sábado, 11 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 31

    11 de Abril 1921  -  11 de Abril  2018



Mãe

Hoje resolvi escrever-lhe uma carta, neste trigésimo primeiro dia do inferno que vivemos.
É Abril outra vez ... um Abril com sol, flores e pássaros.  Um Abril de brisas mansas e céu já bem azul ... Como a mãe gostava ...
Eu continuo em casa ...

Venho contar-lhe como é viver a angústia dos dias. Como é viver a dor das notícias que chegam de perto, de longe ... de mais longe ainda.
Dão conta do desespero  pelos que sofrem e partem silenciosamente. E são muitos, cada vez mais. Dão conta do desespero pelos que ficam e vêem este mundo a acabar-se ... impotentes, numa corrida contra o tempo, na busca da cura.
Dão conta da exaustão dos que dia e noite, sem tréguas ou descanso, ignorando-se a si mesmos,  lutam ao lado dos que padecem, nos hospitais atulhados, reinventando e reinventando-se para resistirem, na linha da frente ...
Dão conta dos velhinhos que morrem nos lares impessoais ... talvez sem carinho ... talvez sem palavras ... porque não há como ...
Dão conta do cansaço destes dias iguais, em que a angústia, a incerteza e o medo acordam connosco pelas manhãs, e deitam-se connosco ... sem desgrudar, como um visco pestilento que se nos agarrou ...
Dão conta das ruas desertas das cidades sem vozes, sem risos, sem crianças a brincar, sem velhos ao sol nos bancos dos jardins ...
Dão conta de como se vive, com a palavra amiga dos que de longe se tornam presentes, nas mensagens de ânimo  dos telemóveis, dos telefones, dos computadores ... E dessa forma, aliviam a nossa carga ...
E dão conta de como as palavras solidariedade, abnegação, partilha, dádiva, generosidade e afecto tomaram outras cores, nas nossas vidas !
Dão conta de como tentamos manter a esperança, na recriação de um novo amanhã ... quando o futuro até parece inexistir ...
Dão conta da mágoa do abraço que não damos, dos beijos que não trocamos ... dos filhos que só sabemos, e dos netos que imaginamos ... Lá, onde os braços não podem chegar, mas onde o coração e a alma estão ...

Mãe
O mundo parou por aqui.
De repente, o impensável aconteceu, mesmo parecendo não ser possível ...
Tudo o que era certeza e segurança nas nossas vidas  ruíu, e passámos a olhar e a olharmo-nos com outros olhos ... os do coração e dos sentimentos.
De repente, percebemos a vulnerabilidade do grão de poeira que somos todos nós.  Da pequenez da nossa estatura ...
De repente percebemos como afinal é tão importante sabermo-nos perto.  Como é importante sentir a força dos laços invisíveis que nos unem, apesar das diferenças ...
Como andámos a perder tanto tempo com tudo o que não tinha nenhuma importância, e não valorizámos o que de facto nos unia ... a força do sangue !  Essa, que é indestrutível, alicerce e escora nas horas difíceis de dor e incerteza ...
Como adiámos tanto, o que deveria ser inadiável...  Como deixámos para amanhã, isto e aquilo, porque sempre corríamos para alguma coisa mais urgente ... Como secámos na garganta palavras que não se soltaram ... acreditando que depois as diríamos ...  E já não houve depois !...

Mãe
Não pode sequer imaginar o vazio que sinto hoje, no meu peito !
Sei que se estivesse por aqui, sofreria mais ainda, se isso fosse possível, com a dor de todos ... dos seus, do seu país e do mundo ...
Sei ( eu que sou agnóstica ), que a mãe rezaria todas as noites, fervorosamente ... e pediria a Nossa Senhora de Ao Pé da Cruz, a santa lá da sua terra distante que a acompanhou até à morte, protecção e ajuda para todos nós.
E sei que choraria muito, porque a mãe tinha o coração demasiado perto dos olhos ...
Talvez por isso, decidiu partir ...

Olhe ... hoje, no dia dos seus 99 anos ( a mãe que me prometera chegar aos 100 ... ), já não posso lanchar consigo, com as suas netas e com os miúdos ...
Já não posso oferecer-lhe as flores que a mãe sempre adorava ... e hoje, porque é Páscoa, Sábado de Aleluia ... o pacotinho das amêndoas que a mãe "sugeria" não devermos esquecer ... Gulosa que só !!!...

Mãe
Onde quer que esteja ... passeando comigo pelas veredas da mata, catando as folhas secas da Verdizela, velando o sono-bebé da Teresa,  guiando os caminhos já difíceis do António, da Vitória e do "pulguinha" ( como dizia ) ... ou dando as mãos às suas netas, nos obstáculos da Vida ... no dia de hoje, eu sei que afinal continua por aqui ... Sempre está ao meu lado ...
Sei bem das conversas que mantemos em surdina !...

Parabéns mãe !  11 de Abril, sempre será o seu dia !!!

                         
                                 Aqui, completando 96 anos 


Até amanhã ! Relevem hoje este desabafo !  Afinal, isto hoje está muito difícil por aqui ...
Fiquem bem, por favor, nesta Páscoa tão dolorosa !

Anamar

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