro e aconchegante.  Até lamentei não poder dele usufruir mais directamente, já que hoje não era dia da caminhada.
Hoje, era aquele dia da semana em que, querendo ou não, entro numa angústia e num stress dos diabos ... era o dia semanal das compras !
Vou empurrando adiante, no horário, tentando inventar a melhor hora para descer, em que fosse mais favorável a afluência de utentes.  Aí pensei ... duas da tarde, compras para o almoço já foram efectuadas,  o jantar ainda vem longe, e com sorte, o pessoal está com os pezinhos debaixo da mesa a esta hora ...
Equipei-me devidamente, respeitando rigorosamente a cegada das luvas, da máscara, cartão multibanco para não manusear o dinheiro, lista das compras previamente elaborada pela ordem da distribuição dos artigos nas prateleiras, tentando perder o mínimo tempo possível no interior do espaço ( pois os supermercados são, como sabemos, lugares perigosos de exposição e potencial contaminação ) ... mais o papel para empurrar portas, carregar botões e pegar nos sacos ... enfim ... e lá desci ...
A minha praceta, como já referi, além de ser uma zona de circulação permanente entre utentes dos autocarros ( ponto de interface de vários destinos ) e utentes dos comboios da linha de Sintra, possui lado a lado dois supermercados, um Continente e um Minipreço, um talho, uma loja de conveniência, uma farmácia e não bastando, o acesso ao Centro de Saúde ...

Ao abrir a porta do prédio, tive uma visão surreal e para mim, "apocalíptica".
Como uma imagem vale mais que mil palavras, basta que se olhe para estes dois instantâneos que colhi e que mostram fielmente, o panorama que me aguardava.
Perscrutei quanto tempo me seria exigido na fila, com o gotejar dos utentes a um e um, como se sabe ... balancei num pé e noutro, e pensei ... vou-me embora ...



Mas o adiamento não resolveria, pois ao contrário do que uma senhora que se encontrava na fila, convictamente  dizia ao filho ... "as pessoas que moram aqui, têm imensa sorte, pois podem espreitar das janelas e escolher o momento em que haja pouca gente, para fazerem as compras ..." NUNCA vislumbrei um momento desses, desde que dura este filme de terror ...
É que, sempre que me assomo lá do alto do meu sétimo andar ... cá em baixo, quais formigas andantes, são sempre mais que as mães !...
Acho que, pelo que vejo, e pelo ar sonâmbulo e deleitado ( parece ), com que se passeiam pelos corredores, olhando os produtos calmamente, como se fosse o último dia das suas vidas ... a vinda ao super, encerra a escolha preferencial do seu passeio higiénico diário ...
Perto do encerramento sim, a fila termina, mas grande parte dos géneros também ... por exemplo os frescos, legumes e frutas.

Assim sendo, fiquei na fila.
Tinha perto de trinta pessoas à frente, e atrás tinha os utentes do Centro de Saúde, na generalidade idosos ou pais com crianças, numa amálgama que só vendo.
No Centro de Saúde as pessoas eram chamadas à porta, por senhas, não sei se para consultas de urgência, ou outras ...
Rostos com máscara, alguns ( a mim pareciam menos que os desejáveis ) ;  distâncias de segurança não respeitadas, inevitavelmente. Apesar das tosses que teimavam em denunciar-se ...
Fui olhando as pessoas.  Falava-se calmamente nos telemóveis, afirmava-se que não estamos preparados para enfrentar esta nova situação ... as pessoas abusam da sorte, ou acreditam que sopram e o vírus foge ...
Uma criatura à minha frente, muito satisfeita, usava a máscara no queixo ... Outras senhoras, ao saírem a porta, regressadas das compras, usavam uma écharpe  com mais preocupação de estética na colocação, e menos de real e eficaz protecção ...
Enfim ... é o que temos ...

Quem assiste aos comportamentos humanos por aí, percebe que parece não se acreditar mesmo, da perigosidade do monstro que nos cerca.  Parece continuar-se a achar que ... nada de exageros ... também não é bem assim ...
E desta forma, o raio da curva não inverte a tendência, nem à lei da bala !...

Entretanto, hoje foi também dia de, além de carregar o famigerado saco das compras do Continente, fazer a mudança da roupa da cama.  Teria mesmo que ser, se pensarmos que com o malfadado problema da coluna que se me tem arrastado, essa mudança veio a adiar-se sistematicamente.
Mas, francamente ... três semanas com a mesma roupa, é um bocado mau demais, ainda que o banho diário seja de regra aqui em casa ... 😃😃😃
Lá carreguei com o colchão para efectuar as démarches necessárias ... e claro ... neste momento, uma vez que no contexto da Covid 19 desaconselham, por prevenção, a utilização do Voltaren ou outros anti-inflamatórios afins, já tive que tomar um Benuron, porque mal me mexo ...
Para colocar uma cereja em cima deste chantilly fantástico, ao pequeno almoço, deliciando-me com a minha torradinha de praxe, parti um dente que já não estava "de saúde", quase o reduzindo à raiz ...
Moral da história ... dentistas neste momento não trabalham, por razões óbvias, o que resta do dito incomoda-me brutalmente e impede-me de comer ... ( não é que eu tenha grande apetite, porque o incómodo que sinto, tira-me toda a disposição )...

E para terminar esta minha história de hoje, que mais parece uma macabra manta de retalhos, 😃😃😃sou a informar que um " dia que começou com o rosto de um lindo dia primaveril ... céu praticamente limpo, sol claro e aconchegante " se solidarizou com as minhas desgraças ... e numa cumplicidade absoluta, enegreceu o firmamento, que agora exibe um semblante plúmbeo uniforme, só rasgado pelo clarão dos relâmpagos  que o iluminam ... numa  trovoada  daquelas ... em  meio  da  chuva  forte  que  me  açoita  as  vidraças !!!

Oh gente ... tem dias em que não adianta sair da cama !!!
É verdade ... esqueci de relembrar que ainda "só" vou no trigésimo quarto dia de confinamento voluntário !!!....  😄😄😄

Até amanhã !   Fiquem bem, por favor !

Anamar

segunda-feira, 13 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 33



Hoje no trigésimo terceiro dia de confinamento, o meu estado de espírito não é famoso !
Acordei, como se a minha luz interior que se mantém acesa e me guia pelas dificuldades destes trilhos de cansaço, se tivesse extinguido ...

Sinto-me desmotivada, esvaziada, sem ânimo !

A minha mensagem é por isso, silenciosa, muda de palavras minhas, usando apenas a linguagem universal da música, como portadora de uma esperança que deveremos manter : "Viver sonhando com um novo sol " cada dia ... todos os dias !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

domingo, 12 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 32



PASSAGEM ... 

Páscoa é "passagem", renovação e vida ...
No calendário religioso, a vivência da Páscoa traduz a vitória da vida sobre a morte e as trevas.  É isso o que simboliza a ressurreição de Cristo, depois da Sua Paixão, sofrimento e morte.

Os tempos que continuamos a viver em todo o mundo, mais não são do que tempos de quaresma ...  igualmente tempos de paixão, de sofrimento e de morte.
A humanidade sofre uma dizimação sem precedentes, uma hecatombe imensurável, uma destruição avassaladora.  O Homem está a  ser posto à prova, como nunca aconteceu.  Está a ser testado e a serem testadas de uma forma brutal, todas as suas capacidades de reinvenção, de superação e de resiliência.
As suas capacidades de adaptabilidade, de aceitação, de organização, de espírito gregário e despojamento.
O Homem está a ser obrigado a sair do seu individualismo, do seu confinamento egoístico, do seu nicho de conforto e a cooperar numa causa única e universal : salvar, salvando-se !...

Aprendem-se novas linguagens, novos padrões comportamentais, definem-se novas metas, objectivos e prioridades.
Ensaiam-se novos esquemas de vida e de relacionação.  Sopesam-se valores, exigem-se novas respostas para novos desafios, traz-se à tona o que de melhor, intrinsecamente constitui cada ser humano, numa transcendência sem limite ...

São tempos novos. Tempos desconhecidos. Tempos de caminhos não sabidos.
Não caminhamos ... tacteamos.  Não sentimos ... apalpamos.  Avançamos cautelosamente, de bordão e lanterna, como numa cerração de névoas densas.
O que está à frente, não se vê.  Depois da esquina, o que virá ?  A todo o momento o fim do penhasco pode conduzir a um desfiladeiro mortal, não anunciado ...
Pé ante pé ... assim se desenrola o nosso percurso !...
O medo e a esperança são os dois vectores de orientação neste nosso desconhecido.  Não mais !
Com eles avançamos, dia após dia, escrevendo a nossa História.

