terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

" A ESCADA ROLANTE "



De repente tudo à sua volta deixou de fazer sentido.
O Mundo desarticulou-se, e como dizia a Hushpuppy do filme que via naquela sala escura, o Universo existe porque as peças se encaixam.  Basta que uma, mesmo pequena, saia do sítio, e tudo se destrói.

Exactamente isso.
Num suspiro, nada em torno de si, ficou reconhecível ...
Havia o dia e a noite, havia o sol, a chuva e o frio que se lhe entranhava nos ossos, era verdade, porém, na tela negra  não era aquele enredo que desfilava.

Todos os fantasmas da sua existência  ficaram endiabrados, e como num ataque de abelhas enfurecidas, desataram a passar, a passar, numa escada rolante de estação de combóios.
Ela subia lentamente, na cadência da escada íngreme, e eles desciam na escada paralela à sua, bem ali ao lado.
Frenéticos a desfilarem, olhavam-na em silêncio, com esgares cínicos e impiedosos, nos rostos.

Sim, porque estes fantasmas tinham rostos.  Rostos parados, como que fixados pelo flash de uma câmara, num momento qualquer, de um qualquer dia, de uma qualquer hora ...
Porquê exactamente aquela, ela não sabia ...
Mas com emoções "congeladas", todos eles, como os rostos dos manequins nas vitrines ...
De facto, eram expressões sem emoções vivas, porque eram rostos de fantasmas e não de gente vivente, mas uns riam com a imagem em pausa, outros tinham doçura no olhar, também em pausa ... Uns choravam convulsivamente, parecendo em contrição ... outros tinham olhos libidinosos e de cobiça espelhada ...
Havia aqueles que ao afastarem-se, lhe deixavam o olhar preso, e seguiam, inevitavelmente seguiam, porque as escadas rolantes são isso mesmo, rolantes ...
Rolantes como a Vida, como o Universo.

Ela  não  conseguia estender os braços para eles, porque também ela, parecia estar imaterializada, petrificada ...
Mas ainda que o pudesse, não conseguiria retê-los, porque eles eram fantasmas e desfilavam, incessantemente ... imparavelmente !...

Cada um contava-lhe pedaços de história.

Engraçado, que alguns vinham iluminados de muito sol e do verde do mar, e irradiavam calor, muito calor.
Já outros, desciam lentamente, envolvidos naquela penumbra de céu cinzento escuro, de tempestade instalada, aqueles céus que fecham e não abrem mais nesse dia.
E fica frio e desconforto ...
Uns eram rostos muito jovens, nos quais os olhos eram mares de baías mansas, e os cabelos, searas douradas no pino do Verão alentejano ... e carregavam nas mãos, as promessas das primeiras cerejas de cada ano ...
Havia os que apenas a olhavam com ar triste e magoado.  Indiferentes, já indiferentes.
Mas gargalhadas cristalinas embora sumidas, ecoavam enquanto desciam ...
Ela sabia porquê !!
Havia também uma corte de fantasmas sem rosto.
Interessante !...  Eram muitos, mas não tinham forma, perfil definido  ... eram vazios por dentro.
Não tinham o coração que se via a pulsar, nos outros.  Não, não tinham nada !
Só tinham olhos, braços, mãos e sexo.
Eram uma espécie de polvos gigantes.  Tinham olhos esbugalhados, e caía-lhes baba verde e pegajosa, do lugar onde deveria existir uma boca de sofreguidão denunciada.
Eram atordoantes esses fantasmas !  Eram perturbadores !
Esticavam os tentáculos informes para ela ... sobre ela !...
Mas ela continuava imóvel, altiva, espectadora apenas, a tentar encaixar todas aquelas peças, para reconstruir um Universo !...

E a escada rolava, e ela subia e eles desciam ...

Com eles desciam histórias bafientas, que teimavam em tornar presentes, halos há muito apagados, como velas em fim de festa.
Traziam filas de esperanças e sonhos enterrados, fazia mais de tempo !!!

E o coração dela sobressaltava-se.

Havia alguns que ela queria, porque queria, reter, ou mesmo recolocá-los no princípio da escada, para que de novo passassem e de novo lhe segredassem os dias de sol, de luas imensas nos céus de breu, os sussurros das noites de amor ... e as gargalhadas felizes também ...

E por isso, no seu rosto que existia e não existia, escorriam lágrimas, porque naquela sala escura, ela também ouvira Hushpuppy dizer que as pessoas só se comunicam por amor, pelo entendimento das batidas dos corações.
Nada mais importa !
E duas coisas ela conseguia perceber, porque não esquecera : as batidas de alguns corações e a saudade que sentia de os ter nas suas mãos, para aquecê-los ...
Estranho como os fantasmas podem experimentar amor e saudade ...
Ela nunca ouvira falar que isso fosse possível !!!...

Aquela escada rolante, estava a aproximá-la do topo.  Faltava já pouco.
Na escada ao seu lado, aqueles esgares de gente, também quase tinham terminado a procissão silenciosa ;  todos se remetiam ao afastamento do Tempo, todos desciam para os lugares donde não deveriam ter saído : a escuridão da ausência e do vazio !

Uma derradeira figura olhava-a intensamente.
Tinha olhos parados, doces e sofridos.  Exalava um perfume salgado a maresia e caruma fresca, como um ser do mar e do monte ...
Era um misto de criança e de velho.  Transportava um apelo na imobilidade indiferente do rosto.
Parecia querer parar ali, mesmo frente a ela, apenas, sem forças, inevitavelmente, deixou-se arrastar pela escada rolante, como todos os outros, ficando mais e mais distante, difuso, enevoado ...

Ela voltou-se para trás, e surpreendentemente soltou-se do seu torpor patético de vídeo em pausa, ganhou vida, ergueu um braço e acenou ... um longo adeus, um derradeiro adeus ...
E ficou a vê-lo afastar-se, como que empurrado por uma maré contra a qual não se luta, por um vento varredor de encostas e penedias, por uma desesperança de Inverno que veio para ficar ... enquanto Enya se ouvia lá longe ... cada vez mais longe ...

As luzes da sala acenderam-se.
Hushpuppy, com o seu narizinho empinado, de menina-mulher e a sua determinação de sofrimento aprendido, também já tinha ido ...
Fazia-se tarde !!!...

Anamar

sábado, 23 de fevereiro de 2013

" UM POUCO DE NADA ..."



Já há alguns dias que não escrevo.  Contudo, preciso fazê-lo.
Já comecei mais do que um post, que deito fora de seguida.
Não tenho assunto, não tenho arrumação de ideias, não tenho fluidez de escrita ...

Toda eu estou caótica, cansativamente caótica.  Toda eu estou um turbilhão de sentimentos, de estados de espírito, de maus-estares.  Toda eu sou um conflito interior, uma tempestade sem bonança a espreitar, uma dor sem entorpecente que ajude, uma sangria sem garrote ...
Sinto a minha cabeça num liquidificador, sinto a mente numa montanha russa ... e do coração, já nem sei !...

No cérebro, as ideias e os pensamentos, batem ao ritmo das batidas da bola nas raquetes de ténis.
Ecoam em pancadas secas, enérgicas, sincopadas, perfeitamente ritmadas e agressivas.
Pum, pum, pum ...
Não tenho linhas de raciocínio, nem conexão de ideias, como disse.
Parece que mentalmente estou a esfiapar, como um elástico velho ...

Entretanto, o tempo que sempre tanto me perturba, está agreste, carrasco, pouco misericordioso.
Estamos a um mês da Primavera, virá o Verão a seguir, depois da tempestade  vem a bonança, nem tudo é branco, nem tudo é preto, o copo não está sempre meio vazio, pode também estar meio cheio ... as coisas complicadas  são  feitas  de  coisas  simples ... e   mais  uma dúzia  de   máximas  pré-fabricadas  e  inconsequentes ...

As chuvas abundantes, fizeram florescer e maturar tudo mais cedo.
Calculo que as tamareiras devem estar com os cachos das bagas verdes, já alaranjadas ;
calculo só ... porque sei que as mimosas já se engalanaram com o ouro esperançoso, desbundando o perfume intenso pelas matas ;  sei que as flores amarelas sem nome, também já enfeitam as falésias, e por certo as margaridas silvestres, também por lá estarão, a formar os tufos rasteiros, de tapete gracioso ...
Sei isso tudo ... e o que não sei, imagino fácil.
"Vejo" o mar, entre aquele verde-azul-cinzento, cavado, a bater com a força toda, nos rochedos que tentam confiná-lo  a  espaços a que chamamos praias.
Espelha o céu, uniformemente cinzento . 
E branco mesmo, só temos as rendas esvoaçantes da espuma nas areias, e o peito das gaivotas, que se deixam ir numa dança aleatória, ao sabor da aragem gélida.
Ainda de longe, e já se ouve o grasnido do bando, em volteios lúdicos, ou na euforia do mergulho no dorso das ondas ... p'ra peixe !

Como é que se vive sem objectivos ?
Como é que se caminha, se não se tem itinerário, e se é indiferente voltar à esquerda, ou à direita ?
Quem tem por que lutar, pode dar-se por feliz, porque ainda que a tempestade desabe sobre a sua cabeça e seja destruidora, terá o desiderato de a vencer, terá o móbil de se agigantar peramte ela.
E chegando ao fim de cada dia, provavelmente esgotado, acredita que está a dar passos para atingir o desígnio que persegue ... mesmo que nunca o atinja, mesmo que não tenha já tempo útil de o alcançar ...
Essa será a sua razão de vida, será o motivo por que acorda, será a onda que o impulsiona, será o motor que o não deixa desistir ... e sobrevive ... na realidade só sobrevive.
Mas sempre espera, que com mais uns dias, com mais uns meses, com mais uns anos, a meta atinge-se.
Até lá, não olha para o lado, não desvia atenções, todo o esforço e ânimo se canalizam e se centralizam no objectivo.
E esse indivíduo, se alguma vez o atingisse, ficaria esvaziado, ficaria amputado da razão de viver.
Porque se alimenta dele, respira por ele, ele é a sua estrela guia.  Esse indivíduo depende desse objectivo .
E vive !...

A inexistência  de "leit motiv" para se derrubarem as barreiras do dia a dia, é que nos faz sentir vazios, ninguém, nada !
A ausência de um "ter por que", é que nos faz sentir nem mais nem menos, que aquele pedaço de madeira que anda há anos, talvez há décadas, no mar que o traz, que o leva, que o joga à praia, ao sabor do sobe e desce das marés.

