quinta-feira, 3 de julho de 2008

"NO TERRITÓRIO DOS ABANDONADOS"







Estou reganhando o hábito das "velhas" madrugadas,agora que o ano lectivo se aproxima do seu fim.
Considerando que mais umas férias de Verão estão à porta, curiosamente pego hoje num tema que me foi suscitado, quando num consultório médico lia distraidamente uma revista, para queimar aquele insuportável quanto inevitável tempo de espera.
Lia tão distraidamente, que vos juro não saber qual a revista donde no fim da leitura, me senti compelida a arrancar esta página, pelo que ela me tocou, pelo "clique" que ela fez na minha cabeça, pela capacidade com que, no fim da sua leitura eu fui chamada à realidade...e que realidade!!...
Tratava-se de um artigo de opinião, escrito por uma jornalista, de seu nome Dulce Garcia, que não conheço, que felicito e a quem antecipadamente peço as minhas desculpas pela ousadia de a transcrever integralmente...mas foi superior a mim, o rigor da escrita, a clareza da mesma, a sensibilidade que transparece...
Depois , tecerei alguns humildes comentários, que por certo, nada acrescentarão...apenas pela razão que, como verão, aqui está realmente TUDO dito...

"É preciso ter sorte p'ra ser cão. Muita sorte. Faz lembrar a história da família - a gente não a escolhe, e queira Deus que nos saia uma decente na rifa.
O mundo civilizado abre a boca de indignação, quando os energúmenos abandonam o rafeiro para ir de férias para Punta Cana. Talvez não saibam que os bancos dos hospitais são transformados em hotéis para velhos (é assim que eles os tratam) quando as famílias decidem viajar nas vésperas de Natal ou de fim de ano. Toda a gente sabe que não se leva cães nem velhos para ambientes festivos.
Há uma relação curiosa entre os animais e os velhos. São eles que gastam as tardes à volta de estátuas de bronze, em praças raiadas de sol, a atirar milho aos pombos. E coleccionam gatos vadios, que atraem aos parapeitos das janelas com cadáveres de sardinha.
Uns e outros compartilham o território da rejeição e do esquecimento numa sociedade que não pode esperar. É tudo urgente: ganhar bem, ser feliz, ir de férias para o estrangeiro , e, se possível, aparecer pelo menos uma vez na televisão, para inveja dos amigos e vizinhos (quando ainda se tem tempo para os primeiros e se conhece pelo menos um dos segundos).
Há tantas coisas que vão morrer por culpa desta urgência!
A mim não me surpreende que um dono dedicado se transforme num velhaco quando começam a acenar-lhe com dois bilhetes de avião para Cuba. Abandonar um animal não há-de ser assim tão diferente de virar as costas a uma pessoa. E todos os dias há gente deitada fora sem uma explicação. Explicar demora tempo, e quem é que pode dar-se ao luxo de o gastar assim? Talvez o problema dos animais e dos velhos seja o de uma inconfessável inveja: eles parecem ter tempo para tudo. E nós não."


Acho este texto notável, não só por tocar numa "ferida" que nos envergonha a todos e se prende obviamente com o abandono desumano, selvático e sistemático dos animais que connosco dividem espaços, vidas, tristezas e alegrias, por cada época de férias que se avizinha, mas porque triste e lamentavelmente ele estabelece um paralelismo que tão bem conhecemos com o destino dos nossos velhos...

Numa sociedade desumanizada, de solidões persistentes, de indiferenças e insensibilidades extremas, de valores perdidos e de "comunicações" interrompidas entre gerações, institui-se de dia para dia a constituição de mundos como árvores sem raízes, prédios sem alicerces, muros sem escoras, barcos sem âncoras...
Num território que é de facto o da rejeição, seres sem capacidade reivindicativa, seres que "empecilham", estorvam... parecem partilhar os mesmos silêncios, a mesma indiferença, o mesmo abandono...porque, o mesmo incómodo!!...

Que será feito de netos de avós, que já não aprendem a fazer "picots" em lencinhos, a confeccionar vestidos de bonecas, a tecer as primeiras malhas de "liga e meia", a ouvir as mesmas histórias sem tempos e pressas nos bancos de jardim?!
Que será feito de gerações que não têm tempo para conhecer a charrua, o arado, a grade...ou ouvir contar à lareira, o que era "varejar" a azeitona, "mondar" a seara, malhar na eira, pisar a uva?!
Como será não ter sequer ideia do que era ir descalço p'ra escola que ficava "lá p'ra trás do sol posto" levando uma "bucha" p'ra merenda... como era o tempo em que uma sardinha tinha que ser dividida, ou descobrir que o avô aprendeu a juntar por si, as letras do jornal lá da aldeia e que o fazia quando era uma candeia que lhe "alumiava" o papel?!
E não conhecer as canções cantadas ao Menino Jesus, ou as Janeiras, de porta em porta, para se "ganharem" alvíssaras e guloseimas apetecíveis?!
Como será e quanto vai "custar" aos nossos filhos, aos filhos dos nossos filhos, a este mundo "robotizado" e sem "fios de afecto" visíveis, este "descartar" da riqueza ancestral, numa sociedade descaracterizada, trucidante e em que os relógios parecem precisar galopar quarenta e oito em cada vinte e quatro horas na vida das pessoas??!!...


Anamar





2 comentários:

Unknown disse...

Se juntar-mos a segunda senhora ao segundo cão deste Post corresponde a algumas fotos que visualizo em algumas avenidas (que já foram) de Lisboa, ou alguns locais de grande afluencia de pessoas com alguns recantos arquitetónicos que lhes servem de refúgio. Há uma grande diferença entre o "mendigo" que deambula nas zonas de circulação apressada de pessoas e bens, e o mendigo que muitas vezes não se afasta muito da zona onde viveu durante muito tempo ou tem as suas mais importantes recordações.
Estes só saem do seu "perimetro" pela calada da noite ou realmente desesperados por uma moeda. E garante-vos que é muito, muito opressivo para alguém com alguma dignidade. Basta parar e olhar. Passado 10 minutos compreende-se as diferenças. Solidariedades destes e daqueles é tudo cantigas, não passa de formas legais de esconder a miséria. Porque mostrá-la e apontar já será subversão.
_Os cravos já murcharam, e os anteriores já estão velhos_.
Desculpem a "foice em seara alheia",num post anterior Caricaturas Humanas" é fácil comentar: são caricaturas, qualquer lugar-comum é aplicável.
Boa Noite, bom sono se for o caso.

anamar disse...

Pois é Filipe
Não só a carência material objectiva torna alguém potencialmente "abandonado"...
A carência afectiva, o olhar, o calor humano...ou melhor a falta deles, são algozes da solidão e do abandono...
Estruturas sociais de apoio e solidariedade, há muitas...nos papéis...e não passam de "histórias cor de rosa" p'ra quem ainda acredite no Pai Natal...
É o país, é a sociedade, é o Mundo que temos...é a "desumanização" do comodismo da ignorância!
Bem haja por ter comentado
Anamar