Passagem ...
Passagem é caminho entre cá e lá. É ponte entre margens.  É vereda, é estrada ... é tempo de ligação ...
Pergunto-me : Como será a nossa passagem ?
Que seres seremos então, depois da travessia ?
Como será acordar de novo com o mundo antigo à cabeceira da cama ?
Como será o esvaziamento desta adrenalina que agora nos põe em pé por cada manhã ?
E quando o horror que nos une, nos gruda uns aos outros num sentimento único de protecção, já não existir ?
E quando esta sensação de fio de navalha em que sobrevivemos, já não nos assustar ?  Será que vamos continuar a mimar-nos ?  Será que nos vamos continuar a carregar  ao colo, quando do outro lado a fragilidade ainda persistir ?
E quando as ruas se encherem outra vez, o trânsito se atropelar, as buzinas soarem, o tempo urgir ... voltarmos a correr,  a não nos olharmos ... porque voltámos a não ter tempo ... será que recordaremos o que foi ?
E se as palavras não ditas,  que agora saltam das bocas, porque saltam dos corações  com a facilidade do amor redescoberto, voltarem a silenciar nas gargantas ... porque voltámos a deixá-las para depois, outra vez ?!
E quando as emoções que nos sufocam, e nos trazem dos olhos estes  rios de angústia que nos tornam seres de transcendência, já não modelarem mais a nossa alma ?... Coabitaremos ainda assim, pacificamente com as intenções que então formulámos ?!

Páscoa ... Passagem ...  tantas interrogações na minha cabeça !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sábado, 11 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 31

    11 de Abril 1921  -  11 de Abril  2018



Mãe

Hoje resolvi escrever-lhe uma carta, neste trigésimo primeiro dia do inferno que vivemos.
É Abril outra vez ... um Abril com sol, flores e pássaros.  Um Abril de brisas mansas e céu já bem azul ... Como a mãe gostava ...
Eu continuo em casa ...

Venho contar-lhe como é viver a angústia dos dias. Como é viver a dor das notícias que chegam de perto, de longe ... de mais longe ainda.
Dão conta do desespero  pelos que sofrem e partem silenciosamente. E são muitos, cada vez mais. Dão conta do desespero pelos que ficam e vêem este mundo a acabar-se ... impotentes, numa corrida contra o tempo, na busca da cura.
Dão conta da exaustão dos que dia e noite, sem tréguas ou descanso, ignorando-se a si mesmos,  lutam ao lado dos que padecem, nos hospitais atulhados, reinventando e reinventando-se para resistirem, na linha da frente ...
Dão conta dos velhinhos que morrem nos lares impessoais ... talvez sem carinho ... talvez sem palavras ... porque não há como ...
Dão conta do cansaço destes dias iguais, em que a angústia, a incerteza e o medo acordam connosco pelas manhãs, e deitam-se connosco ... sem desgrudar, como um visco pestilento que se nos agarrou ...
Dão conta das ruas desertas das cidades sem vozes, sem risos, sem crianças a brincar, sem velhos ao sol nos bancos dos jardins ...
Dão conta de como se vive, com a palavra amiga dos que de longe se tornam presentes, nas mensagens de ânimo  dos telemóveis, dos telefones, dos computadores ... E dessa forma, aliviam a nossa carga ...
E dão conta de como as palavras solidariedade, abnegação, partilha, dádiva, generosidade e afecto tomaram outras cores, nas nossas vidas !
Dão conta de como tentamos manter a esperança, na recriação de um novo amanhã ... quando o futuro até parece inexistir ...
Dão conta da mágoa do abraço que não damos, dos beijos que não trocamos ... dos filhos que só sabemos, e dos netos que imaginamos ... Lá, onde os braços não podem chegar, mas onde o coração e a alma estão ...

Mãe
O mundo parou por aqui.
De repente, o impensável aconteceu, mesmo parecendo não ser possível ...
Tudo o que era certeza e segurança nas nossas vidas  ruíu, e passámos a olhar e a olharmo-nos com outros olhos ... os do coração e dos sentimentos.
De repente, percebemos a vulnerabilidade do grão de poeira que somos todos nós.  Da pequenez da nossa estatura ...
De repente percebemos como afinal é tão importante sabermo-nos perto.  Como é importante sentir a força dos laços invisíveis que nos unem, apesar das diferenças ...
Como andámos a perder tanto tempo com tudo o que não tinha nenhuma importância, e não valorizámos o que de facto nos unia ... a força do sangue !  Essa, que é indestrutível, alicerce e escora nas horas difíceis de dor e incerteza ...
Como adiámos tanto, o que deveria ser inadiável...  Como deixámos para amanhã, isto e aquilo, porque sempre corríamos para alguma coisa mais urgente ... Como secámos na garganta palavras que não se soltaram ... acreditando que depois as diríamos ...  E já não houve depois !...

Mãe
Não pode sequer imaginar o vazio que sinto hoje, no meu peito !
Sei que se estivesse por aqui, sofreria mais ainda, se isso fosse possível, com a dor de todos ... dos seus, do seu país e do mundo ...
Sei ( eu que sou agnóstica ), que a mãe rezaria todas as noites, fervorosamente ... e pediria a Nossa Senhora de Ao Pé da Cruz, a santa lá da sua terra distante que a acompanhou até à morte, protecção e ajuda para todos nós.
E sei que choraria muito, porque a mãe tinha o coração demasiado perto dos olhos ...
Talvez por isso, decidiu partir ...

Olhe ... hoje, no dia dos seus 99 anos ( a mãe que me prometera chegar aos 100 ... ), já não posso lanchar consigo, com as suas netas e com os miúdos ...
Já não posso oferecer-lhe as flores que a mãe sempre adorava ... e hoje, porque é Páscoa, Sábado de Aleluia ... o pacotinho das amêndoas que a mãe "sugeria" não devermos esquecer ... Gulosa que só !!!...

Mãe
Onde quer que esteja ... passeando comigo pelas veredas da mata, catando as folhas secas da Verdizela, velando o sono-bebé da Teresa,  guiando os caminhos já difíceis do António, da Vitória e do "pulguinha" ( como dizia ) ... ou dando as mãos às suas netas, nos obstáculos da Vida ... no dia de hoje, eu sei que afinal continua por aqui ... Sempre está ao meu lado ...
Sei bem das conversas que mantemos em surdina !...

Parabéns mãe !  11 de Abril, sempre será o seu dia !!!

                         
                                 Aqui, completando 96 anos 


Até amanhã ! Relevem hoje este desabafo !  Afinal, isto hoje está muito difícil por aqui ...
Fiquem bem, por favor, nesta Páscoa tão dolorosa !

Anamar

sexta-feira, 10 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 30


Dia 30 ... sabem o que isto quer dizer ?  Um mês ... sim, um mês de reclusão ! Sem precária pelo meio, sem saída condicional ... nada !
Do quarto para a cozinha, da cozinha para a casa de banho, desta, de novo para a sala circulando pelo corredor ... uma escapada à janela da frente, constatando que a fila para o Continente dá a volta à praceta, enquanto que a do Minipreço dobra a esquina ... regresso ao quarto, lembro que na cozinha dentro da latinha ainda há rebuçados do Dr. Bayard  à falta de qualquer coisa outra, mais docinha ...
enfim ... "quilómetros e quilómetros" calcorreados entre estas quatro paredes ...
Claro que há um dia de soltura para as compras, um único, e ainda assim, em passo o mais galopante possível, como se corresse a sete pés à frente do corona, e a dez pés à distância de toda a gente ...
No super, driblo, contorno, faço que vou mas não vou por aquele corredor, se ao fundo detectar outro utente interessado nos meus detergentes ... pulo da bancada dos frescos para a das frutas, enquanto a freguesa que também mira os agriões, por ali estiver ... Tudo isto com um único objectivo : despachar-me, reduzindo ao mínimo, os riscos ...
Em suma, uma verdadeira aventura !!!

Paz mesmo, só a que respiro na mata, que recomeça a estar transitável.
Aí, só tenho silêncio, trinados da passarada em orquestra afinada, flores das cores mais diversas, e paz ... muita paz, naquele outro mundo !
E isso, é-me concedido por três vezes, na semana.  Melhor que nada ! E talvez por isso, ainda não pirei de todo !

Ao longo de toda esta epopeia, somos felizmente bafejados pela presença constante da família e dos amigos.  De perto ou de longe, as tecnologias de que dispomos permitem que nunca nos sintamos verdadeiramente sós.
Os pi-pis do telemóvel ou do computador, anunciam as palavrinhas mágicas que nos deixam como novos, mesmo nos dias em que a nossa resposta começa invariavelmente por : "hoje estou completamente podre e sem forças ..."
Aí, chegam palavras de ânimo, vídeos humorísticos uns, informativos outros, solidários e de apoio, fotografias espectaculares que nos transportam a sítios incríveis, espectáculos a serem vistos sem sairmos do lugar ... museus, palácios, cujos corredores e salas percorremos ... deste e daquele lugar no mundo.
Tem sido produzida toda uma panóplia de verdadeiras "obras de arte", a maior parte das vezes de autor não identificado, com uma qualidade e criatividade fantásticas !
Muitos, guardo.  Não posso guardar todas, obviamente.  Mas um dia, quando tudo isto já for passado, e à distância de um susto ido ... uma recolha exaustiva, feita sobre toda a comunicação difundida, daria um espólio notável, constituíria um repositório inigualável, no retrato do que foi a primeira grande catástrofe deste milénio.
Toda esta produção será a pegada imortal, que permitirá a escrita deste terrível capítulo Histórico !...

Mas, infelizmente também há demasiada porcaria a circular ...
Chegou-me às mãos o artigo que a seguir, aqui registo.  E porque o mesmo consta de um blogue com que a criatura autora do texto, ocupa um espaço no Facebook, pergunto-me se já não existe censura de nenhuma espécie neste país ?!

