domingo, 28 de fevereiro de 2021

" NO TEMPO DOS NINHOS ..."


A Primavera anuncia-se pelos quatro cantos da mata.  Os dias solarengos, de um sol doce e manso, têm aquecido, e tudo quanto é planta acordou do sono letárgico do Inverno e começou a abrir os pequenos borbotos verdes que  numa espécie de passe de mágica, desenham incipientes os primeiros projectos de folhagem.

É impressionante o ritmo biológico com que tudo desenvolve num curto espaço de tempo, como se a Natureza tivesse pressa em fazer-se presente de novo.
Os pássaros, igualmente, andam numa afobação que se percebe, e cantam saltitando de galho em galho .  Afinal é época de acasalamento, época de ninhos e arranque familiar.

É inevitável que recue no tempo, ao tempo em que aqui por casa se apostava na observação desse milagre.  
As miúdas eram pequenas e eu queria mostrar-lhes a maravilha da vida animal, a renovação das espécies, os ciclos da vida das aves, o respeito por tudo e todos os que dividem o planeta connosco..
Sem outro tipo de animais em coabitação, vetados por quem assim o entendia, os pássaros eram, por assim dizer, os mais acessíveis de poderem dividir um apartamento connosco, sobretudo tendo na altura ainda espaços abertos, com varandas não fechadas, coisa que viria a acontecer mais tarde.

Por isso, depois do "milagre" das transmutações do bicho da seda, nas suas metamorfoses  espectaculares, depois de ter havido peixes em aquários portadores de maternidade, para que a multiplicação pudesse operar-se com as condições necessárias, passou-se à criação de canários e periquitos, em viveiros mandados construir para que tudo ocorresse na perfeição.
Tratavam-se de uma espécie de armário com várias divisões lado a lado.  Cada uma dessas células familiares podia ou não, comunicar com a vizinha, mercê dum anteparo removível, e tinha um tabuleiro inferior  com areia, p'ra facilidade de limpeza.   O dito armário possuía  portas à frente, que se fechavam  para protecção das aves contra a frieza destas noites ainda nada seguras. 
Cada "apartamento" tinha os respectivos comedouros, bebedouros, banheira e suporte para a colocação dos ninhos na altura certa.  Nada faltava.
Procedia-se então à aquisição das várias espécies de aves, ao Sr.Joaquim, que sendo criador, vendia junto ao jardim.  
E havia-as lindas e variadas.  Os canários "mosaico", os "cobre", os amarelos mais comuns, os laranja quase vermelhos, os que no cimo da cabeça possuíam uma espécie de chapeuzinho de penas ... os brancos ... Todos grandes "tenores", sobretudo !!! 😁😁
Os periquitos que mais palravam do que cantavam, ostentavam colorações fantásticas, entre os azuis, verdes, amarelos, brancos e cores mistas.

Depois, bom, depois era acompanhar diariamente os rituais de acasalamento.  
Primeiro deixávamos que se escutassem, nos chilreios dos machos particularmente afinados e cortejantes, na conquista da parceira.  Depois juntávamos os casais por "habitação", colocavam-se os ninhos e providenciava-se-lhes sisal ou desperdício, para que as fêmeas, passado algum tempo,  iniciassem a laboriosa missão da confecção dos mesmos.  As canárias começavam então a procurar com frequência o cestinho já devidamente acolchoado, até que, numa bela manhã, o primeiro ovo surgia no fundo.  
Ao ritmo de um por dia, a postura fazia-se então, e começava o choco.  Para evitar a disparidade de dias entre os nascimentos, os ovos retiravam-se e colocava-se em seu lugar, um ovo falso até ao fim da postura, que podia ir até 5 ou mais ovos.
A fêmea pouco de lá saía para que os ovos mantivessem o calor que lhes disponibilizava, e frequentemente o macho ajudava à sua alimentação.

E era uma ansiedade constante.  Será que ... será que ??

Por volta de treze, catorze dias de incubação, os ovos eclodiam finalmente, e os filhotes totalmente despidos de penas, eram  dependentes em permanência, do calor constante de um dos progenitores e bem assim, do seu fornecimento alimentar.  
Depois ... bem, depois era o desenvolvimento normal de qualquer ser vivo, dia após dia, até ganharem o colorido das penas, a independência do voo, a autonomização dos pais ...
O milagre da Vida a repetir-se, sempre com o mesmo fascínio e encantamento !!!

As minhas filhas rejubilavam com cada coisa nova a que assistiam, com o pedacinho da Natureza, desta forma trazida até elas !  Sobretudo a mais nova, que até hoje é fascinada por tudo o que respeita à Vida nas suas diversas formas, com um respeito profundo pela "Mãe" que nos acolhe e aconchega durante a nossa passagem pela Terra !

Hoje deu-me p'ra lembrar tudo isto !...
Porque é quase Primavera, porque os pássaros nos brindam com os seus  concertos maravilhosos, porque a Natureza generosa se engalana de novo ... porque a esperança de que tanto precisamos, é verde também, como a folhagem luminosa que começa a despontar no azul dos dias ...

... e porque a menina que nos seus seis ou sete anos  se encantava  com  a sabedoria do Universo, completa amanhã já quarenta e três, e tem uma filha com três, a quem tenta transmitir todas as lições aprendidas !  
A Teresa é aquela menina que "acaricia" as flores  que nunca arranca nem pisa, acarinha os animais com quem se perde em longas conversas, e é incapaz de maltratar qualquer um ...

O tempo dos ninhos já foi ... Resta-me hoje uma terna memória e uma saudade infinita, também daqueles que todos nós éramos, então !!!...

Anamar

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

" INQUIETUDE "

 


Estou sentada frente à janela, com o casario desinteressante e monótono estendido até ao horizonte, com um céu uniforme, cinzento e fechado em abóboda desconfortável por cima, e as árvores divisadas aqui e ali, totalmente despidas da folhagem.

É um característico dia de Inverno.  Triste e desanimador, silencioso e vazio.
Está frio, ou eu tenho.  E nem sequer sei se este frio é do corpo, ou se me desce da alma, que hoje consegue estar mais escurecida que esta escuridão pardacenta que nos envolve.
Era dia de caminhada, mas não saí.  Não me animei mesmo, a descer.  Recusei o sacrifício que seria hoje, tê-lo feito.  Há uma indiferença em mim sobre o que  vivo e gostaria de viver, sobre o que sinto e gostaria de sentir, sobre esta sensação de perda que canibaliza as minhas emoções.
Estou exangue, sem luz, sem chama ... amodorrada num cansaço interior que se projecta nestes dias gelados que são a minha vida.
E já não me espanto ... menos ainda, reclamo.  Parece óbvio.  Parece fado a cumprir ...
Estou ... apenas estou.  Viva, porque respiro, eu sei.  Não muito mais !
Acho que me assemelho a uma folha tombada daquela árvore nua.  Vejo-a, castanha, seca, encarquilhada, jogada no chão pela aragem desabrida que corre lá fora.  Uma folha sem nenhuma importância, uma folha em que ninguém repara, uma folha calcável a qualquer momento.  Uma folha que rola da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, sem relevância, sem lógica ou sentido. 
Aleatória, acidental, mera partícula largada no tempo indiferente ... quase invisível ... transparente ...
Uma folha sem história !

Estou na gare de uma estação vazia.  O comboio dobrou a curva ao fundo.  E eu apenas espero um outro que venha, quando vier.  Espero.  Porque atingi o meu tempo de esperar.  O tempo de fazer, já foi.  O de viver, também.
Bagagem não levo.  Nada me fará falta.  Os sonhos ficaram.  Gastos, é verdade.  Mas ficaram.
As emoções também.  Afinal, eu sinto-me aquela folha castanha, encarquilhada e seca jogada no chão pelo destino.  Não esqueçam que até as folhas castanhas, encarquilhadas e secas terão um destino a cumprir, acredito, apesar de não parecer ...
E o destino, a gente não discute.  Com o destino a gente não briga mais, porque sê-lo-ia irrelevante, e de nada serviria.
Estou cansada.  Demasiado cansada.  Pareço ter chegado duma longa jornada, tumultuosa, errónea e  inútil.  E o amorfismo que sinto bem presente nas minhas veias, imobiliza-me na estrada, como se só devesse esperar.  Pareço viver um tempo sem tempo, nebuloso ... um tempo parado no meio dos parêntesis da vida, nada mais !...

Anamar

domingo, 21 de fevereiro de 2021

"DEPOIS DA TEMPESTADE ... dizem ..."


 

Ontem, como aqui contei, foi um dia de uma tenebrosa tempestade.  A depressão Karim, desta feita, atravessou-nos o país, imbuída de muito más intenções ... 

Precipitação com valores anómalos, vento forte a acompanhar as chuvadas ininterruptas, cheias com prejuízos avultados por vários pontos do país, a orla marítima alterosa, com ondas de mais de dez metros de altura, e outras manifestações de fúria, deixaram se possível, em estado de maior calamidade, a calamidade que já nos cerca !
Hoje, o dia é de sol, no meio de nuvens enoveladas é verdade, mas com muito azul por entre os rasgões.
Não fora o vento desabrido que vai soprando, e isto até daria para animar um pouco.
Parece afinal confirmar-se uma vez mais que "depois da tempestade, a bonança chegará !"

Poderia ser um bom princípio a tomarmos como tranquilizante, na borrasca reiterada que é a nossa vida.  Poderia.  Talvez, bem lá no fundo acreditemos nisso.  As pessoas dizem, admito que sem grande convicção : "calma, que isto vai acabar um dia.  Afinal, sempre tudo o que começa, acaba ... " ou dizem "nem sempre bem, nem sempre mal ..." ou ainda "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe !"...
As crianças já cansaram de pintar arco-íris com a estafada frase : " Vai ficar tudo bem !" - que também se via por aí, quando todos estávamos menos cépticos e mais animaditos.
Só que neste momento acho que não há santo que nos salve. Até o vocabulário se ajeitou à situação.  
Hoje, num telejornal colocaram a seguinte questão a um médico psiquiátrico :" Faz sentido ou não, falar-se em depressão pandémica ?"
Obviamente que faz, e obviamente acredito não haver uma viva alma que em maior ou menor grau, mais leve ou mais gravosa na sintomatologia associada, a não sinta.
Há dias, também referi aqui, as estatísticas apontarem para mais de sessenta mil pedidos de ajuda na área da saúde mental, por parte dos portugueses, nos últimos meses, tendo existido desde sempre, como é do domínio público, linhas de apoio para o efeito.

