quarta-feira, 2 de julho de 2008

"O VIAJANTE VOLTA JÁ..."








"O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já."

in José Saramago, "Viagem a Portugal"


Deparei-me com este texto do "nosso" Saramago, que em tudo se enquadra no mote dos meus posts, no âmbito de um tema que me agrada particularmente..."a viagem"...a viagem de cada um de nós, todos os dias.

E estranhamente, ou talvez não, teve ele o condão de criar alguma "instabilidade"ou subversão, ao nível das minhas convicções...teve ele o condão de perturbar o meu espírito...

Percebo Saramago, entendo claramente o que ele me diz e de alguma forma concordo em absoluto com o teor das suas afirmações...Afinal, um fim deverá ser sempre um recomeço, os olhos que "então" viram já não são seguramente os que ora verão, a pessoa que nós fomos já o não somos mais, o viajante já se renovou.
E é talvez desafiador que analisemos a acuidade do nosso "olhar" hoje, face aos lugares, às cores, aos sons, aos cheiros já experimentados, às emoções já sentidas, porque certamente o que vamos encontrar já não conhecemos... aquilo com que tropeçaremos já será outro empedrado, outra luz coada, outra nuvem no firmamento...até porque, diz o saber do povo, "a mesma água não corre duas vezes debaixo da mesma ponte"...

Por vezes pecamos...pecamos mesmo...Eu sou recorrente nesse pecado capital...procurar descortinar entre aquele casario, aquele "brouhaha"das ruas, a cor daquele portal, o som daquele campanário pela tardinha...ou simplesmente o sabor daquele copo tomado a desoras...semelhanças, aproximações, "reencontros" de novo marcados com aqueles sítios, com os afectos e amores que então os povoaram, se calhar, com a pessoa que eu fui e não sou mais...

E de repente percebo, que talvez tenha no máximo conseguido começar uma "viagem nova" e nunca reeditar aquela em que, enganada (porque enganando-me intencionalmente), se calhar, objectivamente eu verdadeiramente procurava...

É verdade que Saramago não nos diz que devemos vivenciar o mesmo... mais, para ele é desejável que tudo seja "sentido" duma forma renovada, quiçá renovadora e enriquecedora para o viajeiro...eu, é que, numa perspectiva "karmicamente" saudosista, já me encontro de lágrima ao cantinho do olho, ainda a viagem não se esgotou...talvez porque honestamente, em vez de buscar uma viagem nova, eu simplesmente procuro um "rewind" da já saboreada...

Anamar

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