quinta-feira, 23 de agosto de 2012

" O PRIMEIRO PASSO "

 

Mónica estava sentada no banco improvisado, no alto da arriba, sobranceiro ao mar.
Dali via o céu, via o agitar constante das ondas, via o areal, algumas aves planando na brisa, contra um céu laranja-salmonado, divino ... e via o sol a descer, a descer devagarzinho, rumo ao ocaso.

Via, mas não via ...

Mónica sentia-se inerte, morta, anestesiada.  Os seus olhos olhavam apenas, não mais ;  perdiam-se longe, e com eles arrastavam o seu pensamento.
O olhar, por assim dizer, opacizara-se, e o sangue, poderia afiançar, interrompera o percurso.
A única sensação que tinha bem nítida, era um aperto de profundo mau estar no peito, lá no lugar onde garentem estar o coração, que se estendia à garganta e a fazia sentir com um nó, que lhe dificultava a respiração !
Aliás, a Mónica, naquele momento, faltava o ar e faltava o chão.
De repente, haviam-lho tirado, como a um tapete de debaixo dos pés.
As mãos também lhas haviam soltado, largando-a num equilíbrio instável de vida.
Parecia estar numa travessia sobre um abismo, procurando tão somente sobreviver ... alcançar a outra margem, atingir um qualquer lugar seguro !

De repente, as coisas à sua volta pareciam desenquadradas,  retiradas de contexto,  como fotografias a que tivessem tirado as molduras.
Pareciam sem sentido, sem lógica, sem razão ... pareciam desarticuladas, como que arrancadas dos lugares certos, e misturadas "contra-natura", como peças de um puzzle, que depois de armado, caíra ao chão ...
Dir-se-ia que alguém tinha andado a divertir-se, a baralhar todas as pedras de um dominó já jogado ...

Esta catalepsia que a parara no tempo e no espaçp, cheirava à solidão e ao abandono de uma antecâmara de morte, porque afinal há muitas formas de se matar e de se morrer ...
À sua frente tinha o tal caos, entre o que aconteceu e o que virá a acontecer, em que não se entendia, e onde não se sabia mexer.
À sua frente tinha o antes e o depois, tinha a bonança e a tempestade, tinha a luz e a escuridão, e pronto, estava tonta no rodopio alucinado da sua cabeça, como se tivesse sido jogada no rápido de um rio, ou derrubada pela rebentação sucessiva de mar forte ... como se os miolos se guerreassem e a fizessem sentir perdidamente ébria !...

Mónica estava numa estrada sem direcção, sem sinais, sem mapa ... sem GPS ... Tanto lhe fazia ir adiante ou recuar ; tanto lhe fazia procurar caminho, ou deixar-se petrificar ali  mesmo, para todo o sempre ;  a indiferença, uma indiferença total a tudo, mantinha-a ausente.

Havia feito um interregno de vida ... sentia ...
E o pior é que não encontrava forças, nem para se debater, nem para se rebelar, nem para se indignar, nem tão pouco para chorar ...  Estava seca por dentro !...

Cada caminhada começa com um passo, cada castelo começa com uma pedra ...
Mónica sabia-o.  E sabia também que hoje era o primeiro passo, de uma caminhada para a qual estava sem força  e  sem ânimo ...

Não entendia por que estava naquele trilho, não percebia por que chegara àquela encruzilhada, àquele caminho labiríntico e escuro, como as veredas nas matas, que deixamos de reconhecer depois de as percorrer, tão parecidas se tornam !...

Havia luz, muita luz no início da marcha, que ela lembrava-se bem !
Era uma estrada, estreita é verdade, de terra batida como são as estradas no meio do campo, tinha pedras como todas têm também, mas ficava no topo de uma ravina, com a vegetação rasteira bem florida a ladeá-la, com os pinhais de pinheiro manso marítimo, em fundo, algumas mimosas douradas de aroma inebriante, com muito sol, céu sempre azul, com brisa fresca no rosto, desalinhando-lhe os cabelos, como gostava.
E mar, muito mar cá em baixo, no seu vai-vém, no arrendado imaculado da espuma com que se desfazia nos rochedos, com as aves que sempre pertencem ao mar, ali por cima, em voos dormentes, sem pressas, como quem se extasia, tal como ela, com o mundo cá por baixo !...

Mónica  fora  forjada em  terras sem mar,  mas  também sem horizontes ;  terras de grandes planícies a perder de vista, terras de solidão, abandono e silêncios.
Ela própria tinha esse mesmo espírito de solidão, de isolamento e de silêncio !
Cultivava o ensimesmamento, a introversão, o intimismo.
Não falava muito de si.  Preferia sentir apenas, e "conversava" consigo mesma, todos os minutos dos dias e das noites também.

Contudo a sua alma e o seu coração eram rebeldes, soltos, saltavam as cercas, rompiam as correntes, e Mónica tornava-se mulher de grandes espaços, de espaços sem limites, sem horizontes, sem "sentidos proibidos", sem muros ...
Ela achava que era uma espécie de compensação que não se explica, a completar o seu "Eu", como pessoa.

E por tudo isso, Mónica morreria em encruzilhadas, em caminhos labirínticos e escuros, em percursos delimitados e sem saída ... em estradas sem direcção ...

E por tudo isso, buscava o mar por companhia, a amplidão dos espaços largos, o céu por aconchego, os campos para berço.
A liberdade sentida, aliás como tudo o que sempre sentia na vida, era por excesso, era por arrebatamento, era em "TODO" ... tinha que a embriagar, para valer ...
Era a resposta do seu ser ao confinamento, ao pequeno, ao curto ...   Nunca podia ser por metade !...

E por tudo isso se sentara  naquele banco  improvisado,  no alto daquela arriba, sobranceiro ao mar, naquele pôr-de-sol em céu laranja-salmonado ...

Percebia que naquele momento, tinha que dar outra vez na sua vida, um primeiro passo, antes que anoitecesse, o mar adormecesse, e as luas e as estrelas subissem no céu ...

... porque ela sabia bem que cada caminhada começa sempre com um primeiro passo ... cada castelo, com uma primeira pedra !!!...



Anamar

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

" QUANDO A NOITE É COMPANHIA "


A minha noite terminou às quatro.
Às cinco ainda eu rebolava na cama, na remota esperança de conciliar o sono, que mostrava claramente ter-se ausentado em definitivo.

Na luz coada do meu quarto, aquela que passa pelas frinchas das persianas que há muito optei por sempre deixar abertas, mantive-me quieta, atenta, olhando e sentindo a noite que passava ...

Aprendi a amar a noite, a saber escutá-la, perscrutá-la, sentir o seu pulsar.
A noite tem os seus sons, tem a sua paz e o seu silêncio audível, que se vai desvanecendo à medida que a madrugada sobe e o dia se aproxima.
Não há dúvida que a noite tem uma magia, a magia do aparente "adormecimento de vida", que apura todas as sensações, todas as emoções, aclara o discernimento e o espírito.
Na madrugada potenciam-se todas as formas de sentir, de pensar, de reflectir.  Fica tudo mais claro, mais objectivo, mais real, mais verdadeiro.

E depois há a solidão da noite ... uma solidão compartilhada com muita outra gente, que não sabemos, mas sentimos.
Gente que perambula pela casa, gente que lê, gente que ouve música, gente que vê televisão, gente que chora ... gente que procura nas letras o encontro consigo mesmo !

 E paira uma quietude quase religiosa, que não queremos desrespeitar ... paira o silêncio recolhido dos claustros das catedrais, que é silêncio, mas é som, é cor, é luz, é vida própria, sacralizada, que sabemos que não podemos perturbar, sequer tocar, violar ... porque estragamos !
E por isso fica assim este mistério silencioso, gostoso, de interioridade, de intimismo, de encontro ...
Fica esta frescura de corpo e de alma, este desnudar do nosso "eu", como se a noite fosse um espelho límpido e claro, onde toda a genuinidade, toda a real dimensão do ser humano, se reflectisse com nitidez, sem mentira, e onde não cabe nenhum artificialismo, nenhum "faz de conta", nenhum "estar" e "ser" convencionado.
A noite é nudez total, é verdade absoluta ...  Somos nós, confrontados connosco mesmos.

A resistência do ser humano, embora limitada, tem uma dimensão surpreendente !
Sempre pensamos que não suportamos isto ou aquilo, que isto ou aquilo é que definitivamente não superaremos, e acabamos ultrapassando, mesmo o inultrapassável !
Acho que não é mais que um mecanismo inato de sobrevivência.
Acho que é uma defesa, desencadeada à revelia do nosso consciente.
Todos afinal estamos artilhados com "armas" desconhecidas, as quais, de uma forma natural ou forçada, somos obrigados a esgrimir.

Viver em cada dia, é um brutal desafio que apela à inteligência, à sagacidade, à determinação, à capacidade lutadora e ao esforço disciplinado, que formos capazes de imprimir às nossas vivências e desempenhos.
O desejo ou a necessidade de superação deve prevalecer, a esperança tem que ser "regada" para que floresça, o acreditar deve ser "trabalhado", para não sossobrarmos.
E depois, são as regras primárias de mera sobrevivência, automatizadas, instituídas, comuns ao reino animal, que afloram exactamente para isso, para que se ultrapassem as sucessivas metas, para que se pulem obstáculos, para que simplesmente se sobreviva na "selva" !!!

Este deverá ser o perfil do Homem, que dizem, ocupa o topo da pirâmide de todas as espécies ...

E com isto, são mais de seis da manhã.  Havia programado o despertador para as seis e meia, porque vou passar o meu dia na praia, para sair deste quarto, desta casa, desta terra, e carregar baterias junto ao mar !

Adoro chegar à praia quando está absolutamente vazia, porque aí, é a minha pequenez confrontada com a imensidão da Natureza ;  adoro sentir-me, como já aqui disse, "dona da praia", no sentido de me miscigenar, de me fundir, de mergulhar no mundo à minha volta !
Adoro respirar a brisa fresca que sempre corre a essa hora ;  adoro pisar rijo, na areia molhada da maré da noite ;  adoro ouvir o marulhar das ondas na rebentação, o grasnido estridente das gaivotas no areal, e o seu bater de asas, quando debandam e enchem o céu !