"Comediante", assim se considera o autor, com evidente ofensa para os comediantes, emitiu este texto certamente com a convicção de ter produzido um best-seller do humor, ou sequer da "piadola" .
Lembrei-me de um outro fedelho de má memória, que se referia às pessoas de mais idade, como a "peste grisalha"... lembram ?
Pois ao ler o artigo, tendo acedido à página do dito, verifico, com espanto, preocupação e mesmo estupefacção, haver um coro interminável de atontados que o parabeniza pelo conteúdo, e se revê no mesmo.
E também percebo ( e isso sim, faz-me reflectir ), que existe mesmo na sociedade, demasiada gente que entende efectivamente que os idosos empatam, complicam e estorvam, como se retirassem "espaço" aos mais novos, esses sim, com direito a ele.
"Dar tempo a quem precisa" era um slogan da Prevenção Rodoviária Portuguesa, há alguns anos atrás, e visava a sensibilização da população, para o respeito e a igualdade social de direitos e deveres de cidadania, ao seu próprio ritmo, entre os mais novos e os mais velhos.

Acho que começo a ter, sobretudo agora, pouca paciência para doutas opiniões de "pitinhos" saídos das fraldas.  Começam a produzir-me brotoeja ou erisipela crónica !...
Que maturidade é reconhecível a quem não sabe nem sonha sequer, o que verdadeiramente é a vida ?
São os anos e a experiência que outorgam a quem ostenta cabelo branco e colecciona aniversários no registo de nascimento, autoridade para poder falar dela.
Exijo respeito pelos meus direitos, como respeito obviamente os direitos dos outros, independentemente da respectiva faixa etária.  Ensino e aprendo todos os dias, e espero aprender enquanto por cá andar.
Mas a tropeçar ou não, nos pés, desde que saiba respeitosamente ocupar o meu lugar face à sociedade onde me insiro, não aceito ser tratada desprezivelmente por ninguém !!!

Estou já a "ouvir" quem diga, talvez, que perdi todo o senso de humor, empolo a situação e dou demasiada importância à dita ...
Será ???
Afinal, só lê quem quer, e o rapazinho até está cheio de humor !!!
Mas, eu sim ... IRRITEI-ME ... até mais com a forma, do que com o conteúdo ... E pensei cá com os meus botões : o corona vagueia por aí ... quem sabe ele não chega a velho ... ( Ahahah ... a minha faceta de capeta a atacar-me ... 😃😃😃 )

Ao fim do dia, recebi uma chamada vídeo da minha neta que ainda não tendo 3 anos, no meio de muita conversa, macacada, saltos e risos, numa ligação permanente "à corrente" que a rapariga parece ter ... disse-me : "Avó, tenho uma coisa para te dizer : a Teresa gosta muito de ti e tem muitasssss ( e arrastava o s... ) saudades ! "....

Bom, aí, como se diz, "caíu-me tudo" ... 😍😍😍
Sempre seremos importantes para alguém !!!...
E recuperando instantaneamente a bonomia .... pronto ... até "fiz as pazes" com aquele gajo !!!...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !



Finalmente. Consegui. Peguei-me com uma velha no supermercado. É tão bom estar vivo, sentir todo este pulsar de sensações e o sangue a fervilhar como nos bons velhos tempos.
Intervenientes: velha com dez gigas de laca no cabelo, óculos escuros e lenço ao pescoço. Espécie exótica na fauna da Buraca, mas é este o resultado da desflorestação. Eu, barba de náufrago e gorro de carteirista, a um contrato milionário de distância de um programa de sobrevivência no Discovery.
Situação: velha a acabar de pagar as compras, eu a colocar as minhas nos sacos, respeitando a distância de segurança (cerca de 1 metro e meio).
Problema: velha grita "o senhor AFASTE-SE!", mas com ênfase de nojo no "AFASTE-SE" que me fez uma ligeira impressão no fundo da nuca.
Resultado: dada a presente situação e mesmo não gostando do tom da velha, afastei-me.
Novo problema: reparei que a velha não tinha luvas (que o estabelecimento oferece à entrada, junto a um sinal gigante que diz em mandarim "OBRIGATÓRIO USAR LUVAS")
Novo resultado: começo a sentir aquela alegria interior de quem está prestes a meter ferro quente numa tina de água fria, aquele feeling de quem acabou de tirar triplo 7 numa máquina de slots e está a ver o prémio a acumular, aquele grito interior que Maximus sentiu antes de matar o imperador na arena e gritei "OLHE, OLHE, OLHE... e luvas? Aquilo que está ali à entrada? Não há? A tocar aí nas teclas do Multibanco, sujeita a matar-me!"
Novo-novo resultado: naquele momento, deve ter dado uma cena à velha, porque ela torceu o pescoço na direção oposta, ficou sem audição e não me respondeu. Não sei se foi do vírus, se foi dos chineses ou o c#ralho, mas a pobre senhora agarrou nos sacos e fugiu.
Recebo um sorriso maroto da senhora da caixa e isto devia ter ficado por aqui. Mas não, não podia ficar. Eu queria uma reacção e tive de ir atrás da velha para lhe mandar mais uma - salvo seja - e assim que a apanhei com o meu ritmo de marcha olímpica gritei "LUUUUVAS", a velha assustou-se e eu fugi de sacos na mão a rir.
É isto que um drogado sente depois de não dar fruta durante tanto tempo.
Resistência. Até ao fim.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 29



UMA  LOGÍSTICA  COMPLICADA


Hoje estou mesmo "naqueles dias" ...
Dias "fantásticos" de ânimo, de paciência e de vontade ... 🙅
Vontade de abrir a janela e berrar uns disparates, para a multidão na praceta, onde, à conta das compras, mais parece um arraial !...
Vontade de bater em alguém, vontade de me descabelar !...
Caraças ... como foi possível que de um dia para o outro, ou de um mês para o outro, a minha e a vida de toda a gente, virasse de ponta a cabeça ?!..

Peguei há pouco na minha agenda para este famigerado 2020, tão engraçadinho na data, bissextozinho ... blablabla ... e ironia das ironias : a capa da agenda, como aqui atesto, diz : "TIME  TO  TRAVEL " ... Bom ... alguém brincava comigo, certo ???
Acabara de chegar em fins de Novembro da minha última viagem - Vietname, Laos e Camboja, havia conjecturado ir à Lapónia ver as auroras boreais, em Dezembro ou meados de Janeiro.
Ambas as hipóteses abortaram por razões particulares ( e como me arrependo de não ter ido em Janeiro, no que teria sido uma opção inteligente ... ).
Então, numa sanha furiosa, havia-me sentado à secretária, e de agenda e calendário nas mãos, decidira que em fins de Abril iria à Argentina, lá por Julho mais coisa menos coisa, iria para férias de praia e no fim do ano, cumpriria MESMO a Lapónia, nem que chovessem canivetes ...
E registei, por vias das dúvidas, estes meus sonhos dourados ... não fosse que me baralhasse na coisa ...

Hoje, recordando que há exactamente um ano deambulava por Myanmar, numa viagem que adorei, tendo chegado a Portugal dia 11, creio ... até as lágrimas me vieram aos olhos ...
Pode parecer idiota esta minha atitude.  Afinal, neste momento, apenas queremos descobrir diariamente uma escapatória para a Covid 19 ... Apenas queremos sobreviver um dia de cada vez ... Apenas queremos inventar qualquer subterfúgio que nos ajude a suportar e ultrapassar este castigo que nos caíu em cima ... e temos que nos sentir gratos, porque "parece ainda não termos sintomas ".
Nem nós, nem os nossos, nem os amigos ...
Pode parecer idiota  portanto, sentir-me frustrada por não poder viajar ... face ao horror que se vive lá fora. Parece mesmo revelador de alguma insensibilidade, ou até mesmo um sentimento desproporcional, egoísta e provocador ... descabido por todas as razões, neste momento.
Parece uma "frescurinha de dondoca", como diriam do outro lado do Atlântico ...
Mas juro-vos que é apenas resultado do sabor amargo experimentado, pelo cair de um sonho aos pés ...
Um sonho que, na melhor das hipóteses, talvez se venha a realizar um dia ... não sabemos quando, não imaginamos quando o mundo se repõe à vida normal ... sequer, se então teremos saúde, vontade e condições para o pôr em pé, outra vez !...
Juro-vos que é apenas fúria da frustração ...
É o que sinto ! Podem chamar-me os nomes todos que entenderem !  Decidi que nesta minha História, com princípio mas sem fim à vista, falaria exactamente do que sinto e penso em cada dia.  Do que sonho, do que sofro, do que espero ... na angústia desta interminável e dolorosa espera ... com verdade e autenticidade, sem batota ou conveniência ...