Costumava com alguma fixação, curiosidade e quase obsessão, numa espécie de jogo, experimentar seguir com os olhos, os avanços e recuos desses desperdícios indefesos, que a água arrasta ao sabor do seu ímpeto, como quem brinca, insensível ...
Costumava às vezes, vê-los encalhar nos rochedos, parecerem fixar-se, e eu com eles, ficava feliz, como que aliviada, porque aquela madeira envelhecida, carcomida e macerada, parecia ter encontrado um porto seguro, um sítio, uma "amarra", um lugar ... e parecia finalmente poder descansar, parar da  luta  incessante do vai-vem das ondas, alcançar paz !
E eu alegrava-me ... Estranhamente, eu alegrava-me  !...

Só que o açoite do mar não tem parança ou compaixão, e uma maré mais agigantada e forte, indiferente ao "assossegamento"  daquele tronco, como numa partida de criança traquina, voltava a pegá-lo, a enrolá-lo no rendilhado branco da espuma, e no recuo, arrastava-o de novo para o turbilhão, e no recuo rolava-o mais e mais nas batidas insistentes, rumo a outras areias, a outras escarpas rochosas, a outros destinos, a outros sofreres ...

Que contaria aquele cavaco, sem vontade própria, sem capacidade de defesa, sem rumo definido, sujeito à aleatoriedade da braveza das águas ?
Que histórias de cansaços, de más memórias, de mágoas vividas, terá na sua  história ?
E onde estaria ele, antes de ser tronco à deriva, feito árvore frondosa, hirta, erguida aos céus, donde contemplaria o Mundo ?
Seria árvore de floresta ?  Seria árvore de mangue ?  Seria árvore sozinha, de força e coragem ?
E claudicara porquê ?  Pela doença, pela velhice, pela adversidade dos elementos que a não pouparam ... ou pela mão e pelo coração desumanizado do Homem, sempre ele ?? ...

Não importa ...

Ele teria uma narrativa a contar seguramente, se alguém a quisesse escutar !...

E dia após dia, e noite após noite, e maré após maré, e praia depois de praia, em Verões e em Invernos, num desgaste continuado, rumo a mundos inóspitos, pertença de ninguém, tendo como únicas certezas, o mar e o céu e o Tempo imparável ... o tronco flutuará, sossobrará, desfragmentar-se-á, mero joguete dos acasos, cumprirá a sua sorte, rumo à infinitésima partícula da sua existência ... rumo ao vazio ... rumo ao nada ...

... ele,  como  todos  os  "troncos"  humanos,  que  sem  saberem,  imparavelmente  oscilam  nas  marés  da  VIDA !!!...

Anamar

domingo, 17 de fevereiro de 2013

" FILOSOFANDO, DIATRIBANDO ... OU NADA, SIMPLESMENTE ? "



O tempo está como nós, ou pelo menos o tempo está como eu, numa indefinição inexplicável, mas se calhar espectável, entre  manter-se o Inverno que ainda é, ou amanhecer Primavera que ainda não é, mas que todos gostaríamos por aqui ...
Ontem, de facto, um dia primaveril de sol morno, de luminosidade branda ...
Hoje, um cinzento implacável, sem princípio e sem fim, e uma chuva persistente, convincente na permanência com que cai.

A minha gaivota sobrevoa sozinha, o meu céu, fugida do desabrigo do litoral, recortando-se neste chumbo uniforme aqui de cima.
Lá em baixo, o meu "Farrusco do fiambre", de olhos amendoados, olha-me quando assomo.
Encharcado até à alma ( se gato também tem alma ), à chuva, encolhido, por forma a  reduzir-se à bolinha preta mais pequenina que consegue.

Olho o horizonte, que não é horizonte, porque não se sabe onde começa, nem onde acaba ...
Lá longe, o casario  embrulha-se numa neblina parda.
Por detrás dela, algures no Mundo, um lindo sol laranja, brilhará, tenho a certeza !
Dói-me a alma, e olho a chuva, desalentada ...
Está a despachar as pessoas  para casa ... para onde mais ?

Neste momento, para mim, ir para casa é um tormento.
Encontro uma casa ainda mais vazia, apesar de ter lá mais uma pessoa, a minha mãe.
Encontro uma casa mais pesada e doentia, porque o seu estado de saúde me desgasta, me atormenta, me desespera, me tira as forças.
Encontro uma casa ainda mais silenciosa, porque há um silêncio de crepúsculo, permanentemente a pairar por ali ...

Na minha casa instalou-se a luz difusa das catedrais em fim de tarde, o frio das lajes do empedrado, a infinitude e a imensidão da nave central, a dormência do que parece ausência de vida.
E há um roçar esvoaçante de morte, por lá.
Há o bafio dos seres que foram e já não são, seres que estão na linha difusa entre o cá e o lá.
E a minha mãe, neste momento, não vive.  Isto que ela detem, na pessoa que ela foi, é simplesmente um simulacro de vida.  É uma maldade do destino, que "marina" os seres vivos, a seu belo prazer, indiferente à tortura que institui.

Tenho a sensação que já escrevi sobre tudo ;  tenho a sensação que repito títulos, e também temas ;  tenho a sensação de ser teimosamente recorrente, nas abordagens .
Sei que sou execravelmente "aborrecente" ( aborrecida + insistente ...  inventei agora ...  :) ),  nas dissertações.
Isso significa que longe de haver evoluções no meu estado de espírito e ânimo, há involuções,  e significa que eu continuo na linha de partida, sem ouvir o disparo, e sem arrancar nunca !

Mas o que é facto, é que o ser humano, para diariamente cumprir mais uma etapa da prova, tem que ter um objectivo ;  tem que ter uma linha de meta a ultrapassar ;  tem que sentir que esse dia é mais uma batalha, da guerra que acredita vencer ;  e que o seu percurso é feito de somas, parcela a parcela ;  e que a escada, degrau a degrau, permitir-lhe-á, espreitar lá no alto, para além do muro ...

E isso, eu não sinto ;  e nisso eu não acredito !
E isto, eu já disse miríades de vezes ... "aborrecentemente" !!!

Sinto que o meu Tempo, não é o Tempo de ninguém.
Sinto que a minha vida, se faz  ironicamente, em contra-ciclo com todas as vidas  que comigo se cruzam.
Sinto que as minhas cotas de sonho, de esperança e de crer, são meras utopias apalermadas, desajustadas às realidades, desajustadas aos tempos, e à pessoa que eu já tinha que ter aprendido a ser ... "crescida", adulta, madura, realista, "pé no chão", e não adolescentemente utópica, e tontamente sonhadora !
E não sinto em mim, ânimo, nem força, nem convicção, para reiniciar a marcha, dobrar as esquinas, olhar a várzea do alto da penedia, porque dificilmente acredito em recomeços !!!...

Anamar

sábado, 16 de fevereiro de 2013

" MÃE CORAGEM ... "



Isto afinal não está tão bem feito, quanto isso !...

Seja o Grande Arquitecto, Deus, Maomé, Buda, Jeová ou quem mais se candidate a conceptor desta  coisa em que vivemos, houve nitidamente aspectos brutalmente negligenciados.
Já não falo do "vale de lágrimas" em que estamos mergulhados ... injustamente mergulhados, uns mais que outros ...
Já não falo das atribulações infames, por que temos que passar neste circo de gladiadores, em que parece ter-se transformado o Mundo e a existência ...
Já não falo da brincadeirinha de "moleques", com que diariamente "mangam" connosco, numa desfaçatez assustadora ...
Já não basta, como já referi vezes sem conta, sentirmo-nos peças de xadrês, de um xadrês jogado aleatoriamente, porque o Criador se está borrifando p'rá obra feita, na qual, por certo não se revê ...
Já não basta tudo isto, e foram logo esquecer o botão "on - off", fundamental para que cada ser vivente, pudesse deixar de o ser, quando assim o entendesse ...

É que ... bolas ... teria sido um sinalzinho de respeito e consideração, por quem não foi sequer inquirido, sobre querer ou não, participar desta farsa !...

A minha mãe está no fim dos seus dias.  Sei-o.  Pressinto-o.
Todos os dias ponho os ouvitos alerta, antes de me dirigir ao quarto onde dorme, onde definha, e onde se afoga em lágrimas, em soluços desesperantes, dignos de uma compaixão atroz.
E perscruto os sons antes de entrar, porque não sei se algum destes dias, eu não encontrarei a minha mãe, adormecida ... adormecida para sempre ...
E seria justo !  Justo que ela dormisse confortável na sua caminha, quentinha, aconchegada ... e sem  que tivesse tempo de relembrar uma outra vez, a sua vida, e os seus, aqueles que lhe partem o coração, deixar ... deixasse ela, esta vida longa, neste momento penosa, violentamente penosa, que ela já enjeita, de que já se cansou, que pede para terminar, e de que quer ir embora ...

Acredito que a minha mãe, pede todas as noites à santa padroeira da sua terra, do Alentejo tão distante ( a quem tantas vezes suplicou  por si, mas sobretudo pelos seus ), que a deixe partir ... que lhe conceda essa última "graça".
Uma estampazinha de Nossa Senhora de ao Pé da Cruz, está na sua cabeceira de cama, e presa na sua roupa interior, bem junto ao coração, suspensa de um alfinete, está a medalha que o Gaspar usou na coleira, enquanto viveu.
O Gaspar, um companheiro, mais que um companheiro ... um outro amor da sua vida, que partiu há quatro anos ...

Por que raio, tem o ser humano que percorrer uma Via Sacra de degradação, de sofrimento, de incapacidade, de dependência  ??!!...
Por que raio, tem que suportar a provação de se ver reduzido a um farrapo, a uma sombra, a nada ??!!...
Por que tem um indivíduo, de prescindir da sua  autonomia, privacidade, intimidade ??!!...
Por que tem que ser subtraído ao seu espaço, ao seu mundo, à sua vontade, porque a vida o incapacitou como "gente", lhe retirou o direito a ser dono de si próprio, e o transformou em objecto dos desígnios dos outros, por muito bem que lhe queiram, e por melhores intenções que os movam ??!!...
Por  que  terá  que  experimentar  a  fragilidade  da  humilhação,  da  dúvida,  da  angústia,  do   medo ...  do   desconhecido ...  da  solidão ??!!...

Ao menos, que a mente e o raciocínio claudicassem ao ritmo a que claudica todo o restante invólucro físico, porque  com  eles  iria  a  consciência  do  estar e  do  ser, e  o  consequente  sofrimento  inerente ! ...

Mas também aqui, não podemos "encomendar" ... e resta-nos, impotentemente, manter alguma serenidade, algum pragmatismo na aceitação das coisas, uma transcendente e misericordiosa paciência, e uma generosidade e afecto, que por vezes, por cansaço parecem  faltar-nos ...

Sei que a minha responsabilidade é imensa ...
Sei  que  não poderei  falhar  nesta recta final ...  por forma a dar-lhe a mão, ser-lhe até ao fim dos fins, um bordão de amparo, e ter uns braços tão fortes e resistentes, quanto os que ela teve um dia, lá muito atrás, para me pegar, envolver e proteger, quando iniciei, também eu, igualmente frágil, igualmente insegura, igualmente angustiada e com medo ... a minha caminhada por aqui !
Espero não a defraudar !
Espero estar à altura da Mulher de fibra que ela sempre foi !
Espero saber honrar a lutadora e a "Mãe Coragem", que ela, sim, verdadeiramente encarnou no seu percurso !...