É quando sinto, que é uma benção, de facto, ter acordado mais um dia ( ainda que às quatro ), é quando me sinto criança outra vez, é quando me sinto uma resistente ou uma sobrevivente, apesar dos pesares ... é quando dou graças à VIDA, exactamente por isso ... por estar viva !!!...

Anamar 

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

SIMPLESMENTE ..."O AMOR" !



"Entre o que aconteceu e o que acontecerá, existe um caos.
Vive-se de memórias : de querer lembrá-las ou de querer esquecê-las...
Quando começam a faltar as palavras, alguma coisa morreu dentro de nós.
Tu procuras o último amor, porque andaste toda a vida a coleccionar pedaços de amor ... Mas na verdade, tu procuras é o primeiro amor e não o último !..."

             in " A casa das portas vermelhas " - Jorge Marques

Este excerto pertence a um livro que alguém me ofereceu, não inocentemente, tenho a certeza.  Uma oferta com a intencionalidade de uma mensagem nas entrelinhas.
A gente sempre percebe isso !
Aliás ao oferecerem-mo foi-me dito . " Tem muito a ver contigo, tem muito a ver connosco !..."

Na verdade estas palavras poderiam ter sido escritas por mim ...  Eu entendo-.as, eu pressinto-as, eu vivo-as .
De facto eu estou e estarei sempre no meio do remoinho do caos, no meio do olho do furacão , no vórtice da loucura.
Eu sou um ser de turbulência, em constante ser e não ser, em constante querer lembrar e esquecer, na busca de uma verdade que eu sei que existe, mas não sei onde.
Sou um ser de inquietação, em permanente busca, em permanente procura, e por isso me falta o tempo.
A jornada é longa, tão longa que nem lhe adivinho o fim, e receio não viver até lá !
Sou um ser de insatisfação ; preciso renovar o meu ar p'ra que não sufoque, preciso que o meu barco navegue por oceanos que não terminem, preciso encontrar a estrela polar que falta à minha noite, preciso que o horizonte não fique lá ao fundo ... aliás preciso que não haja sequer horizonte !...

"Viver de memórias ..."  triste isso, não??!!
Mas certamente concreto, real ;  uma verdade tão absoluta, que só os loucos pensam nela.
As pessoas normais recusam sabê-la, recusam desencavá-la do fundo das almas, porque todos, todos sabemos que ela encerra a maior e mais incontestável certeza do ser humano.
Mas sempre temos medo de a olhar de frente !

Apenas há dias em que assim como hoje, acordamos com o Mundo virado ao contrário ; e ainda na vigília do último sono, naquela fase em que se está e não está deste lado, já percebemos que não temos capacidade para o "alinhar" ...
Se bem que eu não sei o que é alinhar o Mundo ... Pelo menos alinhar o "Meu" mundo .  E é então que consciencializamos o "caos" entre o antes e o depois, e a incapacidade de viver nesse caos.
E é então que já acordamos a chorar, e a droga é que não pararemos de o fazer por todo o dia, e só talvez o negrume de uma nova madrugada consiga abater este aperto cá dentro, esta vontade libertadora de fechar as   portas  e partir ... partir rumo ao desconhecido ... partir, simplesmente ... se calhar apenas partir de "nós" ...

Eu  também procuro o último amor, o primeiro amor, o verdadeiro amor, a reunião de todos os amores possíveis ...
Pedaços de amor espalhados a esmo, dariam tanto jeito que se amalgamassem e criassem "AQUELE" amor.
Mas "AQUELE" amor é exactamente a expressão do não existir, e por isso é que o ser humano caminha, caminha sempre, até à exaustão, porque lá no fundo acredita mesmo, que numa volta de caminho ele está lá, ele aguarda ser descoberto ... acredita que na rebentação de uma qualquer maré, ele se espraiará aos seus pés ...

E se o descobrisse, seria um amor de muitos rostos, com muitos olhos, muitos corações, muitos lábios, muitas mãos, muitas palavras, muitas partilhas e cumplicidades, mas muito mais sussurros e juras ...
Era um amor com todas as loucuras do Mundo, com todos os desejos insaciáveis do Mundo, com sonhos sonhados e não sonhados, e todas as alegrias e também com todas as dores ...
Era um amor que por ser só inventado, reunia todas as utopias permitidas dos corações, todas as fantasias das mentes, todos os desvarios dos corpos ...
Era um amor que queimava porque era fogo e luz ao mesmo tempo, era chama e braseiro ateado, era um valer, podendo não valer, só porque o quisémos muito, o plantámos e germinou dentro de nós, dando as flores das braçadas colhidas pelos campos da Vida.
Era um amor-música, era um amor-templo, era um amor-ninho, um amor-âncora, um amor-amarra de cais ou fateixa de navio ... com a incoerência do não existir, acreditando-se que existe !...

E depois então, como primeiro / último amor, como verdade / mentira, como o tudo e o nada, vai valer a pena não o esquecer, mas recordá-lo sempre, porque a sua imensidão é a de uma onda alterosa sem controle ou dique que a contenha, é a de uma fogueira avassaladora que nada detém, é a de uma torrente que só estanca quando começarem a faltar-nos as palavras para a descrever ...

... porque aí sim ... "alguma coisa terá começado a morrer dentro de nós " !!!...


Anamar

domingo, 19 de agosto de 2012

" POEMA DESNECESSÁRIO "

 


A colónia de gaivotas à minha frente ... dezenas e dezenas, e mais as dezenas das suas imagens, devolvidas pelo espelho de água retido na areia, da maré da noite.

Um areal absoluta e completamente liso, de areia molhada, de um extremo ao outro da praia, virgem de marcas que não as das pegadas das próprias gaivotas imóveis, num repouso de quem parece querer prolongar a noite, ou tão simplesmente reunir energia, para o dia que ora começa.

Eu ... dona da praia !
Sabem o que é ser dona de uma praia?  Sabem o que é este silêncio, embalado apenas pelo quebrar das ondas ainda baixas, na areia?  Ninguém mais, apenas a brisa, mas essa não faz barulho !

O  sol assoma agora por detrás da falésia, manso, claro, doce, prenhe da luz da manhã, que é infinitamente mais branca e luminosa do que a luz com que nos ilumina dia afora.

 Este texto que aqui deixo é um poema desnecessário, é uma ode dispensável, à Vida, que já descrevi mil vezes, e que mil vezes é diferente, e que mil vezes por isso é incompleto, imperfeito, insatisfatório ...
Nem o maior poeta, nem o maior pintor, nem o maior fotógrafo, alguma vez traduziu ou traduzirá simplesmente ISTO !...

E "isto"  é o tudo que aqui respiro, vejo, oiço, cheiro, sinto, penso, sonho, sofro ... e "isto", é o espanto que a mão do Homem jamais alterará, vida após vida, vontade após vontade, crer após crer !
De facto, a Natureza ele jamais manipulará ;  esta perfeição e este equilíbrio, nenhum artista conseguiria compor !...

Não se escrevem poemas a quem os não lê, pela simples razão de que não têm destinatário.
A minha sina parece ser esta ... escrever palavras deixadas soltas, pontas de nós desatados ... pétalas largadas em vento que as leve, acordes musicais para ouvidos que não vibram com eles, frases de sentido desconhecido e incompreensível, emoções que não chegam a lado nenhum, porque ninguém as sente, palavras tão desnecessárias, que ninguém daria pela sua falta se elas não fossem escritas !...

E por isso, este poema só é necessário a mim própria, porque só eu o sinto correr nas veias, para cima e para baixo !!!...


Anamar

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

" SE EU MORRESSE AMANHÃ..."

 


Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que o céu estaria tão azul quanto hoje, por cima deste mar batido, que se desmancha em espuma na areia.

Os penedos da falésia, como equilibristas de arame sem rede, continuariam a ver as marés a subir e a descer todos os dias, de todos os anos, e haveria muitos Invernos e muitos Verões, para que o vento de tempestade os açoitasse, ou a brisa mansa os acariciasse ... ouvindo-lhes histórias de vidas ...

As gaivotas também poisariam no areal como malmequeres brancos a salpicar a areia plana, inviolada de pegadas ainda ...

O sol, estranhamente continuaria quente, a escaldar os corpos, excepto o meu que estaria gelado e indiferente.
Mania do Mundo seguir em frente,  e atirar-nos à cara a insignificância do nosso existir !...

As pessoas transformar-me-iam em alguém bem louvável de recordar ... algumas horas, de alguns dias, talvez de escassos meses ... porque aquela mesa de café ficaria vazia de mim, e porque todos se tornam "heróis" na vida, só porque tiveram a sorte de morrer ...
Horas, dias, meses ... nacos mais ou menos generosos com que o Homem "fatia" a eternidade.
A eternidade é a estrada de sentido único, que nem rotundas tem.
Se as tivesse, sempre dava para rodopiar, rodopiar e "empalear" a caminhada.
Mas não!
A eternidade está lá ao fundo, e sempre espera por todos ...

É certo que aquela camisa continuaria dependurada no estendal onde ficara, mas também quem me mandou lavá-la na véspera??!!...

Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que dos "meus", haveria quem soluçasse à luz do sol, mas também quem só soluçasse, na solidão mais recôndita de um quarto.
E também haveria quem quisesse, na hora, tomar a minha "boleia" ... que eu sei !

Os homens da minha vida, os meus amores, os meus afectos, espalhados pelo Mundo em cada pedaço que por lá fui perdendo, nem sequer saberiam se eu existia ainda, ou não !
O que se dá, dá-se com o coração, com o corpo e com a a alma, e não carece de retribuição ...