Aqui em casa, a vida corre igual.
Estou totalmente descadeirada da bendita lesão que vos referi, contraída já faz tempo.  Custo a mexer-me, e vontade de o fazer ... népia !
Ainda assim, foi dia de rega das plantas ( o que implica subidas e descidas de escadote ), dia de arranjo das casas de banho e dia de passar a ferro, as poucas peças que o exigem determinantemente.
Entre um ai e um ui, lá fui fazendo as coisas ... enfim ... com alguma batota, tenho que confessar ... 😄😄
E a logística por aqui, não está nada fácil.
A Mel, chegada há três dias, veio criar um estado de sítio daqueles !!!
Neste momento, os residentes  não são bem residentes, pois levaram um tal chá de sumiço, que só não foram ainda pelo ralo dos lavatórios abaixo, porque não cabem ...
Em primeiro lugar, fêmea que é, nos períodos em que está acordada ( porque graças aos deuses, tem o sono seguramente muito atrasado ... ) não se cala um minuto.  E enquanto que os meus ouvidos estavam habituados a miados mansos e discretos, neste momento estou quase maluca com o tom reivindicativo e altamente reclamante, sempre que avista algum dos companheiros.
E "encalista" que os desgraçados precisem de comer, de beber ou de ir aos "sanitários" ...
Bufa-lhe com decibéis de grande felino, tenebrosos e aterradores ... avança em ar ameaçador e grita-lhes quanto pode ...
Isto, sejam lá as horas que forem ... Esta noite, eram 6 da manhã dizia-lhe eu " shiuuuu .... cala-te Mel, olha os vizinhos " !... sem qualquer sucesso.
Desde que chegou, adonou-se da cama que lhe interessou, dos lugares de sesta que mais gosta, e do "trânsito" que considera permitido ... ainda assim, de preferência ao largo ...
Está pior que o pessoal da GNR no controle para o Algarve !... 😄😄😄

Uma gestão bem complicada, numa "sociedade felina" em que todos têm medo de todos !...
Uma "mulher" no meio de dois "homens" !  Digamos que de "homem e meio", já que enquanto que o Chico, bonacheirão e pachorrento, não está lá muito para se chatear, o Jonas que é e sempre foi o "caguinchas" de serviço, nem se candidata a mostrar, ao menos para ela, que aqui, é ele que veste as "calças" !...
Ou seja, nesta sociedade, o machismo não vinga !  E a mim dava-me jeito que pelo menos de quando em vez, fosse posta a ordem nas tropas !

Bom ... talvez já vos tenha feito rir um pouco, ainda que à minha custa, hoje, neste vigésimo nono dia de um itinerário sem horizontes ... Num dia "daqueles" !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

quarta-feira, 8 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 28





ERA  ASSIM  A  PÁSCOA ...

Hoje é quarta-feira da Paixão, e de cinza se pintou esta abóboda aqui por cima.
Fui caminhar com alguma dificuldade, porque esta famigerada dor na perna direita não me dá tréguas.
Caminho alternativo de que não gosto muito  ( já que a mata continua enlameada e cheia de poças de água  com as últimas chuvas que têm caído ), levou-me para um espaço verde  é verdade, mas aquele "verde" construído pelo Homem ... Sempre me cheira a coisa artificial .
Mas lá fui, e lá fui pensando, pensando ... como sempre ...

Hoje era o dia da procissão dos bêbedos, lá no meu Alentejo de infância.
As cerimónias da Semana Santa sempre começavam com esta procissão nocturna, "sui generis" e um pouco lúgubre.
Só homens a integravam, vestidos com as opas negras da Irmandade da Misericórdia . Capuzes na cabeça, erguendo as tochas acesas, única iluminação que existia no escuro da noite, caminhavam pressurosamente, quase a correr, desfiando uns cânticos ou rezas, já não lembro ... e sacudindo a matraca.
Percorriam as ruas da vila, onde as pessoas, nas esquinas, se juntavam para ver a procissão passar.
Ora conta a tradição, que por debaixo das opas, para aquecer a noite que quase sempre ainda é fria, eram transportados à surrelfa, bons garrafões de tinto alentejano da adega cooperativa.
O Redondo, é conhecido por boas "pomadas" ... como sabemos ! 😉😉
O resto já se imagina ... O estado a que todos chegavam depois do cumprimento desta tradição religiosa, dispensa outras explicações ...

A Semana Santa continuava na quinta-feira , com o conhecido Lava-pés, em que o pároco da vila se deslocava à cadeia e ao Asilo, e evocando o gesto de Jesus, no Cenáculo, aquando da Última Ceia, em que  lavou os pés aos discípulos,  também, o sacerdote lavava os pés a alguns reclusos e velhinhos que ali viviam, numa atitude de humildade, fraternidade e serviço.
À tarde, nova procissão transportava do Calvário onde são residentes, para a Igreja Matriz, os andores da Padroeira da terra, Nossa Senhora de Ao pé da Cruz e S.João Baptista, que como dizia a minha mãe, era o Seu companheiro todo o ano.
As capelinhas dos Passos, existentes nas ruas da vila, eram abertas e nelas estavam colocadas umas pequenas camas, quase berços, decoradas com colchas de linho antigas e muitas flores. Cada qual mais bonita que a outra. Em cada uma a Procissão parava, o padre entrava com o crucifixo que transportava, deitava-o por momentos na caminha, rezava e a procissão continuava até ao Passo seguinte, numa evocação da Via Sacra.

Sexta-feira Santa, dia profundamente solene, tinha à noite a procissão do Enterro do Senhor.
O seu andor arrastando a cruz, com uma veste roxa e a coroa de espinhos sobre a testa sangrante, seguido pelos de Sua mãe e de S.João totalmente cobertos de panos negros, dava a volta à vila, num profundo e pesado silêncio de recolhimento.  As mulheres e as crianças com cabeças cobertas, transportavam velas acesas, o padre caminhava sob o Pálio e atrás, vinham os homens.
Particularmente emotivo era o momento em que, vinda do meio do povo, a figura bíblica de Verónica se abeirava do rosto de Cristo, cujo andor era descido, cantava numa voz celestial que ecoava no silêncio circundante o "vos omnes".  Enquanto simulava enxugar o rosto do Senhor, desenrolava lentamente um pano branco com a imagem de Cristo aí estampada, e mostrava-o à multidão ...
Ao chegar à Matriz, era feita a cerimónia do enterramento, em que Cristo era metido na urna imensa, colocada previamente no altar-mor, seguindo-se as exéquias fúnebres.
Todos os altares da Igreja estavam cobertos com panos roxos.

Sábado eram as Aleluias.  Ao meio-dia todos os sinos repicavam anunciando a Ressurreição de Cristo.
Terminara o período de dor e sofrimento, Jesus ressuscitara e festejava-se de novo a Vida !
A criançada vinha para as ruas apanhar as amêndoas, os rebuçados e os tostões que lhe atiravam.
As crianças atropelavam-se, rebolavam, empurravam-se ... para aceder ao maior número possível de guloseimas ... e era uma festa só !!!

O Domingo de Páscoa era o culminar das solenidades.  A missa solene na Igreja Matriz, onde todos os altares já descobertos e totalmente iluminados, resplandeciam reflectindo uma paz e uma alegria contagiantes, reunia em si, toda a comunidade.  Tudo era claro, havia flores por todas as jarras, as velas estavam acesas e até a talha dourada daquela igreja onde me baptizei, ainda estava, se possível, mais bela !
Era dia de fatiota nova e sapatinho de verniz.  Era dia de Comunhão e de uma homilia escutada em silêncio, com devoção e fervor.  Era a vitória da Vida sobre a Morte, eternamente ali solenizada !...
Depois de almoço, sairia a procissão que reconduziria, em caminho inverso e de novo à Sua casa, a Padroeira e o companheiro de todos os dias ... voltariam ao Calvário.
A banda filarmónica acompanhava todo o cortejo. Os andores estavam lindos, e magistralmente decorados com a flor branquinha da Páscoa, as glicínias e os jarros. À frente de cada um, um bando de anjinhos devidamente paramentados, seguia ordeiramente.
Nas mãos, as pequenas cestas com flores, eram transportadas com disciplina invejável, tendo em conta a tenra idade das crianças.
As janelas tinham dependuradas colchas de seda e damasco ... as mais requintadas, as mais ricas, as mais faustosas,  desencantadas nas arcas dos avós.
As ruas atapetavam-se de pétalas de flores, e estralejavam foguetes à passagem da procissão !...

Também eu me vesti de anjinho, talvez com seis ou sete anos.
Também eu caminhei ao som da fanfarra da banda e do rebentar dos foguetes, no céu.
Também eu levava orgulhosamente,  uma grinalda de flores sobre a testa, asinhas  nas costas e um bouquet de rosas do quintal da avó, que deixaria aos pés da Santa ...
Também eu vivi muitos anos, todo este ritual das Páscoas ... quando a família ainda era "a família", inteira, sem deserções, sem dores ou atropelos ...
E são os rituais, o alimento da transmissão das tradições, de geração em geração ... E ficarão depois delas até ao fim dos tempos ...

Foi assim hoje a minha caminhada, no meio das veredas desertas e silenciosas ... no vigésimo nono dia de quarentena em plena Covid 19 ...
O pensamento, esse, não pude contê-lo.  Fluíu, voou ... voou, feito pássaro livre até àquele Alentejo longínquo, e à menina das tranças que então eu era ...

Até amanhã ! Fiquem bem, por favor !

Anamar

terça-feira, 7 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 27


A  MEL

Vigésimo sétimo dia !
Os números em Portugal parecem revelar um panorama de alguma contenção face à pandemia. Não sei exactamente se a leitura poderá ser esta, ou se esta é a vontade optimista de quem está super-cansada disto tudo : eu !
França aumentou dramaticamente os números, de ontem para hoje e já são mais de dez mil, os mortos ! Espanha, depois de uma descida auspiciosa, já vai em quase catorze mil óbitos !...
Apavoro-me  só  de  pensar  que  num  destes  dias,  poderemos  também  ter  uma  surpresa  destas ...

