quarta-feira, 8 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 28





ERA  ASSIM  A  PÁSCOA ...

Hoje é quarta-feira da Paixão, e de cinza se pintou esta abóboda aqui por cima.
Fui caminhar com alguma dificuldade, porque esta famigerada dor na perna direita não me dá tréguas.
Caminho alternativo de que não gosto muito  ( já que a mata continua enlameada e cheia de poças de água  com as últimas chuvas que têm caído ), levou-me para um espaço verde  é verdade, mas aquele "verde" construído pelo Homem ... Sempre me cheira a coisa artificial .
Mas lá fui, e lá fui pensando, pensando ... como sempre ...

Hoje era o dia da procissão dos bêbedos, lá no meu Alentejo de infância.
As cerimónias da Semana Santa sempre começavam com esta procissão nocturna, "sui generis" e um pouco lúgubre.
Só homens a integravam, vestidos com as opas negras da Irmandade da Misericórdia . Capuzes na cabeça, erguendo as tochas acesas, única iluminação que existia no escuro da noite, caminhavam pressurosamente, quase a correr, desfiando uns cânticos ou rezas, já não lembro ... e sacudindo a matraca.
Percorriam as ruas da vila, onde as pessoas, nas esquinas, se juntavam para ver a procissão passar.
Ora conta a tradição, que por debaixo das opas, para aquecer a noite que quase sempre ainda é fria, eram transportados à surrelfa, bons garrafões de tinto alentejano da adega cooperativa.
O Redondo, é conhecido por boas "pomadas" ... como sabemos ! 😉😉
O resto já se imagina ... O estado a que todos chegavam depois do cumprimento desta tradição religiosa, dispensa outras explicações ...

A Semana Santa continuava na quinta-feira , com o conhecido Lava-pés, em que o pároco da vila se deslocava à cadeia e ao Asilo, e evocando o gesto de Jesus, no Cenáculo, aquando da Última Ceia, em que  lavou os pés aos discípulos,  também, o sacerdote lavava os pés a alguns reclusos e velhinhos que ali viviam, numa atitude de humildade, fraternidade e serviço.
À tarde, nova procissão transportava do Calvário onde são residentes, para a Igreja Matriz, os andores da Padroeira da terra, Nossa Senhora de Ao pé da Cruz e S.João Baptista, que como dizia a minha mãe, era o Seu companheiro todo o ano.
As capelinhas dos Passos, existentes nas ruas da vila, eram abertas e nelas estavam colocadas umas pequenas camas, quase berços, decoradas com colchas de linho antigas e muitas flores. Cada qual mais bonita que a outra. Em cada uma a Procissão parava, o padre entrava com o crucifixo que transportava, deitava-o por momentos na caminha, rezava e a procissão continuava até ao Passo seguinte, numa evocação da Via Sacra.

Sexta-feira Santa, dia profundamente solene, tinha à noite a procissão do Enterro do Senhor.
O seu andor arrastando a cruz, com uma veste roxa e a coroa de espinhos sobre a testa sangrante, seguido pelos de Sua mãe e de S.João totalmente cobertos de panos negros, dava a volta à vila, num profundo e pesado silêncio de recolhimento.  As mulheres e as crianças com cabeças cobertas, transportavam velas acesas, o padre caminhava sob o Pálio e atrás, vinham os homens.
Particularmente emotivo era o momento em que, vinda do meio do povo, a figura bíblica de Verónica se abeirava do rosto de Cristo, cujo andor era descido, cantava numa voz celestial que ecoava no silêncio circundante o "vos omnes".  Enquanto simulava enxugar o rosto do Senhor, desenrolava lentamente um pano branco com a imagem de Cristo aí estampada, e mostrava-o à multidão ...
Ao chegar à Matriz, era feita a cerimónia do enterramento, em que Cristo era metido na urna imensa, colocada previamente no altar-mor, seguindo-se as exéquias fúnebres.
Todos os altares da Igreja estavam cobertos com panos roxos.

Sábado eram as Aleluias.  Ao meio-dia todos os sinos repicavam anunciando a Ressurreição de Cristo.
Terminara o período de dor e sofrimento, Jesus ressuscitara e festejava-se de novo a Vida !
A criançada vinha para as ruas apanhar as amêndoas, os rebuçados e os tostões que lhe atiravam.
As crianças atropelavam-se, rebolavam, empurravam-se ... para aceder ao maior número possível de guloseimas ... e era uma festa só !!!

O Domingo de Páscoa era o culminar das solenidades.  A missa solene na Igreja Matriz, onde todos os altares já descobertos e totalmente iluminados, resplandeciam reflectindo uma paz e uma alegria contagiantes, reunia em si, toda a comunidade.  Tudo era claro, havia flores por todas as jarras, as velas estavam acesas e até a talha dourada daquela igreja onde me baptizei, ainda estava, se possível, mais bela !
Era dia de fatiota nova e sapatinho de verniz.  Era dia de Comunhão e de uma homilia escutada em silêncio, com devoção e fervor.  Era a vitória da Vida sobre a Morte, eternamente ali solenizada !...
Depois de almoço, sairia a procissão que reconduziria, em caminho inverso e de novo à Sua casa, a Padroeira e o companheiro de todos os dias ... voltariam ao Calvário.
A banda filarmónica acompanhava todo o cortejo. Os andores estavam lindos, e magistralmente decorados com a flor branquinha da Páscoa, as glicínias e os jarros. À frente de cada um, um bando de anjinhos devidamente paramentados, seguia ordeiramente.
Nas mãos, as pequenas cestas com flores, eram transportadas com disciplina invejável, tendo em conta a tenra idade das crianças.
As janelas tinham dependuradas colchas de seda e damasco ... as mais requintadas, as mais ricas, as mais faustosas,  desencantadas nas arcas dos avós.
As ruas atapetavam-se de pétalas de flores, e estralejavam foguetes à passagem da procissão !...

Também eu me vesti de anjinho, talvez com seis ou sete anos.
Também eu caminhei ao som da fanfarra da banda e do rebentar dos foguetes, no céu.
Também eu levava orgulhosamente,  uma grinalda de flores sobre a testa, asinhas  nas costas e um bouquet de rosas do quintal da avó, que deixaria aos pés da Santa ...
Também eu vivi muitos anos, todo este ritual das Páscoas ... quando a família ainda era "a família", inteira, sem deserções, sem dores ou atropelos ...
E são os rituais, o alimento da transmissão das tradições, de geração em geração ... E ficarão depois delas até ao fim dos tempos ...

Foi assim hoje a minha caminhada, no meio das veredas desertas e silenciosas ... no vigésimo nono dia de quarentena em plena Covid 19 ...
O pensamento, esse, não pude contê-lo.  Fluíu, voou ... voou, feito pássaro livre até àquele Alentejo longínquo, e à menina das tranças que então eu era ...

Até amanhã ! Fiquem bem, por favor !

Anamar

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