Anamar

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

" SINAIS DOS TEMPOS, TAMBÉM ... "



Um  pôr-de-sol  lindo sobre o horizonte ...
Estamos naqueles dias "laranja", a que Fevereiro, eu diria, quase tradicionalmente  nos habituou.
Laranjas e luminosos, porque este sol de Inverno que irradia depois da tempestade, da escuridão e da tormenta do Inverno, tem a particularidade de ser assim ... claro, cintilante, resplandescente.
Os nossos olhos, também, sequiosos do seu retorno, são generosos na sua apreciação ... que eu sei !

Ontem abordei a impessoalidade crescente, que preside às relações humanas, nos tempos actuais.

O Homem, está efectivamente a ser dominado pela tecnologia e pela sofisticação das máquinas que  ele próprio criou.
Nitidamente, o "artista" a ser "trucidado" pela sua obra !...
Não sou exactmente  um  "Velho do Restelo", mas impressiona-me, incomoda-me e faz-me reflectir, a constatação de situações, em que a essência do ser humano é preterida, pelo menos dispensada, da sua função de interveniente das mesmas.
A vertente dita  "humana", em toda a sua globalidade, está na verdade, a ser marginalizada diariamente, desconsiderando-se aquilo que distingue o Homem, das máquinas ... a sua vertente emocional  e espiritual, que nunca poderiam ser subvalorizadas em situação alguma.
O Homem criou as máquinas, criou toda uma panóplia de instrumentos, com vista a facilitarem-lhe a vida, com vista a ajudarem-no, a servirem-no ... mas seguramente não com vista a ser ultrapassado por eles ... e é o que está a acontecer.

Ontem, como disse, falei-vos numa "agência matrimonial virtual", chamemos-lhe assim, em que por mera utilização de um banco de dados de perfis personalísticos,  são propostos pares para relações afectivas, com base nas compatibilidades desses perfis.
Dessa forma, privilegia-se a parte prática da coisa.

"Gastando" pouco tempo, qualquer homem ou mulher, encontra uma lista de indivíduos do sexo oposto, com fortes probabilidades, de, consigo formarem o par perfeito ...
Substitui-se assim, fácil, fácil, a primeira etapa de um relacionamento : a descoberta, o conhecimento sempre novo e gradual, as pequenas coisas encantatórias, que iniciam um romance, e em que, pelo menos acertando ou errando ... ( mais errando que acertando ), se inicia uma relação com "gente" !...
Gente de carne e osso, de sangue, lágrimas, calor, coração, mente e alma ...
Na situação em apreço, as pessoas  são simplesmente servidas numa bandeja, são simplesmente pratos de um cardápio, apresentado ao hóspede na mesa do restaurante, que este olha, aponta o dedo e escolhe ...
Tudo a frio, tudo impessoal, tudo com tecnologia de ponta !...

Estou aqui a imaginar o executivo, sentado na secretária da multinacional onde trabalha, rodeado de telefones, computadores e todos os "gadgets" imaginários .... mergulhado até ao pescoço nas tarefas profissionais ... óculos sem aros, com que se compõe habitualmente a figura, nó da gravata lasso, o casaco do fato, cuidadosamente colocado nas costas da cadeira ... a chamar a sua  assistente  e  a dizer-lhe :  "Por  favor .... mande  vir  a  "lista" ... Preciso  de  uma  companheira  na  minha vida !..."

Bom ... e que dizer da chamada e já tão tristemente vulgarizada, "produção independente" ?
O "projecto de mulher-mãe", que decide ter um filho por conta própria, e que não reunindo na sua vida, condições afectivas adequadas, olha ao seu redor, corre mentalmente a lista de amigos e /ou conhecidos ... estende igualmente o dedo, e diz para  os seus botões :  "Este  aqui,  até  nem  estava  mal  para  ser  o  pai do  meu  filho " !...
Convirá obviamente, que seja alguém que preste o "favor biologico", e que previamente tenha aceitado as condições de prescindir de qualquer exigência, obrigação ou laço, para com a criança  "em fabrico" ... já que essa criança será apenas "filha da mãe " !...

Estaremos  perante  seres humanos, ou bichos ? ( pergunto  eu  p'ra  avacalhar  a  coisa )
E os  laços parentais,  comprovadamente  necessários  ao  desenvolvimento  saudável  e  equilibrado  de uma  criança ?  Onde  ficam?  E a  figura  de  referência  paterna ... onde  está ?!...

E  há  também, os "bancos  de  esperma",  e  depois,  igualmente  as  "barrigas de aluguer" ... vertentes diferentes, da  tal  demissão  do  ser  humano,  como  interveniente  e  protagonista  de  papéis, dos quais jamais  poderia  prescindir ...

Estes, alguns exemplos preocupantes, que me ocorrem ...

A  dispensa,  a  omissão,  a  negligência, daquilo  que  apenas  o  Homem  pode  propiciar, a  "humanização" da sua própria história ... e  que  só  ele  pode  introduzir,  que  nenhuma  máquina  faz, que  nenhuma  revolução científica  ou  tecnológica  resolve ... constituem, do meu ponto de vista, aberrações gravíssimas, demonstram  a  sua demissão ( enquanto  detentor  exclusivo  de  mais-valias  intrínsecas,  que  nada  nem ninguém  conseguem  substituir ) ... e terão seguramente consequências altamente gravosas, nas gerações e nas sociedades do Futuro !

Gostaria muito, e desafio as pessoas que me lêem, a exporem os respectivos pontos de vista, sobre assuntos tão sensíveis quanto estes.
Cabeças diferentes, pensam de formas diferentes, e as verdades não são absolutas ... bem pelo contrário. Acresce ainda, que este tipo de preocupações actuais e pertinentes, creio,  por certo se terão já colocado a muitos de vós !  Obrigada.

Anamar

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

" ACABA POR SER DE PRAXE "

Mais um 14 de Fevereiro, sobre que não queria escrever.

Tão simplesmente porque é mais uma das tais datas do calendário, "metida a calçadeira" ( como diria o Carlos ), pelo Homem ( e que por isso mesmo, enjeito ), mas também porque não tenho nenhum motivo especial para festejar alguma coisa que está em vias de extinção, afinal ... o AMOR !

O amor que deveria ser natural, espontâneo, sentido, íntimo, simplesmente vivido sempre ... e não lembrado apenas hoje, "porque sim" ...
O amor que se prestigia neste 14 de Fevereiro, é uma "fatia" particular desse sentimento muito mais universal e abrangente, o amor entre os seres humanos  ( que não existe ), o amor do Homem para com os seres das outras espécies ( que não existe ), o amor do Homem pela Natureza ( que não existe ), o amor do Homem pelo Planeta que habita, a sua casa, o seu ar e o seu chão  ( que não existe ) ...

Hoje celebra-se o amor entre os géneros ... o amor homem - mulher, o amor entre casais, indistintamente ligados por qualquer laço.
Hoje vive-se, ou apela-se a viver-se o amor carnal, o amor dos sentimentos, o amor das cumplicidades, dos pequenos segredos, dos inconfessáveis mistérios ...
Hoje, doura-se a "pílula", compram-se as rosas vermelhas, programa-se ( cada vez menos, por razões óbvias ), um evento especial, alinda-se uma mesa com uma que outra vela, tudo muito vermelho, simbolizando uma paixão acesa, que por vezes nem pálida está, e finge-se ... muitas vezes também só se finge que se está feliz, enormemente feliz, exuberantemente feliz, irremediavelmente feliz !...

Daqui a uma semana as rosas já murcharam, e já estão sobre o "cadáver", como as montureiras das flores secas, dispensáveis e maçantes, sobre as campas, por alturas da missa de sétimo dia ...
O chamado "lixo", também sobre os afectos !...

Estou particularmente azeda ... Nada de novo, certo ??   Nada a que vocês não estejam já habituados ...
E já oiço vozes erguerem-se : " Irra, que esta fulana é intragável !...  Puxa, que osso duro de roer "!...
Pois é ... esqueci o que é o "encanto"  possível da Vida !
Esqueci como é ser agradavelmente vivente, por aqui !  Esqueci e desinteressei-me um pouco ...
O meu GPS avariou, e portanto estou há muito perdida no emaranhado dos destinos a trilhar ...
Mas isso agora não interessa nada !...

Ontem deram-me o endereço de um site da Net, que cada vez mais me fez repensar os valores que realmente norteiam o ser humano,  cada vez mais me mostra como tudo é plastificado nos dias que correm, cada vez mais me fez reflectir, como o ser humano está cada vez menos humano, mais robotizado, mais artificializado, menos "gente" ...

É um site criado, creio, por psicólogos, e que funciona como uma espécie de agência matrimonial dos tempos modernos.
Uma espécie de "rede social", com encadernação de luxo !
Alegando-se que nos tempos que correm, as exigências  profissionais e a vida corrida das pessoas, lhes indisponibiliza crescentemente a possibilidade de encontros, de conhecimentos e ainda mais de acertos nesses conhecimentos ... alegando-se que a praticidade da coisa e o facilitismo da mesma, seriam uma grande ajuda ( porque tempo também é dinheiro ) ... alegando-se que em milhares de perfis com que nos cruzamos, a estatística de sucesso é mínima, obviar-se-ia a tudo isso, criando uma espécie de base de dados com perfis psicológicos, que trabalhados, permitiriam descobrir compatibilidades entre indivíduos com fortes possibilidades de acerto, como par afectivo.

Muito interessante ! ...

Perfis psicológicos masculinos de um lado, feminimos de outros, e o computador a fazer o resto ...
Pessoas, cuja probabilidade de alguma vez se encontrarem, sequer se conhecerem nesta vida maluca, seria nula, ali, bem à mão, ou bem ao pé ... à distância de um "clique" do rato !...
Portanto, consultada esta lista telefónica informática, estas páginas amarelas de um hipotético "amor programado", não se perde tempo, desencanta-se o príncipe ou a princesa encantados, num piscar de olhos, como um coelho a sair de uma cartola !!!
Como se vê, tudo bem "cool", bem "clean", bem de acordo com os tempos de hoje, em que não há tempo, para se ter tempo, nem para amar !...

Por tudo isto,  o S. Valentim coitado, nem ele sabe nem sonha, como tem os dias contados !
Ele, e todo o "circo" à volta do seu "halo" mágico, de fazer reviver pelo menos anualmente, esse tal de AMOR com contornos cada vez mais "demodés", cada vez mais descartável, cada vez mais desvalorizado e esquecido,  e  que  afinal  se  tem   muito   mais  à  mão  de  semear,  do  que  seria  imaginável ... e  desejável  ( digo eu ) !!!...