Entretanto, escrevo ao sabor da corrente.  Sinto-me exaurida de vontade, de assunto e de interesse.  Os dias são enfadonhos de iguais, sem horizontes ou perspectivas.
Agora mesmo pensava eu, como me apetece um pastel de nata com um cafezinho ... Sairia renovada, se o tivesse ao meu alcance. 😉😉 Mas não.  Não os comprei nas compras semanais de hoje, no Continente ... não comprarei tão cedo !
Esta limitação da vida nas coisas simples, nos pequenos detalhes sem nenhuma importância, fazem afinal toda a diferença !!

Acho que, depois dos primeiros tempos em que me entupia de notícias, informações, entrevistas, debates, cimeiras, reuniões nacionais e internacionais ... em que vivia dependurada do amanhã, amargurada com o agora ... em que o meu sono se tumultuava com o medo, o pavor mesmo, que me acossava, em relação sobretudo aos meus ... depois desses primeiros tempos, dizia, instalou-se.me um certo indiferentismo cansado, de tudo isto.
Sinto-me assim como que em ressaca, em que as emoções parecem adormecidas ou anestesiadas.  Dou por mim a desligar a televisão mais cedo, dou por mim a dizer-me : "estou farta disto !..."
E dou por mim sem acrescentar nada de novo ao ontem, nem a perspectivar nada de novo para o amanhã !

Entretanto resumo os meus dias a alguns, poucos, afazeres domésticos ( se inadiáveis ou de bom aviso ), a escrever com entusiasmo muito limitado, a "história do meu dia", como vos prometi ... não leio nada, com uma concentração totalmente dispersa ... recebo e destino as mensagens amável e carinhosamente chegadas dos amigos ... e nada mais ...
Anoitece-me por aqui, como agora, frente à minha janela sobre este casario mais só e silencioso do que nunca !  O sol que enfeitou o nosso dia, já foi dormir sobre o caos doído, que é neste momento, o nosso Mundo !...

Entretanto, aqui por casa aumentou-se a "família".  😂😂😂
A MEL chegou ontem.  Chegou, tal como todos os "meus", da desgraça, do abandono, da dureza da rua lá fora, sem casa nem colo.
Fora abandonada há alguns dias e foi-me lançado um "help".
Não estava de todo nas minhas conjecturas aumentar o número dos patudinhos que dividem as suas existências comigo.  Apenas, eu que convivo mal com estas situações-limite, e particularmente agora que atravessamos um período de solidão profunda, de carência emocional e afectiva drástica, de mágoa e angústia acentuada ... em que a sensibilidade adoecida, me coloca um nó na garganta e me aflora as lágrimas aos olhos, fácil, fácil ... não resisti à desdita de mais um excluído da sorte, e ... adoptei-a !...
É uma gatinha pequenina, com cerca de um ano ( estimado pelo veterinário ), linda, frágil, muito meiga, desnutrida e desidratada.  Totalmente branca e com uns admiráveis olhos azuis, veio fazer companhia aos "machos" da casa .. o Chico e o Jonas já com oito anos.
Chegou, integrou-se e definiu limites.  São eles que recuam, é ela que bufa, são eles que andam de "três em fila" e ela que se adonou da cama que mais lhe interessou ... É ela que fala alto e exerce o seu direito de distribuir umas sapatadas, se resolvem passar o "risco", pela curiosidade que os move ... Em suma ... é "mulher" ... está tudo dito !!!
Ainda ousam pôr em causa que o Mundo é nosso ???!!!

Bom, e com a amenidade desta notícia, me vou ...

Até amanhã ! Fiquem bem, por favor !

Anamar

segunda-feira, 6 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 26






"Mais uma voltarela para a menina Felisbela " ... ou dito de outra forma, mais um dia no calendário, em modo de desconto.  Sim, porque importa ir descontando dias, dos dias que nos hão-de ainda calhar, no cômputo total dos dias que este suplício irá abranger ... 😃😃😃

Hoje, dia de caminhada, debaixo de água, numa chuvarada que não deu tréguas, com uma abóboda de chumbo por cima de mim.  Nem o tempo atmosférico dá uma mãozinha, louvado seja Deus !...
A mata ... vi-a de longe, claro.  Entrar nela seria garantia de me atascar até ao pescoço, com os caminhos totalmente enlameados.
Assim, o percurso alternativo passa pelo pólo escolar de Queluz - secundária, básica e pré - primária -  totalmente desertas, com um ar desolador de solidão instalada.  Há muito que o riso da criançada não anima os pátios, os jogos e as brincadeiras deixaram de existir.  Só os pássaros, que não conhecem fronteiras, passam além das vedações.
Hoje, o dia escuro e fechado, ainda lhes conferia um ar mais tristonho !

Vi que a "flor da Páscoa" já floriu.  Aqui e além, os pequenos bouquets engrinaldados, exibiam a minúcia do traçado.  Coisa mesmo da Natureza, que nenhum arquitecto ou ceramista conseguiria moldar na perfeição.
Porque de facto, é Páscoa ... ainda que uma Páscoa totalmente atípica, estranha e silenciosa ...
Lá vou inevitavelmente lembrar a minha mãe ... " Que altas, que baixas, em Abril caem as Páscoas" ... e depois, e totalmente a propósito deste despropósito de tempo que nos envolve ... "Natal à soalheira , Páscoa à lareira ! " -  Na mouche !...

Lembro aquelas Páscoas na Beira Alta ...
Já não eram as minhas Páscoas da gaiatice. Essas, foram alentejanas e tenho-lhes umas saudades desgramadas !
Estas eram Páscoas de mãe de família, de crianças já quase não-crianças, de almoço familiar, de visita pascal na vila, de chanfana no forno, bolo de buraco e bolo finto, cozido sobre as folhas de couve ...
Era tempo de lazer, tempo de férias de todos.  E de casa às costas, lá íamos rumando ao norte.  Lisboa ficava para trás, a viagem nunca mais acabava, numa Estrada Nacional que nos punha em filas intermináveis de camiões inultrapassáveis, e que nos exasperava a paciência ...
Mas era assim. Não tinha discussão.  Os "velhotes" lá nos aguardavam, com as saudades acumuladas do afastamento normal da Vida.
A casa fechada, abria as portadas, renovava o ar, ganhava cor e movimento.  As camas eram feitas de novo, a dispensa recheava-se do necessário para a estadia.   Quase sempre ainda havia lareira a acender-se, porque Abril ainda se veste de adornos pouco generosos em temperaturas satisfatórias ...
A miudagem ia Vau fora, chamar as amigas de sempre, pôr as novidades em dia, combinar a paródia para horas adequadas.  "Júliaaaa .... Ritaaaa .... já chegámos !!!" - e era uma alegria só !...

E lá  fora,  no  jardim  que  o  jardineiro  havia  aprumado ( afinal  os  patrões  estavam  de  chegada ) ... o arbusto da "flor da Páscoa", lado a lado com a magnólia que elevava ao céu os cálices rosa, esperava-me e sempre me fazia  sorrir, coberto das flores brancas com que no meu Alentejo os andores da procissão se adornam, em mistura perfeita com os cachos das glicínias cheirosas ...

Saudades e memórias que me caíram por aqui, como as gotas da chuva que fustigam impiedosas, a vidraça, nesta já noite que desceu ...

Até amanhã ! Fiquem bem, por favor !


Anamar

domingo, 5 de abril de 2020

"" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 25





Vigésimo quinto dia !

25 dias já é muita coisa ! Hoje, mais um domingo nesta marcha do tempo em que estamos meio perdidos, no meio dele.  "Não parece domingo", dizia-me uma amiga nas primeiras mensagens da manhã.  Dias iguais, rotinas iguais, sabemos que é dia ou noite porque o sol acorda ou se deita ...
O resto, é uma espera monotonamente semelhante, com uma esperança dependurada de corações ansiosos, angustiados e expectantes ...

Os dados estatísticos para o dia de hoje, revelam um rasgo ténue de esperança e confiança, com a curva matemática a demonstrar uma promissora estabilização e um decréscimo mesmo percentual, comparativamente às últimas vinte e quatro horas.  Ainda assim, contabilizamos neste momento, já 295 óbitos e cerca de 11300 infectados ...
Tal como o dia de hoje, um verdadeiro dia de Inverno com chuva forte e ininterrupta, com uma cerração instalada que de quando em vez se iluminava com a persistência de um sol manhoso encolhido logo a seguir, tímido e sem força ... assim estão as nossas vidas. animicamente fraquinhas, fraquinhas e pouco convictas quanto ao que esperar ...
Cada dia é uma batalha ganha.  Cada dia é uma luta que recomeça e que tem que se enfrentar, com coragem e força.

Lembrei hoje, a propósito de tudo isto, as narrações ouvidas à minha mãe sobre um pesadelo vivido, era ela muito pequena.  Ou melhor, ela, nascida em 21 já só apanhou o rescaldo do surto epidemiológico ocorrido entre Janeiro de 1918 e Dezembro de 1920 - a Pandemia conhecida como a Pneumónica ou Gripe Espanhola.
Avalio hoje, com alguma clareza, a gravidade do que ocorreu então, pois não a tendo objectivamente atravessado, narrava episódios da época, na vila onde vivia, de uma forma tão vívida e sofrida, como se os tivesse presenciado.
Dizia ela : "Houve famílias inteiras que morreram.  Havia 2 e 3 funerais a saírem da mesma casa e ao mesmo tempo. Pais que não souberam da morte dos filhos e filhos que não souberam que os pais, no quarto ao lado, haviam partido ..."