A coisa é de tal forma real e preocupante, que foi disponibilizada na Web uma aplicação da Escola de Medicina da Universidade do Minho, que não é mais que uma ferramenta gratuita, direccionada a uma autoavaliação da saúde mental de quem a ela aceder.
É sigilosa e orientadora de cada um, no sentido de alertar, orientar e monitorizar individualmente os sintomas ansiosos e depressivos, fornecendo informação acerca do seu estado.
Promove a divulgação de estratégias a serem utilizadas na área das neurociências, e pretende igualmente "aumentar a literacia em saúde mental, em simultâneo com a automonitorização de sintomas, e a capacitação da população na autogestão da sua própria saúde.
Desta forma, pretende desenvolver-se a consciencialização para a necessidade ( se for o caso ) de recurso a serviços e a profissionais qualificados, de acordo com a maior ou menor gravidade, dos sintomas reportados".
Simultaneamente, cada pessoa tem também acesso a ferramentas de gestão emocional, melhoria do sono e adopção de estilos de vida mais saudáveis, de acordo com Pedro Morgado, investigador e docente da Escola de Medicina e responsável pela equipa que desenhou e desenvolveu a referida plataforma.

Por considerar bem importante esta informação, deixo aqui o sítio onde ela é disponibilizada : saudemental.p5.pt

Claro que já acedi, e claro que, sem surpresas acrescidas, reconfirmei o "autodiagnóstico" que já possuía.  Sem grandes alarmismos, verificam-se sintomas moderados de depressão, com sugestão de uma avaliação consistente por profissionais da área.
Portanto, por aqui nada de novo !

É assim comigo e seguramente com a maioria das pessoas, acredito, porque o ânimo e o estado de espírito que se denota em quase todos, isso denunciam.
Dias idênticos, com recorrência a rotinas que de tão iguais se confundem nas nossas cabeças, tempo excessivo de vivências traumáticas desgastantes, um desconforto acentuado pelo arrastamento temporal de um estadio penalizante, levam à apatia, ao desinteresse, ao cansaço que de psicológico se revela mesmo físico em cúmulo, e a uma incapacidade de conseguirmos transmitir alguma normalidade às nossas vidas.  
Um túnel que não deixa vislumbrar nenhuma luz ainda, um grau de expectativas gorado vezes sem conta, um acreditar que se desfaz a cada dia ... uma esperança que se exaure ... todo este mix explosivo,  embrulhado no medo e na incerteza que continuam a povoar-nos,  levam a uma exaustão, a uma astenia, a limites stressantes que nos sentimos verdadeiramente incapazes de ultrapassar ... em última análise, à doença !

Este é, infelizmente, o meu retrato da nossa realidade.  Não consigo adoçá-lo de nenhuma forma ...

Se  descobrirem  outro,  mais  esperançoso, benevolente  ou  favorecedor,  avisem-me  por  favor !!!

Até lá, só espero que continuem a ver retalhos de azul, mesmo quando as nuvens teimam em não sair bem de cima das nossas cabeças !  Já seria um bom começo !!!


Anamar

sábado, 20 de fevereiro de 2021

" ASSIM VAI O MUNDO ... E NÓS, TAMBÉM !"

 



Isto é um desatino total !

Saí da cama já ia para o meio-dia .  Também, esperava-me lá fora um dia de tempestade, e a chuva torrencial que caía, fazia-se ouvir claramente, mesmo no interior do meu quarto.
Aliás, fui "simpaticamente" alertada por sms da protecção civil, logo às nove da manhã !
Modernices !   Antigamente - enfim, não precisa ser muito antigamente - chovia no Inverno com toda a normalidade do mundo !  Aliás, o "anormal" seria não chover no Inverno.
Desde que inventaram a "patacoada" de dar nomes às depressões, chuvas mais intensas, ventos mais fortes ... enfim, às borrascas normais das estações que deveriam, contra tudo e contra todos, cumprirem o calendário ... dá nisto !  
O tempo e as "depressões",  que quase sempre, do lado do Atlântico nos ameaçam "à ganância" !....  😞😞
Simpatias e solidariedades com os humanos ( eu acho !... )😁😁  nós, que andamos todos esfrangalhados por aí, oscilando entre os Xanax, os Diazepans, os Valiuns, Lexotans ou quejandos ... ou, simplesmente, uma valerianazinha de um Valdispert, que como o Melhoral, não faz bem nem faz mal !!!...
Também há quem fique pelo chazinho de tília, que já a minha mãe me impingia em época de exames, porque relaxava e induzia o sono, ou seja, era tranquilizante.
Bom, isso era o que ela dizia .... 😏😏

Mas isto está tudo desarticulado, de facto !
Continuamos no regime apertado duma quarentena feroz, pelo menos para quem a cumpre.  
Os dias são iguais às noites e de novo iguais aos dias.  Já não há pachorra para aqueles "fait divers" da primeira quarentena, nos idos de Março de 2020, em que tudo era novidade, o medo imperava e a resistência humanamente possível, estava no seu auge.
Foi o tempo das trocas de cumprimentos, manhã, tarde e noite, o tempo dos vídeos p'ra rir, p'ra distrair, para aprender, para espairecer ... o tempo dos "passeios virtuais" a todos os lugares inimagináveis do mundo ... o tempo dos concertos online, dos espectáculos de toda a ordem, sempre e apenas com a telinha de permeio ...
Agora, o cansaço a todos os níveis, físico e psicológico, deixou-nos "nas lonas" e a apatia, a indiferença, o desinteresse e uma tendência talvez natural de deixar correr e de já estarmos por tudo, como "soi dizer-se", angustia-me bastante.
Com este confinamento, como seria de esperar, os números trágicos da pandemia, desceram para patamares mais aceitáveis.  O SNS pôde finalmente dar uma respirada, ainda ténue, contudo.
No entanto, com a saturação que nos domina, será espectável, será previsível ( ainda por cima conhecendo o povo português ), que quando o país reabra, embora com medidas de segurança determinadas, rapidamente se volte a cair no laxismo, no facilitismo e no disparate como aconteceu no Natal, de que pagamos a factura, até hoje !

Existe, de facto, uma depressão generalizada e quase já nem dela nos queixamos, o que de alguma forma, me preocupa mais.
A minha filha dizia-me há pouco : " sintoniza o canal das viagens ... sempre te distrais "
Apeteceu-me bater-lhe ... 😁😁  Só pode estar a brincar comigo !  Então eu que me sinto vilipendiada, extorquida, "assaltada à mão armada" mesmo, porque não posso pôr o pezinho num avião, porque não posso sequer quase ir até à esquina ... eu, em que metade de mim é sonho e a outra metade é invenção ... vou ser masoquista ao ponto de ver ao vivo e a cores os lugares onde quereria ir, os lugares para onde, sei lá se ainda vou poder ir ... os lugares para onde, sei lá se ainda vou ter tempo útil para ir ... saúde, vontade e dinheiro para o fazer ???!!!!  
E ficar muito feliz com isso ???!!!  Ora valha-me a santa !!!
P'ra me deprimir ainda mais ?!  P'ra me sentir mais  injustiçada pelo destino, porque nesta roleta russa que é a Vida, veio caír na minha geração, mais este "bilhete premiado" ??...
É dose !!!

Entretanto, quem me ler vai já dizer, ou já está mesmo a dizer ( como já mo disseram, a pensar que me animavam e era uma medida correctamente pedagógica de me atacar a nostalgia ... ) :  "Injustiça é estar numa cama de hospital ... injustiça é estar ligado a um ventilador ... injustiça é ter morrido com a peste que nos dizima !  Isso sim, é injustiça !"
E eu fico outra vez com vontade de bater em alguém ... Claro que tudo isso são motivos válidos e não pueris, do sentimento de injustiça e desgraça.  Tudo isso, será o que realmente importa !  
Mas bolas, tudo é relativo neste mundo ! É melhor ter casa do que ser um sem abrigo !  É melhor ter comida p'ra por na mesa e não precisar de recorrer aos bancos alimentares !  É melhor ter uns trocos no bolso, do que ir mendigar na porta de um supermercado ! 
Tudo isso é verdade, mas também tudo isso é demagógico !  Eu sei lá  o que o destino ainda me reserva ?!  Eu sei lá o que me espera no dia de amanhã, se neste momento conheço apenas o dia de hoje, e mal ?!  E também, porque não estou à espera de nenhum paraíso "post mortem" ( já que não sou católica ), o que me faz sentido é o que vivo, o que sinto, o que me alegra ou me entristece, aqui, enquanto vou acordando todos os dias ...
E também, porque sou humana e em consequência, saudavelmente imperfeita !!!
Será egoísmo ?  Egocentrismo ? Ou simplesmente idiotice ??  ( isto sou eu a pensar sozinha ... 😁😁)
Neste momento, também não me interessa rigorosamente nada !  Estou assim, e pronto ... cabotina, talvez !!!