Anamar

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

" É SEMPRE ASSIM ... "



Quando o ser humano é submetido a uma qualquer situação de choque ou de sofrimento acima dos seus limites, normalmente reaje por fases.

Primeiramente, surpreende-se, revolta-se, entra num período de recusa e inaceitação, sente-se injustiçado, pergunta-se "porquê a si" ( como se devesse usufruir de algum privilégio em relação aos seus semelhantes ), rebela-se em desespero e impotência, interroga-se ... mas normalmente fica sem capacidade reactiva imediata, num estado cataléptico, sem poder de resposta ...
Fica simplesmente em choque, inerte, não age ... a tentar digerir ainda o que lhe está a acontecer ...

Numa fase subsequente, perante a situação fortemente adversa, torna-se interveniente, passa à acção, degladia-se, esbraceja, esgrime interpretações, ultrapassa-se na busca de soluções que imagina, inventa até o absurdo, numa tentativa de encontrar uma qualquer saída, que contornasse  a situação e repusesse a acalmia pré-traumática.
Esfalfa-se, cansa-se, luta, consegue exaurir todos os recursos que tem dentro de si, em desespero ... esgota-se !...
Os seus níveis de resistência física e mental, abanam no meio do "temporal", e poderá ter raízes sólidas que mesmo assim o mantenham preso à terra ... ou não !...

É um período de longo sofrimento e desgaste, físico e psicológico, em que são desproporcionais os recursos investidos, face aos resultados alcançados.
Quando as situações são inevitáveis e irreversíveis,  não adianta o  manancial  de esforços desenvolvidos.
Tudo continua a desenrolar-se como tem que se desenrolar, inabalavelmente, impiedosamente, sem se compadecer com o indivíduo, perdido no olho do furação, no coração da tempestade ...

Esse tempo, é um tempo de agonia, mais ou menos longo.
Ele  leva  finalmente  o indivíduo a tirar a venda dos olhos, coloca-o perante a inevitabilidade da experiência, perante a realidade objectiva, que recusa, desagrega-lhe convicções, desestrutura-lhe as capacidades, degrada-lhe as potencialidades de reacção e resposta, conturba-lhe a mente e o espírito, obriga-o a encarar finalmente o que tem entre mãos, e confronta-o com a sua ineficácia na reversão dos factos.
A esperança  vai-se, o cansaço é bem acima dos seus limites ...
É quando o indivíduo consciencializa que é assim, que nada mudará, é quando o guerreiro depõe armas, é quando se encolhem os ombros, é quando a desistência começa a imperar, é quando a algidez toma conta do náufrago à deriva, que se abandona ao destino ...

E chega-se à terceira fase do processo.
A fase de indiferença, a fase do não valer a pena, a fase de uma estranha e dolorida pacificação.
É por isso que nas grandes catástrofes, vemos pessoas com reacções estranhas  de insensibilidade, que nos surpreedem e que custamos a compreender, pessoas que parecem alheadas, adormecidas, mas que se calhar, estão é mortas por dentro.
É uma fase de uma espécie de luto de alma, ou talvez de adaptação  penosa, ou talvez de  assumpção  da real pequenez e irrelevância da sua capacidade actuante, face  à dimensão da onda gigante a que foram submetidas.
O indiferentismo patológico instalado, conduz a uma inércia de vida, a uma desistência de luta, a uma negação de tudo ...

É a fase em que a "avestruz mete a cabeça na areia " ... é a fase em que o ser humano claudica e abandona a vontade de acordar, de se reerguer, de viver ...
É a fase em que uma apatia imensa, é transversal a toda a sua vida.
O indivíduo torna-se indiferente, mesmo aos aspectos básicos e primários da mesma ...

É  como se uma longa e densa cortina de sono e silêncio, descesse sobre si e o tolhesse, enquanto ser vivente ...
Uma espécie de hibernação do coração e da alma !!!...

Anamar

domingo, 10 de fevereiro de 2013

" FUI INDO POR AÍ ..."



Agora, a minha gaivota já não é só a "minha" gaivota.

Tal como  o "Farrusco do fiambre" me namora dos terraços lá de baixo, a minha gaivota é namorada pelo meu Jonas, de cima da máquina de lavar.
E mais do que namorada, ela é cobiçada, e põe o Jonas com a adrenalina em alta, completamente desorientado em caçadas imaginárias, que lhe deixam as orelhas em riste, e os olhos ... bem, os olhos só não saltam das órbitas, porque estão bem presos.
O Jonas tem seis meses, e a inconsciência e a curiosidade, inerentes a um gatinho bébé.

Também ... a minha gaivota pavoneia-se, provocadora, sozinha, bem aqui por cima, recortada no cinzento uniforme do céu, asas esticadas, dançante na aragem ... Não há gato que resista ... mesmo os inocentes !...
Sempre sozinha ...
Também nisto nos identificamos !...

Todas as espécies viventes, passam pelas mesmas fases ... é engraçado de constatar.
A Rita, na sua terceira idade, só quer sopas e descanso, incomoda-se com as perturbações que o Jonas lhe provoca, irrita-se, refugia-se nos locais mais reservados, na meia obscuridade que a saia da camilha lhe propicia, ou saboreando o conforto do calor do saco de  água quente, dentro do seu cobertor de lã.
O Jonas é irreverente, é desvairado, só faz tropelias.  É um bébé !
Qualquer coisa é um brinquedo para ele ;  um simples lápis, é um tesouro, o rabo da Rita a mexer, deve ser uma potencial presa, a caçar ... as bolinhas que saltam, deixam-no louco !
É um jogador exímio, um guarda-redes cinco estrelas, não falha uma jogada.  Esconde os tesouros nas dobras das carpetes que enrodilha, atrás das portas, no cobertor da cama, e entrtem-se a redescobri-los ... Ou enfia tudo para debaixo do frigorífico, máquinas, móveis, o que lhe implica o esforço acrescido de se esfalfar para lhes chegar a recuperá-los ... Mas essa dificuldade deve dar-lhe um sabor especial, ou então é masoquista mesmo !
E é giro vê-lo com ar decepcionado, quando desiste de os reconquistar, simplesmente porque o Jonas já cresceu, e já não cabe em espaços onde cabia, e não lhes chega ...
Aí entro eu, com varas e varinhas, rabos de vassouras, tudo o que possa resolver o problema, e reponha à luz do dia ( por escasso tempo só, claro ), a "arca do tesouro" do Jonas !


E depois tem a doçura, a meiguice, a entrega, a suavidade de uma criança mesmo.
Aninha-se, deita-se de barriga para cima, protege os olhos da luz, no meu robe fofinho, se quer dormir ... e até ressona !  Dá beijinhos intermináveis, que são lambidelas que mais doem que acariciam, com aquela pequena língua áspera e cor-de-rosa ... A sua forma de mostrar satisfação e afecto !

São um espanto os animais ... são uma maravilha, os gatos !

Muitas vezes, só os temos a eles.
É uma pena que não falem, porque ouvir-nos, ouvem, atentamente ;  têm expressões e "vozes" diferentes, conforme a situação, e traduzem-nos o que precisamos muitas vezes sentir, na "marradinha", no roçar do corpo pelo nosso, no "abraçar" com a cauda, que envolve as nossas pernas, em sinal de conforto ou talvez de protecção ... não sei !
Eu  dizia :  "é  uma  pena  que  não  falem" ...  mas  talvez  devesse ter dito : " ainda bem que não falam",  porque  senão estragariam tudo, tirariam o encanto a tudo, vulgarizariam as emoções ou tripudiariam sobre os afectos, como o ser humano faz, afinal ...
Assim, eles ficam-se pela atitude, pela postura, pela manifestação objectiva e nunca ludibriante do que realmente sentem, sem dissimulação, sem outra intencionalidade, que  não  a  exteriorização  da  pureza  dos sentimentos,  duma  forma  leal,  gratuita,  sem  cobrança ...

Estava aqui a congeminar, olhando para trás na vida, sobre a precariedade das ligações afectivas, entre as pessoas.
O ser humano liga-se afectivamente, primeiramente, por laços de consanguinidade, os chamados laços familiares.
Esses, em essência, deverão ser duradouros, porque  como "soi dizer-se", o mesmo sangue corre nas veias, numa espécie de apelo ao sentido de clã, de "selo", de cordão umbilical nunca cortado completamente.

Depois,  os seres humanos aproximam-se pelo coração. São outro tipo de laços.
Aí temos laços de amizade, que quando verdadeira, são feitos de um material com uma resistência "à prova de bala".
Eles aguentam decepções, mágoas, ofensas, omissões ... eles rejubilam com a alegria, partilham os "pesos" excessivos, sofrem na dor, encantam-se com os êxitos, e dividem os fracassos ... eles cumpliciam, ajudam, felicitam e "sentenciam" se for o caso, pela isenção de que devem revestir-se.
É uma forma de amor incondicional, desinteressado, disponível, generoso ... canino, eu diria ...

Mas temos também laços de amor, entre os géneros.
Esses, tendem a ser bem mais frágeis e vulneráveis.
Esses, são sobretudo corroídos por uma coisa que se chama "Tempo", porque este, consegue tornar o mais místico e mágico, no mais terreno e banal.
O Tempo tira  a  "aura "  às pessoas, aos sentimentos, às convicções, às esperanças e desígnios.
Consegue banalizar o que era extraordinário, consegue endurecer o que era naturalmente doce, apaziguador, gratificante ;   consegue gerar indiferença, perante o que era indispensável ;  consegue lançar esquecimento, sobre o que era permanentemente presente ;  consegue criar distâncias e levantar muros, com uma insensibilidade absurda, entre pessoas que se respiravam ...

São de facto cordões invisíveis facilmente corruptíveis, porque são elos facilmente fragilizados, pela panóplia de vectores conflituantes e agressivos da Vida.
E só subsistem efectivamente, se forem de "fibra", se forem trabalhados laboriosamente por ambas as pessoas, se forem acreditados inapelavelmente pelos implicados, e se neles houver aposta séria ...

E os tempos actuais, tempo do descartável, tempo do facilitismo, tempo da desvalorização, o ser humano tende a enjeitar o que implica demasiada "mão de obra", deita mais facilmente fora, do que conserta, compra mais facilmente novo, do que conserva o existente ... substitui mais rapidamente, do que mantém ...

Enfim ... fui divagando por aí, neste dia cinzento e pardo, e parvo também ... em que nem a chuva que cai é assumida ... porque  é,  e  não é ...
Cai uma chuva miudinha, que com o frio, esse sim intenso que se faz sentir, nos mostra que o Inverno continua instalado ...

Razão tinha a minha gaivota, em vir visitar-nos.  À beira-mar, não se deve poder parar !!!..