De facto, a Gripe Espanhola, que infectou 500 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população mundial da época, matou de 17 a 50 ou 100 milhões dos infectados, ( a informação não era precisa nem exaustiva ... não esqueçamos ), no que foi uma das mais letais na história da humanidade.
Foi a primeira pandemia causada pelo vírus influenza H1N1, de que uma segunda pandemia ocorreu no recente ano de 2009 ... todos nós lembramos.
Curiosamente, as poucas máscaras que detenho, foram então adquiridas ...

Tendo sido escamoteados dados estatísticos relativamente a países como a Alemanha, Reino Unido, França, Estados Unidos ou China, para que o alarmismo não grassasse, eram livres os artigos informativos sobre os efeitos conhecidos em Espanha.  Daí que este surto epidemiológico ficasse conhecido para a História, como Gripe Espanhola, não se conhecendo contudo, com segurança, a sua origem geográfica.
Na altura, a desnutrição, a falta de higiene, os acampamentos médicos e os hospitais superlotados, terão promovido uma super-infecção bacteriana responsável pela alta mortalidade.
Não podemos esquecer que estávamos no fim da 1ª Grande Guerra, e a movimentação de tropas, bem como a desnutrição e o stress dos combates, enfraquecendo os seus sistemas imunológicos estarão na origem dos valores de letalidade.
Comparativamente, morreram em 24 semanas mais pessoas, do que os vírus HIV e a síndrome da imunodeficiência adquirida ( AIDS ), mataram em 24 anos !!!

Contrariamente ao que parece ocorrer com o Corona Vírus, essa pandemia matou principalmente adultos jovens.  99% das mortes por influenza pandémica nos Estados Unidos, ocorreram em pessoas com idade inferior a 65 anos, e quase metade dos óbitos ocorreram entre os 20 e os 40 anos ...

A Pneumónica desdobrou-se em três ondas de progressão :
A primeira, considerada a mais branda, foi detectada em Março de 1918 nos Estados Unidos, num campo de treino de tropas destinadas à 1ª Grande Guerra.
Depois de percorrer os continentes, digamos que depois de dar a volta ao mundo, voltou aos Estados Unidos em Agosto, onde sucumbiram 195000 pessoas e matou monstruosamente  milhões,  pelo mundo fora.
A terceira onda pandémica foi mais moderada, e ocorreu entre Fevereiro e Maio de 1919.

Enfim, este é um breve apanhado sobre a calamidade ( mais uma ), que flagelou o planeta Terra.
De quem a viveu, já não existe ninguém para contar ...
E com as condições de salubridade existentes na altura, com todas as limitações de conhecimentos a nível da Medicina, Farmácia, Biologia, Química, e outros ... com todos os recursos de que hoje dispomos nos campos da investigação, da tecnologia, da informação, da ciência de uma maneira geral, dos recursos e apoios sócio-políticos que envolvem todos os países, e inexistentes então ... podemos palidamente imaginar, apenas, como terá sido vivido e ultrapassado esse flagelo.

Sobre o que vivemos hoje, apesar de tudo, podemos considerar-nos cidadãos bafejados com muita sorte ... sem dúvida alguma !...
Amanhã será outro dia.  Coragem e força, são precisas !!!

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !



Anamar

sábado, 4 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 24




Acabei de almoçar quase agora ... horários ainda mais bagunçados para quem já de si, é bagunçada mesmo .  Sou indisciplinada e um pouco / bastante "fora da caixa", como se usa dizer agora.
Tirei o cafezinho de fim de refeição que me aconchega a alma, e fui tomá-lo calmamente junto da vidraça.
O meu largo está irreconhecível, mas ainda assim preocupa-me bastante o que vejo diariamente.
As ruas têm de facto pouca circulação de trânsito, as pessoas chegam-se às janelas ou às varandas, tentando respirar um pouco mais, ou simplesmente, para os que não o dispensam, fumar mais um cigarro.   À noite é um deserto absoluto.
Mas, existem aqui dois supermercados ( um Continente e um Minipreço ), uma loja de conveniência e um talho.  São impressionantes  as filas diárias em permanência, que o acesso a eles, suscita.
Eu pergunto-me ... mas esta gente faz compras todos os dias, a todas as horas, como tradicionalmente fazia ?!... A maioria das pessoas não usa máscara, nem luvas protectoras.  Falam placidamente ao telemóvel, displicentemente, como quem aguarda na fila do cinema ...
E interpreto esta postura descontraída da população, comparativamente a imagens veiculadas de Espanha ou de Itália, como uma negligência assustadora, como uma inconsciência absoluta ou, como também nos caracteriza muito,  aquela bonomia e placidez, de acharmos que não será tanto assim, e que haverá uma estrelinha não sei bem onde, com um guarda-chuva protector de todo o país ...

O vírus é insidioso, já foi afirmado milhões de vezes.  O vírus é silencioso de mais, e fortuito ataca como um ladrão ... usando a distracção e o despreparo de quem ataca.
Parece espreitar-nos em cada esquina, em cada pessoa com quem nos cruzamos, com quem trocamos um simples bom dia ...
A sua arma é o medo ... e esse, está estampado em alguns dos olhos por detrás das máscaras.

Está a ficar cinzento, o dia ...
Hoje foi cremado o amigo que falecera na última terça-feira.  Gostaria de ter podido prestar-lhe uma última homenagem.  Não foi possível !...
Hoje foi "adormecido" o husky branco de outro amigo.  De olhos azuis, como o céu e o mar dos caminhos que  percorria com o dono, companheiro de dezasseis anos da sua vida, deixa, nesta altura, por acréscimo, um vazio afectivo e uma dor inestimáveis ...
Entende isto, quem ama os animais ...
Hoje é sábado, um sábado pardo, rasando a Páscoa que chegará daqui a uma semana.  Uma Páscoa diferente, estranha, uma Páscoa que assume desde já as cores da Paixão ... de uma Paixão que se vive já há demasiado tempo pelo Mundo fora ...
Falarei disso um destes dias ...
Hoje é dia 4.  Daqui a uma semana fará dois anos que a minha mãe partiu.  Também falarei disso ...
Hoje estou deprimida.  Desanimada.  Saudosa.  Triste ... muito triste !...

A vida virada ao contrário.  A vida, suspensa.  A sensação amarga, mais presente do que nunca, da fragilidade do ser humano e da precariedade da existência ...
O povo diz : " O Homem põe e Deus dispõe " ... Mas eu, que não entendo esta autoridade aleatória, ainda que me possam argumentar poder advir da pedagogia de uma entidade que não identifico, sinto-me no olho de um furacão, num tsunami sem escapatória  ... num deserto sem oásis, bússola ou norte !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sexta-feira, 3 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 23

PROMETO ...

Não quero só falar-vos de coisas tristes.
Quero também falar-vos de alegria, céu azul, sol aconchegante, verde e flores exuberantes, até onde a nossa vista alcança ...
Quero falar-vos de Primavera, de esperança ... de Abril ... E Abril é renovação e é Vida !...
Está um dia glorioso, um verdadeiro hino à existência !
Hoje, devia ser proibido morrer ...

Continuamos em casa.  Continuamos olhando a cidade pelas vidraças.
Pouca gente nas ruas, transportes semi-preenchidos.  As pessoas que circulam e que os autocarros despejam aqui no meu largo, ponto de interface de transportes, percebe-se virem do trabalho.  Saem rápidos, com urgência, parecendo fugir uns dos outros.  E é verdade.  As pessoas ao avistarem-se distanciam-se, correm dos lugares como se corre em busca de abrigo, na iminência de uma chuvada ...

A casa, neste momento, é a trincheira onde me sinto protegida.  As compras fazem-se com prudência, mas insegurança.  A caminhada é o único momento de expurga espiritual que me concedo, p'ra não enlouquecer ...
Apesar da paz e do silêncio aqui dentro, sinto um mundo a pulsar lá fora, e sinto uma união e uma cumplicidade tão forte com todos, os que conheço e os que nem sei, que me reforçam a alma ...
Sorrio ao acordar, com as mensagens, as palavras, as brincadeiras ou os conselhos, as saudações ou o apoio que de longe atravessaram o éter, venceram os céus e os mares, pularam continentes ... só para nos dizerem : "estamos aqui !"...

Vejo um foco intenso, para onde todos olhamos, com convicção e fé, como o clarão de um farol em noite escura, num qualquer porto seguro, que de longe nos espera ...
E a mobilização, e a confiança, e a força do acreditar e a esperança do dia da libertação ... são molas impulsionadoras, são escoras e são raízes que nos agarram à Vida, são certezas de que um novo amanhecer, num Maio, florido Maio ... será por nós alcançado ...