Ando a reler tudo o que escrevi no ano tão particular que foi 2020.  
Com os meus textos, desde que iniciei este blogue em 2008, tenho feito livros, para que o registo fique em suporte de papel, para as minhas filhas, primeiro ... para os meus netos à posteriori.
Lendo-os, pode de facto, "ler-se" muita coisa sobre mim e sobre os tempos que atravessei.  Vou no vigésimo volume.
O encadernador que sempre mos tem feito, dizia-me este ano : "Vê-se bem que a senhora esteve confinada!"
Ao que lhe respondi : "Pela espessura do livro ... certo ?"
Na verdade, e voltando a desfiar a crónica quase diária que mantive, onde ia dando conta do que ocorria no país, na sociedade, no mundo ... sobretudo em mim ... fiquei agradada por tê-lo feito, pois à distância, e depois de tantos altos e baixos, com o distanciamento mais desapaixonado sobre as vivências, pode ver-se desenhada com alguma clareza e fiabilidade, a crónica duma época, que vivíamos, que vivemos e que continuamos a atravessar, com tudo o que ela enferma de dificuldades e toda a panóplia de sentimentos que, num mix meio louco, nos tomou e nos foi destruindo aos poucos !

Neste momento, já quase tudo se disse, já quase tudo se escalpelizou, se narrou, se explorou e se analisou, sobre tudo mesmo , de todos os ângulos e pontos de vista.
Neste momento nada já é inovador, eu diria que já só algumas / poucas coisas, serão notícia.

Penso que os dois grandes tópicos actuais,  que angustiam e / ou assombram as sociedades mundiais, serão, por um lado o angustiante surgimento de estirpes mutantes do vírus da Sars Cov2 ( que têm furado as redes sanitárias protectoras dos povos, que têm driblado os estudos, e obrigado os cientistas de todas áreas e convicções, a acelerarem ainda mais, face aos estudos e aos conhecimentos obtidos até agora ... numa real corrida contra a prejuízo ) 
e por outro, a morosidade acontecida, também contra o previsível, por incumprimento irresponsável dos compromissos das farmacêuticas, na distribuição atempada e pré-determinada das vacinas, e bem assim, algum atabalhoamento com avanços e recuos, nas estratégias prioritárias inicialmente definidas para as campanhas de vacinação.
Existem várias vacinas a circularem pelos diversos países, consoante também, as suas capacidades económicas, como era inevitável que acontecesse.  
Na União Europeia, a cota determinada para cada estado membro, parece ter sido robustecida em alguns casos, por compras directas irregulares, de quem tem dinheiro no bolso.
O Homem, sempre no seu melhor !!!
Depois, tem havido alguma confusão, geradora de maiores inseguranças.  
Assim, se a vacina surgiu como a "salvadora" do mundo, a "luz ao fundo do túnel" para o cidadão comum, eu diria que os dados sobre as mesmas não são geradores de tanta tranquilidade.
Primeiro, a informação sobre os graus de protecção desta e daquela e a sua capacidade de imunização, parecem ir oscilando ao longo do tempo.  
Depois, as determinações sobre as faixas etárias a beneficiar com a inoculação das mesmas, também têm sido passíveis de controvérsia. Por exemplo, a informação sobre a vacina de Oxford da AstraZeneca, que inicialmente fora desaconselhada para pessoas acima dos 65 anos, parece agora não ter fundamento, e neste momento até ser mesmo indicada para esta faixa etária.
Também, o conhecimento da capacidade neutralizante da eficácia das vacinas pelas novas estirpes do vírus que estão a surgir em velocidade de cruzeiro, está igualmente a implicar alguma apreensão e a exigir reformulações quer da respectiva concepção, quer nas dosagens adequadas a serem ministradas, potenciando de novo, mais insegurança nas populações.
Israel, o país com maior imunidade de grupo alcançada até este momento, mercê da eficácia da campanha de vacinação, acena agora com a criação de uma medicação no combate à Covid19, que parece surgir como eficaz.  
A concretizar-se esta informação, a cura da pandemia e sua eventual erradicação no mundo, poderia passar por uma terapêutica adequada, combatendo estes lobbies económicos das farmacêuticas, produtoras e competidoras das vacinas, que se digladiam nos milhões que estão escandalosamente a arrecadar em todo o planeta !

Teremos que aguardar ainda muito, certamente, até que haja clarificações seguras de todas estas questões !

Bom, não alongo mais esta já longa crónica, com a qual procurei fazer um balanço actualizado do estado das coisas, e claro, no meio delas, do meu estado de espírito, precário, débil, tíbio ...

Veremos se pelo menos amanhã, a Natureza nos favorece, para não termos que amanhecer repetindo : "Estou tão farta disto tudo !"...


Anamar

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

" NADA E TUDO "



Hoje acordei em perda.
Acordei com um buraco no peito, como se me afundasse, sem apelo, numa profunda e inevitável cratera.
Acordei desmoronada ... desmanchada por dentro, tão vulnerável como um barco à deriva que tivesse rebentado a sua única amarração ao cais ...

É domingo de Carnaval no calendário, é Dia de S.Valentim, de novo data socialmente determinada de há alguns anos a esta parte, e consequentemente é o Dia dos Namorados, em que o Amor deverá ser vivenciado e glorificado institucionalmente, pelo menos ... 
Amanheceu um dia glorioso, de uma luminosidade de Primavera antes de tempo, ela que já se anuncia por aí, com as flores a despontarem numa Natureza sempre generosa e pródiga.
Amanheceu, mas foi difícil que eu me convencesse a sair da cama e espreitasse o sol que iluminava um céu limpo totalmente azul ...
Afinal, eu sentia-me mais vazia do que nunca, mais amputada do que nunca, mais só do que nunca !
Vazia de ânimo, devoluta de vontade !

Vivo numa pandemia assassina, da qual nem sequer imagino se saio ilesa, ou se simplesmente engordarei as estatísticas.
Vivo com as perdas todas que um ano já de desgaste profundo, foi infligindo à minha força física e anímica.
Vivo com as ausências dos que foram, e dos que estão à distância de um abraço apenas imaginado.
Vivo com as memórias e as lembranças, dos momentos, das palavras, dos cheiros e das cores.  Vivo com o som do vento que me soprava então o cabelo, ou com o tamborilar das chuvas nas madrugadas de aconchego.
Vivo e convivo com aquela que fui e não sou mais, como se me estranhasse na minha própria substância. 

Fui para a janela deste meu sétimo andar, tribuna privilegiada, onde em mim o sol pousava manso e doce. Onde por cima de mim, só tinha o céu e as gaivotas que faziam gala da dança que exibiam ...
Excluindo o acesso às superfícies comerciais lá em baixo, pouca gente na rua.
Um homem estendia a mão à caridade alheia ... p'ra dar de comer à família ... dava p'ra escutar.
Olhei em frente ... lá onde a D.Helena não voltará a assomar....
Olhei o terraço ... lá onde o Sr.Fernando não descerá outra vez ...
Olhei as dezenas e dezenas de motos, bicicletas e até um carro hoje vi, de entrega de "take-away"... um trabalho que se arrasta até bem noite dentro, com chuva, frio, ou intempérie, cumprido por faixas desfavorecidas da nossa população ...
Olhei o meu prédio onde no terceiro andar tenho a vizinha de uma vida, a morrer de cancro, numa degradação que não consigo aceitar ...
Lembrei o Pedro, lembrei o Rui, lembrei o Sr.Eduardo ...
Pergunto-me : E a D.Maria dos Anjos ?  Que será feito ?  E o viúvo da Dra.Joana ? E o Sr.Silva, o Sr. Ivo, a D.Milu e o seu grupo do Pigalle ?  E o Pigalle em si ... meio moribundo também ?
Tantos que adornavam a minha realidade, e que não mais responderão à chamada ...
A moldura humana que dava significado à minha existência, está irreconhecível.  O meu dia a dia, com as rotinas confortáveis e seguras que me levavam para a rua encontrar amigos, sentar  na  mesa, conversar ... tomar  café ...  inexistem.  Não  sei  se  algum  dia  se  reabilitarão ...

Os dias são demasiado longos e demasiado curtos.
Longos, porque pegam uns nos outros numa espécie de caminho insosso, sem nuances, derivações ou alternativas.  Uma paisagem igual, que não motiva nem convida.  O hoje pega com o ontem e com o amanhã, e quase já não descortinamos bem, onde estamos ...
Demasiado curtos, porque neste quase não valer a pena o recomeço, com o sol a dormir às seis da tarde, a escuridão desce e sufoca, tenho a sensação de ter saído da cama ainda há pouco e já estar a regressar ... 
Nos dias em que a caminhada integra o cardápio, sou obrigada a descer e a sentir o mundo lá fora.  Confesso que muitos deles, já sem nenhum élan para a fazer.
Nos dias em que fico em casa, pela vontade e a motivação serem nulas, não invisto em quase nada e quase nada me apetece fazer.  Circulo por aqui, passo demasiado tempo a contemplar o vazio lá fora.
Tento escrever, e cada vez com maior frequência é um esforço fazê-lo.  É uma sensação idêntica à que experimento com os dias ... pareço ter tudo e não ter nada para dizer !...

E pronto ... com razoável atraso em relação ao dia em que a iniciei, esta crónica sai hoje ... chocha, insípida, cinzenta, tão cinzenta quanto, ao contrário do domingo, esteve o dia de hoje ... bem mais igual a mim própria, afinal ...

Anamar

domingo, 14 de fevereiro de 2021

" NEM SÓ DE DESGRAÇAS VIVE O HOMEM ! "

 

12 - 02 - 2021


Como sabem, este meu espaço integrou desde sempre,  postagens variadas, indexadas a várias categorias ou etiquetas.

E uma delas chama-se " CURIOSIDADES ".

Sendo assim, reparemos nesta data vivida há dois dias atrás.

Leiam-na da esquerda para a direita e da direita para a esquerda !...

Leiam-na de cima para baixo e de baixo para cima !...

E então ?  Já perceberam, certo ?  É absolutamente indiferente, qualquer orientação na leitura da data da passada sexta-feira, portanto !

Sempre se lê : " Doze do dois de dois mil e vinte e um " , correcto ???


Esta data, ou melhor, esta especial e curiosa coincidência, advém de a mesma ser classificada como um AMBIGRAMA e simultaneamente um PALÍNDROMO !