Anamar

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

" AMIGOS "



Fui educada muito isolada e sozinha, já aqui o disse.
Desde cedo, que a minha mãe me monopolizou para si, como o bem mais precioso que alcançou na vida.
Foi um amor mutilador, obsessivo, limitante.
Em criança, não me era facilitado o convívio com outras crianças, mesmo colegas de colégio.  Os miúdos da rua com quem brincava, não tinham acesso à minha casa.

Era o tempo do Alentejo ...
E o espírito, era também esse ... isolamento, ensimesmamento, ausência de convívio, e portanto, de presenças. Silêncio, mesmo ...
Se olhar lá para trás, vejo com nitidez que as minhas memórias se reportam a uma casa enorme, com rés-do-chão e primeiro andar, com escada e corredor longo, e em ângulo recto ao fundo.
Lembro que das divisões do rés-do-chão ( despensa, um quarto de arrumos, vão da escada e "casa de entrada" ), eu tinha medo.
Eram espaços, à excepção da entrada, só frequentados amiúde ; sempre escuros, por serem interiores, e a vida se fazer no andar de cima.
Mas mesmo nesse, a memória que me preside, é de uma casa escura, com divisões penumbrentas, pouco habitadas, sem alma.
A cozinha era o coração da casa, porque era imensa, e lá se fazia tudo.
Cozinhava-se, comia-se, eu fazia os trabalhos de casa, na mesa grande de camilha, a costureira que vinha de quando em vez, costurava ... e até quando a minha mãe estava de catadura e deixava, eu fazia as "cantareiras" e "dava aulas" aos bonecos, atrás da porta, com os brinquedos que subiam, no caixote de madeira, da dita despensa, ao primeiro piso.
Eram momentos fugazes, porque havia que arrumar rápido, aquela transitória "perturbação" ao arranjo instituído, e portanto, a brincadeira nunca era demorada.

Essa cozinha dava acesso a um terraço ( a varanda ), que se desenvolvia nas traseiras, e era circunscrito pelo tal  "L", que a distribuição física da casa, criava.
Dessa varanda, só se avistavam telhados longos, a perder de vista, respectivamente de uma garagem de recolha, que ficava por debaixo da minha casa, e de uma serração de madeiras, que ficava ao lado.
E céu, claro ;  por cima sempre havia céu !

A varanda tinha um tanque de roupa, cordas para estender a mesma, e vasos de sardinheiras  no chão, e dependurados lateralmente a duas janelas que para lá davam, ( de um escritório, e do que seria o meu quarto de cama ).
Digo "o que seria", porque como o meu pai era viajante, e passava a maior parte do tempo fora, lembro-me  de dormir com a minha mãe, no quarto de casal, frente a este, do lado esquerdo do corredor.  Esse, com janela para a rua.

As janelas tinham persianas,  quase  permanentemente, meio ou totalmente descidas.
A minha mãe, até hoje, cultiva o gosto pela penumbra.  Não sei porquê !
Não havia televisão ainda, e por isso os serões de nós as duas, eram curtos.
As luzes só se acendiam se nós estávamos nas divisões, e como tal, lembro que à noite, a única luz que estava acesa era na cozinha ; depois, acendia-se a do corredor para nos dirigirmos ao quarto de cama e à casa de banho, ao fundo, e estas apagavam-se, quando já nos íamos recolher.
Por isso eu tinha medo também, do escuro do corredor que se estendia à direita, e da escada ( que fazia igualmente um ângulo, que impedia a visão do  andar debaixo ), que se estendia à esquerda da porta da cozinha.

Como digo, não tive portanto "amigos", aqueles amigos que as crianças, sobretudo na província, recordam como amigos que vêm  "da escola".

E sempre assim foi !
A adolescência correu igualmente pesada ;  tinha talvez umas três amigas mais chegadas, colegas de liceu, mas pouco passava disso.
Eu nunca tinha autorização para cinemas, paródias, saídas.  O máximo concedido, foi depois, já aluna de Faculdade, poder dormir em casa da que seguiu o mesmo curso que eu, e ainda assim, porque estudávamos muito durante a noite, em época de exames.   Mas não mais !

Casei, e o meu ex-marido tinha vivências totalmente opostas às minhas.
Oriundo da província, manteve exactamente desde sempre, o culto da amizade, da camaradagem, do afecto, conservou até hoje uma panóplia de amigos, daqueles que atravessam as vidas das pessoas, se acompanham, e se partilham.
Enquanto estive casada, recebíamos e éramos recebidos em casa de alguns, fazíamos férias com outros ... enfim, ele  "labutou" para que eu convivesse.
E digo "labutou", porque eu era relutante ao convívio, obviamente.  Eu, não querendo, cultivava o que a minha mãe me ensinara e me inculcara na forma de ser ... o isolamento e a solidão.

Divorciei-me, e espantosamente, esses "amigos" de tantos anos, porque me chegaram por via do casamento, também se foram, por via do divórcio.
Espantosamente !...

Hoje ... bom, hoje estou bastante só.

Conhecimentos recentes, sempre são reticentes para mim.  Conheço muitas pessoas.  Concluo que pessoas que de mim se tenham aproximado por amizade verdadeira, são muito poucas.
E sinto falta, e invejo, quem mantém e pratica a amizade propiciada pelas tertúlias de amigos, os núcleos de afinidades em termos culturais, lúdicos, de interesses, gostos, que geram afectividade, cumplicidade e apoio ... porque dessa forma conseguem suprir a ausência de familiares, que se foram perdendo ao longo da vida ...  conseguem  colmatar a mágoa da solidão ... ajudam-nos a espaldar-nos, com coração e alma, para as dificuldades que todos os dias nos enfrentam ... permitem-nos dividirmos as dificuldades e as preocupações que nos espreitam em crescendo, numa fase da vida, em que as "raízes", pelas mais variadas razões, se vão soltando ...

Porque quem tiver amigos, nunca estará só ...

É frase feita, mas de facto, acredito que eles são a família que nos sobra, depois da nossa família real, se ter diluído pelas vissicitudes e agruras do caminho ...

Anamar

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

" PELO ARCO-ÍRIS ABAIXO ... "


Bob Marley, o ícone do espiritualismo jamaicano, o homem do "reggae", disse : " É estranho sentir saudade de algo que mal vivi, ou aceitava viver " ...

E será possível sentir saudade de algo que nunca se viveu, e só se sonhou ?
Eu sinto ... estranhamente ou não !...
É que o meu sonho é tão longamente sonhado, tão arduamente desejado, tão minuciosamente concebido, que vira realidade no meu coração !
Torna-se uma realidade minha, de direito !

Sinto  portanto, muitas  saudades do que  se  projecta  adiante, e não as saudades   com  "efeitos retro-activos",  como  é  de  praxe  sentirem-se ...

Estou a ficar louca.  Acho que estou "a bater" cada vez pior.
Não encontro nenhuma forma de lógica de vida, por cada dia que passa.
Dias sucedem-se a dias, a que se sucedem noites, sendo que essas são os períodos de tréguas.
Os dias são longos, demasiado longos, e a vida é curta, demasiado curta.
E as cores do arco-íris emigraram.
No céu, agora desenha-se um arco sempre a cinzento.  E os meninos que diziam em lenga-lenga : "está a chover e a fazer sol, e as bruxas a comer pão mole " ... agora olham para o céu, e não acham mais aquele escorrega de muitas cores, para brincarem nas nuvens.
Acabou a hora do recreio !!!

E os dias são tão pesados !

Por que têm as pessoas que aguentar carregos, para que não têm força na alma ?
"Deus dá a roupa, conforme o frio" ... diria a minha mãe.
Então, o tal Deus, devia dar as forças de acordo com os fardos, ou isto vai forçosamente tombar ... porque milagres, ninguém faz !...

Todo o ser humano precisa saber-se valorizado, sentir-se acarinhado.
Todo o ser humano precisa de sentir um lastro de apoio, de aconchego, de afecto.
Canso-me de escrever, porque me canso de dizer, porque me canso de pensar, e sei que estou certa.
Porque no fim de cada dia de luta ( porque os tempos são efectivamente de luta, de exigência absurda, de desilusões e insucessos, de loucura colectiva, de esforço e fadiga muito acima do suportável ), se não for o calor de um embalo para o coração, de um berço para a alma, de um sorriso cúmplice, e de um corpo que nos aninhe, não há capacidade para se reincidir, acordando, no dia seguinte ... não há estímulo para continuar a esgatanhar-se, cravando as garras na vida, mais e mais, não há ânimo sequer para se abrirem os olhos, encarando outra onda de dez metros, que vem lá ao fundo !...

E no entanto, cada vez mais as pessoas estão sozinhas num Mundo sobrelotado, numa realidade não gratificante de individualismo, de "salve-se quem puder" ...
Cada vez mais, é cada um por si, náufragos à deriva, num oceano encapelado ...

E quando acordarmos um dia, se esse dia chegar, o relógio marcará já, as horas de recolher, e nenhuma alvorada nascerá mais, para nos receber ...
Aí, teremos encerrado o último capítulo que vínhamos a escrever aos poucos ... morrer  um  bocadinho,  por  cada  dia  que  entretanto  passou !!!...

Anamar

sábado, 2 de fevereiro de 2013

" O CAUDAL QUE NÃO PÁRA "



Custo a deitar fora as agendas de um ano para o outro, até mesmo de uns anos para os outros.
Copio telefones, contactos e apontamentos necessários, e guardo a agenda, sempre para deitar fora depois.
Na agenda, registo amiúde, pequenos textos sobre este ou aquele acontecimento que ocorreu, e que foi importante.  E são esses textos que depois releio, folheando, um ano, ou anos depois.
Dou por mim a pensar : "Como  foi  o  meu  primeiro  de  Fevereiro do  ano passado ?  Estaria feliz ? Mais triste ?  Como era o estado de espírito, que as palavras deixam escapar ? "

E acontece com muita frequência, que "revejo" com nitidez absoluta, esta ou aquela ocorrência ;  revisito os locais, oiço os sons, sinto os cheiros, vejo as tonalidades do que me cercava, e conto as batidas cardíacas que me assaltavam ... há um ano atrás, às vezes mais ...
É uma visita guiada, que muitas vezes me emociona, me deixa saudosa, nostálgica, sofrida ...
Se mais não for, porque consciencializo que o tempo correu, correu depressa demais, inevitavelmente, o que me instala um desespero que não consigo explicar.

Sabem quando se tem uma ruptura de um cano, donde a água jorra sem conseguirmos estancá-la ?
E desesperamos a tentar tamponá-la, embora no seu caudal ela vença as barreiras e corra indiferente ?
Até que desistimos, porque percebemos que não teremos sucesso, porque ela sempre irá continuar a correr, indiferente ao nosso desespero, e à nossa impotência ?

