sexta-feira, 10 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 30


Dia 30 ... sabem o que isto quer dizer ?  Um mês ... sim, um mês de reclusão ! Sem precária pelo meio, sem saída condicional ... nada !
Do quarto para a cozinha, da cozinha para a casa de banho, desta, de novo para a sala circulando pelo corredor ... uma escapada à janela da frente, constatando que a fila para o Continente dá a volta à praceta, enquanto que a do Minipreço dobra a esquina ... regresso ao quarto, lembro que na cozinha dentro da latinha ainda há rebuçados do Dr. Bayard  à falta de qualquer coisa outra, mais docinha ...
enfim ... "quilómetros e quilómetros" calcorreados entre estas quatro paredes ...
Claro que há um dia de soltura para as compras, um único, e ainda assim, em passo o mais galopante possível, como se corresse a sete pés à frente do corona, e a dez pés à distância de toda a gente ...
No super, driblo, contorno, faço que vou mas não vou por aquele corredor, se ao fundo detectar outro utente interessado nos meus detergentes ... pulo da bancada dos frescos para a das frutas, enquanto a freguesa que também mira os agriões, por ali estiver ... Tudo isto com um único objectivo : despachar-me, reduzindo ao mínimo, os riscos ...
Em suma, uma verdadeira aventura !!!

Paz mesmo, só a que respiro na mata, que recomeça a estar transitável.
Aí, só tenho silêncio, trinados da passarada em orquestra afinada, flores das cores mais diversas, e paz ... muita paz, naquele outro mundo !
E isso, é-me concedido por três vezes, na semana.  Melhor que nada ! E talvez por isso, ainda não pirei de todo !

Ao longo de toda esta epopeia, somos felizmente bafejados pela presença constante da família e dos amigos.  De perto ou de longe, as tecnologias de que dispomos permitem que nunca nos sintamos verdadeiramente sós.
Os pi-pis do telemóvel ou do computador, anunciam as palavrinhas mágicas que nos deixam como novos, mesmo nos dias em que a nossa resposta começa invariavelmente por : "hoje estou completamente podre e sem forças ..."
Aí, chegam palavras de ânimo, vídeos humorísticos uns, informativos outros, solidários e de apoio, fotografias espectaculares que nos transportam a sítios incríveis, espectáculos a serem vistos sem sairmos do lugar ... museus, palácios, cujos corredores e salas percorremos ... deste e daquele lugar no mundo.
Tem sido produzida toda uma panóplia de verdadeiras "obras de arte", a maior parte das vezes de autor não identificado, com uma qualidade e criatividade fantásticas !
Muitos, guardo.  Não posso guardar todas, obviamente.  Mas um dia, quando tudo isto já for passado, e à distância de um susto ido ... uma recolha exaustiva, feita sobre toda a comunicação difundida, daria um espólio notável, constituíria um repositório inigualável, no retrato do que foi a primeira grande catástrofe deste milénio.
Toda esta produção será a pegada imortal, que permitirá a escrita deste terrível capítulo Histórico !...

Mas, infelizmente também há demasiada porcaria a circular ...
Chegou-me às mãos o artigo que a seguir, aqui registo.  E porque o mesmo consta de um blogue com que a criatura autora do texto, ocupa um espaço no Facebook, pergunto-me se já não existe censura de nenhuma espécie neste país ?!

"Comediante", assim se considera o autor, com evidente ofensa para os comediantes, emitiu este texto certamente com a convicção de ter produzido um best-seller do humor, ou sequer da "piadola" .
Lembrei-me de um outro fedelho de má memória, que se referia às pessoas de mais idade, como a "peste grisalha"... lembram ?
Pois ao ler o artigo, tendo acedido à página do dito, verifico, com espanto, preocupação e mesmo estupefacção, haver um coro interminável de atontados que o parabeniza pelo conteúdo, e se revê no mesmo.
E também percebo ( e isso sim, faz-me reflectir ), que existe mesmo na sociedade, demasiada gente que entende efectivamente que os idosos empatam, complicam e estorvam, como se retirassem "espaço" aos mais novos, esses sim, com direito a ele.
"Dar tempo a quem precisa" era um slogan da Prevenção Rodoviária Portuguesa, há alguns anos atrás, e visava a sensibilização da população, para o respeito e a igualdade social de direitos e deveres de cidadania, ao seu próprio ritmo, entre os mais novos e os mais velhos.

