quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

" É SEMPRE ASSIM ... "



Quando o ser humano é submetido a uma qualquer situação de choque ou de sofrimento acima dos seus limites, normalmente reaje por fases.

Primeiramente, surpreende-se, revolta-se, entra num período de recusa e inaceitação, sente-se injustiçado, pergunta-se "porquê a si" ( como se devesse usufruir de algum privilégio em relação aos seus semelhantes ), rebela-se em desespero e impotência, interroga-se ... mas normalmente fica sem capacidade reactiva imediata, num estado cataléptico, sem poder de resposta ...
Fica simplesmente em choque, inerte, não age ... a tentar digerir ainda o que lhe está a acontecer ...

Numa fase subsequente, perante a situação fortemente adversa, torna-se interveniente, passa à acção, degladia-se, esbraceja, esgrime interpretações, ultrapassa-se na busca de soluções que imagina, inventa até o absurdo, numa tentativa de encontrar uma qualquer saída, que contornasse  a situação e repusesse a acalmia pré-traumática.
Esfalfa-se, cansa-se, luta, consegue exaurir todos os recursos que tem dentro de si, em desespero ... esgota-se !...
Os seus níveis de resistência física e mental, abanam no meio do "temporal", e poderá ter raízes sólidas que mesmo assim o mantenham preso à terra ... ou não !...

É um período de longo sofrimento e desgaste, físico e psicológico, em que são desproporcionais os recursos investidos, face aos resultados alcançados.
Quando as situações são inevitáveis e irreversíveis,  não adianta o  manancial  de esforços desenvolvidos.
Tudo continua a desenrolar-se como tem que se desenrolar, inabalavelmente, impiedosamente, sem se compadecer com o indivíduo, perdido no olho do furação, no coração da tempestade ...

Esse tempo, é um tempo de agonia, mais ou menos longo.
Ele  leva  finalmente  o indivíduo a tirar a venda dos olhos, coloca-o perante a inevitabilidade da experiência, perante a realidade objectiva, que recusa, desagrega-lhe convicções, desestrutura-lhe as capacidades, degrada-lhe as potencialidades de reacção e resposta, conturba-lhe a mente e o espírito, obriga-o a encarar finalmente o que tem entre mãos, e confronta-o com a sua ineficácia na reversão dos factos.
A esperança  vai-se, o cansaço é bem acima dos seus limites ...
É quando o indivíduo consciencializa que é assim, que nada mudará, é quando o guerreiro depõe armas, é quando se encolhem os ombros, é quando a desistência começa a imperar, é quando a algidez toma conta do náufrago à deriva, que se abandona ao destino ...

E chega-se à terceira fase do processo.
A fase de indiferença, a fase do não valer a pena, a fase de uma estranha e dolorida pacificação.
É por isso que nas grandes catástrofes, vemos pessoas com reacções estranhas  de insensibilidade, que nos surpreedem e que custamos a compreender, pessoas que parecem alheadas, adormecidas, mas que se calhar, estão é mortas por dentro.
É uma fase de uma espécie de luto de alma, ou talvez de adaptação  penosa, ou talvez de  assumpção  da real pequenez e irrelevância da sua capacidade actuante, face  à dimensão da onda gigante a que foram submetidas.
O indiferentismo patológico instalado, conduz a uma inércia de vida, a uma desistência de luta, a uma negação de tudo ...

É a fase em que a "avestruz mete a cabeça na areia " ... é a fase em que o ser humano claudica e abandona a vontade de acordar, de se reerguer, de viver ...
É a fase em que uma apatia imensa, é transversal a toda a sua vida.
O indivíduo torna-se indiferente, mesmo aos aspectos básicos e primários da mesma ...

É  como se uma longa e densa cortina de sono e silêncio, descesse sobre si e o tolhesse, enquanto ser vivente ...
Uma espécie de hibernação do coração e da alma !!!...

Anamar

domingo, 10 de fevereiro de 2013

" FUI INDO POR AÍ ..."



Agora, a minha gaivota já não é só a "minha" gaivota.

Tal como  o "Farrusco do fiambre" me namora dos terraços lá de baixo, a minha gaivota é namorada pelo meu Jonas, de cima da máquina de lavar.
E mais do que namorada, ela é cobiçada, e põe o Jonas com a adrenalina em alta, completamente desorientado em caçadas imaginárias, que lhe deixam as orelhas em riste, e os olhos ... bem, os olhos só não saltam das órbitas, porque estão bem presos.
O Jonas tem seis meses, e a inconsciência e a curiosidade, inerentes a um gatinho bébé.

Também ... a minha gaivota pavoneia-se, provocadora, sozinha, bem aqui por cima, recortada no cinzento uniforme do céu, asas esticadas, dançante na aragem ... Não há gato que resista ... mesmo os inocentes !...
Sempre sozinha ...
Também nisto nos identificamos !...

Todas as espécies viventes, passam pelas mesmas fases ... é engraçado de constatar.
A Rita, na sua terceira idade, só quer sopas e descanso, incomoda-se com as perturbações que o Jonas lhe provoca, irrita-se, refugia-se nos locais mais reservados, na meia obscuridade que a saia da camilha lhe propicia, ou saboreando o conforto do calor do saco de  água quente, dentro do seu cobertor de lã.
O Jonas é irreverente, é desvairado, só faz tropelias.  É um bébé !
Qualquer coisa é um brinquedo para ele ;  um simples lápis, é um tesouro, o rabo da Rita a mexer, deve ser uma potencial presa, a caçar ... as bolinhas que saltam, deixam-no louco !
É um jogador exímio, um guarda-redes cinco estrelas, não falha uma jogada.  Esconde os tesouros nas dobras das carpetes que enrodilha, atrás das portas, no cobertor da cama, e entrtem-se a redescobri-los ... Ou enfia tudo para debaixo do frigorífico, máquinas, móveis, o que lhe implica o esforço acrescido de se esfalfar para lhes chegar a recuperá-los ... Mas essa dificuldade deve dar-lhe um sabor especial, ou então é masoquista mesmo !
E é giro vê-lo com ar decepcionado, quando desiste de os reconquistar, simplesmente porque o Jonas já cresceu, e já não cabe em espaços onde cabia, e não lhes chega ...
Aí entro eu, com varas e varinhas, rabos de vassouras, tudo o que possa resolver o problema, e reponha à luz do dia ( por escasso tempo só, claro ), a "arca do tesouro" do Jonas !


E depois tem a doçura, a meiguice, a entrega, a suavidade de uma criança mesmo.
Aninha-se, deita-se de barriga para cima, protege os olhos da luz, no meu robe fofinho, se quer dormir ... e até ressona !  Dá beijinhos intermináveis, que são lambidelas que mais doem que acariciam, com aquela pequena língua áspera e cor-de-rosa ... A sua forma de mostrar satisfação e afecto !

São um espanto os animais ... são uma maravilha, os gatos !

Muitas vezes, só os temos a eles.
É uma pena que não falem, porque ouvir-nos, ouvem, atentamente ;  têm expressões e "vozes" diferentes, conforme a situação, e traduzem-nos o que precisamos muitas vezes sentir, na "marradinha", no roçar do corpo pelo nosso, no "abraçar" com a cauda, que envolve as nossas pernas, em sinal de conforto ou talvez de protecção ... não sei !
Eu  dizia :  "é  uma  pena  que  não  falem" ...  mas  talvez  devesse ter dito : " ainda bem que não falam",  porque  senão estragariam tudo, tirariam o encanto a tudo, vulgarizariam as emoções ou tripudiariam sobre os afectos, como o ser humano faz, afinal ...
Assim, eles ficam-se pela atitude, pela postura, pela manifestação objectiva e nunca ludibriante do que realmente sentem, sem dissimulação, sem outra intencionalidade, que  não  a  exteriorização  da  pureza  dos sentimentos,  duma  forma  leal,  gratuita,  sem  cobrança ...

Estava aqui a congeminar, olhando para trás na vida, sobre a precariedade das ligações afectivas, entre as pessoas.
O ser humano liga-se afectivamente, primeiramente, por laços de consanguinidade, os chamados laços familiares.
Esses, em essência, deverão ser duradouros, porque  como "soi dizer-se", o mesmo sangue corre nas veias, numa espécie de apelo ao sentido de clã, de "selo", de cordão umbilical nunca cortado completamente.

Depois,  os seres humanos aproximam-se pelo coração. São outro tipo de laços.
Aí temos laços de amizade, que quando verdadeira, são feitos de um material com uma resistência "à prova de bala".
Eles aguentam decepções, mágoas, ofensas, omissões ... eles rejubilam com a alegria, partilham os "pesos" excessivos, sofrem na dor, encantam-se com os êxitos, e dividem os fracassos ... eles cumpliciam, ajudam, felicitam e "sentenciam" se for o caso, pela isenção de que devem revestir-se.
É uma forma de amor incondicional, desinteressado, disponível, generoso ... canino, eu diria ...

Mas temos também laços de amor, entre os géneros.
Esses, tendem a ser bem mais frágeis e vulneráveis.
Esses, são sobretudo corroídos por uma coisa que se chama "Tempo", porque este, consegue tornar o mais místico e mágico, no mais terreno e banal.
O Tempo tira  a  "aura "  às pessoas, aos sentimentos, às convicções, às esperanças e desígnios.
Consegue banalizar o que era extraordinário, consegue endurecer o que era naturalmente doce, apaziguador, gratificante ;   consegue gerar indiferença, perante o que era indispensável ;  consegue lançar esquecimento, sobre o que era permanentemente presente ;  consegue criar distâncias e levantar muros, com uma insensibilidade absurda, entre pessoas que se respiravam ...

São de facto cordões invisíveis facilmente corruptíveis, porque são elos facilmente fragilizados, pela panóplia de vectores conflituantes e agressivos da Vida.
E só subsistem efectivamente, se forem de "fibra", se forem trabalhados laboriosamente por ambas as pessoas, se forem acreditados inapelavelmente pelos implicados, e se neles houver aposta séria ...

E os tempos actuais, tempo do descartável, tempo do facilitismo, tempo da desvalorização, o ser humano tende a enjeitar o que implica demasiada "mão de obra", deita mais facilmente fora, do que conserta, compra mais facilmente novo, do que conserva o existente ... substitui mais rapidamente, do que mantém ...

Enfim ... fui divagando por aí, neste dia cinzento e pardo, e parvo também ... em que nem a chuva que cai é assumida ... porque  é,  e  não é ...
Cai uma chuva miudinha, que com o frio, esse sim intenso que se faz sentir, nos mostra que o Inverno continua instalado ...