Havia um sítio, sim, onde eu ficaria para sempre e onde sempre me podiam encontrar ... Este mar imenso, que também ele copia a eternidade ... começa, mas não finda nunca !
Lá, naquele verde, azul, turquesa, cinzento, ou na mescla de todos os tons, conforme os olhos que o vejam, eu estarei, juro !
Darei guarida a todos os seres que me quiserem ;
Virei ao areal, zangada ou mansa, embalaria as gaivotas, as andorinhas do mar, os corvos marinhos, as fragatas, as garças da maré baixa ...
Mas também as conchas, as algas e os corais, e todos, mas todos mesmo, me poderiam escutar ... na melopeia embaladora de um búzio.
Bastaria pô-lo ao ouvido e saber ouvir ... não apenas escutar !...
Nele reconheceriam a minha história, sussurrada baixinho ...

Mas do alto das arribas, onde os rochedos se equilibram em malabarismos espantosos, também me poderiam ver ...  Basta que saibam olhar e que conheçam o código da linguagem do coração !
Aos nasceres e aos pôres-de-sol, lá estaria ... morta, homenageando a VIDA !

E nas noites de lua cheia, quando a poalha prateada acende o mar, e as sereias entoam cânticos de chamamento, os meus cabelos serão algas largadas na areia, por cada onda que vai e que volta ... e ao largo, os pescadores saber-me-iam, porque também eles são filhos do mar !!...

Se eu morresse amanhã, só queria que me colocassem nas mãos, o saco das letras, aquelas todas com que construo os meus castelos de sonhos, com que invento as minhas histórias de ninar, com que confesso os meus desejos mais ardentes que não realizei, e ficaram, juntos com a camisa, pendurados no estendal !!!...

Anamar

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

" AS CHUVAS DE AGOSTO "


As chuvas de Verão são amenidades trazidas dos céus, como bençãos, nas intempéries da Vida.

São como os amores também de Verão ... fortes, curtas e desafiadoras ...

Vêm mas não ficam.   Acariciam mas não acarinham.   Pacificam mas não instalam a paz.
São parêntesis que se abrem na canícula entorpecente ;  são oásis vislumbrados, que não passam de miragens ;  são as reticências no meio duma frase, para o leitor interpretar ;  são aquela palavra que se solta no ar, e que só os atentos captam ...

Convidam-nos a dançar nos seus acordes ;  aliciam-nos a que encharquemos o corpo e a alma, em danças alucinadas, inconsequentes e expurgadoras.
Atraem-nos  e  penetram-nos  sem  remédio, como  numa  noite  de  amor ...
Molham-nos, como o suor que escorre dos corpos na loucura indistinta de dois seres ...

As chuvas de Verão têm a doçura de um embalo, ou o afago duma mão que nos desalinha os cabelos ...
São quentes, embriagantes, como o trago de um licor que nos desce no peito, mas que nos faz festas na alma ...
São chuvas que esquecemos no momento seguinte, e só os charcos deixados na calçada, nos garantem que elas vieram mesmo.
São águas que nos despem e nos descalçam, para que chapinhemos numa dança de roda enlouquecida, que começa de súbito, e termina de súbito também ...

São chuvas fora de época, como há amores que também o são !
E esses, são sugados até às entranhas, são vividos sôfregamente até ao último fôlego, têm o sabor picante do desajustado ... têm o desafio do "provocador", têm o privilégio de espicaçar os sentidos, têm a clandestinidade do secreto !...

São mergulhos incontroláveis, do alto da falésia para as águas que parecem mansas, mas em que sempre acreditamos, que pelo caminho ganhamos asas, e continuamos a voar pelos céus.
São amores inteiros, porque já não há peias para eles ... e afinal a seguir ao Verão, o Outono chega rápido, e urge vivê-los e esgotá-los, antes que, como os riachos que rompem caminho de pedra em pedra, sequem ... sequem, porque na verdade ainda é Verão !...

Deixam na alma a paz, e no corpo o cansaço saboroso do caminheiro, o sossobrar do viajante após a jornada ... são o poisar da gaivota no areal, para o repouso merecido.
Têm na boca o "travo" agridoce do queijo misturado com compota de cereja, da pitada de sal numa sobremesa, do salgado no rebordo de um copo de "Margarita" ...

São tudo e são nada ;
São frescos e escaldam ;
São efémeros mas eternos ;
Invadem-nos o coração, mas inundam-nos de lágrimas ;
São verdades e mentiras ;
São apostas em jogo viciado !...

Tal qual as desejadas e odiadas chuvas de Agosto ... docemente enganadoras ... são a penumbra inesquecível de uma lenda, que atravessa as nossas Vidas !...

Anamar

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

" A VIDA "


A vida no seu percurso imparável !...

Dias maus, dias difíceis, dias de mágoas, dias em que as trevas da madrugada nunca abrem para um sol radioso ... Fica sempre noite !
E depois há aqueles, em que percebemos que afinal vale a pena estarmos cá, vale a pena dançarmos na chuva, para conhecermos o prazer do azul do céu.

E hoje é um desses, em que sinto que estar viva, só por si, já é uma bênção, e ser afortunada como sou, uma bênção maior ainda.

O ser humano, eu em particular, sempre lamenta isto ou aquilo ;  centra-se excessivamente em si mesmo, e ainda que tudo fosse perfeito à sua volta, sempre se queixaria de alguma coisa.
De facto, somos seres eminentemente imperfeitos e com insatisfação instalada, que acredito, estaremos em provação permanente, para consciencializarmos e distinguirmos o certo do errado, valorizarmos o tanto que detemos, discernirmos os reais valores que devem nortear os nossos destinos, e sermos gratos pela oportunidade que nos é concedida ... simplesmente de EXISTIR ...

E existir, é de facto alguma coisa de uma dimensão e de uma grandiosidade tal, com que somos bafejados, da qual frequentemente nos distraímos, numa postura errática, injusta e ingrata.

Existir é podermos acordar, extasiarmo-nos com as pequenas coisas que nos rodeiam ;  podermos sentir no coração emoções e sentimentos que não se descrevem ;  ter a liberdade de talhar diariamente os nossos caminhos, livremente, numa aprendizagem crescente no sentido de um aperfeiçoamento, de um enriquecimento, da compreensão, tolerância, disponibilidade, capacidade de perdão e compaixão, de uma melhoria integral, como  "GENTE" aqui largada, com todas as responsabilidades de o sermos.

E ser "GENTE", só por si, já é um privilégio que nunca nos perguntamos se merecemos ...

Ser  GENTE  é  sentir  a  emoção  de  partilhar  um nascer e  um  pôr-do-sol ;
é poder aspirar o aroma das flores ;  aquelas que despontam até no meio das pedras, e aquelas com que o Homem embeleza os seus espaços ;
é deixar-se encharcar pelas chuvadas, para depois perceber que o calor do astro-rei está lá,  para o envolver de novo ;
é tomar uma pomba nas mãos, e vê-la seguir pelo espaço, adquirida a liberdade ;
é extasiar-se pelo planar sonolento do condor, sobre os rochedos do Grand Canyon ;
é admirar a liberdade despudorada da gaivota, de asas estendidas por sobre a aragem ;
é escutar o som dos pássaros na alvorada, e das águas nos rochedos, em dias de mar zangado, ou o seu sussurrar em areias mansas ...
é olhar com ternura e respeito as mãos descarnadas de um velho, que tem Vida para contar ;
é sentir o milagre estampado no rosto de uma criança de riso fácil, atrás daquela borboleta "fujona" ;

Ser GENTE é esbanjar amor, é ter amigos, amores, amantes, gente nossa, e também os que nos sorriem sem sequer nos conhecerem ...
ser GENTE é também chorar, e muito, é cair para nos levantarmos a seguir, sabendo que se não o conseguirmos, haverá sempre uma mão lá estendida, para nos erguer ...
é acreditar que não somos capazes, e que não vale a pena ... mas no instante seguinte, percebermos que a Vida é "demasiado", para se desperdiçar !...

Ser GENTE, sobretudo, é aprender a viver !...

O meu "clã"  hoje aniversaria em dobro.
Mãe e filho mais velho, nascidos no mesmo dia, com vinte e oito anos de diferença !

Sempre me emociono a pensar como foi, o que é ... como será ?!   Os tais desígnios insondáveis, que são os caminhos do Homem ...

E o facto de ver aquela menininha loira, de caracóis, franzina, de "porcelana", com ar de boneca de brincar, a  beirar os  quarenta  anos, parece-me uma  história  mal contada, uma "treta" do correr desenfreado do tempo !...
Como pode ser, ter passado tanto, desde que ao porem-ma pela primeira vez nos braços, a olhei ... e foi luz, muita luz, claridade e sol, que lhe vi no rosto ??!!...
"Cláudia" o nome que lhe escolhi na hora ;  sem erro, sem dúvida, sem indecisão, porque "Cláudia" me transmite até hoje, isso mesmo ... um caminho de luz, um caminho em direcção ao sol e por isso, um caminho de paz !...

O António nasceu vinte e oito anos depois ;  o rosto, bem próximo do da mãe ;
o ar sereno e compenetrado de quase um pré-adolescente, lembra-me constantemente tudo aquilo que escrevi  neste  post :

A vida é "demasiado", para se desperdiçar, e todos os dias vale a pena ser vivida !!!...

Anamar 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

" QUANDO ... "



Deixamos de sofrer, quando deixamos de esperar ...
Deixamos de sofrer, quando deixamos de sonhar ...
Deixamos de sofrer, quando deixamos de acreditar ...
Deixamos de sofrer, quando paramos de lutar, e desistimos ...
... quando as lágrimas salgadas e as doces se misturam, e já não sabemos para onde correm umas, e para onde correm outras, e por que correm umas, e por que correm outras ...
... quando a noite se confunde com o dia dentro de nós, e não há por que acordar em cada madrugada, simplesmente porque parece não haver dia para viver !
E que nem sequer há madrugada !...

É então que uma letargia doce se instala, e nos adormece, nos insensibiliza, nos distancia ...
Uma espécie de analgésico de Vida !