E nesse dia, as portas abrir-se-ão, as lágrimas e os risos correrão soltos, as gargalhadas vão todas misturar-se no meio das ruas, das praças e dos jardins !...
Nesse dia iremos estreitar ao peito, indistintamente todos, os de perto e os de longe, iremos olhar os nossos filhos e sentá-los de novo no colo, dizendo-lhes quanto os amamos, quanto sofrimento silenciámos, como abafámos no nosso coração o medo da perda sempre iminente ...
Iremos beijar muito os nossos netos, iremos rir ouvindo-os dizer como foi, tudo o que foi ...
E todos terão histórias infinitas para contar, de um pesadelo de que acordámos e que nunca mais nas nossas vidas iremos esquecer !...

É só termos um pouco mais de paciência, de força e de coragem !... TUDO  VAI  FICAR  BEM !!

Comecei estas minhas histórias há vinte e três dias atrás.
Tenciono continuar a registar todas as minhas inquietações, os meus sentires, as emoções que sufoco, o cansaço e a mágoa de muitos dias, a raiva e a zanga que me assaltam, a angústia, a dúvida e o medo sempre ... em quase todos ...
Mas também a gratidão que tenho em mim, pelo privilégio de atravessar tudo isto amparada pelo afecto de todos os que me lêem, pela paciência, compreensão e ajuda nos momentos em que claudico.
Afinal, tudo isto é também crescer ... tudo isto é também um amadurecimento doído e muito, muito sofrido !

Hoje, na mata, ao caminhar no meu solilóquio constante, tomei uma decisão.  Uma decisão que é afinal um compromisso ... comigo e com TODOS os meus amigos, de perto ou de longe.
Amigos do coração ... se, e quando chegarmos ao fim deste túnel tenebroso e gélido, que mais parece interminável ... se todos alcançarmos a última fronteira com saúde, alegria, paz e felicidade ... proponho-me lançar um outro livro, que será exactamente o repositório de todos estes excertos escritos diariamente, narrando o melhor que fui capaz, a história de uma nação, a história de um povo, as nossas histórias ... a história de um mundo que parece desfazer-se ... ou seja, como foi viver e sobreviver à pandemia Covid 19 que já infectou 1 milhão de pessoas e vitimou mais de 50000 em todo o Mundo ...

Esse evento será o pretexto para que nos reunamos todos, numa festa de amizade, fraternidade, gratidão, esperança num novo recomeço, muita alegria e paz ... em suma uma festa e um preito de homenagem à VIDA e ao AMOR !!!...

Concordam ?

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !



Anamar

quinta-feira, 2 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 22







Hoje o dia foi de caminhada.
E ser de caminhada, significa poder dispor de momentos introspectivos e de muita reflexão.  Momentos de abstracção pura do mundo cá fora, e onde apenas eu e a Natureza nos partilhamos em profunda cumplicidade.
O dia predispôs-se a isso, com sol, céu azul e limpo, depois de ontem, como vos contei, ter chovido grande parte do tempo.

Continuei a matutar sobre o que publiquei na minha última "história", no dia que encerrava as primeiras três semanas de isolamento.
Falava então da circulação incontrolável da proliferação de vídeos, assuntos de opinião, notícias, e toda uma poluição razoavelmente excessiva e por vezes perigosa, para a nossa capacidade discernidora, a propósito da Covid 19.
E debruçava-me sobretudo sobre uma onda que de alguma forma me está a assustar, e que, pelos mais variados caminhos, induz as pessoas a aceitarem que a catástrofe que vivemos, advém de uma qualquer auto-regulação do planeta Terra, no sentido de se proteger "in extremis" de todos os atropelos destruidores, quase irreversíveis, que nas últimas décadas o Homem lhe tem infligido.
O ser humano tem-se desrespeitado e desrespeitado o Universo globalmente, como se aponta com profundo ênfase. Não protege e destrói sistematicamente a Natureza, não valoriza as relações com o seu semelhante, a começar pelas familiares, esquece valores éticos, sociais, humanitários e outros ( entre muitos outros aspectos, de que falei ontem ) ... e portanto, por um qualquer desígnio estranho, por um qualquer determinismo do destino, uma hecatombe sem tamanho abateu-se sobre todos nós, numa espécie de vingança ou révanche  de  forças  ocultas  que  não  descortino,  mas  que  "nos  dão que  pensar ... lá  isso  dão "!...

E aqui, inevitavelmente coloca-se a questão das religiões.
Cada uma, à sua medida e de acordo com os seus objectivos, impõe-nos uma qualquer explicação cataclítica sobre o que vivemos.
É como se tivesse chegado a hora do grande puxão de orelhas ao ser humano !
É como se uma entidade superior, um Deus, desiludido e cansado de tanto descalabro, tivesse mandado parar !  Parar, como solução única para uma humanidade totalmente doente e perdida.
Parar, para expurgar todo o erro que se arrasta em incúria e descaso ... parar para, os que ficarem, poderem reiniciar um "admirável mundo novo" ...

Eu sei que tudo isto que escrevo é polémico, é contundente, talvez possam achar eventualmente provocador.
Garanto-vos que não é de todo, esse o meu objectivo.
Uma quarentena, um isolamento, todo este processo traumático que vivemos, toda a ansiedade e angústia inerentes a situações-limite como esta, são propícios a muita reflexão, muita questionação interior, muito diálogo comigo mesma.
Sempre mantenho uma dialéctica profunda nos meus silêncios, e na ausência de interlocutores próximos, encontro na escrita a forma de exorcizar fantasmas, expor opiniões, extravasar sentimentos e emoções ... até de afugentar medos ou mesmo terrores ...
E por isso me exponho sem nenhum tipo de problema.  Porque também é para isso que resolvi escrever esta "História de um Pesadelo", que me e vos acompanha.

Sou agnóstica, apesar de uma formação religiosa católica até à adolescência.
Como tal, assalta-me com alguma frequência a seguinte questão : será o Homem uma Criatura, ou  contrariamente, será ele o criador do seu próprio Deus, como busca de uma necessidade de dar sentido a tudo o que ocorre à sua volta ?!
Porque, tenho para mim que o Homem não suportaria jamais, a angústia de se sentir entregue ao acaso ...
Dessa forma, simplificar-se-ia a explicação do bem e do mal que o rodeia ...
Ou seja,  facilmente se arranja um nexo de causalidade entre a falta e o castigo, entre o crime e a punição, entre o virtuosismo, o merecimento e a compensação.
Tudo numa espécie de "deve e haver"  ou "comércio celestial" !...

Mas nessa óptica, como explicar  o valor das "facturas" a serem pagas pelo ser humano ( ainda que não seja merecedor de compaixão, perdão ou simples contemplação ), sendo Deus misericórdia, generosidade, amor ... sendo Deus, PAI ?!...

Leio que no Reino Unido se pede ( ? ) aos utentes dos lares de idosos que assinem um termo de responsabilidade, para que, em necessidade de reanimação, a declinem ...
Nos Estados Unidos, um bebé de seis semanas sucumbe à pandemia ...
Na Bélgica é uma criança de doze anos que não resiste ...
Duas médicas alertam e imploram que transfiram, urgentemente,  os refugiados dos campos onde vivem em condições sub-humanas, porque se o vírus assassino neles penetrar, haverá uma verdadeira dizimação ...
É necessário circular  um abaixo-assinado emanado do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, na voz do seu Secretário- Geral António Guterres, para que pelo planeta, nas zonas de conflitos que parecem eternizar-se, possa haver um imediato cessar-fogo...
No Mundo, os números devastadores da pandemia são absurdos e sem contenção...
Na Itália, na Espanha e certamente em breve noutros países, com hospitais em situação de ruptura, existem já protocolos, para escolhas sobre quem tem mais viabilidade de viver ...
Nas ruas, os sem-abrigo, têm o céu como telhado da casa onde farão o seu "isolamento" profiláctico...
De África, pouco se fala.  Num continente que será um verdadeiro barril de pólvora, pouco se conhece das suas condições sanitárias para o corona vírus ...

Já expressei a minha definitiva convicção face a este terramoto existencial ...
Para mim, que sou uma pessoa com formação científica, ainda assim carregada de dúvidas, incertezas, angústias e fragilidades ... e respeitando quem pensa de forma diferente, no pragmatismo que tento cultivar, a pandemia da Covid 19, é um mero "acidente de percurso" na história da Humanidade, que tive o azar que caísse na minha geração.
É uma calamidade sem dimensão, biologicamente já muito bem explicada, com origem na China e suas formas de vida, com uma primeira transmissão acidental para os humanos, que com a livre circulação completamente louca pelo Mundo todo, acabaram fazendo o resto ...
Um vírus invisível, com poucos nano-metros de dimensão, uma agressividade feroz e uma velocidade de propagação praticamente imparável, constitui mais uma catástrofe sanitária, como muitas outras que ao longo das eras ocorreram, e dizimaram ciclicamente os habitantes da Terra !...

E não mais !!!...

Até amanhã !  Fiquem bem, se fazem favor !

Anamar

quarta-feira, 1 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 21






Dia 21 ....
Dito de outra forma, três semanas neste hiato de vida, nesta reclusão voluntária mas violenta, que todos estamos a viver.
Tudo quanto nos está vedado é sempre o que mais desejamos, já o sabemos.  O Homem é um animal de insatisfações, de saturações e questionações.
Na Natureza, os bichos vivem ... simplesmente.