Razão tinha a minha gaivota, em vir visitar-nos.  À beira-mar, não se deve poder parar !!!..

Anamar

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

" AMIGOS "



Fui educada muito isolada e sozinha, já aqui o disse.
Desde cedo, que a minha mãe me monopolizou para si, como o bem mais precioso que alcançou na vida.
Foi um amor mutilador, obsessivo, limitante.
Em criança, não me era facilitado o convívio com outras crianças, mesmo colegas de colégio.  Os miúdos da rua com quem brincava, não tinham acesso à minha casa.

Era o tempo do Alentejo ...
E o espírito, era também esse ... isolamento, ensimesmamento, ausência de convívio, e portanto, de presenças. Silêncio, mesmo ...
Se olhar lá para trás, vejo com nitidez que as minhas memórias se reportam a uma casa enorme, com rés-do-chão e primeiro andar, com escada e corredor longo, e em ângulo recto ao fundo.
Lembro que das divisões do rés-do-chão ( despensa, um quarto de arrumos, vão da escada e "casa de entrada" ), eu tinha medo.
Eram espaços, à excepção da entrada, só frequentados amiúde ; sempre escuros, por serem interiores, e a vida se fazer no andar de cima.
Mas mesmo nesse, a memória que me preside, é de uma casa escura, com divisões penumbrentas, pouco habitadas, sem alma.
A cozinha era o coração da casa, porque era imensa, e lá se fazia tudo.
Cozinhava-se, comia-se, eu fazia os trabalhos de casa, na mesa grande de camilha, a costureira que vinha de quando em vez, costurava ... e até quando a minha mãe estava de catadura e deixava, eu fazia as "cantareiras" e "dava aulas" aos bonecos, atrás da porta, com os brinquedos que subiam, no caixote de madeira, da dita despensa, ao primeiro piso.
Eram momentos fugazes, porque havia que arrumar rápido, aquela transitória "perturbação" ao arranjo instituído, e portanto, a brincadeira nunca era demorada.

Essa cozinha dava acesso a um terraço ( a varanda ), que se desenvolvia nas traseiras, e era circunscrito pelo tal  "L", que a distribuição física da casa, criava.
Dessa varanda, só se avistavam telhados longos, a perder de vista, respectivamente de uma garagem de recolha, que ficava por debaixo da minha casa, e de uma serração de madeiras, que ficava ao lado.
E céu, claro ;  por cima sempre havia céu !

A varanda tinha um tanque de roupa, cordas para estender a mesma, e vasos de sardinheiras  no chão, e dependurados lateralmente a duas janelas que para lá davam, ( de um escritório, e do que seria o meu quarto de cama ).
Digo "o que seria", porque como o meu pai era viajante, e passava a maior parte do tempo fora, lembro-me  de dormir com a minha mãe, no quarto de casal, frente a este, do lado esquerdo do corredor.  Esse, com janela para a rua.

As janelas tinham persianas,  quase  permanentemente, meio ou totalmente descidas.
A minha mãe, até hoje, cultiva o gosto pela penumbra.  Não sei porquê !
Não havia televisão ainda, e por isso os serões de nós as duas, eram curtos.
As luzes só se acendiam se nós estávamos nas divisões, e como tal, lembro que à noite, a única luz que estava acesa era na cozinha ; depois, acendia-se a do corredor para nos dirigirmos ao quarto de cama e à casa de banho, ao fundo, e estas apagavam-se, quando já nos íamos recolher.
Por isso eu tinha medo também, do escuro do corredor que se estendia à direita, e da escada ( que fazia igualmente um ângulo, que impedia a visão do  andar debaixo ), que se estendia à esquerda da porta da cozinha.

Como digo, não tive portanto "amigos", aqueles amigos que as crianças, sobretudo na província, recordam como amigos que vêm  "da escola".

E sempre assim foi !
A adolescência correu igualmente pesada ;  tinha talvez umas três amigas mais chegadas, colegas de liceu, mas pouco passava disso.
Eu nunca tinha autorização para cinemas, paródias, saídas.  O máximo concedido, foi depois, já aluna de Faculdade, poder dormir em casa da que seguiu o mesmo curso que eu, e ainda assim, porque estudávamos muito durante a noite, em época de exames.   Mas não mais !

Casei, e o meu ex-marido tinha vivências totalmente opostas às minhas.
Oriundo da província, manteve exactamente desde sempre, o culto da amizade, da camaradagem, do afecto, conservou até hoje uma panóplia de amigos, daqueles que atravessam as vidas das pessoas, se acompanham, e se partilham.
Enquanto estive casada, recebíamos e éramos recebidos em casa de alguns, fazíamos férias com outros ... enfim, ele  "labutou" para que eu convivesse.
E digo "labutou", porque eu era relutante ao convívio, obviamente.  Eu, não querendo, cultivava o que a minha mãe me ensinara e me inculcara na forma de ser ... o isolamento e a solidão.

Divorciei-me, e espantosamente, esses "amigos" de tantos anos, porque me chegaram por via do casamento, também se foram, por via do divórcio.
Espantosamente !...

Hoje ... bom, hoje estou bastante só.

Conhecimentos recentes, sempre são reticentes para mim.  Conheço muitas pessoas.  Concluo que pessoas que de mim se tenham aproximado por amizade verdadeira, são muito poucas.
E sinto falta, e invejo, quem mantém e pratica a amizade propiciada pelas tertúlias de amigos, os núcleos de afinidades em termos culturais, lúdicos, de interesses, gostos, que geram afectividade, cumplicidade e apoio ... porque dessa forma conseguem suprir a ausência de familiares, que se foram perdendo ao longo da vida ...  conseguem  colmatar a mágoa da solidão ... ajudam-nos a espaldar-nos, com coração e alma, para as dificuldades que todos os dias nos enfrentam ... permitem-nos dividirmos as dificuldades e as preocupações que nos espreitam em crescendo, numa fase da vida, em que as "raízes", pelas mais variadas razões, se vão soltando ...

Porque quem tiver amigos, nunca estará só ...

É frase feita, mas de facto, acredito que eles são a família que nos sobra, depois da nossa família real, se ter diluído pelas vissicitudes e agruras do caminho ...

Anamar

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

" PELO ARCO-ÍRIS ABAIXO ... "


Bob Marley, o ícone do espiritualismo jamaicano, o homem do "reggae", disse : " É estranho sentir saudade de algo que mal vivi, ou aceitava viver " ...

E será possível sentir saudade de algo que nunca se viveu, e só se sonhou ?
Eu sinto ... estranhamente ou não !...
É que o meu sonho é tão longamente sonhado, tão arduamente desejado, tão minuciosamente concebido, que vira realidade no meu coração !
Torna-se uma realidade minha, de direito !

Sinto  portanto, muitas  saudades do que  se  projecta  adiante, e não as saudades   com  "efeitos retro-activos",  como  é  de  praxe  sentirem-se ...

Estou a ficar louca.  Acho que estou "a bater" cada vez pior.
Não encontro nenhuma forma de lógica de vida, por cada dia que passa.
Dias sucedem-se a dias, a que se sucedem noites, sendo que essas são os períodos de tréguas.
Os dias são longos, demasiado longos, e a vida é curta, demasiado curta.
E as cores do arco-íris emigraram.
No céu, agora desenha-se um arco sempre a cinzento.  E os meninos que diziam em lenga-lenga : "está a chover e a fazer sol, e as bruxas a comer pão mole " ... agora olham para o céu, e não acham mais aquele escorrega de muitas cores, para brincarem nas nuvens.
Acabou a hora do recreio !!!

E os dias são tão pesados !

Por que têm as pessoas que aguentar carregos, para que não têm força na alma ?
"Deus dá a roupa, conforme o frio" ... diria a minha mãe.
Então, o tal Deus, devia dar as forças de acordo com os fardos, ou isto vai forçosamente tombar ... porque milagres, ninguém faz !...

Todo o ser humano precisa saber-se valorizado, sentir-se acarinhado.
Todo o ser humano precisa de sentir um lastro de apoio, de aconchego, de afecto.
Canso-me de escrever, porque me canso de dizer, porque me canso de pensar, e sei que estou certa.
Porque no fim de cada dia de luta ( porque os tempos são efectivamente de luta, de exigência absurda, de desilusões e insucessos, de loucura colectiva, de esforço e fadiga muito acima do suportável ), se não for o calor de um embalo para o coração, de um berço para a alma, de um sorriso cúmplice, e de um corpo que nos aninhe, não há capacidade para se reincidir, acordando, no dia seguinte ... não há estímulo para continuar a esgatanhar-se, cravando as garras na vida, mais e mais, não há ânimo sequer para se abrirem os olhos, encarando outra onda de dez metros, que vem lá ao fundo !...

E no entanto, cada vez mais as pessoas estão sozinhas num Mundo sobrelotado, numa realidade não gratificante de individualismo, de "salve-se quem puder" ...
Cada vez mais, é cada um por si, náufragos à deriva, num oceano encapelado ...

E quando acordarmos um dia, se esse dia chegar, o relógio marcará já, as horas de recolher, e nenhuma alvorada nascerá mais, para nos receber ...
Aí, teremos encerrado o último capítulo que vínhamos a escrever aos poucos ... morrer  um  bocadinho,  por  cada  dia  que  entretanto  passou !!!...

Anamar

sábado, 2 de fevereiro de 2013

" O CAUDAL QUE NÃO PÁRA "



Custo a deitar fora as agendas de um ano para o outro, até mesmo de uns anos para os outros.
Copio telefones, contactos e apontamentos necessários, e guardo a agenda, sempre para deitar fora depois.
Na agenda, registo amiúde, pequenos textos sobre este ou aquele acontecimento que ocorreu, e que foi importante.  E são esses textos que depois releio, folheando, um ano, ou anos depois.
Dou por mim a pensar : "Como  foi  o  meu  primeiro  de  Fevereiro do  ano passado ?  Estaria feliz ? Mais triste ?  Como era o estado de espírito, que as palavras deixam escapar ? "

E acontece com muita frequência, que "revejo" com nitidez absoluta, esta ou aquela ocorrência ;  revisito os locais, oiço os sons, sinto os cheiros, vejo as tonalidades do que me cercava, e conto as batidas cardíacas que me assaltavam ... há um ano atrás, às vezes mais ...
É uma visita guiada, que muitas vezes me emociona, me deixa saudosa, nostálgica, sofrida ...
Se mais não for, porque consciencializo que o tempo correu, correu depressa demais, inevitavelmente, o que me instala um desespero que não consigo explicar.