É quando parece que nunca vivemos coisas que vivemos ;  é quando pensamos que nunca amámos quem amámos, porque simplesmente a distância de um passo, se transformou numa vida ...
É quando passamos a ter uma imagem já só vaga, daquele sol a pôr-se, daquela mata de flores rasteiras, do som daquelas vozes doces nos ouvidos ( que se impessoalizaram ), do calor daquelas mãos e daqueles corpos protectores e envolventes ... é quando juramos que nunca escutámos aquela música, e ouvi-la já não nos faz chorar nem nos desperta ódio ...

E é quando perguntamos se estaremos mesmo loucos, ou se tudo não terá acontecido  na verdade, apenas numa  outra vida  lá para trás.
Porque a luz desligou-se na sala, o filme parou na tela ( e não se pode fazer reprise ), a cena suspendeu-se antes de ter terminado o último acto, e ficámos meros espectadores do nada e do vazio !...

"Esperar", desespera porque angustia, porque aperta o coração, porque nos anseia ...
Esperar sem esperança, claro.  Aliás devia ser obrigatório "esperar-se" sempre com esperança ;  as duas palavras miscigenam-se, e uma devia sempre implicar a outra.
Porque a felicidade quase sempre é maior enquanto se espera, do que enquanto se realiza alguma coisa ...
Esse preâmbulo, esse prefácio, nessa página em branco que é o tempo doce da espera com esperança, cabe tudo o que lá quisermos escrever, abrange tudo o que o nosso coração e a mente, construírem ;
a antecipação do viver, é quase sempre melhor que o viver ... e dura seguramente mais !...

"Sonhar" defrauda-nos, porque os sonhos só se concretizam nos contos de fadas, com que nos adormeceram em pequeninos.
E fadas, duendes e criaturas simpáticas, só povoam mesmo essas histórias ... e é algo que a adultícia, ardilosamente sempre destrói !...

"Acreditar" é um masoquismo idiota com que o ser humano se engana diariamente, para fazer de conta que são a cores, as realidades que tão somente são cinzentas ( a tal cor que eu odeio, porque não se decide se pende mais para o lado do preto, se do branco ...  E eu odeio indecisões !... )

Mas depois, há a droga das coisas que inventámos de guardar, como o Pequeno Polegar (abandonado na floresta com os irmãos ), deixou as pedrinhas do rio, que lhes marcaria o caminho de volta ...
Como se os caminhos tivessem volta !!...

Há tudo aquilo que quisémos perpetuar para a nossa posteridade.
Precisamos ter a certeza, de que naquela tarde se trocaram aquelas palavras no guardanapo de papel, frente a uma mesa de café já frio, por esquecimento de o beber, por tanta coisa mais importante nos ter preenchido a mente ...
Precisamos ter a certeza que as mãos que se acariciaram, os olhares cúmplices e prometedores que se trocaram, os beijos que nos afloraram, incontroláveis, aos lábios ... não foram sonhos que inventámos ...

Depois, há os incontáveis raminhos de flores secas, apanhadas nas moitas e nas encostas despenteadas, das falésias de mar ao fundo ... e amor nos rochedos ...

Há os botões de rosa em profusão e religiosamente guardados.
Já não têm aroma, e nunca passaram de botões ...  Mas para nós, foram um roseiral secreto, de que só nós desvendámos os caminhos ...

E afinal, o guardado passa a ser intocável !...
Mexer-lhe, queima as mãos, olhá-lo cega os olhos, acariciá-lo, mata-nos por dentro ...
Porque tudo foi gravado a ferro e fogo, e o que se grava a ferro e fogo, normalmente é perene ... caminha para a Eternidade !... 
E a Eternidade é um sacrário, é um campo inviolável, improfanável !

E por tudo isto, quando paramos de "esperar", de "sonhar", de "acreditar" ... e pouco a pouco de lembrar ... paramos também de lutar, e desistimos ...

Desistimos de teimar ler aquele livro ao deitar, para adormecer.
Simplesmente porque as suas páginas vão ficando amarelecidas, e mesmo as letras vão sumindo, esmaecendo ... desaparecendo nos tempos ... e o discurso já não faz sentido !
Então aí, talvez tenhamos deixado de sofrer !!!...

 Anamar

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

" TARDE DEMAIS "



Uma tarde de praia absolutamente espectacular.  Sol quente, uma brisa acariciadora, que torna o calor do sol suportável.  Mar de maré vazia desde manhã, quando cheguei, e só há pouco começou a encher.

Estou "encarrapitada"  no alto de um dos rochedos que por aqui se espreguiçam, não vá a maré pregar-me alguma partida, e desta tribuna onde estou, tenho o privilégio de ter o mar aos meus pés, as ondas ponteadas aqui e ali, por surfistas ( já não está mais ninguém no banho ) e uma estrada de luz que se acende e torna este mar de azuis e verdes, absolutamente iluminado em prata !

São pouco mais de seis da tarde, o sol ainda vai alto, mas decidi que provavelmente vou ficar neste camarote, até que ele beije o horizonte lá ao fundo.
Afinal hoje ninguém me espera em casa ;  e entre anoitecer-me no meio de quatro paredes, ou por aqui ... não tenho dúvida !

As vantagens ou as desvantagens de viver só !...

Há pouco, falando ao telefone com um amigo, carpia-lhe as minhas mágoas ... sim, porque o ser humano sempre encontra espantosamente mágoas para carpir, ou não fosse por natureza um ser de insatisfação e incompletude.
Ele só me perguntou : " Diz-me uma coisa : tens saúde, não tens ?  Tens meios de subsistência, não tens ?  Então és simplesmente uma privilegiada !..."

As palavras bateram forte e feio, como se costuma dizer, tipo "pedrada no charco" !
Claro que eu sei exactamente isso, e sempre o refiro neste espaço, numa espécie de contrição continuada.
Claro que eu sei ser um privilégio estar aqui, sem horas, no alto dum penedo, absorvendo a brisa salgada da tarde, deixando-me envolver pelo calor ainda intenso do sol, ouvindo o vai-vém das ondas ... deixando-me embalar por elas ... e apenas viver !!

Quando reflicto sobre estas coisas considero-me, obviamente uma mal-agradecida, não reconhecida, injusta para com a Vida, e quase um crime, ainda assim achar que possa ter mágoas ...

Apenas, entre muitos, eu tenho um grave defeito : sempre faço depender de terceiros, de factores exógenos, de altos e baixos da existência, a minha felicidade, de tal forma que nunca a vivencio em plenitude.
Devia sim, procurá-la dentro de mim, deixá-la crescer no meu coração e na minha mente, independentemente e ao invés, dela sempre e só se concretizar de fora para dentro, na dependência de outras pessoas.
E as pessoas são gente, com todas as imperfeições, condicionalismos, indisponibilidades, incapacidades, impotências ...
E defraudam-me muitas vezes.  Certamente eu também as defraudarei em muitas outras.

Só que talvez elas tenham uma inteligência de Vida, uma maior capacidade de defesa, um pragmatismo e uma sabedoria na gestão dos sentimentos, que eu se calhar não vou aprender nunca !

É como se eu só respirasse até ao fundo, se só  respirassem comigo ;
é como se aquela paisagem à minha frente, só ficasse prodigamente colorida, e só fizesse sentido, se outros olhos a admirassem comigo ;
como se aquela música só ganhasse expressão, se representasse algo para mim e para alguém que eu ame ... como se a brisa que corre, só devesse desalinhar-me o cabelo, quando aninhada em braços de afecto ...

Parece que desvalorizo os momentos, as coisas, os cheiros, os sons, a luz e a cor, "de per si" ... parece que eu não sou suficiente para lhes dar significância, parece que eu sou "pouco" demais para ser "alguém" autónomo, um "ser", uma "individualidade" ... por o ser tão incompletamente ...

Isto é um desvio personalístico, é um profundo desequilíbrio emocional, é um erro crasso de "programação" do coração e da alma, ou tão só uma tremenda e irresolúvel carência afectiva ... mas ... não consigo alterar nada disto !...

E "criminosamente" vou deixando passar por mim, muito de VIDA ;
vou vivendo "de menos" muitas emoções, muitos momentos, enfim, vou desperdiçando muita "lotaria premiada" que me vai fugindo pelas mãos ... e um dia, tenho a certeza, vou acordar tarde demais !!!...

Anamar

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

" JÁ ... "



Uma leve neblina perpassa, como se fosse um nevoeiro com pés, por cima das rochas semeadas no areal.
O mar desassoreou espantosamente em três dias, este local.
O meu nicho preferido mudou de "design".  Custei a encontrá-lo, e ao encontrá-lo, verifiquei como o mar, nas sucessivas marés, deixou a descoberto mais rochedos, e como roubou pelo menos mais de meio metro de  areia em altura, a esta praia.
A força incontrolável e sem freio do vai-vem das ondas, na modelagem do que foi, já não é, mas poderá voltar a ser.

Na falésia, desenhados a régua e esquadro, os sucessivos estratos que a erosão definiu na costa, ao longo dos séculos, por certo.
Estratos sobrepostos como páginas de um livro escrito, com uma longa história, uma história imemorial, transversal a destinos e gerações ...

A memória das pedras ...  O que contariam, se pudessem contar, ao comum dos mortais, sobre o percurso dos Homens, sobre a memória do Tempo, sobre os caminhos das Vidas??!!
Sim,  há  homens  que  as sabem  ler,  lhes  conhecem  a  linguagem ...

Eu, só imagino a perenidade do que vai ficando, enquanto os Homens partem !
A memória das pedras mede-se em Tempo, mas o Homem só consegue medir a sua existência em dias ... e dias e Tempo, não são a mesma coisa ...

Aqui por cima uma gaivota voa, batendo as asas.  A brisa que corre não dá para simplesmente planar, como tanto gostam.
Ver o Mundo do céu, ver a pequenez do que se estende aqui por baixo, transportando liberdade nas asas ... coisa que os Homens não têm !
Voar, só o meu pensamento o faz.
Ele é livre ... o pensamento sempre é livre, o Homem não, embora tenha pavor de perder o que imagina ser liberdade ... Uma coisa que afinal não detém ! ...  Paradoxal !...