Acho que começo a ter, sobretudo agora, pouca paciência para doutas opiniões de "pitinhos" saídos das fraldas.  Começam a produzir-me brotoeja ou erisipela crónica !...
Que maturidade é reconhecível a quem não sabe nem sonha sequer, o que verdadeiramente é a vida ?
São os anos e a experiência que outorgam a quem ostenta cabelo branco e colecciona aniversários no registo de nascimento, autoridade para poder falar dela.
Exijo respeito pelos meus direitos, como respeito obviamente os direitos dos outros, independentemente da respectiva faixa etária.  Ensino e aprendo todos os dias, e espero aprender enquanto por cá andar.
Mas a tropeçar ou não, nos pés, desde que saiba respeitosamente ocupar o meu lugar face à sociedade onde me insiro, não aceito ser tratada desprezivelmente por ninguém !!!

Estou já a "ouvir" quem diga, talvez, que perdi todo o senso de humor, empolo a situação e dou demasiada importância à dita ...
Será ???
Afinal, só lê quem quer, e o rapazinho até está cheio de humor !!!
Mas, eu sim ... IRRITEI-ME ... até mais com a forma, do que com o conteúdo ... E pensei cá com os meus botões : o corona vagueia por aí ... quem sabe ele não chega a velho ... ( Ahahah ... a minha faceta de capeta a atacar-me ... 😃😃😃 )

Ao fim do dia, recebi uma chamada vídeo da minha neta que ainda não tendo 3 anos, no meio de muita conversa, macacada, saltos e risos, numa ligação permanente "à corrente" que a rapariga parece ter ... disse-me : "Avó, tenho uma coisa para te dizer : a Teresa gosta muito de ti e tem muitasssss ( e arrastava o s... ) saudades ! "....

Bom, aí, como se diz, "caíu-me tudo" ... 😍😍😍
Sempre seremos importantes para alguém !!!...
E recuperando instantaneamente a bonomia .... pronto ... até "fiz as pazes" com aquele gajo !!!...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !



Finalmente. Consegui. Peguei-me com uma velha no supermercado. É tão bom estar vivo, sentir todo este pulsar de sensações e o sangue a fervilhar como nos bons velhos tempos.
Intervenientes: velha com dez gigas de laca no cabelo, óculos escuros e lenço ao pescoço. Espécie exótica na fauna da Buraca, mas é este o resultado da desflorestação. Eu, barba de náufrago e gorro de carteirista, a um contrato milionário de distância de um programa de sobrevivência no Discovery.
Situação: velha a acabar de pagar as compras, eu a colocar as minhas nos sacos, respeitando a distância de segurança (cerca de 1 metro e meio).
Problema: velha grita "o senhor AFASTE-SE!", mas com ênfase de nojo no "AFASTE-SE" que me fez uma ligeira impressão no fundo da nuca.
Resultado: dada a presente situação e mesmo não gostando do tom da velha, afastei-me.
Novo problema: reparei que a velha não tinha luvas (que o estabelecimento oferece à entrada, junto a um sinal gigante que diz em mandarim "OBRIGATÓRIO USAR LUVAS")
Novo resultado: começo a sentir aquela alegria interior de quem está prestes a meter ferro quente numa tina de água fria, aquele feeling de quem acabou de tirar triplo 7 numa máquina de slots e está a ver o prémio a acumular, aquele grito interior que Maximus sentiu antes de matar o imperador na arena e gritei "OLHE, OLHE, OLHE... e luvas? Aquilo que está ali à entrada? Não há? A tocar aí nas teclas do Multibanco, sujeita a matar-me!"
Novo-novo resultado: naquele momento, deve ter dado uma cena à velha, porque ela torceu o pescoço na direção oposta, ficou sem audição e não me respondeu. Não sei se foi do vírus, se foi dos chineses ou o c#ralho, mas a pobre senhora agarrou nos sacos e fugiu.
Recebo um sorriso maroto da senhora da caixa e isto devia ter ficado por aqui. Mas não, não podia ficar. Eu queria uma reacção e tive de ir atrás da velha para lhe mandar mais uma - salvo seja - e assim que a apanhei com o meu ritmo de marcha olímpica gritei "LUUUUVAS", a velha assustou-se e eu fugi de sacos na mão a rir.
É isto que um drogado sente depois de não dar fruta durante tanto tempo.
Resistência. Até ao fim.

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