Sabem quando se tem uma ruptura de um cano, donde a água jorra sem conseguirmos estancá-la ?
E desesperamos a tentar tamponá-la, embora no seu caudal ela vença as barreiras e corra indiferente ?
Até que desistimos, porque percebemos que não teremos sucesso, porque ela sempre irá continuar a correr, indiferente ao nosso desespero, e à nossa impotência ?

Assim eu sinto este jorrar de dias, de meses e de anos.  Sinto-o como alguma coisa que jamais conseguiremos parar, e que verte, insensível à nossa luta e ao nosso esbracejar, até perdermos o último fôlego.
E o que é facto, é que com ela, caminha muito de nós, esgota-se muito do melhor que nós temos.
Partem  os  sonhos  e  as esperanças, parte o ânimo e a fé em que alguma coisa de bom possa ainda acontecer ...
Com ela, esbate-se muito do que nos matou lá atrás, é verdade, mas some também muito de gratificante e doce, que já foi, afinal, e que não mais se recupera ...  porque escoou simplesmente, como a água em torrente, rumo ao mar, onde irá perder-se no meio de toda aquela infinitude ...
E a pessoa que nós fomos, vai também, porque as marcas psicológicas determinam as físicas, sem nenhuma dúvida !
E o ser humano perde tanto tempo das suas vidas !   Desperdiça-o  negligentemente,  por  desvalorização, ou  simplesmente  por  irreflexão !...

Quando estamos no meio da estrada, nem sequer no início ( porque aí há uma visão deturpada, "naïve" e inconsciente, do que isto é, na verdade ),  acreditamos que nada mudará.
Parece tudo só acontecer aos outros, tal a pujança física e emocional que experienciamos.
É o tempo da consolidação das vidas, dos sonhos.
É o tempo das conquistas, o tempo em que a semente deitada na terra, está em crescimento, para que os primeiros frutos surjam daí a pouco, e o Outono nos premeie com as grandes colheitas, aquelas que julgamos merecer, pelo esforço e aposta investidos.
Nesse período, nada nos acontecerá, pensamos.  Somos invencíveis, os "maiores", podemos tudo .  Podemos, na medida dos nossos sonhos, e esses, são imparáveis e imbatíveis.

Mas a jornada não pára.  A "torrente" continua sem estancar, e segue, parece que cada vez mais rápido, à medida que a foz espreita lá ao fundo.
As ilusões começam a mostrar que são isso mesmo, meras ilusões, e que talvez não seja bem assim, como nós imaginávamos ...

É quando começamos a valorizar as pequenas coisas da vida.
As pequenas, que quanto mais pequenas são,  maiores  parecem ser.
É quando a alma pede aconchego, o coração ... bordão !
É quando um canto, uma lareira, o céu, o sol ou a chuva, o calor do Verão ou o vento cortante da invernia, bastam ...
É quando um cólo doce que nos aninha, basta ...É quando as águas do ribeiro a gorgolejarem, ou a batida enfurecida das ondas nos rochedos,  lá  na  areia,  nos  embalam  ao  dormir,  e  velam  o  nosso  sono ...
É quando um braço que envolve os nossos, tem a força, a  robustez e a segurança,  de um tronco secular ...
É quando as lágrimas e os queixumes, mesmo tolos e inconsequentes, sentem arrego e secam em gargalhadas, só porque a trilhar o mesmo destino, temos lado a lado, quem fala a nossa língua também ...

Essas  são as pequenas / grandes coisas que nos ficam !...

Com elas, "tamponamos" de alguma forma, a tragédia que é a "correnteza" vertiginosa ;  com elas, estancamos o desespero do escuro que nos desce da solidão, e do desamparo ;  com elas, palmilhamos, com um pouco mais de conforto, a vereda em que se tornou o nosso caminho ;  com elas, dividimos ao meio, o peso do carrego ...

São elas que nas noites frias nos aquecem, e nos dias em que as folhas douradas e vermelhas de Outono já espreitam nas ramadas, nos abrigam, para os primeiros gelos do Inverno, que virá despir as árvores, à nossa porta !!!...

Anamar

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

" EU SOU UMA MERDA ... "



Há momentos da vida em que nos sentimos absolutamente sós.

Tive a minha existência demasiado atapetada, já o tenho dito.
Os meus pais primeiro, um casamento depois, como uma espécie de extensão de uma relação paternalista, não me permitiram nunca, ganhar "endurance", traquejo da realidade, de uma forma objectiva.
Não me permitiram ganhar resistência  face às dificuldades, às contrariedades, às preocupações, decepções ou mágoas.
Efectivamente, a minha resiliência é mínima, e sossobro muito facilmente.
Basta que uma das pedras do dominó caia, para que de imediato derrube todas as outras, sem parança, numa onda de tsunami que avassala e arrasta tudo, em enxurrada.
Tenho uma fragilidade emocional, provavelmente inadmissível numa mulher da minha idade.
Com um vento mais forte, como um arbusto açoitado, vergo, sem defesa.

Depois, sou egoísta e comodista.  Ou seja, dou-me pouco aos outros, centro-me demasiado, e quase exclusivamente em mim.
Habituei-me provavelmente a ser o sol, em torno do qual os planetas giram imparáveis, sem que eu olhe esses "planetas", colocando-me na sua perspectiva.
Não sei viver em "dificuldade", sendo que essa dificuldade não carece ser material ;  ao contrário, são as tempestades do coração que mais rápido me derrubam, e me dão o "knockout" perfeito, deixando-me incapaz,  confusa,  perdida,  desistente,  fora  do "tabuleiro! ...

Não sou uma pessoa  pró-activa.
Admiro por demais as pessoas que lutam, que esbracejam, que furam, que não baixam os braços, que acreditam.
Que procuram luz, mesmo sabendo que houve um "apagão" geral nas suas vidas ;  que se agarram a uma rolha de cortiça flutuante, no meio da maior borrasca ...
Essas, são pessoas de esperança, pessoas de força, pessoas capazes.

Eu sou uma merda.
Efectivamente, eu não só sou incapaz de ajudar os outros, como também, não me ajudando para poder fazê-lo, constituo  um  empecilho objectivo  adicional , para quem me cerca.

Ontem, as notícias relatavam mais uma tragédia humana, desesperante.
Uma mãe que envenenou os seus dois filhos pré-adolescentes, e se suicidou em seguida.
Juro que entendo perfeitamente essa mulher.  Quase consigo sentir o que ela terá sentido, ao cometer a loucura, a que a sociedade é rápida a apontar o dedo.
E cada vez mais, sei exactamente, como é voz corrente, que só saberá avaliar as situações, quem as viva de facto, embora, julgadores de imediato, sejamos rapidamente todos nós, com uma leveza e uma leviandade fáceis, atrevidas e inconsequentes.

A minha mãe adoeceu.  A minha mãe que está a dois meses dos noventa e dois anos, claudicou.
A "muralha" cedeu, forte e feio.
Habituei-me a ver na minha mãe, uma fortaleza, que tontamente não queria aceitar que cedesse nunca.
Aliás, o que eu acharia justo para a mulher que ela foi, seria que morresse de pé, como as árvores lá da serra.  Aquelas que engrossaram os troncos, à custa da bordoada dos ventos e tempestades, sem sossobrarem.
A minha mãe aguentou firme tudo o que a vida lhe destinou, aguentou e viveu de perto o declínio do meu pai.
Resolveu, decidiu, ordenou, fez tudo como entendeu, à revelia de opiniões, independente de vontades alheias.
Hoje, e de um dia para o outro, sem anúncio prévio, deixou o Inverno tomá-la.
Despiu-se das folhas, definhou os troncos, soltou raízes da terra ...
E eu  tenho, perante tudo isto, uma reacção estúpida, de novo.
Sofro egoisticamente, porque a minha vida pessoal se condicionou completamente ( e sinto-me monstruosa por isso ) ...  sofro, porque ela  não merece "ver-se" hoje, como está ... pela pessoa que foi toda a vida ... sofro, porque ela é uma folhinha levada para onde o vento a arrasta ( e como qualquer ser, em situação de fragilidade, incapacidade e depedência, é merecedora de compaixão ) ...
Mas depois sofro de raiva, impotência e inaceitação, por toda a devastação e degradação a que é necessário chegar-se, até se desligar o "comutador", e a sombra descer em paz ...

A minha mãe não tinha o direito de desistir ... logo agora !!!
"Por que é que ela me está a fazer isto " ?? - pareço perguntar-me, como uma criança ...

Nestes momentos de mortes anunciadas, sejam de vidas, de afectos, de amores, de sonhos, de esperanças ... nestes momentos, em que somos confrontados apenas com a nossa força, a nossa capacidade, a nossa realidade ...  nestes momentos, em que se testa a nossa "fibra", em que  se percebe quem são  realmente  as "grandes" pessoas, as pessoas de corações magnânimos, disponibilidade de alma, força espiritual,   combatividade e garra ... é que me confronto com uma solidão interior imensa, é que me confronto com a fraca dimensão do meu "eu" ...  com  a  pequenez  e  enorme imperfeição do meu ser, com a fragilidade do meu mundo emocional, com a minha falta de autonomia, enquanto gente ...

E percebo-me, como  aquele  muro sem escoras, aquela árvore sem estaca,  aquela  albufeira sem diques ...
É quando me surge sempre, cobardemente, como solução mais fácil, desistir, ausentar-me, fugir, sumir, desaparecer ...
É quando me sinto exausta, extenuada, sem forças ... Porque simplesmente, eu sou uma merda !...

Anamar

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

" O REAL DO IRREAL "



As mimosas já estão outra vez em flor, o que significa que já passou mais um ano.
A Natureza a responder ao seu ciclo ininterrupto ... por enquanto ...

É muito complicado entrar no "mundo dos loucos", ou simplesmente dos loucos que se distinguem.
Perto do portão daquela casa, na estrada, já circulam os que vêm à rua, porque a entrada é franca, e em dias em que o sol espreita, como ontem, vêm comprar tabaco ou tomar um cafezinho ali perto.
Quando os portões se transpõem, cai-se naquele mundo inverosímil, irreal, estranho ...
Tudo ali é uma peça teatral que foge aos cânones, porque as personagens contam cada uma a sua história, a que lhes vai na cabeça naquele momento, sem obedecer a nenhum enredo.