Uma vegetação escassa e rasteira trepa pelas escarpas, e floresce ... há tufos de flores amarelas espalhadas a esmo, adocicando a aridez da falésia.
A vida esbanja-se em todo o lado, e sempre é pródiga.  Existe, mesmo quando se esconde dos olhos, mas não dos sentidos.

Estou num período da minha vida ( que se iniciou na solidão de Samaná, e mercê de muitos factores, se prolonga ), de muita maturação, reflexão lúcida, definição das minhas verdades.
Neste momento penso que com alguma clareza, consigo discernir com mais equilíbrio, e com a paz que tento instalar no coração, o que quero e o que não quero da minha vida.
Consigo olhá-la olhos nos olhos, e perceber mas sobretudo aceitar, que ela não é mais do que um fluxo de água, que corre da nascente à foz ;  segue, já a mais de dois terços do percurso, eventualmente.
É imparável, não desviará o trilho que lhe está destinado, encontra e continuará a encontrar a inevitabilidade dos escolhos no caminho, e usando a sabedoria da água, terá que os contornar, porque nada nem ninguém tem força que vença os rochedos e as penedias ...

Como toda a gente que cruzamos, penso, já ri, já chorei, já fui amada e não amei, já amei e não me amaram, já escolhi e não me escolheram e o inverso também ...
Já tive sonhos, sacos de sonhos, que se transformaram em pequenas sacolas, com o transcorrer do tempo.
Já semeei esperança e esperança, no coração ... esperando que florisse, e algumas vezes a sementeira foi abençoada.
Já acreditei com as forças todas que tinha e não tinha ... e depois, às vezes, percebi que me havia enganado muito.
Já me senti perdida em dúvidas e na cerração dos nevoeiros, que faziam crer nada valer a pena ...
Já deitei muitas vezes a "toalha ao chão", porque achei que era o fim do torneio, mas depois vi que afinal me enganara, e que ainda conseguia pôr-me de novo em pé.
Outras vezes sossobrei, e entrei em túneis sombrios e compridos que pareciam não ter fim ; escuros, húmidos e gelados, e neles estive tempos, se calhar tempos demais, até que conseguisse distinguir uma pequena luz norteadora.
Já tive que reunir forças, que fui buscar a baús que nem sabia que existiam na minha alma.
Já cerrei os dentes e mordi os lábios, para conseguir avançar simplesmente mais um passo.
Já  deixei  de  enxergar caminhos, porque as lágrimas me turvavam a vista, ou apenas ... porque não os havia ...
Já tive ao meu lado quem mas enxugasse do rosto, quem me desse um ombro, um cólo ou uns braços de repouso, quando o cansaço me matava de desespero.
Já topei com encruzilhadas, muitas encruzilhadas, sem que tivesse bússola, norte, sem estrelas no céu que me guiassem ... e tive que escolher caminhos ...
Enfim, já vivi muito, muito ... outras vezes só vegetei adormecida, entorpecida por mágoas, cansaços, desilusões ... outras vezes nem sequer vivi ...

Em suma ... fui simplesmente normal, creio, como o são as pessoas comuns;  e talvez não queira ser nunca, mais que isso !

Afinal, somos todos matéria, chegámos da mesma forma, tivémos vivências iguais ( tenho a certeza ), experimentámos todos, todas as coisa que existiam por aqui,  soubémos melhor ou pior gerir e conduzir este nosso "bote", tentando abrigá-lo das tempestades ...

Vamos estando por cá, e amanhã partiremos, simplesmente com uma única bagagem :  as páginas que conseguimos escrever do nosso "livro", e aquilo que não esquecemos, de tudo quanto aprendemos nesta nossa Viagem !!!...

Anamar

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

" RÊVERIES "...

"É preciso amor para poder pulsar

  É preciso paz para poder sorrir

  É preciso chuva para florir ..."

As rosas de Sta. Teresinha daquele muro perdido na serra, estão ainda desfolhadas no meu carro.
Com as suas pétalas tentam deixar no espaço, o perfume particular e inebriante que carregam.
Estão no meu carro e estão à cabeceira da minha cama, para que as madrugadas possam florir nos meus sonhos.

Mas as madrugadas não dão mais flores,  porque a paz foi embora, e o sorriso, com ela ...
Acabaram secando, como secaram todas as rosas vermelhas, que o "Homem das Rosas" ofereceu à Maribel, no portão, onde, infatigável, ela o esperou o tempo que foi preciso ...
Secaram como secam os corações sem amor, como estiolam as pessoas sem esperança ...

E os sonhos também não são mais sonhos, porque agora mascararam-se de pesadelos, e eu tive que tornar-me amiga das personagens que os povoam. 
E essas personagens são grotescas, são escarninhas, são sádicas.
Vêm das profundezas do meu Inferno ( porque toda a gente tem um Inferno lá no porão das almas ).
Vêm e teimam em assombrar-me os sonos, e sempre teimam em carregar-me com elas ...

Breve, o sol vai esconder-se atrás daquele castelo de algodão ;  breve, os pôres-de-sol de fogo, e os azuis que se confundem entre céu e mar, vão partir, partir junto com as gaivotas e as andorinhas do mar.
Breve será Inverno outra vez !...

Vão restar os penedos e as rochas, perenes, fiéis e imutáveis.

E eu tenho que renascer para entender o carroussel que é a minha Vida, porque nesta, não estou "formatada" para o conseguir.
Nesta, pouco entendo, do que se calhar também não se explica, do que se calhar não tem entendimento mesmo !... 

"Circunda-te de rosas ... O mais é nada ! " ...diz o Mestre.

Só que as rosas sempre trazem espinhos, e as rosas murcham, mas os espinhos permanecem.
Os espinhos sempre ficam para a eternidade.
As rosas perfumam-nos as mãos e o coração ...  Apenas, o seu aroma é efémero, e a sua lembrança vai ficando ténue, distante, longínqua ... efémera também ...

E haverá um dia, que ao contemplá-las nos perguntamos de que roseira, de que muro, de que serra, em que dia, de que ano, de que Vida, elas vieram até nós.
Nos perguntamos que mãos no-las colheram, e porquê ?
E estava sol, ou chovia dentro de nós, nesse dia ?
E   que  palavras  nos  disseram quando as depositaram no nosso regaço ?...
E  com  que  voz ?  Também com a do coração, a do amor, a do carinho ??

Será que lembramos os sonhos que então sonhávamos, os desejos ardentes que nos possuíam, o amor que pulsava em dois corações que batiam a compasso ??
Será que lembramos o tamanho da fogueira que nos ardia no peito ??
Será que lembramos como era despertar por cada manhã e ter sol a inundar-nos a alma ??

Será que lembramos ???

"O mais é nada" !!!...

A injustiça implacável do transcurso do tempo !...
A fuga das memórias, que endiabradas sempre teimam em partir para outros destinos ...
O buraco deixado pela insensibilidade incontornável, instalada nas existências, que as esbate nas curvas dos caminhos, arrastadas pelos golpes de vento ...

Sem bebedeira de Vida, sem embriaguês de sentires, sem excesso de plenitude na alma ... a mim, o que sobra, de facto, é  NADA ...  nem  as  rosas  de   Sta. Teresinha  à   minha  cabeceira,  nas  noites  vazias !!!...

Fernando Pessoa

Navega, descobre tesouros,
mas não os tires do fundo do mar,
o lugar deles é lá.
Admira a Lua,
sonha com ela,
mas não queiras trazê-la para Terra.
Goza a luz do Sol,
deixa-te acariciar por ele.
O calor é para todos.
Sonha com as estrelas,
apenas sonha,
elas só podem brilhar no céu.
Não tentes deter o vento,
ele precisa correr por toda a parte,
ele tem pressa de chegar sabe-se lá onde.
As lágrimas?
Não as seques,
elas precisam correr na minha, na tua, em todas as faces.
O sorriso!
Esse deves segurar,
não o deixes ir embora, agarra-o!
Quem amas?
Guarda dentro de um porta jóias, tranca, perde a chave!
Quem amas é a maior jóia que possuis, a mais valiosa.
Não importa se a estação do ano muda,
se o século vira, conserva a vontade de viver,
não se chega a parte alguma sem ela.
Abre todas as janelas que encontrares e as portas também.
Persegue o sonho, mas não o deixes viver sozinho.
Alimenta a tua alma com amor, cura as tuas feridas com carinho.
Descobre-te todos os dias,
deixa-te levar pelas tuas vontades,
mas não enlouqueças por elas.
Procura!
Procura sempre o fim de uma história,
seja ela qual for.
Dá um sorriso àqueles que esqueceram como se faz isso.
Olha para o lado, há alguém que precisa de ti.
Abastece o teu coração de fé, não a percas nunca.
Mergulha de cabeça nos teus desejos e satisfá-los.
Agoniza de dor por um amigo,
só sairás dessa agonia se conseguires tirá-lo também.
Procura os teus caminhos, mas não magoes ninguém nessa procura.
Arrepende-te, volta atrás,
pede perdão!
Não te acostumes com o que não te faz feliz,
revolta-te quando julgares necessário.
Enche o teu coração de esperança, mas não deixes que ele se afogue nela.
Se achares que precisas de voltar atrás, volta!
Se perceberes que precisas seguir, segue!
Se estiver tudo errado, começa novamente.
Se estiver tudo certo, continua.
Se sentires saudades, mata-as.
Se perderes um amor, não te percas!
Se o achares, segura-o!
Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala.
“O mais é nada”.


Anamar

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

" O SORTILÉGIO DA LUA CHEIA "

 

No céu escuro da cidade, onde nunca temos o privilégio de ver estrelas, uma imensa  lua cheia anda "plantada" bem frente à minha janela ...

O feitiço e o fascínio que me povoa olhando-a, não sei descrever ...
Penso  sempre que todos os olhos do Mundo, ao elevarem-se, se encontram nela, como numa triangulação enigmática.
Achei-a recortada nos coqueiros de Santa Lucia, de Bali, de Negril, sobre o céu livre das Maldivas, ou nos palmeirais de Samaná.