E esta, hein ?   As coisas que se aprendem  na Internet !!! 😁😁😁

É giro, não é verdade ?


Anamar

sábado, 13 de fevereiro de 2021

" A GERAÇÃO DO ÁLCOOL-GEL "

 



Eu não acredito que já há mais de um ano, os temas dos meus textos rodam em torno da pandemia !
Há um ano já que comecei a escrever uma espécie de "crónicas de caserna" sobre a realidade de que nos dávamos conta diariamente, e bem assim dos sentimentos ao rubro que por aqui íamos experimentando !
Eu não acredito que há mais de um ano, os meus escritos começavam já então, com as benditas frases : "foi decretado o estado de emergência" ... "o país está totalmente confinado " ... " as ruas estão desertas" ... "hoje foram também encerradas as escolas, e as crianças e jovens iniciam, a partir de casa, o ensino à distância "... ou, " todos os trabalhadores com profissões passíveis de um desempenho a partir de casa, passam a exercer tele-trabalho" ... " pais com crianças de idade inferior a doze anos, têm direito a assegurar o seu cuidado, mantendo-se nas residências" ... e por aí adiante.
Há mais de um ano, eu falava dos artefactos conhecidos e inevitáveis a integrarem o nosso dia a dia, as nossas rotinas, num quotidiano que se instalou e parece não desgrudar nunca mais, das nossas vidas ... as máscaras, a lixívia, o álcool-gel, a higienização ininterrupta das mãos, com muita água e sabão ... O café que não se pode tomar na rua, as filas nas superfícies comerciais, o número limitado e a conta-gotas das admissões nos estabelecimentos ainda abertos ... o distanciamento social em todos os lugares ...
Há já um ano que a realidade de todos nós mudou totalmente o figurino, nas rotinas, nos sentimentos, nas vivências ...
Tudo em nome de uma nano-partícula viral que ousou tomar conta dos nossos destinos !

E hoje, passado já um ano, continuando remetidos, eu diria, à estaca zero, prosseguimos uma via sacra sem vislumbres auspiciosos.
Estaca zero  não é sequer o caso, porque passado um ano as cotas dos nossos parâmetros valorativos ( do que era na altura, uma pandemia que parecia iniciar-se benevolente para Portugal ),  desceram abissalmente p'ra uma cratera sem tamanho ou dimensão ... o que, se calhar, se nessa altura no-lo tivessem contado, talvez não tivéssemos acreditado.
Os números de casos de infecção, o número de óbitos, o número de doentes em Cuidados intensivos, a gravidade do cansaço e da exaustão sentida  nos hospitais, nas famílias, na sociedade de uma forma geral, eram  uma brincadeira, se os compararmos à nossa actual realidade diária.
Aprendíamos então novos esquemas de vida, adaptávamo-nos então a realidades estranhas que tiveram que se nos entranhar na alma, tacteávamos  então uma adaptabilidade física e emocional a um todo que não conhecíamos, sequer ouvíramos falar, sequer imagináramos ...
Sempre na esperança que tudo fosse apenas por algum tempo, que o pesadelo nos desse tréguas num tempo não excessivo, pelo menos não acima do que fôssemos capazes de suportar ...

E como em tudo na vida, a tudo o ser humano se ajeita ... primeiro estranha, depois entranha, foram transcorrendo os dias, depois das noites novas madrugadas se perfilaram, depois da Primavera as estações seguiram o rumo normal, os dias azuis chegaram no prazo correcto e espectável, a seguir às chuvas e às intempéries o sol falava-nos de praias onde não iríamos, de viagens que não faríamos, de espectáculos que não veríamos ... a solidão forçada das paredes cerradas das casas donde não saíamos, como último reduto ou trincheira desta guerra sem tamanho,  lembrava-nos dia após dia a falta do abraço, do beijo e do colo, pesava-nos dia após dia a ausência dos que só víamos através de plasmas e que só ouvíamos através de aparelhos, as noites não dormidas trazíam-nos o medo, o cansaço, a angústia, a incerteza que adoece e dói ...
E no limbo entre o estar morto ou ter a certeza de estarmos vivos, fomos cumprindo calendário, ansiando que o ano assassino terminasse logo, tal a força da sua flagelação ... como se, virada a última página do 2020, a regeneração de tudo, até de nós mesmos, estivesse em rampa de lançamento !
Parecia que uma nova aurora despontaria nos primeiros alvores de uma madrugada que seria  finalmente "mãe", porque já bastava a força carrasca do pesadelo que havíamos vivido ...

Hoje é sábado de Carnaval ... só porque a convenção assim o determina.  E hoje vivemos o que os homens da Ciência chamam-se de quarta vaga, em Portugal das mais violentas que flagelam o mundo ! 
Hoje, novamente as medidas de contenção, os parâmetros restritivos, as limitações, vigoram inapelavelmente, num estado de emergência e confinamento, imposto por um Janeiro absolutamente catastrófico e devastador.
Hoje sabe-se que estatisticamente a saúde mental dos portugueses claudicou.  Nos últimos meses mais de sessenta mil pessoas pediram apoio psicológico.
Hoje no país, chegou-se a mais de quinze mil mortos, mais de oitocentas pessoas carecem de máquinas p'ra respirar e o número de infectados atingiu o patamar de cerca de oitocentos mil .
Hoje já dispomos de vacinas, num número muito abaixo das necessárias.
Reforça-se a testagem a valores diários de exigência muito séria.
Hoje, as estirpes de vários tipos, atestam que o vírus não se conforma e promete continuar a reduzir  a terra queimada, os caminhos que calcorreia !  As gerações do meio são fustigadas.  Existem muitos jovens entre os doentes graves e os óbitos.
Hoje, a OMS fala no uso de duas máscaras sobrepostas, dada a virulência, nomeadamente da estirpe britânica que já se instalou numa percentagem aterradora.
Hoje, com um sol primaveril a anunciar um confinamento ainda mais difícil de cumprir, continuamos em "prisão domiciliária" ... e há quem pergunte : "mas será que algum dia deixaremos de usar máscara ?  Será que voltaremos a ser capazes de conviver com um depois com a normalidade do antes, sem que sintamos que algo não está bem ?"
Que consequências seríssimas no domínio psíquico e até físico, virão a experimentar as nossas crianças, os nossos adolescentes, os nossos jovens ... pela inversão de todos os hábitos, necessidades óbvias,  rotinas interiorizadas, a amputação dos afectos, da relacionação, da partilha e da interajuda, na normal construção de personalidades que exactamente percorrem um estadio da vida determinante nas suas formações ?!

Só a História, um dia quando for feita, o reportará. Já cá não estarei para o conhecer . 
Só ela, com o devido distanciamento temporal, necessário e suficiente, poderá avaliar com segurança, o grau de adaptabilidade capazmente alcançado, de superação e de resiliência desta heróica "geração do álcool-gel" !

Anamar

domingo, 7 de fevereiro de 2021

" RUMO AO ARCO-ÍRIS "

 


Gosto de escrever.  Já o disse quinhentas mil vezes, de muitas e variadas formas ... verbalmente, em prosa ou mesmo em verso.  
Disse-o num poema, há anos, que " escrevo porque respiro ... e escrevo p'ra respirar "...
Irónico portanto, que nestes tempos em que milhões de pessoas pelo mundo, lutam em camas de hospitais p'ra respirarem ... eu queira aqui, neste meu canto, respirar escrevendo, e o não consiga, vezes demais ...

Adorava ter histórias interessantes para contar além das banalidades duma vida cinzentona.
Adorava ter sido uma pessoa sem raízes ou amarras, e ter tido coragem p'ra defender convicções ... que dessas mesmo, sempre duvido.
Adorava ter tido a força e a determinação, só que fosse de um bocadinho dos sonhos que sonho ... sem sair daqui, desta cadeira, essa sim, que parece ter cavado raízes neste chão que piso.
Adorava ser crisálida de borboleta promitente, ou mesmo pena de gaivota livre e solta, em céus sem fronteiras.
Adorava ter a esperança da árvore despida, que trepa ao firmamento, e sabe que se vestirá de verdes esplendorosos, assim que a Primavera espreite.
Adorava ter sido alguém neste mundo, além de mero passageiro de malas às costas em estação vazia, e  que olha o comboio lá longe, dobrando a esquina ...
Adorava ... mas não sou !  Nunca fui.  
Nunca arranquei da vida que me foi escrita à nascença.  Nunca enfunei velas p'ra valer, mesmo com ventos de feição.  Sempre me deixei aprisionar, e estendi os pulsos p'ra que a vida me algemasse ...

Pus no mundo talvez, aquela borboleta que conseguiu ganhar as asas que eu abortei.  Pus no mundo talvez, uma cópia carregada da utopia que me alimentou.  Pus no mundo alguém que transporta em si a coragem e a fé que eu não tive, de dar o murro na mesa, de virar o rumo e a estrada para o lado em que acredita que o sol nasce em cada manhã ...
De ter a esperança, com que o tempo justifica a caminhada ... 
Ainda !...

Mas eu ... eu não fui além disso.
E eu sei do sofrimento e do cansaço de quem esbraceja nas ondas, com a praia ainda distante ...
Eu sei  do descolorido de dias tão cinzentos e frios como estes que me atravessam a alma.
Eu sei da mesmice de mim própria, frente a um "espelho" dia a dia menos generoso.  
Sei que o que andei já não tenho para andar, e também sei que o que tenho para andar se não compadece da idade do coração e da alma.
Porque essa, recusa o determinismo dos dias e recusa a tirania dos tempos.  Essa, põe-me uma mochila de sonhos nas costas, e leva-me madrugada fora para lá, para o lugar onde as pernas não me carregam mais,  mas para onde a vontade, ganhando esta nuvem que aqui passa, seguiria de boleia até ao infinito ... além, onde mora o arco-íris ...

E assim completaria a travessia !...