Ontem, a temperatura era amena, o sol fizera finalmente um acordo de pacificação connosco, depois de uma invernia que se tem abatido, cáustica e massacradora, há tempo  demasiado.
Ontem o dia era de tréguas, e por isso, muitos dos homens que ali vivem, estavam sentados ao sol.
A generalidade, a maioria, curvados, por forma que o horizonte próximo, fosse o chão.  O chão que lhes fica aos pés, nem sequer o espaço aberto que se desenrola aos seus olhos, por aquela largueza já verdejante, com tanta chuva que tem caído.
O céu, o sol, a Pena e o castelo ao longe, divisados com nitidez ... nada lhes interessa ou os sensibiliza.
Isso são apontamentos de outra realidade que não a sua !
E quedam-se  horas,  estáticos,  imutáveis  na  posição,  no  semblante ... em silêncio absoluto.
Será  que  pensam ?...   Pensarão  alguma  coisa ?...   Que  tipo  de  coisa ?...   Que  demais  raciocínios lhes  atravessarão o espírito ?...

Depois há os que circulam por ali, e por cada vez que connosco topam, nos dão um aperto de mão, e numa linguagem disléxica, percebe-se que falam em "moedas".  Pedem para um café, para um bolo, para uma despesa de bar.  Alguns pedem "um cigarrinho" ...
Penso que só podem fumar fora de portões.  A instituição não permite.

Mas há quem apenas verbalize "ruídos" idênticos aos de uma criança de quatro anos.  Sem parar.
Ficam impossíveis de serem ouvidos ao fim de um bocado.  Não se suportam os guinchos, misturados com gargalhadas sem nexo.

Há quem passe horas a atirar ao chão uma pedra da calçada, com uma fúria inexplicável.  Atira e recupera-a, atira e recupera-a ...
São horas concentradas nesse "trabalho" ...  Porquê ?  Que mecanismos mentais presidem a essa postura ??

O que faz alguém passar um dia a "red line", mudar de "mundo",  pautar-se por comportamentos absoluta e nitidamente  desviantes ??
O que leva toda a conformação física, inclusive, a acompanhar o desajuste mental ?
Por que nenhum daqueles "loucos" tem o facies, o andar, a postura,  a expressão, enquadrados nos parâmetros ditos de "normalidade" ??!!
Por que, para lá da mente, têm o corpo deformado ?
Claro que se coloca a questão óbvia, de discutir ou saber quais as "balizas" que definem a "normalidade", sendo que nos tempos actuais, cada vez mais esses contornos são difusos.

Ser ou ficar louco, advém de uma mera alteração física ou fisiológica?
Ser ou ficar louco, é simplesmente uma afecção tão perturbadora e determinável, como qualquer outra?
É uma predisposição orgânica, ou resulta de uma alteração patológica, como o são aquelas com que convivemos diariamente, e socialmente mais enquadradas, digamos ?
Ou pode ser uma desistência do ser humano, numa incapacidade de viver, numa recusa da realidade em que se insere ?
Ou será que pode resultar de uma inadaptabilidade de inserção nos quadros e figurinos da vida comum, o que acarreta para o indivíduo , um grau de insatisfação e desespero insuportáveis ?

E  mergulhada naquele "mix" de pensamentos e emoções, mergulhada naquela "irrealidade" real, reflectindo sobre a vida que se vive, os tempos que se desenrolam, a instabilidade doída  que se sofre, eu pensava se aqueles seres não estarão afinal, num qualquer "estado de graça", que os subtrai abençoadamente ao cataclismo emocional que nos desestrutura a todos, e nos mata aos poucos, "anestesiando-os", conferindo-lhes um indiferentismo, e uma "ausência protectora" do circundante, tornando-lhes dessa forma, a sua "diferença", numa saudável loucura ?!

É absurdo, é ilógico e é idiota, eu sei ... mas cheguei a sentir inveja.
Ali existe a paz do desapego da Vida,  existe o repouso da ausência de sobressalto, perpassa a tranquilidade que a almofada nos transmite, quando nos aninhamos para um sono reparador ...

Anamar

sábado, 26 de janeiro de 2013

" ELES NÃO COMETERAM NENHUM CRIME ... "



Fui ontem visitar o meu "afilhado", o Rudy, um cão que vivia num bairro social perto de Telheiras, no prato de uma árvore, dia e noite, chuva e sol, sem sair do mesmo sítio ... vá-se lá saber porquê !

Histórias nebulosas de vida, têm sempre estes animais que vivem no abandono, histórias nunca ou raramente confirmáveis.
O Rudy não é um cão velho, estima-se.  Apenas, como um animal totalmente negligenciado pelo destino, é velhíssimo fisicamente.
Tolhido pelas artroses, mal se locomove. É um velhinho manco, que apoia alternadamente  as patas traseiras, como que a dividir a dor que não conta, ora numa ora na outra.
Tinha e tem uma dermatite grave, que lhe forma crostas, quase uma calosidade no lombo, atrás ;  não foi sequer fadado pelo destino, em beleza.  É normalíssimo, escuro, porte médio-grande, pelo curto de cor meio indefinida, entre o preto e o cinzento.
Quem o olha, lembra o focinho de um Husky, e tem uns olhos doces, embora distantes e indiferentes.

O Rudy é Rudy, como podia ser outra coisa qualquer, como se calhar já o foi  n  coisas, por cada mão por que tenha passado ...  Da oficina de bate-chapas, de onde parece ter sido "despejado" quando a mesma fechou e o dono o esqueceu,  ou de outras mãos, outros destinos ...
Quando o chamei, à entrada da box onde se encontra na União Zoófila, achei-me ridícula.
É como se de repente, alguém resolvesse que eu me chamaria Joana em vez de Margarida, assim, por resolver ... mais um baptismo por misericórdia, na sua vida miserável ...
Que direito tenho eu de lhe chamar Rudy?

Se eles pensassem, se registassem, da  mesma  forma, com os  mesmos sentimentos  que assolam  os humanos,  perguntar-se-iam : " Quem é este ou esta, que hoje me chama com o nome que decidiu, só porque decidiu, e não pelo nome que me deram quando eu era um cachorrinho ... Sim, porque eu também fui um cachorrinho ?!"

E lá, no território do abandono, eu senti-me tão pequenina, tão ignóbil, tão envergonhada por pertencer à raça humana, que reduz aqueles seres, àquela desgraça, àquele simulacro de vida ...  que aquele pesadelo me matou por dentro.

Em corredores de dois metros de largura, as boxes desenrolam-se lado a lado, como celas de prisão, com redes à frente ;  têm uma parte coberta, escura, protectora, ao fundo, e uma descoberta, talvez com quatro metros quadrados ... não sei estimar com segurança ... um quintalzinho com chão de cimento, digamos.
Por cada box estão dois animais ;  nas maiores, vários animais ...
Alguns andam soltos por ali, com as camisolinhas vestidas, à chuva ou ao frio, mas soltos ...
Seguem os tratadores para a frente e para trás, recebem deles uma festa fugidia, ou ouvem quem passa invariavelmente dizer ... "coitadinhos" ...
Entre dentes, porque não é correcto dizer-se que são "coitadinhos".
Logo à partida,  o ser dito, tem só por si uma carga de hipocrisia.   A maioria das pessoas vai, vem, não faz muito mais.
Apazigua as consciências, levando bens materiais que efectivamente são necessários, mas não adopta os animais, não os traz consigo ...
Disponibiliza-lhes algum amor, ou algum carinho, ou alguma atenção, enquanto com eles está.  E volta ... procura fugir rápido, daquele "circo de horrores".
Procura esquecer rapidamente o espectáculo, os sons, os cheiros, a desgraça, o desconforto ... porque lhe são incómodos !

Eu sei que o óptimo é inimigo do bom, costuma dizer-se.
E conheço e reconheço, que o pouco que ali têm, vivendo precária e permanentemente de boas vontades e caridade, é muito ... é imenso ... é o possível !
Retira-os pelo menos, de um destino de total exclusão, na rua.
E conheço e reconheço, que aquela gente que se disponibiliza, e faz do tratamento destes animais, sacerdócio de vida, essa gente sim, são heróis e heroínas sem tamanho, que não conseguimos avaliar nem por aproximação !

Também sei que os corações de quem lá vai, "ordenariam" que os trouxéssemos connosco ... todos ... e isso é impossível ...
Então somos assaltados por sentimentos de culpabilização, de mau-estar, de impotência.  Não só porque lhes goramos espectativas, já que cada pessoa é um potencial adoptante, para aqueles olhos "pidões", mas também porque nos perguntamos, como podemos não ir mais vezes, pelo menos.

E os dias seguem-se às noites, e aquela "prisão" é o resto da vida de muitos dos animais que lá estão.
Muitos irão morrer ali, e entretanto os seus dias e as suas noites, não encerram nenhuma diferença.
E são exactamente os que mais precisariam, porque são velhos, feios ou doentes, os menos previsíveis de virem a ter um lar.  Porque o ser humano, uma vez mais egoistamente, se adoptar, procura um bonito, fofinho, um "brinquedo" ...
O Rudy irá morrer na União Zoófila, tenho a certeza.  O  Rudy jamais me irá reconhecer alguma coisa dele, porque o não sou, de facto ...
Por isso ele mantém os olhos doces, distantes e indiferentes !!!...

Experimento sentimentos idênticos em situações paralelas.  Só paralelas, obviamente.
Sinto o mesmo, quando visito o meu meio-irmão, como vos disse já, internado numa instituição para doentes mentais, há sessenta e dois anos.
Sinto a mesma angústia do abandono, da solidão, da desesperança, do "não-futuro".
Sinto a mesma incapacidade de reverter o que quer que seja, sinto a mesma mágoa pela injustiça da vida, sinto a mesma raiva contra mim própria , por ser privilegiada, por também ser egoísta, e não ter "arcaboiço" para ser mais presente na vida dele ...

E sinto o mesmo, face por exemplo, a "prisioneiros" de uma cama, para sempre.  Quantas vezes jovens ainda, que não têm qualquer horizonte à frente !
E pergunto-me : " Como é viver assim ?  Como é acordar cada manhã e não saber se estamos no ontem, ou se estamos no amanhã ... simplesmente porque não há amanhã " ?...
E estranhamente ou talvez não, esta coisa que chamam de Vida, e que deveria valer a pena viver-se, molda estes seres às suas realidades, e instala-lhes uma capacidade, que me pergunto donde vem ( talvez apenas da compreensão ou da percepção da inevitabilidade ), uma capacidade de aceitação, ou de indiferença, quase de uma paz que me confunde, uma ausência de reivindicação ou mesmo de rebelião interior, um aparente adormecimento do coração, que parece já não pulsar ... posto em sossego, "ad eternum" ...

