terça-feira, 12 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 62




Hoje foi dia de dar um basta a este cabelo tão totalmente desordenado e tão sem norte, quanto os dias que estamos vivendo.
O comprimento estava absurdo, a auto-estrada branca que me percorria a cabeça, assustadora.
Embora tudo isso que tanto nos preocupa a nós, as mulheres ( no dia a dia das nossas vidinhas normais ), tenha sido relegado para um passado muito esfumado, face a tantas e tão graves preocupações actuais ... há um momento em que, olhando-nos no espelho, não reconhecemos mais a imagem devolvida.
E se mal estávamos, pior ficamos, com uma auto-estima pelas ruas da amargura !
Portanto, marquei e fui.

Tudo estranho, tudo esquisito, tudo coisa de "outro mundo" ...
Máscaras, luvas, viseira ... desinfecta daqui, lava dali ... "não sente ainda, porque vou limpar primeiro !"... "spraya" o pente, "spraya" a escova, secador e tesoura ... 😃😃😃 Coloca capas protectoras e descartáveis ...
"Amor ... ficou bem ?  Era assim ? "....
E eu, olhando metade da cara, porque o resto devidamente escondido, só deixa imaginar como será ...

Sei lá se ficou bem !  E também, quero lá saber se ficou bem !!!
Dará para o gasto.  Agora lava-se em casa, porque já tem corte ... como costuma dizer-se.  E depois, também, quem vejo e quem me vê ?
Na mata, o pessoal que me cruza, quando cruza, fá-lo chispando ... No super, uma vez por semana, sou eu que circulo pelos corredores em modo ultra-sónico ... e na rua, vou de facto tão disfarçada que ninguém conhece ninguém ... nem os velhos amigos das tertúlias do cafezinho ...
Tudo estranho, tudo esquisito, tudo coisa de "outro mundo" ...

Constatei na passagem, que havia já algumas lojas do comércio de rua, abertas.  Abertas e vazias, claro.
Constatei que aquele dito "mundo lá fora", se me afigura excessivamente desconhecido.
O que é que aconteceu, enquanto me encafuei entre estas quatro paredes da minha casa, que neste momento sinto mais que trincheira ou reduto ... o único refúgio onde pareço saber estar ?!
Ir lá fora, é uma espécie de raide aéreo sobrevoante do "inimigo", que imagino pululante pelas ruas, filas, bancos de jardim e por todos os lugares mais inóspitos e inimagináveis.
É uma espécie de descida às profundezas da insegurança, do desconhecido e do aterrador ...
É uma aventura e um desafio em que quase sempre perco, entre mim e o medo, a hesitação e a coragem que me escapa.

E constatei que quase já não sei andar na rua !   Não me sinto segura, descontraída, confortável ...
Sei que este estado de espírito é objectivamente um efeito colateral do pesadelo que atravesso, e que faz perigar a minha saúde mental.
Um dia, mais tarde, quando houver tempo útil para se fazer a História desta pandemia, quando houver distanciamento suficiente para análises e conclusões, ver-se-ão também os danos psicológicos provavelmente irreversíveis, causados por ela, às populações mundiais.
Como numa guerra, em que verdadeiramente estamos mergulhados, sentem-se no corpo e na alma as síndromes consequentes do stress, da angústia, da pressão, da incerteza no futuro ... e todas as outras resultantes dos estados limite a que estamos sujeitos.
Estados desestruturantes, demolidores, incapacitantes mesmo, receio.

E pronto, no regresso eu meditava sobre tudo isto, e claramente me percebi como um pássaro que, de gaiola aberta, não arranca do poleiro !...
Tive um assim, e na altura nunca entendi o que eu chamava de "estupidez do bicho" ...
Afinal, eu nunca percebera até hoje, o real valor da segurança !!!

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Ah... é verdade ... ofereço-vos a minha "Covid 19 - imagem" ... 😃😃😃


Anamar

segunda-feira, 11 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 61






Mais um dia por aqui ...
Hoje foi dia de caminhar, depois de quase ter que driblar a meteorologia.  Dito de outra forma, entre aguaceiros e nuvens de cara feia, lá me fiz ao caminho.
Contudo, a chuva que ainda assim apanhei, não deu p'ra encharcar.
A mata já começa a enlamear de novo, o que me circunscreve a circuitos alternativos que não aprecio.  Eu gosto mesmo é do silêncio que por lá se sente, dos pássaros e das flores selvagens, singelamente belas !