Anamar

" PENSAMENTOS SOLTOS "

 


Hoje amanheci azeda.  Ou melhor ... mais azeda, se possível.  Tão cinzenta quanto este cinzento escurecido aqui por cima, onde só algumas gaivotas esparsas, parecem não se entender com os caminhos do céu.

Para andarem por aqui, é porque,  lá longe, nos lugares que não vejo e adivinho, o senhor das algas e dos limos, das areias e dos rochedos, deve estar irritado !

É sábado, de mais um fim de semana chuvoso, com vento frio e desabrido agitando a última folhagem caduca, do plátano das minhas traseiras.  É quase noite e as gaivotas já foram.  Significa que mais um dia igual, está a chegar ao fim.
Neste momento da vida, já não sei das horas, dos dias, quase dos meses ...
O ritmo diário repete-se numa sinestesia incontrolável.  Os sons, as cores, os cheiros e todas as outras sensações primárias fazem uma mescla difusa e indistinta, dentro do nosso ser.  Está a criar-se em cada um de nós, um adormecimento doente, uma anestesia egoística, uma indiferença injusta ...
Deixei de perseguir notícias.  Vejo por uma única vez um telejornal diário.  Não é que aprenda grande coisa ... apenas não quero sentir-me totalmente desinformada.
Sei vagamente que os doentes que ocupam camas de intensivos já vão nos novecentos, creio.  Sei que existem estirpes mutantes do vírus assassino, para todos os gostos ... As que preferem gente jovem e as que dizimam os velhinhos.  Sei da prevalência também, dos que no meio da tabela, começam agora a  preencher totalmente, as camas dos hospitais.
Oiço as ambulâncias que caminham para o Hospital, aqui relativamente próximo ... sei que mais próximo ainda, em terrenos da Academia Militar está instalado um contentor frigorífico com vítimas que aguardam vez nos crematórios, em regime "non stop" ... e também sei que não há uma só vez, daquelas que me levantam durante a noite, que de imediato eu não pense em quantos terão dado, nessa mesma noite ( em que o conforto da minha cama me aninha ), o seu último suspiro ... e quantos mais não verão sequer a luz da madrugada a fazer-se ...

Isso tudo, eu sei.  Mas sou-vos totalmente franca : a crueza dos números, a dureza da dimensão da desgraça, a sensação do sufoco inultrapassável, sentidas há tempos atrás ... já não me mexem.
Eu sei do cansaço que me tira o norte, sei da aleatoriedade da existência, por cada dia.  
Comigo, com os meus, com os amigos ... com os conhecidos.  Mas, ou já não tenho robustez psíquica, ou já não acredito em finais felizes, ou já ganhei uma imunidade de compaixão, contra quase tudo !

Tantos dramas que se vão conhecendo nestes tempos de agrura, de tantos nos despedimos sem nos despedirmos, que estranha sensação de fuga permanente experimentamos !...
Fuga do que não se vê, sabe-se e pressente-se.  Fuga da sombra, fuga dos outros, barricados em permanência que estamos, como em leprosarias inventadas !...
E é uma prova de força por cada vinte e quatro horas que ultrapassamos.  É um teste de sobrevivência por cada dia seguinte que alcançámos com sucesso e segurança.  É um desafio anónimo ganho, de superação individual, por cada semana que o calendário vai derrubando, continuando vivos !...
Acredito que nós, os desta faixa etária, a minha, em que nos resta apenas olhar, em que nos resta apenas pensar, por cujas cabeças passa de tudo porque de tudo já passámos nesta vida ... e porque o lugar que nos cabe é o da rectaguarda, o da espera e não o da acção ... sujeitos passivos que somos, no último quartel das nossas existências ... acredito, dizia, que suportamos ainda mais penosamente, esta dolorosa e incerta travessia. 

Afinal, não somos mais o homem do leme desta embarcação em mar encapelado, não somos mais os timoneiros nem sequer dos nossos destinos, não somos mais os decisores de coisa nenhuma, porque nada depende de nós, e nada nós podemos objectivamente determinar, acautelar ou solucionar.
Não nos protege a adrenalina dos que nem tempo têm para pensar.  Não nos favorece sequer, o excesso de tempo inútil e vazio em que se resumem os nossos dias, em que até as brincadeiras com que nos mimávamos no início da tragédia, já surtem efeito ...
Apenas ( e já faremos o necessário e o suficiente ), podemos e devemos, sem nenhuma garantia antecipada contudo,  tomar conta da nossa protecção individual, porque protegendo-nos, estaremos também a proteger a sociedade da qual fazemos parte, estaremos também a proteger os que diariamente, nas linhas de fogo, se dão por inteiro além do humanamente possível, estaremos a dar uma nova chance a um novo amanhã ... porque quero acreditar ... há-de haver AMANHÃ depois da Covid !

Anamar

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

" IN MEMORIAM "

 



Hoje o meu irmão faria 87 anos.
E digo faria, porque há quatro dias atrás, resolveu planear o evento de outra forma.  Resolveu que já não era entre nós, neste plano terreno que comemoraria essa efeméride.  E foi embora !
Amanhã a esta hora já terá cumprido o desígnio "tu és pó, e ao pó voltarás" ...

Faz hoje exactamente um ano que o vi pela última vez ...  Depois, veio a Covid e podou os sonhos, a exteriorização dos afectos ... os abraços e os beijos ...
Há um ano, naquela exígua salinha de estar, o Vítor recebeu os presentinhos, os chocolates 
( guloso que só ele ) e os Fofos de Belas, expoente máximo de todas as visitas.  Despedimo-nos, pois era a hora do lanche de todos, e a sala de jantar, pronta, não esperava por retardatários ...
Penso que o levei para lá, na cadeira de rodas, sua forma de locomoção, entreguei a caixa dos bolos à auxiliar para que os guardasse para posterior consumo, beijei-o, disse-lhe adeus, fui-o acompanhando com o olhar enquanto me afastava ...
Nos últimos anos, à medida que envelhecia, o Vítor ficara piegas na separação.  A voz entaramelava-se-lhe, uma ou outra lágrima traía-o, quando mandava beijinhos para as sobrinhas  ou  mesmo  para  os sobrinhos-netos  que  nunca  vira,  mas  cuja  existência  conhecia ... 
Assim como se, apesar da ausência e do distanciamento ... aquela sua família nunca pudesse ser renegada !...

Já aqui falei algumas vezes sobre este meu único irmão, que a vida não chegou sequer a apresentar-me à nascença.
De facto, doze dias antes de eu nascer, o Vítor então com dezassete anos apenas, era institucionalizado numa casa de saúde para doentes mentais, onde viveu até há quatro dias atrás.
Culminando  um processo desgastante e irreversível de busca de solução para uma situação de esquizofrenia desenvolvida na puberdade, com contornos graves e ameaçadores para a minha mãe com quem vivia em permanência, visto que o nosso pai, viajante de profissão de uma firma de ferragens de que era sócio gerente, raramente estava, o seu internamento foi a única solução viável.

O Vítor, nasceu e perdeu a mãe aos dois anos de idade.  Viveu então de boas vontades em casa de familiares mais ou menos próximos.  O pai mourejava pela sobrevivência familiar, pois era simultaneamente amparo dos próprios pais e de mais quatro irmãos.  Isto, no Alentejo profundo  em pleno período da Segunda Guerra Mundial .
Cresceu, como pôde e como foi sendo possível. Estudou até ao actual oitavo ano, e era um jovem normal, sem demonstrar problemas acrescidos.  Praticava hóquei, natação, era um aluno aplicado.
Mas a mudança de idade recrudesceu uma possível patologia genética do lado materno ( o avô materno havia inclusive cometido suicídio, e a própria mãe apresentara também sinais depressivos ).
Foi diagnosticada uma esquizofrenia, como referi, e apesar do nosso pai ter procurado os melhores especialistas da época, o problema do Vítor não minorou.
Camisas de forças, electro-choques e toda uma carga medicamentosa ... a tudo foi sujeito.
Entretanto o meu pai casara pela segunda vez com a minha mãe que engravidara de mim.
Ameaças de morte, atitudes de hostilidade e descontrole, fugas por cima dos telhados das casas baixinhas da aldeia onde viviam, desaparecimento por vários dias, tudo foi vivenciado pela "madrinha" (era assim que lhe chamava),  em fim de gestação.
Como disse, o Vítor deu entrada na Instituição que o acolheu, doze dias antes de eu nascer.

Vivíamos entretanto em Évora.  Anos mais tarde viemos para perto de Lisboa, o que viabilizou e facilitou uma proximidade maior com o meu irmão.
Lembro as visitas, na camioneta do Eduardo Jorge que iam para Montelavar, aos sábados às catorze e trinta.  Lembro a caixa de meia dúzia de bolos que o meu pai escolhia sacramentalmente, para levarmos para o Telhal.
E aí íamos nós, os três.  
A minha mãe sempre chorava ao vê-lo, pois tinha-lhe carinho de filho.  O meu pai era o "durão" impenetrável, que hoje suspeito, sofreria horrores por dentro, mas nunca o demonstrava por fora ... Eu ... bom, p'ra mim era difícil, era fastidioso, era desconfortável ...
Era um afecto de alguma forma institucionalmente imposto, apenas.  Era um irmão de sangue, não era um irmão de criação.  E aquelas  visitas  a  um  lugar  de  loucos  eram  penosas,  confusas, deprimentes, para  uma  criança  primeiro ... depois  para  uma  adolescente !

No Telhal a doença estabilizou. O Vítor manteve ao longo dos anos, uma idade mental de sete, oito anos.  Adaptou-se e assimilou o meio, os padrões, a vida, que passou a ser a sua.
Lá, num outro episódio infeliz, cegou completamente, quando um dos empregados detentor daqueles molhos de chaves com que se franqueiam as portas, fechadas de imediato nestes estabelecimentos, lhe bateu, para acordá-lo, no olho que ainda detinha alguma visão ( o outro fora operado a cataratas anos antes, tendo a operação corrido muito mal ) .
Mas também a isso o Vítor se adaptou.  Usava uma pequena varinha de invisual e percorria todo o espaço sem nenhuma dificuldade.
Limpava a loiça nas cozinhas, contava parafusos e desempenhava outras pequenas tarefas na serração. Quando ainda via alguma coisa, ajudava no refeitório a descascar batatas.
Era humilde, não conflituava, era paciente e respeitador ... fez amigos !