Talvez não seja exactamente assim.
Talvez não seja tão dramático.  Talvez eu só esteja a ver tudo a preto e branco, neste cinzento e castigador Inverno !
Talvez todos estes sentimentos estejam mais inculcados em mim, do que neles ...
Quereria  que  fosse  assim,  e  eu  apenas  hiperbolizasse ... quereria !...

Porque os sinto todos, a pagarem uma factura de vida, de uma dimensão atroz.
Sinto-os todos, afinal, a cumprirem uma pena injusta, por um crime que não cometeram !!!...

 Anamar 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

" O DIABO PASSOU POR AQUI ..."




Frente à televisão, vejo imagens da devastação provocada no fim de semana, pela tempestade de que ainda falei no último post.
Agora que talvez o pior tenha definitivamente passado, esperamos, contabilizam-se os prejuízos e a destruição.
Milagrosamente, creio, não se registaram vítimas humanas ;  tão só danos materiais, e muitos !

Sintra, aqui bem pertinho de mim, uma zona que me é afectivamente ligada, uma jóia em termos arquitectónicos, em termos paisagísticos e ambientais, uma referência ou um cartão de visita de beleza, de paz e de romantismo, foi fortemente castigada pelo temporal.
Os ventos mais fortes, sentidos desde o ciclone de 1941, diz a comunicação social, não pouparam esse paraíso, que adormece no Atlântico, lá pela Roca ...
Cerca de cinco mil árvores centenárias, com histórias para contar, acabaram "morrendo de pé", no Monte da Lua !...

Litoral selvagem e autêntico, com nichos de beleza referenciável, como as Azenhas, a Praia Pequena, a Aguda, o Magoito ou a Ursa, ficaram com a face triste da destruição, provocada pela chuva copiosa, pelos ventos fortíssimos, e pelo mar alteroso, que com vagas de dez metros, tudo varreram, mutando o perfil já de si duro, agreste e altaneiro daquelas falésias, que sempre desafiam o oceano, com uma imponente agressividade ...

A Natureza de facto, quando eleva a voz e manda ... manda !...
Remete o Homem à sua pequenez, confina-o à sua impotência e à sua incapacidade.
É quando repensamos, às vezes, que desafiá-la como fazemos todos os dias, provocando-a, agredindo-a, destruindo-a ... é, não só um acto criminoso de dimensões que não consciencializamos frequentemente, uma insanidade sem tamanho, mas também uma  irreflexão  sobre  a  imprevisibilidade  da  agressividade  da  sua resposta !...




Também vi ontem este vídeo, que aqui posto a seguir, sobre as condições complicadas e angustiantes, sentidas na Portela, pelo tráfego aéreo, neste sábado de má memória.
E eu, que apesar de já ter viajado alguma coisa, de avião, tenho contudo virgem  em mim, o medo, o respeito, o mau-estar do marinheiro de primeira viagem ... arrepiei-me e impressionei-me uma vez mais, por confrontar  o  poder  incontrolável  dos  elementos,  com  o  poder  humano,  de  dimensões  comparativamente  insignificantes !...

Um avião, não é exactamente uma bicicleta, não é sequer um automóvel, não é um combóio ...
É aquela coisa gigantesca e impressionante, que vemos poisada nos aeroportos.   E quando olhamos as turbinas, quando nos colocamos junto das aeronaves, não somos de facto, muito mais que "mosquitos", face àquele "passarinho" !...
Pois bem, como se vê no vídeo, esses monstros dos céus, no meio da  ventania que soprava, pareciam meras folhas largadas ao vento.
Eles  balançam,  eles  bailam  no  temporal, eles falham  a  pista,  e  por  razões  de  segurança  abortam  as aterragens ... Bom, um circo de horrores !

Admiro igualmente a perícia, a sabedoria, a prudência,  o arrojo e  o  sangue frio  necessários  aos timoneiros nos comandos,  para  resolução de uma situação como aquela.
Sendo  que  obviamente  seja  espectável  que  assim  funcionem  profissionalmente  (  porque  para  todas  as  condições  são  preparados ),  voar de avião é só por si um desafio arrogante, que com o avanço da ciência e das tecnologias, o Homem se permite fazer à Natureza, em última análise.
Porque se voasse ... ele seria certamente provido de asas !!!...

Imaginei-me dentro desses "brinquedinhos dos céus", e imaginei-me com o medo que me toma habitualmente conta, a enfrentar esses momentos adversos.
Imaginei o sentimento de vulnerabilidade incontrolável, de impotência total, de pequenez e de ânsia de fugir dali, a qualquer preço ... de pânico, em suma, que experienciaria !
Já me teria agarrado com todas as forças, desesperada e ironicamente, aos braços do assento, provavelmente já teria chorado descontrolada, em silêncio, por forma que ninguém desse por isso, já teria passado uma vista  de  olhos  pela  vida,  e  aceitado  como  inevitável,  o  seu  fim,  que  na  minha  cabeça, iria  ser seguramente ali ... rsrsrs

Enfim ... tudo  isto  são  "flashes"  do  rescaldo  do  famigerado  dia 19  de  Janeiro,  que  ficará  na  memória  de  muitos  de  nós,  tenho  a  certeza !!!...


Anamar

domingo, 20 de janeiro de 2013

" FILOSOFIA DE GATO "



Esta noite não preguei olho.
A partir da meia-noite, desencadeou-se um temporal absolutamente assustador, de chuva, mas sobretudo de ventos fortíssimos, cuja previsão pusera o País quase todo, em alerta.
Quando ouvi a notícia informativa, não valorizei.  Entendi que seria um mau tempo, como volta e meia acontece.
Mas não !
Ainda não ouvi notícias, mas as rajadas de vento, conseguiram deixar-me em pânico, o que nunca tinha acontecido, desde que vivo no meu sétimo andar de uma praceta larga e franca, também aos ventos.
Toda a noite e por toda a manhã fustigaram e fustigam, com uma força que quase nos impede de andar na rua, seguramente com velocidades cilónicas.
 Na minha casa, as portas apesar de fechadas, batiam ininterruptamente, os estores também, e a chuva açoitava violentamente as vidraças.

Os gatos estavam completamente desorientados e inquietos.
A Rita passou parte da noite na minha cama, embora não com a tranquilidade habitual, até porque a temperatura desceu acentuadamente, mas o Jonas cá fora, na cozinha e na entrada, só fazia asneiras.

Entretanto eu, absolutamente só, atemorizei-me descontroladamente.
Tenho a sala principal, projectada à frente, com uma varanda de vinte metros quadrados, que em obras passadas, foi absorvida por ela, numa arquitectura com uma estrutura de alumínio, tecto ondulado, vidros, estores, tecto falso em madeira, por dentro ... enfim, uma varanda totalmente dissimulada.
Ou seja, essa minha sala que tem uma frente de oito metros, constitui toda a fachada da minha fracção.
Desde sempre, embora tenha sido uma obra meticulosamente feita na altura, e já lá vão muitos anos, não deixou de constituir uma zona de fragilidade da casa, porque se por um azar do destino, aquela estrutura é arrancada, a minha casa fica totalmente esventrada, ou seja, fico sem casa !
E isso, esta noite, com a força do vento que soprou e que aliás continua a soprar, era passível de ter acontecido, se o temporal, para sorte minha, não castigasse exactamente a parte oposta da casa, as traseiras.

Nos terraços cá de baixo, ou seja, muitos andares abaixo do meu, vagueia há muito, um gatinho preto de que já  frequentemente falei ... o "meu" Farrusco do fiambre, como o apelidei ... também já sabem.
Não há acesso a esses terraços, não sei se alguém lhe disponibiliza alguma comida.
A escassa protecção que existe, advém das abas das clarabóias do Continente, que fica por debaixo, e que se espalham pelo terraço.
Vejo-o com frequência, "coladinho" a essas estruturas, a proteger-se das condições atmosféricas adversas, quase sempre, sem sucesso !

Os animais vivem bem menos que os humanos, e a vida dos animais soltos por aí, entregues à sua sorte, é efectivamente dramática.
Os felinos têm contudo, uma filosofia de vida, espantosa.
São pacientes, pachorrentos, esperam, esperam muito, não entendo bem o que esperam, mas esperam ...
Enfrentam condições climatéricas e pessoais de sobrevivência, que não se imaginam ... ao limite ...
Vivem expostos à intempérie, dia e noite, não se alimentam muitas vezes, não têm água outras tantas, passam noites de um gelo absoluto, sem um abrigo de protecção, contraem doenças incapacitantes e morrem, muitas vezes morrem, sem uma reclamação !...
É assim ... Chegaram, cumpriram a programação, e partem !

Não sei se somos nós, os humanos, alguns humanos, que lhes atribuímos sentimentos, formas de reagir e de "pensar", enquadradas no nosso próprio figurino.
E se calhar, afinal, não é nada disso. Eles não são exactamente os "bibellots" que criamos nas nossas casas, com comida no prato, água constantemente fresca, camas fofinhas ou dormindo mesmo na nossa, com saco de água quente, ou aquecimento nas dependências onde se instalam.
Esses são os animais que nós artificializámos já ...
E até os castramos, para que acalmem, e tenham condições de vida não perturbadoras para nós, em apartamento !

A pantera da savana, o leopardo, o tigre, a chita, o leão e todos os felinos, no seu habitat natural, nascem e vivem de acordo com o seu perfil genético.
Sobrevivem, resistem ou não, de acordo com a selecção imposta pelo destino.
Buscam alimento para comer, deslocam-se muitas vezes distâncias absurdas, com todos os riscos inerentes, para beber ;  se sofrem ferimentos não têm tratamento, parem os filhos sozinhos, alimentam-nos e protegem-nos, escondem-nos dos predadores, quando ainda não se defendem nem são autónomos ... e morrem, finalmente morrem ...

Os felinos das savanas e das estepes, também são pachorrentos, pacientes, também dormem muito, e não se angustiam porque a vida só lhes concede, teoricamente aquele período para existirem.
As leoas caçam ... é assim !...
Os machos alfa são destituídos, depois de glórias de reinado, pelos mais novos ( e deprime-nos, a nós, ver um leão, limitado pela doença e pela velhice ).
Marcam território e avisam : "Aqui mandamos nós " !...
Estabelecem hierarquias ( que são respeitadas ), prioridades e regras ... inteligentemente ... e inteligentemente, deixam apenas a vida correr, por cada hoje que passa !
Não se questionam, não se amarguram, não sabem que há Tempo, há calendário, há viver, amar e morrer ...
Sentem, sabem e vivem a liberdade, que o Homem em toda a sua sabedoria, não conhece !...
A sua vida primária, selvagem, natural, como tudo o que pertence, harmoniosamente, no seu estado puro, à Natureza, está brilhantemente arquitectada, não é questionável ...
É simplesmente assim !!!... É pacificamente assim !!!...