Assim eu sinto este jorrar de dias, de meses e de anos.  Sinto-o como alguma coisa que jamais conseguiremos parar, e que verte, insensível à nossa luta e ao nosso esbracejar, até perdermos o último fôlego.
E o que é facto, é que com ela, caminha muito de nós, esgota-se muito do melhor que nós temos.
Partem  os  sonhos  e  as esperanças, parte o ânimo e a fé em que alguma coisa de bom possa ainda acontecer ...
Com ela, esbate-se muito do que nos matou lá atrás, é verdade, mas some também muito de gratificante e doce, que já foi, afinal, e que não mais se recupera ...  porque escoou simplesmente, como a água em torrente, rumo ao mar, onde irá perder-se no meio de toda aquela infinitude ...
E a pessoa que nós fomos, vai também, porque as marcas psicológicas determinam as físicas, sem nenhuma dúvida !
E o ser humano perde tanto tempo das suas vidas !   Desperdiça-o  negligentemente,  por  desvalorização, ou  simplesmente  por  irreflexão !...

Quando estamos no meio da estrada, nem sequer no início ( porque aí há uma visão deturpada, "naïve" e inconsciente, do que isto é, na verdade ),  acreditamos que nada mudará.
Parece tudo só acontecer aos outros, tal a pujança física e emocional que experienciamos.
É o tempo da consolidação das vidas, dos sonhos.
É o tempo das conquistas, o tempo em que a semente deitada na terra, está em crescimento, para que os primeiros frutos surjam daí a pouco, e o Outono nos premeie com as grandes colheitas, aquelas que julgamos merecer, pelo esforço e aposta investidos.
Nesse período, nada nos acontecerá, pensamos.  Somos invencíveis, os "maiores", podemos tudo .  Podemos, na medida dos nossos sonhos, e esses, são imparáveis e imbatíveis.

Mas a jornada não pára.  A "torrente" continua sem estancar, e segue, parece que cada vez mais rápido, à medida que a foz espreita lá ao fundo.
As ilusões começam a mostrar que são isso mesmo, meras ilusões, e que talvez não seja bem assim, como nós imaginávamos ...

É quando começamos a valorizar as pequenas coisas da vida.
As pequenas, que quanto mais pequenas são,  maiores  parecem ser.
É quando a alma pede aconchego, o coração ... bordão !
É quando um canto, uma lareira, o céu, o sol ou a chuva, o calor do Verão ou o vento cortante da invernia, bastam ...
É quando um cólo doce que nos aninha, basta ...É quando as águas do ribeiro a gorgolejarem, ou a batida enfurecida das ondas nos rochedos,  lá  na  areia,  nos  embalam  ao  dormir,  e  velam  o  nosso  sono ...
É quando um braço que envolve os nossos, tem a força, a  robustez e a segurança,  de um tronco secular ...
É quando as lágrimas e os queixumes, mesmo tolos e inconsequentes, sentem arrego e secam em gargalhadas, só porque a trilhar o mesmo destino, temos lado a lado, quem fala a nossa língua também ...

Essas  são as pequenas / grandes coisas que nos ficam !...

Com elas, "tamponamos" de alguma forma, a tragédia que é a "correnteza" vertiginosa ;  com elas, estancamos o desespero do escuro que nos desce da solidão, e do desamparo ;  com elas, palmilhamos, com um pouco mais de conforto, a vereda em que se tornou o nosso caminho ;  com elas, dividimos ao meio, o peso do carrego ...

São elas que nas noites frias nos aquecem, e nos dias em que as folhas douradas e vermelhas de Outono já espreitam nas ramadas, nos abrigam, para os primeiros gelos do Inverno, que virá despir as árvores, à nossa porta !!!...

Anamar

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

" EU SOU UMA MERDA ... "



Há momentos da vida em que nos sentimos absolutamente sós.

Tive a minha existência demasiado atapetada, já o tenho dito.
Os meus pais primeiro, um casamento depois, como uma espécie de extensão de uma relação paternalista, não me permitiram nunca, ganhar "endurance", traquejo da realidade, de uma forma objectiva.
Não me permitiram ganhar resistência  face às dificuldades, às contrariedades, às preocupações, decepções ou mágoas.
Efectivamente, a minha resiliência é mínima, e sossobro muito facilmente.
Basta que uma das pedras do dominó caia, para que de imediato derrube todas as outras, sem parança, numa onda de tsunami que avassala e arrasta tudo, em enxurrada.
Tenho uma fragilidade emocional, provavelmente inadmissível numa mulher da minha idade.
Com um vento mais forte, como um arbusto açoitado, vergo, sem defesa.

Depois, sou egoísta e comodista.  Ou seja, dou-me pouco aos outros, centro-me demasiado, e quase exclusivamente em mim.
Habituei-me provavelmente a ser o sol, em torno do qual os planetas giram imparáveis, sem que eu olhe esses "planetas", colocando-me na sua perspectiva.
Não sei viver em "dificuldade", sendo que essa dificuldade não carece ser material ;  ao contrário, são as tempestades do coração que mais rápido me derrubam, e me dão o "knockout" perfeito, deixando-me incapaz,  confusa,  perdida,  desistente,  fora  do "tabuleiro! ...

Não sou uma pessoa  pró-activa.
Admiro por demais as pessoas que lutam, que esbracejam, que furam, que não baixam os braços, que acreditam.
Que procuram luz, mesmo sabendo que houve um "apagão" geral nas suas vidas ;  que se agarram a uma rolha de cortiça flutuante, no meio da maior borrasca ...
Essas, são pessoas de esperança, pessoas de força, pessoas capazes.

Eu sou uma merda.
Efectivamente, eu não só sou incapaz de ajudar os outros, como também, não me ajudando para poder fazê-lo, constituo  um  empecilho objectivo  adicional , para quem me cerca.

Ontem, as notícias relatavam mais uma tragédia humana, desesperante.
Uma mãe que envenenou os seus dois filhos pré-adolescentes, e se suicidou em seguida.
Juro que entendo perfeitamente essa mulher.  Quase consigo sentir o que ela terá sentido, ao cometer a loucura, a que a sociedade é rápida a apontar o dedo.
E cada vez mais, sei exactamente, como é voz corrente, que só saberá avaliar as situações, quem as viva de facto, embora, julgadores de imediato, sejamos rapidamente todos nós, com uma leveza e uma leviandade fáceis, atrevidas e inconsequentes.

A minha mãe adoeceu.  A minha mãe que está a dois meses dos noventa e dois anos, claudicou.
A "muralha" cedeu, forte e feio.
Habituei-me a ver na minha mãe, uma fortaleza, que tontamente não queria aceitar que cedesse nunca.
Aliás, o que eu acharia justo para a mulher que ela foi, seria que morresse de pé, como as árvores lá da serra.  Aquelas que engrossaram os troncos, à custa da bordoada dos ventos e tempestades, sem sossobrarem.
A minha mãe aguentou firme tudo o que a vida lhe destinou, aguentou e viveu de perto o declínio do meu pai.
Resolveu, decidiu, ordenou, fez tudo como entendeu, à revelia de opiniões, independente de vontades alheias.
Hoje, e de um dia para o outro, sem anúncio prévio, deixou o Inverno tomá-la.
Despiu-se das folhas, definhou os troncos, soltou raízes da terra ...
E eu  tenho, perante tudo isto, uma reacção estúpida, de novo.
Sofro egoisticamente, porque a minha vida pessoal se condicionou completamente ( e sinto-me monstruosa por isso ) ...  sofro, porque ela  não merece "ver-se" hoje, como está ... pela pessoa que foi toda a vida ... sofro, porque ela é uma folhinha levada para onde o vento a arrasta ( e como qualquer ser, em situação de fragilidade, incapacidade e depedência, é merecedora de compaixão ) ...
Mas depois sofro de raiva, impotência e inaceitação, por toda a devastação e degradação a que é necessário chegar-se, até se desligar o "comutador", e a sombra descer em paz ...

A minha mãe não tinha o direito de desistir ... logo agora !!!
"Por que é que ela me está a fazer isto " ?? - pareço perguntar-me, como uma criança ...

Nestes momentos de mortes anunciadas, sejam de vidas, de afectos, de amores, de sonhos, de esperanças ... nestes momentos, em que somos confrontados apenas com a nossa força, a nossa capacidade, a nossa realidade ...  nestes momentos, em que se testa a nossa "fibra", em que  se percebe quem são  realmente  as "grandes" pessoas, as pessoas de corações magnânimos, disponibilidade de alma, força espiritual,   combatividade e garra ... é que me confronto com uma solidão interior imensa, é que me confronto com a fraca dimensão do meu "eu" ...  com  a  pequenez  e  enorme imperfeição do meu ser, com a fragilidade do meu mundo emocional, com a minha falta de autonomia, enquanto gente ...

E percebo-me, como  aquele  muro sem escoras, aquela árvore sem estaca,  aquela  albufeira sem diques ...
É quando me surge sempre, cobardemente, como solução mais fácil, desistir, ausentar-me, fugir, sumir, desaparecer ...
É quando me sinto exausta, extenuada, sem forças ... Porque simplesmente, eu sou uma merda !...

Anamar

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

" O REAL DO IRREAL "



As mimosas já estão outra vez em flor, o que significa que já passou mais um ano.
A Natureza a responder ao seu ciclo ininterrupto ... por enquanto ...

É muito complicado entrar no "mundo dos loucos", ou simplesmente dos loucos que se distinguem.
Perto do portão daquela casa, na estrada, já circulam os que vêm à rua, porque a entrada é franca, e em dias em que o sol espreita, como ontem, vêm comprar tabaco ou tomar um cafezinho ali perto.
Quando os portões se transpõem, cai-se naquele mundo inverosímil, irreal, estranho ...
Tudo ali é uma peça teatral que foge aos cânones, porque as personagens contam cada uma a sua história, a que lhes vai na cabeça naquele momento, sem obedecer a nenhum enredo.

Ontem, a temperatura era amena, o sol fizera finalmente um acordo de pacificação connosco, depois de uma invernia que se tem abatido, cáustica e massacradora, há tempo  demasiado.
Ontem o dia era de tréguas, e por isso, muitos dos homens que ali vivem, estavam sentados ao sol.
A generalidade, a maioria, curvados, por forma que o horizonte próximo, fosse o chão.  O chão que lhes fica aos pés, nem sequer o espaço aberto que se desenrola aos seus olhos, por aquela largueza já verdejante, com tanta chuva que tem caído.
O céu, o sol, a Pena e o castelo ao longe, divisados com nitidez ... nada lhes interessa ou os sensibiliza.
Isso são apontamentos de outra realidade que não a sua !
E quedam-se  horas,  estáticos,  imutáveis  na  posição,  no  semblante ... em silêncio absoluto.
Será  que  pensam ?...   Pensarão  alguma  coisa ?...   Que  tipo  de  coisa ?...   Que  demais  raciocínios lhes  atravessarão o espírito ?...