Hoje, o Vítor foi embora.
Penso que estava cansado da vida que detinha.  Passava os dias numa cadeira de rodas, e escutava apenas na televisão, as notícias que passavam.
Tinha fraldas e estava totalmente dependente.  Os relatos desportivos do seu Sporting, também já pouco o motivavam ...
A Covid terá acabado com o resto.  A solidão confinou-o mais, às quatro paredes do pavilhão geriátrico que ocupava.  As visitas foram canceladas por precaução,  
Não sei descodificar o que passaria naquele cérebro doente ... Caíam-lhe as lágrimas quando o beijava ... 
Adoeceu esta terça-feira ... Não me deixou voltar a vê-lo !  Até isso me foi vedado !
Talvez a esta hora já festeje o seu aniversário no encontro com todos os que o esperavam ... Talvez tenha apenas aberto caminho aos que lhe seguirão ...

Vítor, desta vez os Fofos de Belas, obrigatórios quando te visitava, serão apenas memória daquele que tu foste ... para sempre !!!



Anamar

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

" LÁ, NO MOMENTO DA VERDADE ..."

 


Um amigo disse-me hoje que a minha escrita é a minha forma de resistência, nos tempos que vivemos.

Cada um tenta, ao seu jeito, criar técnicas de defesa pessoal para a superação da tragédia que se nos abate.  Desde sempre, desde o início da pandemia, há já dez longos meses sem fim à vista, que cada um de nós inventou mecanismos de sobrevivência e superação, dia após dia, noite após noite, em tempos de medos, desesperança e solidão.
Uns pintavam, desenhavam, trocavam brincadeiras ou coisas mais sérias via internet, cozinhavam ( faziam muitos, muitos bolos ), fabricavam pão ... outros dançavam ou ginasticavam 😁😁... jardinavam ( os que tinham áreas de lazer que o permitiam ) ... Enfim, eu escolhi escrever !
Escrever talvez porque esse seja o meu "oxigénio" de vida, porque essa seja talvez a forma de eu exorcisar os meus fantasmas, alienar os meus medos ... dividir também os meus sonhos e esperanças !

Também achei que gostaria de ir escrevendo paulatinamente a história da Covid 19, na primeira pessoa, porque um dia, quem sabe - quando todo o pesadelo tenha passado - eu volte a relê-la, a avaliá-la à distância, a analisá-la, a entendê-la se o conseguir ... enfim, quando fosse bem velhinha a relembrá-la, se a memória então ainda mo permitisse.
Desafiei a Vitória, que escreve bem, para os seus dezasseis anos, para também escrever o que lhe fosse na alma.  Um dia, quem sabe, contá-lo-ia aos filhos e aos netos ... como eu sempre ouvi da minha mãe, sobre a pneumónica, acontecida há cem anos.

E teria gostado de contar coisas bonitas, encorajadoras, que aquecessem os corações, fragilizados e doídos.
Gostaria de falar de uma realidade bem diferente.  Gostaria de falar dos meus sonhos, das minhas viagens, dos êxitos ou mesmo dos fracassos dos meus miúdos, das preocupações inerentes à vida que se fosse fazendo, sem outros atropelos ou sustos.  
Gostaria de falar da minha gaivota, dos alvores da serra aos primeiros raios da manhã, gostaria de falar das arribas, das ondas que vão e que vêm, beijando despudoradamente os rochedos no areal, da terra parideira do meu Alentejo de coração, quando a seara madura pincela de ocre tudo quanto a vista alcança ...
Gostaria de falar dos meus afectos, dos meus amores e dos meus desamores ... porque em suma, todos eles são Vida ! 
E gostaria de esquecer tudo o mais que me rodeia.  Gostaria de ignorar as notícias que me invadem, me entram pela casa dentro sem convite, gostaria de esquecer rostos, números, opiniões, vaticínios e estatísticas ...
Gostaria de conseguir ser um pouco negacionista e poder enfiar a cabeça pela areia adentro ... fazer de conta, de quando em vez pelo menos, que tudo vai ficar normal e que em breve as nossas vidas retomarão as rotinas de sempre ... como as conhecíamos e de como sempre foram ...
Mas não sou capaz !

Eu sei que as pessoas estão como eu, saturadas, cansadas, totalmente stressadas e muito, muito aflitas.  Sei que me dizem ( as minhas próprias filhas o fazem : "estou farta de covid !  Não quero mais falar disso !" ).
Sei que muitos optam pela estratégia de insuflar uma esperança que me cheira a plástico, um pseudo-acreditar  num tão socialmente correcto !  Sei que muitos ignoram e fogem de ler notícias tristes, negativas, menos felizes. Porque o ser humano sempre se defende, correndo as cortinas, para que de lá de fora entre o mínimo possível do que nos assombra.  Sei que o medo fragiliza, incapacita, adoece ... mas também sei que foi por medo, que na primeira vaga da pandemia, quando ainda lhe não conhecíamos o rosto verdadeiramente, nos confinámos em casa antes mesmo do Governo assim o determinar.  Foi por pavor que não ousávamos comportamentos de risco e nos protegemos até ao âmago de nós mesmos ...
E também sei que foi por um mecanismo exactamente oposto, que agora na vaga que nos submerge, nos afundámos e afundamos diariamente.  De repente, habituámo-nos, insensibilizámo-nos, indiferentizámo-nos, anestesiámo-nos ... passámos a sentir ( porque precisamos de acreditar nisso mesmo ), que a nós não vai tocar-nos, e que talvez o diabo não seja tão feito quanto o pintam.
Daí, algum relaxamento de costumes, daí algum laxismo nas atitudes, algum encolher de ombros e negligência.  E chegámos ao que chegámos, estamos como estamos talvez a acordar tarde de mais agora.  Afinal ...  "depois de casa arrombada, trancas na porta" ...

Por esse motivo e nesse sentido, entre a profusão de notícias, de pareceres, previsões, antevisões, estatísticas e ameaças já pouco camufladas ... faz falta "SENTIR" com verdade, sem rodeios, maquilhagens ou paliativos , o MEDO de novo.  O MEDO com todo o seu realismo, com todo o seu horror, com todo o seu semblante aterrador, contudo verdadeiro ... e percebermos que um dia pode mesmo bater-nos à porta ... por que não ??  " O medo guarda a vinha" ... diz o povo .
Somos alguém privilegiado, escolhido, especial, para sermos poupados ??  Não !  Obviamente que não !

Então ouçam COM  MUITA  ATENÇÃO, como é estar lá, dentro de uma ambulância sem sabermos se seremos devidamente acudidos, estarmos lá numa maca com a sentença dos intensivos a bombardear-nos o espírito,  estarmos lá em ruptura total com o mundo que fomos obrigados a deixar cá fora, com o nosso mundo que incrivelmente tivemos que deixar para trás ... com a nossa casa, os nossos animais  ( que será deles ? ), os nossos sonhos ... e os NOSSOS ... os filhos, os netos, os pais, os amigos ... nunca sabendo se aquilo ali, é uma sala de retorno, ou é a antecâmara da partida para nunca mais  ...

Pensem por favor, depois de ouvirem este depoimento que de propósito escolhi para vós, de um médico intensivista, que conta com a frieza, a dureza e a objectividade ... despida do adocicado que gostaríamos talvez de ouvir, como é estar na linha de fogo, como tudo acontece lá, no lugar e na hora da verdade ... e por favor FIQUEM  EM  CASA ... por todos nós e por eles também !!!

Anamar

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

" 21-21-21 "



Estamos num dia particular.  É curiosa a data que vivemos ... afinal hoje é dia 21 de Janeiro de 2021 do século XXI ... Engraçada esta predominância do número vinte e um no registo temporal da nossa existência !
Não quererá efectivamente dizer muito mais do que uma coincidência interessante.
Estamos num verdadeiro dia de Inverno que amanheceu mais ou menos, mas que com o avançar das horas começou a fazer cara feia, redundando num desconforto total.  
São cinco e meia de uma tarde cinzenta, chove copiosamente aquela chuva mansa e silente, e uma bruma pesada e densa foi baixando, baixando, e tirando-nos a visibilidade escassos metros adiante.  Está um dia triste, de desamparo e de desânimo.

Finalmente o Governo decidiu encerrar as escolas.  Com os números da pandemia a atingirem valores absurdos e com a pressão pública, seja dos especialistas da área, dos responsáveis da saúde, da  pressão política movida pelos partidos da oposição, aos abaixo-assinados de responsáveis da Educação e declarações de figuras com visibilidade e credibilidade no país ... confrontados com a posição suicida que seria a manutenção dos estabelecimentos escolares abertos, acabaram decidindo no sentido do seu encerramento.
Não que o espaço escolar fosse em si o responsável por surtos infecciosos.  Aliás, a verdade é que também não há certezas sobre isso, na medida em que não foi realizada uma testagem intensiva dos alunos.  No entanto, presume tratar-se de um espaço vigiado e acautelado portanto, por forma a serem prevenidas situações negligentes.
Contudo, a existência das aulas arregimenta para perto das escolas toda uma população de jovens e crianças, que em grupos de amigos e colegas esquecem as exigências do momento que se vive, e potenciam, por comportamentos erróneos, uma maior facilidade de transmissão.
Depois, são também eles, os pombos-correios na disseminação posterior do vírus, em contexto familiar e social.  Qualquer pessoa via isto.  O Governo é que parece que não ! 😏😏
Há portanto, a qualquer custo, que tentar quebrar estas cadeias de transmissão.
Assim,  pelo  menos  por  quinze  dias este  será  o  estado  das  coisas,  podendo  ( após  avaliação ) o mesmo ser prorrogado.  Entretanto, o estado de confinamento geral do país vigora por um mês, podendo também, ser alargado.