Tenho para mim, que os animais que mais sofrem, são os que vivem junto do Homem, subtraídos ao seu ambiente de origem ... os  que  vivem  nas  cidades, expostos  a  todo  o  tipo  de  carências,  perigos  e agressões ...
São animais "acoados", acossados no meio de edifícios que os não protegem, no meio de trânsito que os agride ou os mata, no meio de gente que muitas vezes os escorraça, e lhes periga a vida.
As suas defesas são parcas, têm a água da chuva ou das sarjetas quando há, têm os contentores do lixo ou os restos, muitas vezes deteriorados já, que algumas pessoas lhes dão, ou que simplesmente abandonam pelo chão ...

Esses sim, são os animais mais injustamente entregues à sua sina, e à mão muitas vezes carrasca do ser humano ...
Serão por isso, seguramente, os mais sofredores de todos.

Entre esses, está o "meu" Farrusco do fiambre, tenho a certeza !!!...

Anamar 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

" EM DIAS COMO O DE HOJE ... "



" Lar é o lugar que escolhemos para viver e ser feliz.  Onde  nos  sentimos  bem,  nosso  porto  seguro  onde sempre  queremos  ancorar " ...

A tarde fechou num cinzento carregado, uniforme, de desconforto pesado e gélido.
A chuva não mais parou de cair, ininterruptamente, e o chão tornou-se uma poça continuada.
A minha gaivota sobrevoa aqui bem por cima, plana no ar frio que corre, deixando para trás a rebentação, no areal distante.
No terraço das traseiras, o "Farrusco do fiambre", mais do que nunca, só tem olhos de mel,  na mancha preta do pelo que o cobre.
Está na terra dos abandonados ... pertence à condição de abandonado. 
Espreitei-o há pouco, porque chove intensamente, porque a temperatura é gelada, e porque o Farrusco tinha direito a um lar.  Afinal, ele é um gato sozinho, no terraço das traseiras, onde ninguém tem acesso, a não ser eu, com o olhar, e com uma dor fininha instalada no peito ... e a minha gaivota, que perpassa  apenas, e que está feita p'ras ondas, p'ras marés, p'ras borrascas ... e que não sabe como é uma vida de gato, no abandono !

Um lar é o lugar que escolhemos para viver e ser feliz ... porto seguro ... lugar de lançar fateixa !...

Como gostaria de te dizer, que eu, que sou boa a inventar, também arranjei um lar para nós dois, onde num dia como o de hoje, em que não sobra nada para ninguém, pudéssemos viver e ser felizes !
Este meu lar inventado, não tem o frio do lar vazio de solidão, do meu gato preto .  Não tem  o silêncio cortado pelo assobio do vento, dos céus da minha gaivota ... 
Este meu lar, está num canto resguardado daquilo que dizem ser um coração, e que não me serve p'ra grande coisa ...
Agora, serviu-me p'ra nele aninhar, o nosso impossível lar !

Abençoados estes dias cinzentos de chumbo, na cor e no peso .  Abençoado o gelo da aragem cortante, que trespassa tudo, e também a alma ...  
que insensibiliza as dores, que adormece o espírito ... que nos mata devagarinho, na proporção do sonho que nos abandona ...

E a noite que não tarda nadinha em chegar, encontra-me com as estradas de chuva desenhadas nas vidraças, encontra-me com a solidão que o gato preto tem na terra dos abandonados, encontra-me com os sonhos desvanecidos da gaivota que fugiu do temporal ... encontra-me recolhida neste lar inventado, porto seguro e lugar de ancorar, que só nos sonhos sonhados em  dias cinzentos  e  sem  luz,  me  permitem acreditar numa  palavra  que  não  me  existe ... ser feliz !!!

Anamar

domingo, 13 de janeiro de 2013

" UMA VISÃO SOBRE O FACEBOOK "


Com todo o respeito que qualquer profissão me merece, e até prova em contrário qualquer cidadão também, sempre conotamos as peixeiras com discussões, trocas desbragadas de linguagem menos apropriada, insultos gratuitos, aleivosias largadas aos berros ... enfim, as conhecidas "peixeiradas", termo que obviamente faz juz à raiz que lhe deu origem.

Pois bem, o mais parecido que conheço com uma "peixeirada", publicamente encapotada, de face semi-lavada e aceitação social, é o Facebook !

Também já falei dele e ironizei os seus meandros, quando há tempos abordei as tão famigeradas, quanto discutidas, redes sociais.
Sendo um espaço, com características algo diferentes das outras redes, tem no entanto nuances tão particulares, quanto ridículas e caricatas.

Em primeiro lugar, funciona muito, como uma "feira de vaidades".   Com isto, quero dizer, que as pessoas de uma forma mais ou menos ostensiva, o aproveitam para promoção, seja em termos da exibição de fotos pessoais, familiares, sociais, seja de eventos em que tomaram parte, e que acham, que de alguma forma, as prestigiam.

Depois, é um espaço de divulgação de ideias, de veiculação de interesses, de "venda" de tudo ... desde a imagem, aos ideais, aos valores, às convicções.
Tudo circula pelo Facebook.
Troca salutar, correcta, pedagógica, de opiniões ... destrato, insulto, agressão verbal e levianas ofensas, calúnias, e até afirmações passíveis de configurarem molduras penais graves, feitas de ânimo leve e inconsciência total, em relação a pessoas que nem sequer se conhecem.
Isto ocorre porque os ânimos se acendem fácil, porque as pessoas se acirram na defesa de pontos de vista, se enfurecem pela divergência de opiniões.

Depois, as situações potenciam-se, porque por lá se cruzam todas as franjas sociais, com formações culturais, académicas ou simplesmente de mero bom-senso, totalmente diversas.
É vulgar não haver poder de encaixe, nem dialéctica, nem capacidade argumentativa saudável e construtiva, e facilmente, as pessoas tomam uma divergência de opinião, como uma ofensa pessoal, um acinte, uma provocação ... quando o não é.
Toda a gente quer "ter para dar", e não quer "ter que levar" !...

O Facebook é frequentemente local de despejo de raivas, tensões, animosidades, antipatias, até curiosamente por  pessoas que aceitámos como "amigos".
Muitas vezes, vai-se ali tirar um "sarrinho" deste ou daquele, contra o qual temos um recente ou antigo "partis-pris", coisa que nunca tivemos coragem de lhe dizer na cara.
Outras tantas,  aproveita-se a "ausência de rosto", a ausência do "tête à tête", para se largar, com alguma impunidade, a provocaçãozita que não se teria coragem para dizer, olhos nos olhos.
E lava-se a alma !!!
Claro que à conta desses "mal - demasiado bem - entendidos",  há  amigos  que  "desaparecem",  num  passe  de  mágica,  da  lista  dos  ditos !...

Há  também  os  "sabichões" da política.  Os "iluminados" de vão  de escada, que massacram provocatoriamente, com frequência, percebe-se.
Normalmente são figuras pardas, ou uns "zés-ninguém" nos partidos, que pensando estarem a prestar grandes serviços às cores que defendem, fazem pseudo-política irritante, e sem substrato.
Politiquice e não política ... e com isso, descridibilizam-na.   Mas nem dão por isso, tal a empáfia que os "incha" !...
Porque os políticos a sério, debatem problemas a sério e de fundo para o país, e não fazem simulacros de política.
Lembram aqueles "agitadores", pagos para "bagunçarem" determinados eventos, ou palhaços cirurgicamente colocados, para "avacalharem" certos meios, para que neles simplesmente se ateie o fogo !
Tem que haver personalidades para tudo !

Também por lá passam  os  "ingénuos", os bonzinhos, as pessoas de boa-fé ( porque os há ), as pessoas bem intencionadas.
A minha amiga Fatinha, é o exemplo acabado, de quem está no FB por boas causas !
Ela elogia, ela nunca contunde, ela distribui  "likes"  pela música, pelas paisagens, pelas frases construtivas, pelas fotos dos amigos.
Nunca passaria pela cabeça da Fatinha, que aquilo pudesse ser "arena" de gladiação.
Dessa forma, como quem está à janela apenas, a Fatinha não arregimenta "inimigos", seguramente ...

Também pode adoptar-se outra postura de extrema comodidade ... ou inteligência, digo eu.   Consiste em passar o tempo, a postar artigos de consenso : "Aldeias de Portugal", "Madame Samovar", "Descobrir Portugal",  "Casa Cimeira",  "Adoro Sintra",  "La casa azul",  "Clube dos Poetas Vivos",  "Vontades  do Alentejo" ... e  etc,  etc,  etc ...
ou máximas de vida, as tais com que indistintamente todos concordam obviamente, porque não têm claramente margem de interpretações erróneas, ou subjectivas ... e que não acrescentam nem retiram nada a ninguém !  Uma delícia !!!
Afinal, as pessoas têm a "porta" escancarada, mas depois querem ser selectivos nas "entradas" ... sobretudo se as visitas não rezarem as mesmas orações ...
É muito engraçado !!!...

Moral da história ...  O pessoal quer é estar em "bunkers" de estrato social, cultura,  idade e  ideologia, iguais ... todos muito "quentinhos" ... e que não sejam muito incomodados !!!
Assim, não se correrá o risco de divergências, discordâncias, visões diferentes de estares na vida e em sociedade, ou quiçá de as brilhantes opiniões veiculadas, serem muito questionadas.
Porque em última análise, o ser humano gosta de sentir "eco" no que pensa, sente e exprime !
Mas depois, simultaneamente, quer espetar alfinetadas provocatórias, se lhe apetecer, no vizinho de "bairro", de preferência se ele não responder, se se fizer de morto, ou meter o rabinho entre as pernas e não ousar ripostar ...

Enfim, como se vê, o que poderia ser um local de diversão ou convívio, transforma-se frequentemente num "ringue de pugilismo", num local de distribuição de ofensas, maus-estares e irritações entre as pessoas, como se se discutissem ali, os destinos do Mundo, a Vida ou a Morte !!!...

Há depois o FB das grandes causas, e da grande mobilização de massas, à semelhança da sua dimensão ... a chamada face "nobre" do Face, o que faz mexer milhões de pessoas, na busca de um auxílio humanitário, quer para o ser humano, quer para os animais, quer para o planeta Terra .

Há o FB divulgador e defensor do património, de todas as correntes culturais, literárias, filosóficas, históricas, artísticas ...