Depois há os que circulam por ali, e por cada vez que connosco topam, nos dão um aperto de mão, e numa linguagem disléxica, percebe-se que falam em "moedas".  Pedem para um café, para um bolo, para uma despesa de bar.  Alguns pedem "um cigarrinho" ...
Penso que só podem fumar fora de portões.  A instituição não permite.

Mas há quem apenas verbalize "ruídos" idênticos aos de uma criança de quatro anos.  Sem parar.
Ficam impossíveis de serem ouvidos ao fim de um bocado.  Não se suportam os guinchos, misturados com gargalhadas sem nexo.

Há quem passe horas a atirar ao chão uma pedra da calçada, com uma fúria inexplicável.  Atira e recupera-a, atira e recupera-a ...
São horas concentradas nesse "trabalho" ...  Porquê ?  Que mecanismos mentais presidem a essa postura ??

O que faz alguém passar um dia a "red line", mudar de "mundo",  pautar-se por comportamentos absoluta e nitidamente  desviantes ??
O que leva toda a conformação física, inclusive, a acompanhar o desajuste mental ?
Por que nenhum daqueles "loucos" tem o facies, o andar, a postura,  a expressão, enquadrados nos parâmetros ditos de "normalidade" ??!!
Por que, para lá da mente, têm o corpo deformado ?
Claro que se coloca a questão óbvia, de discutir ou saber quais as "balizas" que definem a "normalidade", sendo que nos tempos actuais, cada vez mais esses contornos são difusos.

Ser ou ficar louco, advém de uma mera alteração física ou fisiológica?
Ser ou ficar louco, é simplesmente uma afecção tão perturbadora e determinável, como qualquer outra?
É uma predisposição orgânica, ou resulta de uma alteração patológica, como o são aquelas com que convivemos diariamente, e socialmente mais enquadradas, digamos ?
Ou pode ser uma desistência do ser humano, numa incapacidade de viver, numa recusa da realidade em que se insere ?
Ou será que pode resultar de uma inadaptabilidade de inserção nos quadros e figurinos da vida comum, o que acarreta para o indivíduo , um grau de insatisfação e desespero insuportáveis ?

E  mergulhada naquele "mix" de pensamentos e emoções, mergulhada naquela "irrealidade" real, reflectindo sobre a vida que se vive, os tempos que se desenrolam, a instabilidade doída  que se sofre, eu pensava se aqueles seres não estarão afinal, num qualquer "estado de graça", que os subtrai abençoadamente ao cataclismo emocional que nos desestrutura a todos, e nos mata aos poucos, "anestesiando-os", conferindo-lhes um indiferentismo, e uma "ausência protectora" do circundante, tornando-lhes dessa forma, a sua "diferença", numa saudável loucura ?!

É absurdo, é ilógico e é idiota, eu sei ... mas cheguei a sentir inveja.
Ali existe a paz do desapego da Vida,  existe o repouso da ausência de sobressalto, perpassa a tranquilidade que a almofada nos transmite, quando nos aninhamos para um sono reparador ...

Anamar

sábado, 26 de janeiro de 2013

" ELES NÃO COMETERAM NENHUM CRIME ... "



Fui ontem visitar o meu "afilhado", o Rudy, um cão que vivia num bairro social perto de Telheiras, no prato de uma árvore, dia e noite, chuva e sol, sem sair do mesmo sítio ... vá-se lá saber porquê !

Histórias nebulosas de vida, têm sempre estes animais que vivem no abandono, histórias nunca ou raramente confirmáveis.
O Rudy não é um cão velho, estima-se.  Apenas, como um animal totalmente negligenciado pelo destino, é velhíssimo fisicamente.
Tolhido pelas artroses, mal se locomove. É um velhinho manco, que apoia alternadamente  as patas traseiras, como que a dividir a dor que não conta, ora numa ora na outra.
Tinha e tem uma dermatite grave, que lhe forma crostas, quase uma calosidade no lombo, atrás ;  não foi sequer fadado pelo destino, em beleza.  É normalíssimo, escuro, porte médio-grande, pelo curto de cor meio indefinida, entre o preto e o cinzento.
Quem o olha, lembra o focinho de um Husky, e tem uns olhos doces, embora distantes e indiferentes.

O Rudy é Rudy, como podia ser outra coisa qualquer, como se calhar já o foi  n  coisas, por cada mão por que tenha passado ...  Da oficina de bate-chapas, de onde parece ter sido "despejado" quando a mesma fechou e o dono o esqueceu,  ou de outras mãos, outros destinos ...
Quando o chamei, à entrada da box onde se encontra na União Zoófila, achei-me ridícula.
É como se de repente, alguém resolvesse que eu me chamaria Joana em vez de Margarida, assim, por resolver ... mais um baptismo por misericórdia, na sua vida miserável ...
Que direito tenho eu de lhe chamar Rudy?

Se eles pensassem, se registassem, da  mesma  forma, com os  mesmos sentimentos  que assolam  os humanos,  perguntar-se-iam : " Quem é este ou esta, que hoje me chama com o nome que decidiu, só porque decidiu, e não pelo nome que me deram quando eu era um cachorrinho ... Sim, porque eu também fui um cachorrinho ?!"

E lá, no território do abandono, eu senti-me tão pequenina, tão ignóbil, tão envergonhada por pertencer à raça humana, que reduz aqueles seres, àquela desgraça, àquele simulacro de vida ...  que aquele pesadelo me matou por dentro.

Em corredores de dois metros de largura, as boxes desenrolam-se lado a lado, como celas de prisão, com redes à frente ;  têm uma parte coberta, escura, protectora, ao fundo, e uma descoberta, talvez com quatro metros quadrados ... não sei estimar com segurança ... um quintalzinho com chão de cimento, digamos.
Por cada box estão dois animais ;  nas maiores, vários animais ...
Alguns andam soltos por ali, com as camisolinhas vestidas, à chuva ou ao frio, mas soltos ...
Seguem os tratadores para a frente e para trás, recebem deles uma festa fugidia, ou ouvem quem passa invariavelmente dizer ... "coitadinhos" ...
Entre dentes, porque não é correcto dizer-se que são "coitadinhos".
Logo à partida,  o ser dito, tem só por si uma carga de hipocrisia.   A maioria das pessoas vai, vem, não faz muito mais.
Apazigua as consciências, levando bens materiais que efectivamente são necessários, mas não adopta os animais, não os traz consigo ...
Disponibiliza-lhes algum amor, ou algum carinho, ou alguma atenção, enquanto com eles está.  E volta ... procura fugir rápido, daquele "circo de horrores".
Procura esquecer rapidamente o espectáculo, os sons, os cheiros, a desgraça, o desconforto ... porque lhe são incómodos !

Eu sei que o óptimo é inimigo do bom, costuma dizer-se.
E conheço e reconheço, que o pouco que ali têm, vivendo precária e permanentemente de boas vontades e caridade, é muito ... é imenso ... é o possível !
Retira-os pelo menos, de um destino de total exclusão, na rua.
E conheço e reconheço, que aquela gente que se disponibiliza, e faz do tratamento destes animais, sacerdócio de vida, essa gente sim, são heróis e heroínas sem tamanho, que não conseguimos avaliar nem por aproximação !

Também sei que os corações de quem lá vai, "ordenariam" que os trouxéssemos connosco ... todos ... e isso é impossível ...
Então somos assaltados por sentimentos de culpabilização, de mau-estar, de impotência.  Não só porque lhes goramos espectativas, já que cada pessoa é um potencial adoptante, para aqueles olhos "pidões", mas também porque nos perguntamos, como podemos não ir mais vezes, pelo menos.

E os dias seguem-se às noites, e aquela "prisão" é o resto da vida de muitos dos animais que lá estão.
Muitos irão morrer ali, e entretanto os seus dias e as suas noites, não encerram nenhuma diferença.
E são exactamente os que mais precisariam, porque são velhos, feios ou doentes, os menos previsíveis de virem a ter um lar.  Porque o ser humano, uma vez mais egoistamente, se adoptar, procura um bonito, fofinho, um "brinquedo" ...
O Rudy irá morrer na União Zoófila, tenho a certeza.  O  Rudy jamais me irá reconhecer alguma coisa dele, porque o não sou, de facto ...
Por isso ele mantém os olhos doces, distantes e indiferentes !!!...

Experimento sentimentos idênticos em situações paralelas.  Só paralelas, obviamente.
Sinto o mesmo, quando visito o meu meio-irmão, como vos disse já, internado numa instituição para doentes mentais, há sessenta e dois anos.
Sinto a mesma angústia do abandono, da solidão, da desesperança, do "não-futuro".
Sinto a mesma incapacidade de reverter o que quer que seja, sinto a mesma mágoa pela injustiça da vida, sinto a mesma raiva contra mim própria , por ser privilegiada, por também ser egoísta, e não ter "arcaboiço" para ser mais presente na vida dele ...

E sinto o mesmo, face por exemplo, a "prisioneiros" de uma cama, para sempre.  Quantas vezes jovens ainda, que não têm qualquer horizonte à frente !
E pergunto-me : " Como é viver assim ?  Como é acordar cada manhã e não saber se estamos no ontem, ou se estamos no amanhã ... simplesmente porque não há amanhã " ?...
E estranhamente ou talvez não, esta coisa que chamam de Vida, e que deveria valer a pena viver-se, molda estes seres às suas realidades, e instala-lhes uma capacidade, que me pergunto donde vem ( talvez apenas da compreensão ou da percepção da inevitabilidade ), uma capacidade de aceitação, ou de indiferença, quase de uma paz que me confunde, uma ausência de reivindicação ou mesmo de rebelião interior, um aparente adormecimento do coração, que parece já não pulsar ... posto em sossego, "ad eternum" ...

Talvez não seja exactamente assim.
Talvez não seja tão dramático.  Talvez eu só esteja a ver tudo a preto e branco, neste cinzento e castigador Inverno !
Talvez todos estes sentimentos estejam mais inculcados em mim, do que neles ...
Quereria  que  fosse  assim,  e  eu  apenas  hiperbolizasse ... quereria !...

Porque os sinto todos, a pagarem uma factura de vida, de uma dimensão atroz.
Sinto-os todos, afinal, a cumprirem uma pena injusta, por um crime que não cometeram !!!...

 Anamar 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

" O DIABO PASSOU POR AQUI ..."




Frente à televisão, vejo imagens da devastação provocada no fim de semana, pela tempestade de que ainda falei no último post.
Agora que talvez o pior tenha definitivamente passado, esperamos, contabilizam-se os prejuízos e a destruição.
Milagrosamente, creio, não se registaram vítimas humanas ;  tão só danos materiais, e muitos !