A lua cheia é um  "atentado" aos sentimentos.  A sua sensualidade desafia os mais insensíveis, tenho a certeza.
Na minha casa acende-me dia na noite, e banha o meu corpo nu, quando o sono cessa, a cama ganha picos, o oxigénio no meu quarto escasseia, e as lágrimas sempre saem das cavernas que tenho no peito e escorrem, feito caudal de rio, da nascente até à foz ...

Os lobos homenageiam-na ... os amantes também ...

A mim, envolve-me, acaricia-me, fala-me ao ouvido histórias mentirosas que só as luas sabem contar.
Fala-me de futuros, de vidas, de sonhos, de esperanças, de creres ... daquelas coisas sem fundamento, que fazemos de conta acreditar, e nos alimentam o existir.

Existir ... pois, existir mesmo, e não fingir apenas ...

E o que fazemos quase todos, todos os dias, por cada dia das nossas vidas ?
Criamos metas, etapas, objectivos.  Delineamos, programamos, sonhamos afinal.
Há fasquias que superamos, sobretudo na idade em que há fôlego, há vontade, há força ... sobretudo ingenuidade !
Naquela fase em que acreditamos que de certeza temos desígnios a atingir, missões a desempenhar, obrigações a cumprir.
Há responsabilidades profissionais diárias, há exigências familiares diárias, há os filhos, há os pais, há a luta para que o futuro seja mais garantido, seja mais tranquilo.
Sonha-se ver os filhos a crescer, a ter sucesso, a independentizarem-se, também eles alicerçando vidas e caminhos, desenhando percursos seguros, de qualidade ...
Sonha-se com aquele espaço de campo ou mar, onde seria tão gratificante se tivéssemos uma casa ...
Se a tivermos, sonha-se como alindá-la, como dar-lhe a nossa "marca", como personalizá-la ao nosso jeito.
Florimo-la, plantamos e vemos desabrochar as nossas flores preferidas ...  Afinal é suposto ali irmos ser felizes !...

Depois vêm os netos, e a saga continua ... apenas nuns episódios mais à frente.  Mas tudo mais ou menos igual, apenas com responsabilidades minoradas ... preocupações, não !

Mas vamos sempre ficando mais órfãos ...

Começa a época das perdas.  A profissão cessa ( o tão alvitrado alívio chega ... mas parece já não ser tão alívio quanto isso.  Afinal ocupava-nos a mente, exigia-nos presença, não nos facilitava a "entrega" à reflexão, e à consciencialização da verdade da Vida ) .
Os pais partem, e com eles vão levando pedaços de nós ;  por vezes os percursos dos descendentes não são exactamente como sonhámos, e talvez a tranquilidade não nos encha o coração ;
os nossos próprios sonhos, as "construções" dos nossos quereres, muitas vezes também desmoronam ... partimos para outras realidades.
A casa das flores, do mar e dos pássaros, ficou na dobra da esquina, ficou na página anterior, que já virámos...
Experienciamos uma nova forma de  solidão, embora já a conhecêssemos antes.  Só que esta, será aquela com que provavelmente teremos que conviver até ao fim.
Convém que nos habituemos a ela.  Convém que a adoptemos como o nosso  "segundo eu", a sombra que caminha ao nosso lado sem que a vejamos, pelas estradas vazias da existência.

E cada dia, o espelho, o real e o que temos dentro de nós, nos mostra um ser a degradar-se, física e psicologicamente.
Mais uma marca no rosto, nas mãos, nas pernas ... no coração ...
Ouve-se menos, vê-se menos, comunica-se menos, embora estoicamente queiramos fazer de conta que não.
Entende-se  pior, a  memória  atraiçoa-nos, e até  nos  rimos com isso ( fazer o quê ? ), a concentração esvai-se, a vontade, queiramos ou não, fragiliza-se ( há coisas que já não justificam a "mão de obra" que requerem ... deixam de valer a pena, ou de terem força para nos fazer mover ... ) ; começamos a ter que ajudar a perna para entrar nas calças, começamos a necessitar de um suporte de apoio para trepar a um banco, o equilíbrio deixa muito a desejar, o riso escasseia e o semblante carrega-se ... a alma conturba-se.

As desilusões, a dureza e as frustrações que fomos acumulando, ainda conseguem surpreender-nos, espantosamente ... porque o Homem é por essência, um ser de esperança e fé.
Só que o sarar das feridas que nos conferem, é cada vez mais resistente, e as suas cicatrizes, nem com plásticas na alma se dissimulariam !...

E depois ficamos isto que eu estou hoje ...
Rica deste realismo doído, macabro, violento, mas seguramente real, sem panaceias ou profilaxias que lhe valham, sem maquilhagem que o componha, sem adição de açúcar que o adoce ...
Frente a frente com a verdade nua e crua, que quem tiver coragem percebe que é exactamente isso, a VERDADE despida da ilusão, do artificialismo ou do fazer de conta com que nos embalamos quase sempre, intencionalmente ou por defesa ( como canto de sereia em mar perdido ), para que suportemos ( para mim é o termo ), este tempo que temos, que nos dispensaram, de que dispomos ...  Até quando ??...

E haverá luas cheias depois de luas cheias, e vou continuar a vê-las da minha janela, sonhando que nelas os meus olhos se encontram com outros, perdidos lá para trás ...
Longe, longe, vão ficando os coqueirais de Santa Lucia, de Bali, de Samaná, de Negril ... as areias brancas sem horizontes das Maldivas, e o seu mar de prata, contra céus onde sempre se vêem estrelas ...

Mas  através dos  séculos, tenho  a  certeza, os  lobos vão continuar a homenageá-las ... e os amantes também !!!...

Anamar

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

" O MAR "


Vim até ao mar ...

Eu sou filha do mar.  Não deste que tenho à minha frente, mas do mar da minha terra, que é feito de ondas de trigo, onduladas pelo vento, com papoilas a salpicá-lo aqui e ali .

Eu sou uma mulher de sorte.  Tenho três mares na minha Vida :  este, verde, turquesa e cinzento, que lá longe se confunde com um céu que se esbate em todos os tons de azul ;  este, que tece uma renda de espuma na areia ...
Tenho o mar de ouro do meu Alentejo tão distante, mas tão perto no coração, e também tenho o bruxulear das chamas numa lareira, que crepitam num marulhar entendível.
Esse, é o meu "mar de Inverno" ...
A água, a terra e o fogo ... dentro de mim !...

Há coisas que parecem mas não são, e coisas que não parecem e afinal eram ...
A Vida não é muito mais.  É feita de equívocos silenciosos, feita de esperança, que é como estes castelos de areia que se constroem na rebentação.
É feita de sonhos, que como farrapos de nuvens, a brisa transporta para longe, e com elas a paz também vai, porque a paz sempre acompanha o sonho !
A paz ... esta que eu estou sôfrega de encontrar ... Que respiro entre dois penedos neste areal, feitos para mim, à minha medida, onde construo o meu nicho de silêncio, local do meu encontro comigo mesma, por cada dia que desço , e em que me sinto por momentos, dona do Mundo.

A minha música, lânguida e doce, magoada e embaladora ;  um livro que me leva para o outro lado do Mundo, na fantasia das letras ;  a aragem que perpassa e nem sequer gaivotas transporta, e a profundidade intimista, incessante, deste vai-vem de maré baixa ...

Eu já não lembrava a força do mar !
Eu já não lembrava a rudeza com que nos pega e nos mostra quem "manda".
Eu já não lembrava o frio de uma água que abençoa e aplaca o calor deste sol, que nos acaricia doutra forma.
Falésias à esquerda, à direita ... penhascos orgulhosos e desafiadores, cantos de amor e cumplicidades entre rochedos ...

Outra Vida para além desta, injustamente para além desta.
A real.  Aquela que se faz entre quatro paredes de um quarto, que é o Mundo, e não mais.  Quatro paredes que sufocam, porque teimam em se aproximarem umas das outras, em madrugadas de insónias; 
e estreitando, estreitam-me e cortam-me o respirar, e sufocam-me a garganta e espremem-me o coração !...

É então, no escuro da noite, no breu que cerra sempre tudo à minha volta, que todos os fantasmas me visitam, me aterram, trazem nas costas o saco com toda a amargura da Vida, e teimam em ficar,  mesmo que em lágrimas, lhes suplique que partam ... que partam e me esqueçam ... esqueçam que eu ainda existo!

Maré que vai, maré que vem ... sal que expurga, purifica, limpa até à alma ...
Como eu queria que ele me pudesse apagar a mente e o coração !!!...

O meu signo é de água, o meu ascendente é de água ... os horizontes vastos e ilimitados ... razão de vida.
Não tenho baias ou barreiras ;  vedações ou muros não me confrontam, a minha alma não aceita redes ou malhas, grilhetas ou grades, quartos com paredes que se estreitam ...
A minha alma é devassa, é pecadora, é desafiadora, todos os dias.  Os meus limites não têm limites.  Aceitam apenas os que o coração lhes dita ... de resto são livres, são soltos, como barco sem âncora ou fateixa, em mar alto !

A onda vem, a onda vai ...  A onda que vai já não vem.  O mar que traz, é o mar que leva !...

Tal como o amor ...  Quando vai não volta mais, feito onda da maré cheia !
Apenas deixa na areia os búzios, as conchas, as algas, as luas e as sereias que fizeram parte de outras histórias ... que navegaram connosco, por outras costas de mistério !!!


Anamar

terça-feira, 31 de julho de 2012

" PENSAMENTOS À SOLTA "



As pessoas só morrem de verdade, quando as matamos no nosso coração ... Ao contrário, há muitas que já partiram e continuam bem vivas, exactamente por isso ... porque estão dentro de nós.

Ontem falava-vos em perdas.
Às vezes nem sei por que busco determinados temas, ou por que eles vêm ter comigo para que sobre eles reflicta.
Falava-vos a propósito de Julho, que para mim parece ser recorrente tratar-se de um mês de perdas, um mês de mágoas, também de saudade,  também por tudo, de reflexão ( as minhas intermináveis reflexões ), porque cada vez mais acho que na Vida nada acontece de facto, por acaso ou circunstância.