Há o simples divulgador de imagens belas, ou "ternurentas" ... o divulgador de boa música ... notícias de todo o Mundo ;
há também o FB das "gavetas", em que as pessoas se arrumam por departamentos de interesses ... os mais variados clubes disto e daquilo, de tudo, o imaginável e ainda o inimaginável ...
Há o FB que nos faz companhia, é lúdico, informa, estabelece pontes, deixa-nos sentir gente do outro lado, permite-nos tertuliar com "amigos", e depois, surpreendentemente, com amigos de amigos, que às vezes, porque acabam por nos "seguir", de alguma forma, sentindo alguma afinidade aqui ou ali, pedem para serem nossos "amigos" também.
Há os que nos "caem" no cólo, sem sabermos porquê, e há os que nos "saem do cólo", também por vezes sem sabermos porquê ...
Há os que têm um número de "amigos" razoável e lógico, e há os que os coleccionam aos milhares, e que serão seguramente por isso, milhares de "anónimos", e não milhares de amigos !...

Queiramos ou não, o FB vicia, cria dependência.
Aborrecemo-nos, saturamo-nos, chateamo-nos forte e feio, pomos estupidamente em causa relações, impensáveis de se porem, dizemos e ouvimos o que não "queremos", juramos que não temos nenhuma "obrigação de levar desaforo para casa", aturamos os lunáticos, os doidos varridos, os desequilibrados, os que não se entendem, os apalermados, os interessantes, os que têm efectivamente substrato nos miolos, e os que só têm "titica de galinha" ...
e garantimos que "flagelação", não ... e que um dia destes, mandamos tudo às urtigas, batemos a porta, e sumimos ... porque, francamente, já é demais !!!...

Mas ficamos, ficamos sempre !
Mais,  prejudicamos o tempo dedicado ao correio, ou a outras actividades na Net, porque ali, é um entra e sai de gente, é um corropio, é vida que mexe sei  lá onde, e que vem ter connosco e nos acompanha.
É a tal janela que mascara a nossa solidão, que tantas vezes, nos é vital, e que custamos a  fechar diariamente ... porque fechando-a, corre-se a cortina do palco, e a "função" continua a desenrolar-se do outro lado, sem que estejamos na plateia !...

E prejudicamos também, sobretudo, todo um tipo de actividades bem mais produtivas e louváveis, bem mais construtivas,  enriquecedoras e inteligentes para nós mesmos.  Passamos a ler menos, ou quase a não ler, passamos a deixar de ver alguma televisão que ainda valha a pena, passamos a deixar de ver bons filmes e boas séries, e passamos, ainda por cima, consequentemente a deitar-nos mais e mais tarde !!!

Criticamos e embarcamos, à boa maneira da incoerência do ser humano, ou simplesmente porque os tempos e a forma de vida das pessoas ( ou a minha forma de vida ... assim é que é certo ), não me deixa muito mais !!!...

Anamar

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

" BURRA, EU ... NÃO ???... "


Sou uma pessoa cheia de contradições.
Por um lado considero e acredito que tenho uma mente aberta, um espírito meio louco, posturas e atitudes bem "à frente" ... mas depois, sinto que sou "cristalizada" e irredutível, em muitos aspectos da vida, se calhar naqueles em que deveria ter uma maleabilidade e uma disponibilidade mental, maiores.
"Empanco" um bocado em certas ideias, e nem que me abrissem os miolos para mos rechearem de novo, eu assimilaria outras convicções.

Já aqui falei muito, nas técnicas, ou terapias "manipuladoras" da mente humana.
Reparem que coloquei "manipulador" entre aspas, porque estou a despir o conceito, de toda a carga pejorativa que lhe é normalmente associado.
Eu utilizo "manipular", no sentido de "mexer", "manusear", "modificar" com isenção de má fé.
Nesse sentido, e na linha de postagens anteriores, considero ter-se classicamente, para quem necessita, mas necessita mesmo em termos terapêuticos, de uma mente varrida, questionada, repensada, reorientada, reflectida ... os profissionais de saúde adequados, contra os quais nunca fui reticente, e sempre fui receptiva : os psiquiatras e os psicoterapeutas.
Admito que o ideal seja uma equipa consonante destas duas especialidades, porque efectivamente, os distúrbios e desorganizações mentais, são, antes de mais, um problema de saúde, e como tal, passível de tratamento com químicos.
Depois, há toda uma "arrumação" psicológica que não se faz com medicação, mas se faz com a catarse individual, a reflexão que é feita entre o especialista e o doente, a reformulação mental, mercê da questionação das causas, das origens, de toda a nebulosidade que está lá atrás, e sempre está na razão do confusionismo situacional, do indivíduo analisado.

Não é uma actuação dirigista, nunca é dirigista, nunca o psicoterapeuta aponta caminhos, ou dá "instruções", mas sempre encaminha a mente do paciente, na busca reflexiva, das razões, das causas penalizantes e indutoras do mau-estar, da incapacidade, do sofrimento, da angústia, das fobias, do "sentir-se perdido", e consequentes desequilíbrios associados.
Pelo repensar pessoal do seu próprio "filme", a auto-consciencialização das situações, a percepção e a compreensão dos factos, o indivíduo passa a ser  agente da sua própria mudança.

Até aqui, tudo bem !

Provavelmente, porque estes domínios caem no foro científico, eu os aceito pacificamente, nunca fui céptica em relação a eles, e atesto a sua eficiência.

Onde é que a minha mente se "fecha", digamos assim ?
Onde é que a minha maleabilidade mental, eu diria, a minha paciência, ou a minha aceitação, falham?

Pois, falham em todo o tipo de terapias ditas paralelas, que pelo menos em relação a mim, não funcionam, porque logo à partida, as acho falaciosas, as acho ingénuas, as acho "atrevidas".
Em "uso caseiro", que é como quem diz, de mim para mim ... as acho parvas, e acho que fazem de mim parva, ou mais parva ainda !!
Dou por mim a rejeitar liminarmente leituras ditas de auto-ajuda, pensamentos ou máximas muito louváveis, mas que me atravessam sem deixarem lastro,  as terapias milagrosas importadas de civilizações que aprendemos a descobrir e a copiar indistintamente, sem que vivamos contudo nessas realidades, ou tenhamos crescido nesses valores  ( o feng shui, todo o cardápio de massagens, cujos nomes só por si não dizem nada, mas que sempre fazem bem a qualquer coisa, a cromoterapia, aromaterapia como sinónimo de resolução de problemas, o shiatsu  - cuja formação se adquire mais depressa, que diploma académico de alguns políticos ... ) ... toda a gama de quiromancias ... o coaching, que é mais um dos modismos a que o ser humano deita as mãos, como os náufragos que somos todos nós, em mar alto ... todas as orientações que embora bem intencionadas, me levam a dizer-me : " sendo assim tão simples e óbvio, todos seríamos sumamente felizes ... "

Porque se se tratasse de uma receita tomada de acordo com posologia própria, tudo seria extremamente fácil de cumprir, e de obter resultados.
A questão é que a mente humana não é um jogo de peças colocáveis aleatoriamente ;  a forma de ser e sentir de cada indivíduo, foi forjada, é forjada diariamente, por uma panóplia de vectores agressivos, contraditórios, pouco claros na maioria das vezes, desde o domínio do racional, ao afectivo e ao emocional,  condicionados por interesses de ordem social, familiar e pessoal.

Obviamente se sabe, que fazendo as mesmas coisas da mesma forma, nunca nada se alterará no percurso de cada um.
Repetindo os mesmos registos, ou seja, agindo de forma igual, não se  podem  esperar  resultados  diferentes ...
Os mesmos caminhos levam aos mesmos destinos, e se se têm objectivos diversos, deverá  fazer-se a revisão da matéria, e aplicá-la de outra forma.
Tudo isto é teoria, faz sentido, e tudo isto é exactamente o que não sei fazer.
Por isso, refiro a minha falta de maleabilidade, a intolerância, a estratificação, a cristalização ou mesmo a fossilização da minha maneira de pensar e ver o mundo, e a minha inabilidade a vivê-lo ...
Provavelmente, a minha substancial e crescente estupidez ... dirão muitos, se me lerem ...

Sinto em mim, de facto, um desinteresse feroz, um cepticismo profundamente instalado, em relação a todo este menú de mezinhas,  que acho que valem tanto, quanto ir a Fátima , ir à bruxa, ou à cartomante ...

Moral da história ... não critico que cada um se defenda nesta vida, usando as tácticas que lhe façam sentido e para si resultarem, agarrando as convicções que lhe interessarem, seguindo os trilhos em que acredite ... se conseguir com isso, ser  feliz ...
Não faço juízos de valor, se o efeito psicológico é para muitas pessoas efeito de placebo, para se enquadrarem, para simplificarem a conturbação mental, para resolverem o que as atormenta, para que lhes seja devolvido o equilíbrio ...

Eu continuo no mesmo marco da estrada, dando por mim, ao ler textos como este que aqui aponho, atribuído a Chaplin ... inveteradamente a dizer :
 " Que  lindo !...  Pois  ... Tudo  como  dantes  no  quartel  de  Abrantes " !...
Nem na loja dos chineses se vendem  tão  louváveis intenções !!!

Burra, eu !!!...  Não ???...

                      " Luta com determinação
                        Abraça a Vida com paixão
                        Perde com classe 
                        Vence com ousadia ...
                        
Porque o Mundo pertence a quem se atreve, e a vida é muito, para ser insignificante " !!!...

                               CHAPLIN

Anamar

sábado, 5 de janeiro de 2013

" A SOLIDÃO "



Ao longo da vida, o convívio, o cultivo de amizades, a cumplicidade entre os seres, é determinante no bem - estar e no equilíbrio das pessoas.
Por esse motivo, logo a partir da adolescência, fase em que a infância irreverente, já foi, e em que as primeiras questões de fundo, as primeiras preocupações a sério, as primeiras dúvidas se colocam na mente do indivíduo, este procura a miscigenação no grupo, a busca de vozes consonantes, sentires paralelos, linguagens idênticas, dificuldades próximas, dúvidas iguais.