É um tempo de silêncios.  É um tempo de solidão.
Aqui por cima as gaivotas deambulam na aragem intensa que açoita, com temperaturas baixas, numa tarde desabrida que fechou totalmente.
Lá fora, as ruas desertificam à medida que as horas vão avançando e a noite desce
Ambulâncias deixam ecoar as suas sirenes em direcção ao hospital.  Sempre me arrepio ao ouvi-las.  Sempre me emociono ao pensar naqueles que nelas irão, num caminho vezes de mais, apenas de ida !
Estamos num tempo que parece de despedidas.  Despedidas diárias de tudo o que foi a nossa vida, e que exactamente "foi".  Despedidas não verbalizadas mas sentidas, dos que nos estão longe e que só escutamos pelos telefones, nunca sabendo se amanhã ainda aqui estaremos.
"Vamos estando, até que nos deixem" ... é a frase dita, porque o resto só se sente e não se diz, embora nos queime a língua e aperte o coração ...
"Olha, se me acontecer alguma coisa ... " fica dita uma vontade, um desejo, expresso um sentimento, verbalizado um voto ...
Já perdi amigos nestes tempos malditos, já soube de conhecidos que foram ... e fiquei mais pobre.  A minha vida mais vazia e defraudada.  Como numa guerra.  Como num bombardeamento.  Como no rebentamento de uma explosão.  Nunca sabemos quem parte, quem resiste, quem fica ...

Hoje um carro da autarquia percorria as ruas.  Os altifalantes espalhavam no vento que passava : " Face ao avanço brutal da pandemia, solicita-se que todos permaneçam nas suas residências!  Por favor, fique em casa !"
Veio-me à memória Itália, Março 2020 ... e estremeci. O nó apertou-me mais o peito, e uma lágrima desceu ...
Para quando, o sol a brilhar no nosso firmamento ?  Para quando um outro amanhã ?...

Anamar

domingo, 17 de janeiro de 2021

" FLASHES DO MOMENTO "




A  jornalista lançou a seguinte pergunta : "O senhor sabe que é obrigado a ter máscara na via pública "? - ao que a criatura responde de imediato com um ar feliz e descontraído - " Claro, por isso é que ela está aqui no meu bolso !..."

Não sei se ria, se chore.  Decidi-me : enfureço-me, enraiveço-me, desespero-me ... apetece-me partir a televisão, como se, partindo-a, estivesse a partir a cara a um energúmeno destes ... por azar, meu compatriota, por azar, meu concidadão...
Pergunto-me : como se pode conseguir algum resultado prático, como se podem conseguir baixar os números aterradores da pandemia, com uma massa humana deste quilate, que não só não cumpre o determinado, como ainda goza com quem o cumpre ?!

Não esquecer que este e outros "filmes" parecidos, ocorreram ontem, dia 16 de Janeiro, segundo dia do confinamento geral do país, quando os números atingiram o valor de quase onze mil novas infecções e cento e sessenta e seis óbitos, nas últimas vinte e quatro horas.
Não esquecer que este filme e outros parecidos, ocorreram num dia de sábado, de céu azul e sol aconchegante, em Carcavelos, junto ao mar, no passeio marítimo sem dúvida convidativo à sua fruição, onde as pessoas em magotes, muitas delas sem máscara no rosto, passeavam placidamente !...
Não esquecer que neste sábado solarengo, luminoso, de céu azul, as camas dos hospitais estão lotadas, as ambulâncias aguardam em fila caótica às portas dos mesmos, para admissão dos doentes, horas a fio, que os profissionais de saúde, lá dentro, estão absolutamente exaustos e em desespero, que foi trazido oxigénio pelos próprios médicos, para estabilização de doentes agudos, às ambulâncias que os transportavam, e ... que se morre, morre  desesperadamente, sem que ninguém possa fazer mais nada !
Não esquecer que este filme e outros parecidos, ocorreram um pouco por todo o Portugal, nestes primeiros dois dias de confinamento, num descaso absoluto, indiferença ou mesmo provocação à tragédia que se abate sobre todos nós e sobre o Mundo em geral !

Mas cá fora, quem teve a "boa estrela" de ainda não ter sido alcançado pelo vírus, acha-se no direito de ignorar as responsabilidades, como pessoa e como cidadão deste país.
Acha-se no direito de esquecer os deveres para consigo e para com os seus semelhantes, os deveres de dignidade e cidadania que lhe são exigíveis, o dever de obediência às regras ( discutíveis eventualmente )  que foram determinadas, que terão parecido assertivas e adequadas  ... sendo passíveis de não consensuais, obviamente ... 
Mais do que nunca deveria haver uma tentativa de unidade, porque o inimigo é único e reconhecido.  Deveria haver um ideal comum que mobilizasse e não desviasse os cidadãos do foco necessário ... já que " em tempo de guerra não se limpam armas", e o objectivo é imperativo e urge alcançá-lo, ou o sofrimento sem tamanho que já nos fustiga impiedosamente, atingirá uma escala incontrolável !

Podemos ter sérias reservas face às medidas assumidas pelos responsáveis, na publicação deste confinamento.
Podemos até achar que está em prática um "meio-confinamento" ou um simulacro de restrições.
Eu mesma, acho que as medidas tomadas, foram-no brandas de mais, e com muitos "buracos de fuga" possíveis.  Receio que elas tenham que ser reajustadas face à ineficácia das mesmas ...

Não gosto de me sentir prisioneira em casa.  Apetece-me ir ver o mar, usufruir do sol, passear livremente, abraçar e beijar todos os que amo, sem medos ou aflições, viajar, em suma ... tenho saudades da vida normal que detinha .  Estou física e psicologicamente extenuada.  Tenho noites visitadas por insónias recorrentes que me impedem um descanso retemperador.  Vivo com fobias, medos, tristeza e desesperança.  Vivo, não.  Sobrevivo no sentido emocional do termo ... Mas ... ainda assim, serei uma felizarda porque estou viva ao dia de hoje e tenho a minha família com saúde.  Tenho pão p'ra pôr na mesa.  Às vezes penso que já não sonho ... outras, que só tenho os sonhos adiados ... e que chego lá !  Às vezes choro, esbravejo ... outras, aninho-me simplesmente nas minhas quatro paredes e tento hibernar p'ra anestesiar a angústia !  Tenho medo de não aguentar e adoecer ... mas sei que não posso abrir o flanco à fragilidade do momento ... 

E por tudo isso, cumpro a minha parte.  Se tiver que tomar um remédio amargo, tomo-o se ele for p'ra me curar.  Tento respeitar o que a sociedade em geral tem o direito de esperar de mim.  Não posso perder a esperança e tenho que buscar forças onde penso já não as ter.  Tenho que me inundar de paciência e coragem, para esperar um novo alvorecer !
Enquanto isso, apanho sol à janela e vou sozinha à mata, onde os pássaros, as plantas e as primeiras flores me ajudam a sentir que estou ainda viva ... e que apesar de tudo, é bom estar por aqui !!! 

Anamar

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

" ENTRE AS GRADES DOS TEMPOS ..."

 



Tenho a sensação de estar a recuar no tempo !

Hoje é o último dia de alguma "liberdade" antes de mergulharmos de novo na escuridão de mais um confinamento quase total do país, imposto pela necessidade de reduzir a qualquer custo, os números astronómicos com que a pandemia nos tem presenteado desde o Natal, com valores absolutamente "insuportáveis", como já lhe chamaram.
Efectivamente, o número diário de novos infectados, consequentemente de novos internamentos e consequentemente ainda, de óbitos contabilizados, é absolutamente aterrador.
Perante esse cenário catastrófico e sem outras alternativas possíveis, havia que achatar as curvas de qualquer forma, e portanto decretar novo estado de emergência, novo confinamento praticamente total do país.
Regressámos portanto aos tempos de Março / Abril de 2020, em que apesar dos pesares, tínhamos então outra condição física e mental para encarar, suportar e ultrapassar este "modus vivendi".
Neste momento é estatístico e sente-se claramente que as pessoas se esboroam em angústia, ansiedade, tristeza, e desânimo.  Apresentam menos capacidade reactiva, menos resposta na sua capacidade de auto-controle, menos motivação no dia a dia ... em suma, menos saúde mental.  Sabe-se que 60% da população apresenta claramente sinais inequívocos de depressão e vive espaldada em ansiolíticos e anti-depressivos.
O cansaço e o desalento estão instalados !

Enquanto escuto o "Bolero de Ravel" na aparelhagem ao meu lado, colada ao aquecimento que não consigo desligar o dia inteiro ( dividido com os meus gatos que como eu, nele "mergulham" ) ... reflicto sobre tudo isto que percebo, percepciono e sinto dentro de mim.
O Natal como já referi em textos anteriores, com a larga liberalização das restrições sociais, revelou-se uma aposta no cavalo errado.  Foi uma opção assumida pelos responsáveis políticos e sanitários que nos está a sair bastante cara em todas as vertentes sociais.  O custo em vidas, na disseminação galopante das correntes de contágio, no desgaste absurdo, injusto  e sobre-humano do pessoal de saúde, e em termos económicos, afundando ainda mais uma economia que não se reerguera em todo este processo.
Sei que todos ansiaríamos por estar junto dos nossos, nessa quadra particularmente tão sensível em termos afectivos e emocionais. Certamente que sim.  
Mas se não o fazer, fosse o preço a pagar para garantir uma segurança profiláctica para a comunidade ... quem poderia contestá-lo ?!
Acho que ninguém, de posse das suas faculdades mentais !
Natais há um por ano ... saúde para o vivermos é que não seria um dado adquirido !
Seria difícil, doloroso, triste ?  Por certo !  Mas sendo necessário esse esforço, fá-lo-íamos.
Do meu ponto de vista, esta seria a mensagem que deveria ter sido veiculada, e as decisões, opostas das tomadas !