Tem dias em que penso que tudo é mera aleatoriedade, puro jogo, em que se ganha agora, para se perder amanhã, em que pouca coisa parece ter lógica ou faz sentido ...  vai simplesmente ocorrendo.
Mas há acontecimentos, momentos que me "abanam" de tal forma, que, porque me oscilam as bases, me retiram o equilíbrio, me descontrolam o norte, me retiram o chão firme e seguro ...  me obrigam a estacar e a sentir que parecem ser momentos de viragem, parecem ser intencionalmente, momentos em que a "roda livre" em que vamos andando, dia após dia, deverá parar, deverá pausar ...

São momentos em que parece  importante "fechar para balanço", regressar à "concha", recolher à "toca", voltar ao "útero materno "...
Normalmente são momentos de expurgação, de meditação, de crescimento, de reequilíbrio, da tal "aferição" que tantas vezes refiro nos meus escritos.

No dia a dia, o ser humano caminha em "piloto automático", quase na generalidade ;  penso que o posso afirmar sem grande margem de erro.
Uns de uma forma, outros de outra, por esta ou aquela razão ou esquema de vida, cria-se uma espécie de insensibilização às realidades, de que já nem damos conta, e vamos caminhando sempre, porque urge fazê-lo, por sobrevivência, porque os dias se sucedem aos dias, e há que ir acordando em todos eles.

Gera-se um "adormecimento" no ser humano, em que parece realmente que todos, uns atrás dos outros, não somos mais que o hamster na sua roda ensandecida, ou o atleta no tapete rolante.
Fazemos quilómetros de percurso, e não saímos do mesmo ponto ...

É então que inesperada e subitamente muitas vezes, algum desígnio ( não sei qual ), desencadeia um qualquer terramoto, um qualquer acontecimento crucial e determinante, como se alguém se colocasse bem na nossa frente, desligasse a passadeira, ou imobilizasse a roda, e nos dissesse : "Pára !  É hora de tréguas de Vida !..."

E surpreendidos a princípio, porque muitas vezes colhidos de surpresa, começamos então a reduzir o ritmo, a afastar as cortinas do nevoeiro que nos uniformizara o caminho, o qual já não questionávamos, porque nos adaptáramos a ele.
Sentamo-nos então na beira da estrada, na sombra de um pinheiro manso, cuja copa é doce e acolhedora, porque até pela forma que exibe, é uma abóbada celestial ... e com o azul até ao horizonte, com o silêncio a esbanjar-se à nossa volta, com as borboletas e os pássaros a voejar aqui e ali ... tentamos começar a respirar até ao âmago, o oxigénio que escasseava e não tínhamos dado por isso ...
Semi-cerramos os olhos, despertamos os ouvidos, para que o coração comece então a pulsar em alívio e paz.

E choramos, se calhar choramos muito, aliás é desejável que choremos tudo de uma vez, e desesperamo-nos naquela quietude de  beira de estrada ;  se calhar gritamos interrogações bem em voz alta ( porque também ninguém nos ouve ), se calhar revisionamos tudo o que foi e já não é, como foi possível que o fosse e não seja mais, e sempre nos fazemos aquela pergunta, inerente à presunção arrogante do ser humano se sentir realmente importante : " Porquê eu ?  Porquê a mim ?... "

O pinheiro manso não responde, o azul do céu não se compadece, o som do mar não nos apazigua, as borboletas e os pássaros continuam indiferentes, nos seus caminhos a trilhar, as lágrimas acabam secando ... e finalmente estamos nós frente a nós mesmos, como a solidão do soldado no campo de batalha ... meros sobreviventes ... AINDA !!!...

Percebemos então que há sinais, sinais que temos que aprender a interpretar, para os quais teremos que estar despertos ,  percebemos que talvez tenha sido assim, porque simplesmente tinha que ter sido assim ... e que talvez haja uma lógica e uma verdade, subjacentes a isto a que chamam " VIVER " !!!...

Anamar

segunda-feira, 30 de julho de 2012

" A HERANÇA "




Ainda estamos em Julho ... para mim, cada vez mais, um mês muito marcado.

Hoje faz vinte anos que o meu pai partiu, três que o Óscar me deixou ... mês de partidas, e as partidas são sempre demolidoras.
As partidas nunca nos deixam incólumes. O tempo abate-lhes a destruição, mas nunca, nunca as apaga ... sejam que partidas forem.

Todas correspondem a ausências, voluntárias ou não, de seres que fizeram parte integrante das nossas vidas, e se o fizeram, é porque foram importantes para nós e determinantes no nosso percurso.

E se o fizeram e deixaram de o fazer, subtrairam parte de nós, que sempre carregam com eles.
E sem um pedaço, por pequeno que seja, não estaremos nunca mais, inteiros !

Detesto que este meu espaço seja um lugar de correio ou aferição.
O que é facto, é que sendo um canto intimista onde fundamental e inevitavelmente veiculo emoções, estados de alma, sentimentos, acaba por o ser, digamos que à minha revelia.
Isso advém obviamente também, da transparência do que escrevo, do que digo, de como sempre me posiciono, da frontalidade, verdade e pouca inteligência que acabo por usar na exposição que faço da minha pessoa ( imprudentemente, reconheço às vezes ), defendendo-me pouco, e talvez perdendo, por isso.

O povo diz que "o mal e o bem, à cara vem" ...
A escrita é uma forma aproximada de "dar a cara", e como tal, é fácil que a minha, seja um barómetro do muito que se passa dentro de mim.
Às vezes arrependo-me e reflicto sobre isso ... outras, "borrifo-me" simplesmente, e "pairo" sobre essa sensação desconfortável, é verdade.
Contudo, escrever só por escrever, sobre temas avulsos, como que "por encomenda", como que "a metro", não é seguramente a "minha praia".
Por essa razão, nunca aceitei nenhum furo jornalístico, em colunas de opinião ou outras, que já me propuseram, ou sequer publiquei o que quer que fosse.
Em boa verdade, as palavras que por aqui largo, são meras folhas largadas ao vento, que exactamente por isso, não têm uma direcção definida, não são obrigadas a ir por aqui ou por ali ;  são livres, não se encaminham para nenhum lado, e destinam-se a ser destruídas e  perdidas no remoinho dessa mesma aragem ...

Tocam aqui e ali ;  farão sorrir alguns desprevenidos ( como aquele golpe de vento que nos levanta a saia, quando menos esperamos ) ; talvez levem alguns a apanhá-las, e curiosos queiram ver o que aquela folhinha que lhes esbarrou nas pernas, ou que poisava na relva ou no banco daquele jardim, continha ...

Não são mais que aquela folha de jornal esmaecida, fora de dia e de mês ... que o "sem abrigo" lê, naquele tempo sem pressa, que é a sua vida ...

Não são mais que aquela revista serôdia, que as pessoas largam junto aos contentores, depois de lida e esmiuçada ...  Pode ser que alguém ainda aproveite ... felizmente as letras não se gastam !...

Todos conhecemos aquela imagem ou frase feita, de "abrir um buraco na areia e falar lá para dentro", como forma de extravasar o que nos "entope", e que ninguém tem obrigação de escutar, aturar, sequer entender ...
E também, poucos teriam tempo para isso, porque hoje já não há tempo para grandes coisas ...
E depois, a areia cobre rapidamente qualquer buraco que nela se escave.  É "volátil", escorregadia, macia, movediça, instável ... e o buraco aberto, rapidamente se encerra, encerrando consigo os desabafos de quem os fez ...
Outras vezes, dar um grito no escuro também resolve o sufoco no coração.
E porquê no escuro??
Porque no escuro, ninguém vê donde vem, para onde vai ...  Perde-se anonimamente pelo "éter", transportando em si, toda a carga que nos perturba ou atormenta ...

Eu, escrevo ...

Às vezes resolve, outras não ;  umas vezes é terapêutico, outras simplesmente profiláctico ... outras, nem uma coisa nem outra ...
Contudo, tenho uma veleidade ou  ambição, devo  confessar, embora nunca venha a saber se se concretizará ...

Uma vez que todos os meus conteúdos coexistem em suporte de papel também, constituindo uma espécie de "colecção" muito pessoal, deixá-los-ei depois de mim, para os meus netos, que talvez possam um dia, quando tiverem idade madura, ter curiosidade em conhecer a avó que tiveram ;
uma avó meio estranha, reconheço, fora dos arquétipos ou padrões tradicionais, meio ensandecida e pouco convencional ;  rebelde sempre, contra-corrente também ...
Sempre no pico da alegria ou no maior fosso de sofrimento, com uma insatisfação permanente de Vida, uma exigência e uma busca imparável de felicidade ;  uma ingenuidade de criança ou uma ânsia adolescente, num corpo e numa mente de mulher madura ...

Digamos que será mesmo a única "herança" que verdadeiramente lhes deixarei, por genuína, "despida", autêntica, sem preço ou valor material ...

Exactamente e só, EU mesma, a nu, como se em cada post estivesse frente a um espelho mágico, que tivesse em todos os momentos, a capacidade de me ler até à alma !!!...

Anamar

sábado, 28 de julho de 2012

" TEMPO "


O tempo sem tempo ...
...  é aquele que passa e parece que não passa, porque não passa nunca !
É feito de dias e noites, e dias que são quase sempre noites.  É sempre um tempo de desespero, de desesperança, de esperar sem ter o quê.
Não é o tempo das Vidas, porque esse, ao contrário, corre tão rápido que nem temos tempo de o agarrar.
É o tempo da morte, porque essa é certa e chega depressa.
Aliás sempre está lá no virar de uma qualquer esquina de que nem nos tínhamos apercebido ...
e há também o tempo, que não dá tempo para viver o que quer que seja.
É enganador, faz-nos acreditar em dias de sol, e no máximo, há dias de arco-íris, porque sempre chove ao mesmo tempo.

O tempo em que rimos é tão curto, que não cabe no tempo sem tempo.  Esse, é aquele em que choramos ... e bolas, choramos quase sempre !...