A mata é um local de recolhimento, como já referi vezes sem conta.  Um lugar equilibrante e revigorante de todas as energias que preciso, para me ir aguentando nesta senda dura e punitiva, que trilhamos. 
É um lugar de solilóquio, um lugar de reencontro, um lugar feito para reflexão, para busca de respostas para os tormentos interiores que me devassam.
Lá, eu balbucio as dúvidas, as incertezas, conto as mágoas, queixo-me dos tormentos, pergunto e respondo ... lá, eu exprimo sentimentos que me inundam, de emaravilhamento, de gratidão, de fascínio pela Natureza envolvente, pela sorte que me contempla de estar viva e com saúde ...

Hoje, o "trabalho de casa" foi longo e difícil.

Em primeiro lugar, no caminho, deparei-me com dois "outdoors" colocados certamente pelo Município.  Isso, não interessa para o caso !
Olhei-os e li o que diziam.  Como ando daquele jeito que já vos falei ( parva de todo ), de imediato um nó me apertou a garganta, e a lagriminha misturou-se com os pingos da chuva que ameaçava.
Os profissionais de saúde, desde a primeira hora são credores de toda a nossa admiração, apoio, compreensão e agradecimento.  Na linha da frente, pondo em causa a sua integridade física e as suas próprias vidas, abraçaram esta causa incondicionalmente, dando o melhor de si, na dádiva de si mesmos  para com todos os seres humanos que deles necessitam ...

Os estafetas, que me cruzam o caminho, que vejo da minha janela, e que encontro  com chuva, sol, bom ou mau tempo ... uns, em pequenas e humildes motos pessoais ... em bicicletas mesmo, ao ritmo do esforço da pedalada, os que não dispõem de outra forma de se deslocarem ... Seguramente auferindo retribuições mais que precárias, são o garante de que muita gente, comodamente - em casa, no trabalho ou onde for necessário -  não ficará sem a refeição que pediu online, sem precisar expor-se, perder tempo ou correr riscos acrescidos, neste confinamento desejável ...
Fazem parte, sem dúvida, de uma profissão de recurso, uma profissão nascida deste figurino surreal que dita as nossas vidas em plena Covid 19 !
Como lamento que tenha que ser assim !...   "Pelo menos têm emprego !..." dizem-me ...  E até é verdade !!!

Bom, mas ambos os cartazes, são mensagens de profundo reconhecimento.  São sinais de humanidade ... são um pouco do bom, que temos dentro de nós !  São o meu país !... Nós somos "isto"... sem dúvida !

Segui, na demanda do verde.
Trazia comigo há largo tempo ( e já aqui disso falei ), uma angústia irresolúvel, uma ansiedade atroz, uma incapacidade de me nortear a propósito. Que crescia com a passagem dos dias !
A Teresa fará 3 anos dentro de um mês.  A Teresa tem a mãe enfermeira num dos hospitais de referência, tem o pai a trabalhar no exterior, ligado a uma empresa de energias renováveis, em regime de alternância com vindas a Portugal.  Já o referi em escritos anteriores.
Frequentou até fins de Fevereiro uma creche, perto da casa onde vive, a qual, a partir da publicação da primeira emergência sanitária, encerrou.
A mãe ficou com a filha em casa, ao abrigo das disposições legais de apoio às famílias com crianças de idade inferior a 12 anos, conforme todos conhecem.
As creches reabrem no próximo dia 18.  Também já aqui expus as minhas inquietações a propósito.  Também já me insurgi com essa determinação, por parte das estruturas responsáveis da Saúde, mostrando-me incrédula, confusa, e muito, muito preocupada com as possíveis e graves consequências que daí podem advir para as nossas crianças.
Há a possibilidade de a Teresa ficar em casa, ainda até 1 de Junho, em limite máximo do apoio estatal determinado.  A partir desse dia, a mãe reassumirá o trabalho, e a Teresa ou vai p'ra creche, independentemente de qualquer condição, ou .....
E este "ou" ... é um imenso ponto de interrogação, para o qual parece não existir resposta.
A família, além do núcleo restrito da criança, contempla os avós e a tia, que está em tele-trabalho, com três filhos igualmente confinados, em estudo à distância.
Assumiria a Teresa no seu agregado familiar, desde que a criança não contactasse a mãe, sendo esta uma potencial veiculadora do vírus.  Nada disto é exequível, como se imagina.
Os avós configuram um grupo de risco, etariamente falando.