Janeiro confirmou o erro da ingenuidade assumida !

E aqui estamos numa inevitável e complicada paragem do país com custos inimagináveis e com um Serviço Nacional de Saúde em ruptura generalizada.  
E ainda  o pico deste tornado não  foi atingido, e ainda o estado caótico instalado não atingiu o seu expoente máximo, que me aterroriza e confrange !

E novas interrogações me coloco.
Desta feita as escolas não encerraram.  E embora se difunda a ideia de se tratar de lugares seguros, e  de as infecções detectadas por essa via não terem sido significativas, entre o deve e o haver, ou seja, entre os danos sanitários possíveis e o prejuízo escolar numa geração já tão afectada no ano escolar anterior ... ( apesar de enorme controvérsia entre opiniões de cientistas, médicos e responsáveis pedagógicos ligados á Educação ) foi escolhida a opção de manter os estabelecimentos de ensino de portas abertas em todos os níveis de ensino.
Lamento dizer, mas parece-me um novo "tiro no pé" esta determinação política.  E isto porque, admitindo que de facto os espaços escolares são seguros no estrito respeito por todos os cuidados profilácticos de protecção, extra-muros o que observo na minha comunidade é um laxismo absoluto no cumprimento desses mesmos cuidados.  
De facto, fora das escolas, os magotes de jovens em absoluta e descuidada convivência, sem máscaras e sem o distanciamento social observado, manifestam ser focos fáceis de futuros surtos infecciosos. 
E esta opinião já a ouvi corroborada por médicos epidemiologistas, infecciologistas e mesmo de outros quadrantes da área da saúde.  
Acresce ainda que a existência de uma mutação no vírus da Sars Cov2, que já grassa em Portugal, mais rápida na transmissão, parece ganhar particular incidência nas faixas etárias mais jovens ...
Estamos  de  novo  a  pôr-nos  a jeito para daqui  a  alguns dias termos  de    novo  recuo  nestas medidas ...
Infelizmente sei que há outros factores a fazerem pender a balança neste sentido, como os custos a suportar junto de famílias em que um dos progenitores teria que assegurar a presença junto de filhos até aos doze anos, não comparecendo por isso, nos locais de trabalho.
Também o facto de nem todos os estudantes disporem dos meios adequados e garantidos em vão pelo Governo para acompanhamento das aulas à distância, nas suas casas, terá sido determinante para a decisão assumida.
Outra medida que não aceito muito bem, embora já tenha ouvido que a mesma se espalda na Constituição, é o facto das Igrejas se manterem abertas, com todos os actos de culto permitidos, enquanto que as salas de espectáculos não o podem.
Afinal, são lugares de lazer que devidamente utilizados poderiam dar algum "refresh" às nossas vidas tão limitadas e saturantes neste momento ...

Bom, este meu texto foi uma espécie de calendário da pandemia, quando o mês de Janeiro já atingiu o seu meio, e quando temos pela frente pelo menos um mês de clausura, jogando a sorte, nossa e de todos os que amamos, por cada vinte e quatro horas de vida ...

Anamar

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

" ESCURIDÃO "

 


Vivo apavorada !
Apavorada como penso que não me senti,  daqui a pouco há um ano, aquando do surgimento da pandemia Covid 19 que ensombrou e assombrou o Mundo em que vivemos.

A chamada "primeira onda", que já sabíamos iria encabeçar novos recrudescimentos mais adiante, e muito embora pouco se conhecesse sobre o que realmente atravessávamos, colocou-nos em estado de choque, mas ainda com todas as defesas psicológicas afiadíssimas, deu-nos endurance para a encarar, lutar e esperar com razoável confiança, tudo o que haveríamos de enfrentar.
Foi o período dos horrores de Wuhan, com um vírus desbragado e que em descontrole avançou de oriente para ocidente, varrendo os continentes, sem respeito ou contenção, foi o período pavoroso de Bérgamo, do Palácio de Cristal em Madrid, de Inglaterra, depois Estados Unidos, Índia, Brasil e por aí fora, num rastilho incendiado que desencadeou sucessivamente frentes de fogo incontroláveis, pelo planeta.
Mas foi também  o tempo da solidariedade profunda, o tempo das partilhas, das entreajudas, o tempo de cumprir à risca, numa emergência de confinamento que encerrou o país e o mundo, todas as regras, com o escrúpulo respeitador do medo.  
Foi o encerramento quase total, na preocupação determinante de protecção ao Serviço Nacional de Saúde, para que não se tivesse que experienciar por cá, vivências e testemunhos semelhantes aos que nos haveriam de chegar de outros países.  Relatos de dor atroz, de cansaço sem tamanho, de exaustão absoluta dos "heróis da linha da frente", relatos de partidas sem despedida, relatos de colunas de camiões transportando as urnas dos mortos, num cortejo fúnebre aterrador, relatos de velhos perdidos nos lares sem compreensão do abandono a que pareciam ter sido votados ... relatos de escolha entre a vida e a morte, deste ou daquele, em hospitais onde os ventiladores não chegavam para todos ... em suma, relatos e experiências que mais pareciam tirados de um filme de terror, do que de realidades diárias violentas, dolorosas, mas objectivas !

Mas tínhamos força, foco, determinação e irredutibilidade no propósito de vencer a peste que nos assolava !  Não tínhamos a mínima noção do que nos esperava. Lembrávamos comparativamente tudo o que conhecíamos, lêramos ou ouvíramos sobre a Pneumónica ou Gripe Espanhola, nos fins da segunda guerra mundial, a qual devastou o planeta.  
Tudo o resto nos era estranho, quase inconcebível.  Por que, uma geração que a vida já tanto pusera à prova ao longo dos tempos, ainda tinha que vir a sofrer mais este revés ?!  Parecia injusto.  Era injusto !

Era o tempo de, quando um amigo "caía", os outros o levantarem, de quando as lágrimas  toldavam o olhar, a mensagem, o telefonema, o vídeo ... a palavra simplesmente, eram veículo de apoio, de incentivo, de ajuda.  Foi o tempo de se cantar à janela em sinal de solidariedade, de fazer cruzadas de velas acesas em união com o mundo que sofria como nós, e tantas outras iniciativas, numa comunhão fantástica com todos ...  Afinal, estávamos no mesmo barco !

E a primeira vaga foi andando dentro das restrições e cuidados exigíveis.  Cansaço a dar sinal, todos com a vida adiada ! 
A restauração a meio gás, as viagens quase todas inexistentes ou mesmo canceladas, as saídas de casa sempre sob cuidados, o distanciamento social devendo ser mantido, espectáculos e outros eventos sob cuidados controlados, todos os sectores sociais e económicos a ressentirem-se abissalmente. 
As famílias, tentando proteger os elementos de risco, sem se encontrarem, sem se abraçarem ... sem se tocarem !  Os funerais com número limitado de acompanhantes. Velórios inexistentes.  Lutos que nunca se farão !...
Nada como dantes, um país amordaçado ... o mundo amordaçado !

E chegámos aos fins de 2020 ... o ano que deveria ter sido banido da linha do tempo.  
Antes ainda, haveria o Natal, acontecimento particularmente sensível, em termos familiares.  Tão fragilizados já estávamos, esperava-nos uma quadra triste, fria e distante.   
A pandemia amainara um pouco, os números haviam descido, quase eram sofríveis.  A esperança de podermos contornar, embora com limites, a situação, afigurava-se plausível.  Com muita responsabilidade, com cuidados sempre presentes e sem facilidades, desconfinou-se relativamente o Natal, para se voltarem a apertar as restrições no fim do ano.
Só que esta abertura determinada pelo Governo, pese embora a cobertura do parecer das entidades sanitárias, mostrou vir a ser um verdadeiro tiro no pé.
Penso que os resultados só podem ter surpreendido os mais incautos, detentores de uma boa-fé sem tamanho ...
Com as restrições aligeiradas, um povo cansado, martirizado, desesperançado em larga medida, e massacrado por tanto sofrimento já vivido, inevitavelmente exorbitou ... e os primeiros dias de Janeiro do novo ano, estão aí a mostrar o descalabro dos resultados.  
Os números de infectados dispararam e fixaram-se agora numa média de dez mil por dia, os óbitos vão subindo acima da centena, os hospitais estão sem capacidade de resposta face ao número crescente diário de internamentos, os cuidados intensivos rebentam, transferem-se doentes de sul para norte, deste hospital para aquele que os possa receber, acrescentam-se camas em espaços inventados e inventam-se hospitais onde haja logística possível, os recursos humanos não dão vazão ... o Serviço Nacional de Saúde parece estoirar ... Afinal são pessoas que o escoram ... O caos está instalado !!!

E perante este cenário dificilmente controlável e mais dificilmente ainda reversível, o país encerra totalmente num novo Estado de Emergência musculado, férreo, intransigente.  Aliás, à semelhança de quase todos os países, por esse mundo fora.
Há que baixar os números, de qualquer forma !  Há que conseguir a qualquer preço um "refresh" no seio das comunidades hospitalares !

Vivo apavorada !
Tenho a clara noção que não basta que eu me proteja.  Tenho a clara noção que não chegam os cuidados já rotineiros que não descuramos.  O vírus está por aí, espreitando qualquer deslize, distracção ou facilitismo ... 
Tenho uma filha num hospital de referência, que diariamente encara o vírus em cada rosto.  Que diariamente o percebe em cada expressão de medo ... o sente em cada interrogação de quem sofre ...
Tenho uma neta de três anos, que convive estreitamente comigo ... e estreitamente com a mãe, obviamente ... Não há familiarmente outra alternativa ...
Vivo apavorada !

Esta segunda ou terceira onda ... já nem sei, apostou em ser um verdadeiro tsunami galgando as nossas vidas, derrubando os nossos sonhos, roubando-nos a estrada, escurecendo-nos a esperança !!!  
Até quando ???
Vivo apavorada !


Anamar