Aquele que passa, espantosamente é um tempo de esquecimento.  Tem mata-borrão, ou melhor, tem mesmo borracha, e vai esbatendo, esbatendo, até que o que passa, já passou de vez, sempre contra a nossa vontade.
Só nos deixa restinhos, rabiscos, flores secas, pedrinhas que nunca secam, ou então as músicas, que numa vitrola partida, tocam, tocam exaustivamente, sempre as mesmas, como se a vitrola  se tivesse engasgado, ou então sadicamente é para nos magoarem bem, bem até ao fundo ...

O tempo que passa é um tempo sem piedade, que se ri de nós, promete Primaveras e Verões, e depois, quando já estamos quase convencidos, traz-nos Outonos e Invernos, e vai-se tornando no tal tempo sem tempo.
Mas depois é tão safado, que nunca nos deixa ficar os mesmos, por cada minuto do seu precioso existir ...  Não !... 
No minuto seguinte, conseguimos sempre estar mais amargos e doídos que no minuto anterior, e a droga é que os minutos fazem horas e dias e meses e anos ...
E, bom ... depois também já não temos vontade sequer de usar relógio, ou de olhar para as flores que já secaram mais ainda, nem para as pedras que não secaram, mas que estão cobertas do pó que nunca limpámos.

Os ouvidos endureceram de tal forma, que apesar dos decibéis acima do certo, não os alcançam, e a vitrola emudece de vez ...
E olhamos os sítios, os espaços, os objectos, e verificamos que eles já não fazem sentido, e até duvidamos que alguma vez o tivessem feito ...
E é quando começamos a pensar se não estivémos mesmo enlouquecidos, ou se foi o tempo sem tempo que nos deixou assim ...

E o que foi e parecia nunca poder deixar de o ser , deixa mesmo, e damos por nós desvairados, à procura na gaveta da mente, do que a gaveta do coração nos garante que estava lá ...
Lá, onde??!!...
Abanamos a mente, como num "shaker",  bem batida, a ver se o que está em baixo vem para cima e vice-versa, mas não !...
E a certa altura acreditamos que nunca houve gaivotas, nem céus azuis, nem pores-de-sol, nem mimosas em flor, nem mar de carneirinhos ...
Nós é que pensámos, e vimos tudo nun filme em 3D, em que Énya vinha ao nosso encontro pela sala fora, e nos cantava ao ouvido "Only time" !...

Estão a ver ??
Até Énya sabe que "só o tempo" sabe das coisas, e nós somos meros "aprendizes de feiticeiro" ...

E a estrada a percorrer é longa, o caminho muito, muito comprido, pelas matas, pelos mares, pelas florestas, com chuva impiedosa a açoitar-nos.
E vamos indo, mesmo que não pintemos o céu com estrelas, como ela também nos diz ...  e o tempo sem tempo, em caminho paralelo ali bem ao nosso lado !...
Se paramos, de cansaço, ele segue, e custamos a alcançá-lo, porque sempre nos leva a dianteira.
Nós tropeçamos muitas vezes, caímos vezes sem conta, mas ele não se compadece ... segue escorreito, porque não padece de pernas, alma e coração enfraquecidos ... simplesmente porque não os tem.

Até um determinado segundo, de um qualquer dia ( sempre quando ele quer, e porque tudo ocorre num escasso segundo ), em que nos barra a caminhada, nos espeta com um sinal de stop, até mesmo de sentido proibido ou de estrada sem saída, bem na nossa cara ;
e pronto, somos obrigados a estacar, porque dali para a frente não há mais saída ...
É tal qual aquela praia deserta que os meus pés descalços percorriam, percorriam pelo nascer do sol, e que os manglares cortavam lá ao fundo.
Dali para a frente ficava só o meu olhar perdido, que encompridava, encompridava ( a esmiuçar se para lá, ainda haveria tempo ), e o tic-tac que não era de nenhum relógio, mas simplesmente do pica-pau no tronco do coqueiro, que se reclinava para as águas mansas ... a fazer ninho ...

E pronto ...  Hoje estou assim ...

Talvez porque o tempo, o outro, esteja cinzento, chuvoso, dormente, desalentador, e eu pressinta que o tempo sem tempo que caminha ainda no trilho paralelo aqui mesmo ao meu lado, está aqui está a barrar-me a caminhada, e então, sem apelo nem agravo, vou ser obrigada a parar ...

Mas talvez então, eu já esteja tão entorpecida, tão abençoadamente exausta, tão inerte, que estará na altura certa para que o meu tempo deixe de verdade de ser TEMPO !!!...


Anamar

sexta-feira, 27 de julho de 2012

" A VITÓRIA "


   NOTA : Esta foto não é actual


A Vitória esteve comigo quase uma semana, estadia que por tão longa, foi de algum modo, inusitada.
Desta feita, colégios terminados, actividades de férias também, e o drama de muitos pais que ainda trabalham :  onde colocar os filhos?
No caso da minha filha, com três crianças, em que o mais velho tem onze anos e o mais novo, cinco, pior ainda.

Eu relaciono-me melhor com raparigas do que com rapazes, talvez por ter criado apenas filhas ;  como tal, amando os três por igual, sinto-me mais confortável no relacionamento com a miúda, que neste momento tem oito anos.

A Vitória, na sua pouca idade, é uma mulherzinha na postura, nas atitudes, mesmo nas conversas.
É cordata, pelo menos comigo não tem teimosias ou birras ( que talvez ainda fossem previsíveis e aceitáveis para os poucos anos que tem ), colabora se solicitada, conversa e também se entretém sem muitas exigências.
A minha casa é desprovida de grandes entretenimentos para crianças.
Existir, eles existem.  Foram guardados há muitos anos em arcas, estão na arrecadação, e nunca lhes mexi mais, a partir do momento em que deixaram de ter serventia, pela inexistência de crianças em casa ;
assim, existe apenas um armário com livros infantis, da mãe e da tia, lápis de cor, canetas de feltro, papéis para desenhar, claro e obviamente televisão, com aquelas séries intermináveis de que os miúdos se tornam dependentes.
Para além disso, arranjei um programa de cinema fora de casa, com as inevitáveis pipocas ( que compartilhámos a meias até que ambas ficámos "atafulhadas", e nos ríamos já do enjoo que sentíamos ), arranjei uma ida à piscina para uma tarde de brincadeira interminável ( só o frio nos correu de lá ), e também estava prevista a "minha" caminhada, coisa que a Vitória, desportista que é, teria adorado ... mas, deu-me uma famigerada preguiça, e acabei por a não encaixar no nosso "calendário de actividades" ...
Na sua próxima estadia comigo, proponho-me fazê-la !...

A Vitória é uma compincha ,  é desinibida, "enturma-se" facilmente, e interage extremamente bem, quer com crianças, quer com adultos.
O convívio com mais dois irmãos e respectivos amigos, a frequência do colégio, as actividades no Sporting, de todos eles também, e uma preocupação sistemática e atenta que os pais têm de os "despertar" para iniciativas culturais, e eventos interessantes que possam motivá-los, de acordo com as respectivas idades, juntando certamente, como é lógico, àquilo que de genético ela transporta, fazem dela uma criança extrovertida, faladora, obviamente simpática.

Tenho com ela, ou melhor, sinto dentro de mim uma ligação meio inexplicável e imperceptível, de empatia, que talvez não seja abusivo dizer, de "mulher para mulher" ou de "mulher para futura mulher", uma espécie de conivência de sentires, de cumplicidades, que até pode não vir a verificar-se ( porque sem dúvida é prematuro afirmá-lo, e futurologia não faço ), mas que objectivamente percepciono.

Não sendo a mãe, e ocupando portanto na "hierarquia familiar e afectiva", um lugar privilegiado, sinto uma disponibilidade de mente e de coração, mais descomprometida, menos cerceada, que é propiciadora sem dúvida, de uma aproximação bem real ao adulto que vai desabrochando dentro dela.

Percebo perfeitamente agora, como é diferente o estatuto de pais e de avós, e percebo perfeitamente a razão por que na Vida, e de uma forma geral, quase todos sempre estamos indelevelmente marcados por estes ...
O relacionamento é de facto específico, especial, bem diverso do que foi enquanto pais, e é real aquela afirmação meio complacente e humorística, de que o papel dos pais é educar ... o dos avós, "estragar" !...

Claro que este "estragar", refere-se à adição de "melaço" que os "pais com açúcar" ( como alguém com brilhantismo definiu os avós ) conferem a uma ligação, que mercê das circunstâncias inerentes à Vida, é mais liberta, mais descomprometida, mais indulgente, mais tolerante, de maior entrega, menos espartilhada e possuidora da experiência, da sabedoria, da dádiva, do desejo de deixar em boas mãos e passar adiante, tudo o que de bom e mau, a Vida nos ensinou.

É uma relação que beneficia de algo extraordinário, que enquanto pais, logicamente não pudémos deter ... que é Tempo.
Efectivamente, Tempo é o que não faltará aos avós ... Tempo é o que os avós terão de sobra, e o facto de o serem numa fase da Vida em que há "espaço" em demasia, por vezes, nas respectivas Vidas, os netos são também por isso, um factor equilibrante de que ambos, avós e netos, usufruirão !

Bom ... sei que a Vitória, ao que parece, gostou muito da estadia em casa desta avó que começará a conhecer melhor, espero, com todas as suas incoerências, incompletudes, defeitos e virtudes, senso e loucura, com preocupações logicamente pedagógicas e de formação, mas também permissiva e aberta aos pequenos disparates, que não são mais que prevaricações saudáveis ...

E isso, deixou-me profundamente feliz.

Vou tentar cultivar ao meu jeito, esta ponte de afecto entre nós, porque sinto que não estou a enganar-me ao expectar depositar nas suas mãos, a corporização daquele futuro que não tive, daquela Vida que não fui capaz de viver, daquela desejada "vingança" de existência ... em suma ... daquela "VITÓRIA" nos sonhos que eu só sonhei !!!...

Anamar