Sintra, aqui bem pertinho de mim, uma zona que me é afectivamente ligada, uma jóia em termos arquitectónicos, em termos paisagísticos e ambientais, uma referência ou um cartão de visita de beleza, de paz e de romantismo, foi fortemente castigada pelo temporal.
Os ventos mais fortes, sentidos desde o ciclone de 1941, diz a comunicação social, não pouparam esse paraíso, que adormece no Atlântico, lá pela Roca ...
Cerca de cinco mil árvores centenárias, com histórias para contar, acabaram "morrendo de pé", no Monte da Lua !...

Litoral selvagem e autêntico, com nichos de beleza referenciável, como as Azenhas, a Praia Pequena, a Aguda, o Magoito ou a Ursa, ficaram com a face triste da destruição, provocada pela chuva copiosa, pelos ventos fortíssimos, e pelo mar alteroso, que com vagas de dez metros, tudo varreram, mutando o perfil já de si duro, agreste e altaneiro daquelas falésias, que sempre desafiam o oceano, com uma imponente agressividade ...

A Natureza de facto, quando eleva a voz e manda ... manda !...
Remete o Homem à sua pequenez, confina-o à sua impotência e à sua incapacidade.
É quando repensamos, às vezes, que desafiá-la como fazemos todos os dias, provocando-a, agredindo-a, destruindo-a ... é, não só um acto criminoso de dimensões que não consciencializamos frequentemente, uma insanidade sem tamanho, mas também uma  irreflexão  sobre  a  imprevisibilidade  da  agressividade  da  sua resposta !...




Também vi ontem este vídeo, que aqui posto a seguir, sobre as condições complicadas e angustiantes, sentidas na Portela, pelo tráfego aéreo, neste sábado de má memória.
E eu, que apesar de já ter viajado alguma coisa, de avião, tenho contudo virgem  em mim, o medo, o respeito, o mau-estar do marinheiro de primeira viagem ... arrepiei-me e impressionei-me uma vez mais, por confrontar  o  poder  incontrolável  dos  elementos,  com  o  poder  humano,  de  dimensões  comparativamente  insignificantes !...

Um avião, não é exactamente uma bicicleta, não é sequer um automóvel, não é um combóio ...
É aquela coisa gigantesca e impressionante, que vemos poisada nos aeroportos.   E quando olhamos as turbinas, quando nos colocamos junto das aeronaves, não somos de facto, muito mais que "mosquitos", face àquele "passarinho" !...
Pois bem, como se vê no vídeo, esses monstros dos céus, no meio da  ventania que soprava, pareciam meras folhas largadas ao vento.
Eles  balançam,  eles  bailam  no  temporal, eles falham  a  pista,  e  por  razões  de  segurança  abortam  as aterragens ... Bom, um circo de horrores !

Admiro igualmente a perícia, a sabedoria, a prudência,  o arrojo e  o  sangue frio  necessários  aos timoneiros nos comandos,  para  resolução de uma situação como aquela.
Sendo  que  obviamente  seja  espectável  que  assim  funcionem  profissionalmente  (  porque  para  todas  as  condições  são  preparados ),  voar de avião é só por si um desafio arrogante, que com o avanço da ciência e das tecnologias, o Homem se permite fazer à Natureza, em última análise.
Porque se voasse ... ele seria certamente provido de asas !!!...

Imaginei-me dentro desses "brinquedinhos dos céus", e imaginei-me com o medo que me toma habitualmente conta, a enfrentar esses momentos adversos.
Imaginei o sentimento de vulnerabilidade incontrolável, de impotência total, de pequenez e de ânsia de fugir dali, a qualquer preço ... de pânico, em suma, que experienciaria !
Já me teria agarrado com todas as forças, desesperada e ironicamente, aos braços do assento, provavelmente já teria chorado descontrolada, em silêncio, por forma que ninguém desse por isso, já teria passado uma vista  de  olhos  pela  vida,  e  aceitado  como  inevitável,  o  seu  fim,  que  na  minha  cabeça, iria  ser seguramente ali ... rsrsrs

Enfim ... tudo  isto  são  "flashes"  do  rescaldo  do  famigerado  dia 19  de  Janeiro,  que  ficará  na  memória  de  muitos  de  nós,  tenho  a  certeza !!!...


Anamar

domingo, 20 de janeiro de 2013

" FILOSOFIA DE GATO "



Esta noite não preguei olho.
A partir da meia-noite, desencadeou-se um temporal absolutamente assustador, de chuva, mas sobretudo de ventos fortíssimos, cuja previsão pusera o País quase todo, em alerta.
Quando ouvi a notícia informativa, não valorizei.  Entendi que seria um mau tempo, como volta e meia acontece.
Mas não !
Ainda não ouvi notícias, mas as rajadas de vento, conseguiram deixar-me em pânico, o que nunca tinha acontecido, desde que vivo no meu sétimo andar de uma praceta larga e franca, também aos ventos.
Toda a noite e por toda a manhã fustigaram e fustigam, com uma força que quase nos impede de andar na rua, seguramente com velocidades cilónicas.
 Na minha casa, as portas apesar de fechadas, batiam ininterruptamente, os estores também, e a chuva açoitava violentamente as vidraças.

Os gatos estavam completamente desorientados e inquietos.
A Rita passou parte da noite na minha cama, embora não com a tranquilidade habitual, até porque a temperatura desceu acentuadamente, mas o Jonas cá fora, na cozinha e na entrada, só fazia asneiras.

Entretanto eu, absolutamente só, atemorizei-me descontroladamente.
Tenho a sala principal, projectada à frente, com uma varanda de vinte metros quadrados, que em obras passadas, foi absorvida por ela, numa arquitectura com uma estrutura de alumínio, tecto ondulado, vidros, estores, tecto falso em madeira, por dentro ... enfim, uma varanda totalmente dissimulada.
Ou seja, essa minha sala que tem uma frente de oito metros, constitui toda a fachada da minha fracção.
Desde sempre, embora tenha sido uma obra meticulosamente feita na altura, e já lá vão muitos anos, não deixou de constituir uma zona de fragilidade da casa, porque se por um azar do destino, aquela estrutura é arrancada, a minha casa fica totalmente esventrada, ou seja, fico sem casa !
E isso, esta noite, com a força do vento que soprou e que aliás continua a soprar, era passível de ter acontecido, se o temporal, para sorte minha, não castigasse exactamente a parte oposta da casa, as traseiras.

Nos terraços cá de baixo, ou seja, muitos andares abaixo do meu, vagueia há muito, um gatinho preto de que já  frequentemente falei ... o "meu" Farrusco do fiambre, como o apelidei ... também já sabem.
Não há acesso a esses terraços, não sei se alguém lhe disponibiliza alguma comida.
A escassa protecção que existe, advém das abas das clarabóias do Continente, que fica por debaixo, e que se espalham pelo terraço.
Vejo-o com frequência, "coladinho" a essas estruturas, a proteger-se das condições atmosféricas adversas, quase sempre, sem sucesso !

Os animais vivem bem menos que os humanos, e a vida dos animais soltos por aí, entregues à sua sorte, é efectivamente dramática.
Os felinos têm contudo, uma filosofia de vida, espantosa.
São pacientes, pachorrentos, esperam, esperam muito, não entendo bem o que esperam, mas esperam ...
Enfrentam condições climatéricas e pessoais de sobrevivência, que não se imaginam ... ao limite ...
Vivem expostos à intempérie, dia e noite, não se alimentam muitas vezes, não têm água outras tantas, passam noites de um gelo absoluto, sem um abrigo de protecção, contraem doenças incapacitantes e morrem, muitas vezes morrem, sem uma reclamação !...
É assim ... Chegaram, cumpriram a programação, e partem !

Não sei se somos nós, os humanos, alguns humanos, que lhes atribuímos sentimentos, formas de reagir e de "pensar", enquadradas no nosso próprio figurino.
E se calhar, afinal, não é nada disso. Eles não são exactamente os "bibellots" que criamos nas nossas casas, com comida no prato, água constantemente fresca, camas fofinhas ou dormindo mesmo na nossa, com saco de água quente, ou aquecimento nas dependências onde se instalam.
Esses são os animais que nós artificializámos já ...
E até os castramos, para que acalmem, e tenham condições de vida não perturbadoras para nós, em apartamento !

A pantera da savana, o leopardo, o tigre, a chita, o leão e todos os felinos, no seu habitat natural, nascem e vivem de acordo com o seu perfil genético.
Sobrevivem, resistem ou não, de acordo com a selecção imposta pelo destino.
Buscam alimento para comer, deslocam-se muitas vezes distâncias absurdas, com todos os riscos inerentes, para beber ;  se sofrem ferimentos não têm tratamento, parem os filhos sozinhos, alimentam-nos e protegem-nos, escondem-nos dos predadores, quando ainda não se defendem nem são autónomos ... e morrem, finalmente morrem ...

Os felinos das savanas e das estepes, também são pachorrentos, pacientes, também dormem muito, e não se angustiam porque a vida só lhes concede, teoricamente aquele período para existirem.
As leoas caçam ... é assim !...
Os machos alfa são destituídos, depois de glórias de reinado, pelos mais novos ( e deprime-nos, a nós, ver um leão, limitado pela doença e pela velhice ).
Marcam território e avisam : "Aqui mandamos nós " !...
Estabelecem hierarquias ( que são respeitadas ), prioridades e regras ... inteligentemente ... e inteligentemente, deixam apenas a vida correr, por cada hoje que passa !
Não se questionam, não se amarguram, não sabem que há Tempo, há calendário, há viver, amar e morrer ...
Sentem, sabem e vivem a liberdade, que o Homem em toda a sua sabedoria, não conhece !...
A sua vida primária, selvagem, natural, como tudo o que pertence, harmoniosamente, no seu estado puro, à Natureza, está brilhantemente arquitectada, não é questionável ...
É simplesmente assim !!!... É pacificamente assim !!!...

Tenho para mim, que os animais que mais sofrem, são os que vivem junto do Homem, subtraídos ao seu ambiente de origem ... os  que  vivem  nas  cidades, expostos  a  todo  o  tipo  de  carências,  perigos  e agressões ...
São animais "acoados", acossados no meio de edifícios que os não protegem, no meio de trânsito que os agride ou os mata, no meio de gente que muitas vezes os escorraça, e lhes periga a vida.
As suas defesas são parcas, têm a água da chuva ou das sarjetas quando há, têm os contentores do lixo ou os restos, muitas vezes deteriorados já, que algumas pessoas lhes dão, ou que simplesmente abandonam pelo chão ...

Esses sim, são os animais mais injustamente entregues à sua sina, e à mão muitas vezes carrasca do ser humano ...
Serão por isso, seguramente, os mais sofredores de todos.

Entre esses, está o "meu" Farrusco do fiambre, tenho a certeza !!!...

Anamar