Sabe-se que tudo isso é fundamental para um desenvolvimento sustentável, para o despertar da dialéctica, para a aprendizagem de diálogos construtivos, para o desfazer de angústias, para o nortear da personalidade.
A prática relacional entre as pessoas, desenvolve as mentes, abre os corações, habitua-nos ao confronto salutar de opiniões, alicerça-nos convicções, abre-nos horizontes, e claro, forja-nos afectos, muitos deles para o longo de toda a  vida.
É nessa época que o embrião da amizade e do amor, começa a dar os primeiros passos.
Os primeiros "confrontos" afectivos, são feitos da aprendizagem  no "terreno".
As primeiras apostas e as primeiras decepções, devem espaldar-nos para o que o futuro  nos reserva.
Percebe-se que discordar de opinião e posicionamento não significa una zanga, antes nos maleabiliza o "estar" ;   percebe-se que a perfeição não existe e que deveremos estar preparados para nos cruzarmos com pessoas tão incompletas quanto nós próprios, pessoas que não correspondem quantas vezes às expectativas que sobre elas criámos ... mas aprendemos a perceber isso mesmo, sem guardar mágoas nem rancores, a perdoar se for o caso, a compreender que os indivíduos não são iguais, e as condicionantes da vida, determinantes, quase sempre.
Até porque obviamente, também discordamos e magoamos muitas vezes, ainda que involuntariamente ...

E vamos caminhando, dando os passos do percurso, formando-nos enquanto homens e mulheres INTEIROS, face à Vida
Podemos desenhar utopicamente rumos, arquétipos do que sonharíamos, embriagamo-nos de emoções, na defesa de princípios, de valores, de causas.
"Verdes", muito "verdes" no conhecimento do que é a realidade, mas meritoriamente a lutar por ela, autenticamente, verdadeiramente, como a concebemos, como para nós, com esses olhos, ela não faria sentido ser de outra forma.
Somos os "guerreiros" dos vinte e dos trinta anos, somos os D. Quixotes dos grandes ideais, damos o sangue e a alma pelos princípios, pela dignidade, pelos direitos, pela igualdade social, pela justiça ... por na verdade, tudo o que faz / faria sentido e pareceria lógico.
O espírito ainda não se corrompeu, a alma ainda não se interrogou estupefacta, a esperança ainda não se pôs em causa ... o coração ainda não começou a esboroar-se.

E entre pares novamente, em círculos de amigos, em associações, grupos, tertúlias, ou apenas em reuniões familiares pelos serões dentro, continuamos a conviver, a cultivar amizades, a cumpliciar, a expor-nos, a falarmos e a ouvirmos, em suma, a dividirmos sempre as dúvidas, as angústias, as incertezas, as dificuldades, os desgostos, os becos "sem saída", os túneis sem luz.
E é de novo, no lastro do falarmo-nos, do tocarmo-nos, do sentirmo-nos, de nos transferirmos calor, afecto ou amor, que titubeantemente, quantas vezes, o Homem caminha, o Homem se vai aguentando no mar alteroso por onde navega, o Homem faz uma  tão dolorosa quanto difícil aprendizagem ...

O "cólo" continua a ser sustentáculo, o "ombro" imprescindível, a "palavra" indispensável, o "diálogo" fundamental e inalienável.
Sem tudo isto, o Homem fica "ilhado", e sendo o ser gregário que é, estiola e morre, física, intelectual e emocionalmente ...

Por isso, as solidões são uma das maiores injustiças a que o ser humano é relegado, pois ela representa o fechar do fornecimento do "oxigénio" da vida, que deverá existir até que ele parta.
Estar sozinho, física, social, familiar, intelectual ou emocionalmente, é um processo "contra natura", que gera desequilíbrio, doença, incapacidade, tristeza, dor ... que mata antecipadamente.

E no entanto a solidão, sobretudo nos grandes centros, nas metrópoles anónimas, nas "colmeias" humanas, que são os edifícios em que as pessoas nem se conhecem, vivendo no mesmo piso, grassa  assustadoramente !
A solidão, também fruto de uma desconfiança instalada devido à época, devido às dificuldades que se atravessam, devido ao aproveitamento e exploração maliciosos, por parte de muitos em relação aos incautos, a delapidação dos grupos de amizade, estruturados pelos anos, e desmembrados pelas vississitudes da vida, ou pela "deserção" forçada de alguns ... geram um mau-estar, um desconforto, uma "orfandade" e uma desaposta no tal convívio saudável e regenerador, e  um afastamento das pessoas, umas das outras, remetendo-as mais e mais, à sua célula de vida triste e forçadamente individualista, com as inerentes consequências !!!...

Anamar
  

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

" INVEJA " ...



Janeiro de novo.  Um marasmo assustador !
Devia haver um manual de se aprender a viver só ...

Li há poucos dias, numa daquelas revistas que acompanham alguns jornais de fim de semana, uma entrevista com a escritora Hélia Correia, que me apaixonou.
E apaixonou, porque há imensas escolhas, posturas e opções de vida suas, que invejei e em que me revi.
Não conheço nada da obra de Hélia Correia.  Até esta reportagem, ela era para mim, uma ilustre desconhecida.
Hoje, para lá de me ter um rosto, ( o das fotografias ), tem-me muito mais em comum.

Em primeiro lugar, Hélia gosta de escrever.
Depois, escreve sazonalmente, ou seja, não é fabricante de escrita.  Não escreve quando os outros querem, não escreve a metro, escreve quando chove, quando o céu se carrega, e o cinzento nevoento de Janas  lhe mostra em silhueta só, a Serra de Sintra, paixão de vida.
Escreve quando tem mesmo algo para dizer.  E escreve na sala, que prevejo aconchegante, com salamandra para os dias gélidos, papel de parede classicamente inglês, frente à Pena.
Através das duas janelas que ladeiam a porta daquela casa pequena que alugou, vê-se o  jardim ou o quintal,  como se queira.
Por ele, perambulam oito gatos lindos, ou seja, Hélia também privilegia os felinos, como companhia.

Depois, tem um sótão, local de todos os mistérios ...
Como eu sempre sonhei ter um sótão !!!...
Acho que um sótão é  um refugio de tudo e de todos, e se calhar até de nós próprios.
Acho que no sótão, só os duendes, os gnomos, e esses seres sobrenaturais, nos descobrem.  Nele, sempre  nos podemos esconder das visitas indesejáveis, das presenças incómodas, brincar de esconde-esconde com a nossa mente, e seguramente fugirmos dos nossos pensamentos mais desastrosos ...

Hélia vive só ... só e a Natureza que tem à volta.
Os córregos, que a levam em passeios perdidos até às Azenhas, pela Serra, ou a ver o mar que está ali a dois passos.
Vê os cogumelos que evita pisar, há-de ver as primeiras flores silvestres de cada Primavera, e os musgos trepadores das árvores da mata, nos Invernos.
E verá também os pássaros do mar, e os pássaros dos campos, e os coelhos bravos e as perdizes, e todos esses bichos soltos, como ela, afinal !

Hélia tem um namorado, o também escritor Jaime Rocha.
Prevejo uma ligação perene entre eles ;  perene e sólida ;  linguagens comuns, sensibilidades comuns, olhos habituados a verem as mesmas coisas, a amarem os mesmos pormenores.
Sim, porque de certeza, aquilo é gente de pormenores ; gente de se extasiar com a lua cheia, nas noites límpidas, sobre o Monte da Lua ... gente de se silenciar, para ouvir o piar das corujas ou dos mochos, pelas matas ... gente de sempre esbugalhar os olhos por cada ano, como se fosse o primeiro, quando as madressilvas selvagens se engalanarem, com as flores perfumadas ... e mais ... gente de colher braçadas delas, para dentro de casa, para que o perfume inebrie a sala inglesa ...
Gente de apanhar as "carrapetas", que são aqueles chapéuzinhos castanhos, dos castanheiros dos bosques, com cheiro a floresta, e cujo aroma a uma espécie de carqueja, perdura "ad eternum", como o cheiro do eucalipto, por exemplo ...

Se não conheço Hélia Correia, menos ainda conheço a sua casa.
Tenho a certeza que é uma casa autêntica, daquelas casas em que, do mobiliário às cortinas, dos quadros aos livros, tudo é verdadeiro ... não haverá cedências, haverá genuinidade.
Sinto-a uma força da Natureza, adivinho-a um produto daquilo com que ela se funde ... a terra !
A terra e alguma solidão, que acredito que ela não sente.
Hélia nem sequer "conta" o tempo, diz.  Vive intemporalmente, vive simplesmente, deixa-se viver ...
E saber viver assim, é também uma arte, creio.
É um despojamento, é um encolher de ombros ao mundo, e viver p'ro essencial ...

Cada vez mais, acredito que o nosso mundo só pode ser feito de coisas que nos reflictam, que nos sejam significantes, nos façam sentido ... seja nos sonhos, nos desejos, nos lugares, nas pessoas, ou nas ideias que nos circundam ...
Cada vez mais, tenho a certeza que com o caminhar dos anos,  só  "entenderemos" verdadeiramente, quem tiver a nossa linguagem, quem tiver percepções próximas, quem tiver olhos com sensibilidades direccionadas para o que também nos sensibiliza, quem tiver vivências paralelas, quem saiba, e queira percorrer "atalhos" semelhantes ...

Senão, sempre ficará uma conversa de "surdos", uma "dislexia" de emoções, que apenas decepciona, defrauda, e em que não adianta apostar !...

Anamar

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

" O LEGADO "



Foste embora, e ao deixares-me, deixaste-me a solidão ...
Levaste tudo contigo, o teu cólo, meu abrigo,
os teus braços, meu bordão !
Apagaste-me as estrelas,
e no céu, escureceste a lua ...
E esta madrugada pálida, recordou-me a tarde cálida,
em que num dia, fui tua !...

Foi maldade teres partido ...
Roubaste-me o sonho e a esperança ...
Mataste por isso assim, o melhor que havia em mim ...
um coração de criança !

Não tinhas uma bonina, das matas que atravessaste ?
Não tinhas o som do mar, no búzio que me apanhaste?
Não tinhas os rochedos, as algas e as marés ?
Não tinhas as penedias, e as ondas aos teus pés ?...
Por que quiseste deixar-me esta louca solidão ?
Por que a quiseste esconder na concha da minha mão ?...

Por que não trouxeste os versos, que ecoavam pela serra ?
Ou a sombra dos pinheiros, que é bênção lançada à terra ?!
Ou o grasnido das gaivotas, pousadas no areal ...
o sabor da minha pele,
que é mel, canela e sal ?!

Dos campos ensolarados, as flores da pradaria ...
traz-me a música da brisa, e a canção da ventania ...
Ou a luz lá do farol,
que a noite transforma em dia ...
e no silêncio, paixão faz da minha solidão ...
como  um  passe de magia !...

Tenho tanto medo dela ...
Abre a porta e a janela ... quer deixar-me o coração ...
Mas se ela parte e se vai,  da roseira, a rosa cai ...
E a minha alma que espera,  que soluça e desespera,
ainda fica mais vazia !!!...

Anamar