Um dia que amanheceu de Inverno, escuro, chuvoso e gélido, abriu agora para a tarde.  O sol descobriu e animou com outras cores tudo o que nos envolve.  Afinal, é Primavera, e afinal é Abril, e "Abril, águas mil coadas por um manguil " ... sempre assim o ouvi à minha mãe.
Não sei o que é um "manguil". Não sei se se trata de um regionalismo, se simplesmente é um vocábulo inexistente.  O Google nada me esclareceu !
Também pode ser uma palavra foneticamente parecida a uma outra, essa sim,  real, mas que ao longo das gerações as pessoas foram pronunciando conforme ouviam, e assimilando-a no seu vocabulário ... Não sei.
Se alguém puder ajudar a esclarecer-me esta súbita dúvida, agradeço !... 😌😌
Acrescento apenas, que reside em mim uma ideia muito ténue e remota, que manguil seja um instrumento ou um qualquer objecto que estreitaria o percurso de um caudal de água,  fazendo-o  cair suave  e  mansamente ... como  são  as  chuvas  primaveris ... doces  e  pausadas ...

Entretanto, continuam a chegar-nos uma profusão de vídeos, de todos os lados.
Há-os sérios, normalmente portadores de divulgação científica, há-os meramente informativos ( credíveis ou não ), há-os divertidos, com o habitual humor frequentemente português ( porque nisso ninguém nos leva a palma ... ) ... há  os de auto-ajuda, procurando reforçar psicologicamente, todos os que atravessam este deserto sem oásis ... e depois há os religiosos, com as benditas correntes e cadeias espirituais para alcance de bênçãos e protecções ... Enfim, há de tudo um pouco !

Alguns, vemos e deitamos de imediato no lixo, outros vemos e partilhamos também de imediato, com estes ou aqueles amigos, criteriosamente, de acordo com os seus perfis ( pelo menos é assim que eu faço ), outros ainda guardamos, e de quando em vez, revemos ... porque precisamos voltar a ver e ouvir, muito do que lá se diz.
Alguns desses, simplesmente nos transportam à paz e à evasão, ao oferecerem-nos um fascinante tema musical, um bailado fantástico, um passeio virtual a qualquer lugar que nos "tire" daqui, e nos subtraia à angústia e ao desconforto !...

Noto que há um cúmulo de vídeos com mensagens que tentam levar-nos a pensar que estamos afinal a viver simplesmente um castigo merecido e justo, a sofrer uma punição, a expiar as faltas por uma prestação enquanto habitantes do planeta, enquanto seres humanos, pouco digna e responsável.
Somos péssimos gestores das vidas que detemos, relacionamo-nos catastroficamente entre nós, habitantes do mesmo "condomínio",  dentro do mesmo clã familiar, desprezámos até ao limite, os valores essenciais em função do supérfluo. cometemos abusos, conflitos inter-pessoais, usamos de egoísmo, esquecemos quem precisa, alienamos o tempo de que dispomos, sacrificamos a qualidade global da vida por interesses, por omissões, por abusos, preconceitos e violência ... Fazemos continuamente a guerra, em detrimento da paz e do amor ...
e por tudo isto ... temos que ser castigados ... exemplarmente castigados !!!

Só não sei por quem ... e isso incomoda-me e impressiona-me !...

Argumenta-se que o planeta está a despoluir ( já é visível do espaço ), as águas estão a purificar-se, as pessoas estendem os braços de longe, estreitando em mente, os que amam. A solidariedade e a compaixão emergiram em força.  Reflecte-se muito, na solidão deste recolhimento, no sentido de reformulações interiores, de análise de comportamentos pessoais e sociais.  Reforça-se a palavra gratidão, fazem-se juras, estabelecem-se propósitos de melhoria, de diferença ... no depois ...

E tenta passar-se a imagem, pretensamente lógica, de que o Planeta Terra tinha que parar, de alguma forma. Tinha que expurgar o mal que o minava e destruía.
E é aí que emana a versão religiosa, de poderes espirituais redentores, que tomaram em mãos a solução ... Em suma, de energias com poderes de erradicar o "cancro" a que os habitantes do globo, o votaram ...
E este é o sentido dado para o surgimento deste vírus tão letal, desta calamidade sem fronteiras ou contenção, que alastra, galopa entre todos os continentes e pontos cardeais, e destrói aleatoriamente o Homem.

Confesso ... esta visão  ( simplista, sem nenhuma base científica, sem nenhum rigor que a sustente ) da catástrofe que vivemos, confunde-me, incomoda-me e perturba-me ...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

terça-feira, 31 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 20






Vigésimo dia de uma tortura que não tem fim à vista !
As notícias continuam a ser devastadoras, a angústia veio para ficar, alimentada pela incerteza crescente, de pouco mais termos que uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma ...
Esta vida totalmente atípica, surreal e castigadora, fica progressivamente mais difícil de levar adiante.

Hoje, vivo também a dor da perda de um amigo.
Um amigo recente, é verdade, que conheço há cerca de três anos apenas, por convivência em círculos comuns, mas que ainda assim, foi assimilado totalmente por mim.  Completava hoje 75 anos, e parece ter escolhido o dia, para fechar, duma forma completa, o seu ciclo de vida.
Ironias do destino !...
Inevitavelmente lembrei a minha mãe, que partiu no dia dos seus 97 anos ...

Não sucumbiu à Covid 19, mas sim a uma doença incurável instalada há alguns anos, que o degradou progressivamente e o confinou a uma cama há cerca de pouco mais de um mês.  Neste momento, com um sofrimento atroz, minimizado simplesmente pela morfina ministrada.
Faz hoje exactamente três meses que a passagem de ano foi feita em sua casa, a seu pedido, rodeado dos poucos familiares directos que tinha, e de alguns, poucos, amigos íntimos.
Mostrara o desejo de que a passagem de 19 para 20, fosse em alegria, em boa disposição e em fraternidade ...  E assim foi !...
Foi uma despedida silenciosa, nos nossos corações ...  Todos os que tiveram com ele, ao longo da sua existência, uma partilha das histórias, das vivências, do bom e do menos bom, desde os tempos da faculdade ... pensavam, creio eu, que o Vicente já não estaria connosco por muito mais tempo !...
Com o caos que vivemos, nem sequer o poderemos acompanhar até ao fim ...

Sinto-me angustiada e meio perdida.
As notícias de toda a ordem, os artigos de opinião, as informações, tudo o que circula e nos bombardeia de manhã à noite, são de um filme de terror nunca antes visto.
Os números dos Estados Unidos, do Reino Unido ... ou, se nos circunscrevermos à Europa, nomeadamente de Espanha e Itália, os países mais afectados ... paralisam-nos.
Espanha contabiliza cerca de 8200 óbitos em 95000 infectados,  Itália, 12500 em 106000 infectados ... Portugal 160 mortos, nos cerca de 7500 abrangidos pela propagação do vírus.
Entretanto  nas redes sociais são difundidos vídeos sobre vídeos, das mais diferentes origens. A "media" invade-nos, quase não nos dando margem para a assimilação, menos ainda para a reflexão e possível formação de opinião sobre eles.

Alguns, notória e visivelmente panfletários, outros intencionalmente alarmistas, deixam-nos sem chão e titubeantes sobre que análise correcta, eles nos merecem.
Há toda uma amálgama informativa, uma poluição ou ruído suspeito que nos deixam que nem baratas tontas, sem descortinar o que será ou não verdadeiramente credível !
Sinto-me de dia para dia, como que pisando um terreno minado.  Sinto um receio terrível de manipulação das sociedades, com fins menos nobres e assustadores !
Pasmo, como muita gente que deveria ser esclarecida, pragmática e reflexiva, embarca em tudo o que lhe cai nos espaços informativos.
Desde mails a "venderem" explicações religiosas e apocalípticas para esta punição planetária, outros que defendem teorias fortemente consistentes, capazes de influenciar pessoas de excessiva boa-fé, em conspirações  demasiado bem "boladas" e urdidas meticulosamente, para alcance de desígnios políticos e sociais maquiavélicos ...
... de tudo roda frente aos nossos olhos, numa montagem perfeita de desinformação, contra-informação e outras intencionalidades, aproveitando a ignorância, a impreparação, e a falta de cultura de um povo, que sabemos terreno fértil a estas investidas ...

E depois, continua  o medo, o medo tenebroso que grassa e nos deixa, no mínimo, apreensivos.
O panorama português, parece mostrar alguma contenção e controle do flagelo ... ainda !
Todos os dias receio ver que a actualização das notícias, nos possa trazer  um "boom" explosivo, como aconteceu em Itália e em Espanha ...
Apavoro-me olhando as perspectivas de uma América, cujo presidente terá em cima de si, para a História, o ónus do avanço da pandemia, por incúria, estupidez, arrogância ... BURRICE, obviamente ...  E claro, por miseráveis interesses pessoais, económicos e políticos !
E apavoro-me mais ainda, com a entrada do vírus no Brasil, verdadeiro barril de pólvora dada a sua extensão, a sua população e as suas assimetrias sociais, com condições de infinita miséria e desprotecção.  De novo, pela mão de um presidente inclassificável, um atrasado mental à solta, um provocador inconsciente ... um ASSASSINO potencial e impune !!!

Com tudo isto, sinto-me demasiado cansada !...

Hoje, o meu "diário de bordo" não ajudará ninguém ... pelo que me penitencio.
Talvez hoje seja eu quem precisaria de colo, de um abraço, de um carinho ... Daqueles ... interditos ... pele com pele !!!

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !




Anamar