Bom, perante tudo isto, e à medida que os dias foram transcorrendo, muitas noites atravessei em claro, muitas horas angustiantes me atormentaram, muitas dúvidas e conflitos me percorreram, muitas perguntas sem resposta me martirizaram ...muito medo quase me paralizou ...
Talvez um milagre ... quem sabe até lá surja uma solução ... talvez a pandemia se contenha ... e eu, faço o quê ? ... e eu, consinto que um neto meu corra riscos acrescidos, por medo ?  Eu vou permitir que uma criança sem defesas, se exponha, com resultados imprevisivelmente funestos ... porque não tenho coragem ?
Mas, o que faria a minha mãe, nestas circunstâncias ??

E aí, no silêncio orvalhado dos caminhos desertos, com os pássaros em trinados e gorjeios celestiais ... aí, comigo perante mim apenas, como um espelho despido e nada mais além da transparência, da verdade, da frontalidade ... deixando escutar simplesmente o meu coração e a minha alma ... tudo repentinamente clareou, e se tornou absolutamente simples e óbvio ...
A minha mãe olhou-me, e naquele seu jeito maroto, sempre presente, disponível e de generosidade sem dimensão, disse-me " está calma ... não vai acontecer nada ! "

E pronto.  A minha cabeça está arrumada !
Quando, em qualquer circunstância da minha vida, sou posta à prova, sofro até decidir, mas quando o faço, assumo-o em plenitude e vou em frente.  Neste momento, estou por isso, em paz e totalmente tranquila.
Haja o que houver, a minha cabeça deitará na almofada com toda a felicidade do mundo !!!...

Desculpem o desabafo !  Era-me preciso !

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !



Anamar

domingo, 10 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 60




Adoptei uma gata louca !

A Mel é a perfeita assombração que entrou na minha casa, em plena crise Covid-19, confirmando a velha teoria de que uma desgraça nunca vem só ... 😃😃😃
A presença da criaturinha é a prova objectiva da minha acentuada insanidade mental ...
Se não, vejamos ... Eu estou mais para avó do que para mãe, e numa fase da vida em que no máximo me é exigível, quando muito, levar crianças aos baloiços - o que já não é lá grandes coisas - tenho agora que voltar às fraldas e biberons ...😃😃
Mal comparado, é mais ou menos isso ... não sei se alcançam onde quero chegar ...

Pois bem, aqui em casa, não bastando o que bastava, vivo mergulhada numa adrenalina de dar dó.  Além dos "residentes", Chico e Jonas, estarem totalmente confinados ... eles sim, mantendo um distanciamento "social" mais do que obrigatório, em estado de sítio, alerta e vigília, eu própria estou mergulhada num anómalo figurino de vida .
 Com cerca de um ano de idade, estimada pelo veterinário, esta "desinfeliz" chegou, e virou-nos a vida do avesso.
Só há verdadeiramente paz, quando os olhos se lhe fecham de cansaço, e cai em sesta continuada.  Graças a Deus que os gatos passam dois terços dos dias a dormir !  Só que esta alminha  tem os sonos trocados, que é como quem diz, a noite acaba-se-lhe, pelas 4 da matina.
Daí em diante, entramos em modo de "caçada".
Como um exemplar felino que se preza, e sendo fêmea, deve supor encontrar-se na savana africana a caçar de emboscada, tudo quanto mexe.
Faz o ponto de mira, assume uma postura rasteira e silenciosa, caminha em pezinhos de lã, e dispara em alta velocidade, rumo ao alvo.
Ora aqui em casa, o alvo escolhido é quase sempre o Jonas, que nunca mais pôde pôr pé em ramo verde.

Mas o alvo pode também ser um tapete, com o qual se embrulha numa fúria desenfreada, ou pode mesmo ser a sua própria sombra ( que assumirá uma dimensão monstruosa, naquela cabeça de minhoca ), ou o próprio rabo, que mexe sempre à sua revelia, que a desafia e que a perturba profundamente !...

Bom, e eu que tento dormir recolhida no meu quarto, subtraída à arena destas aventuras, não consigo concretizar esse desiderato.  Aquela gata doida, com um neurónio de ventoínha, corre pela casa às escuras, e desvairadamente leva à frente tudo o que lhe obstaculiza o caminho.
Cai isto, arrasta-se aquilo, arranha-se aqueloutro ... tudo acompanhado de uma voz de falsete de cana rachada, que tenho a certeza, dará pesadelos aos meus vizinhos de baixo. Ou não prevaleça o silêncio das madrugadas !...
Esta noite, pelas 4 ... 5 da manhã, sentava-me eu na cozinha, tentando argumentar com a criatura, para trazê-la à razão : " Shiuuuuu .... Mel, não se pode fazer barulho, está tudo a dormir !!! "

Tenta-se uma estratégia alternativa - recolhe-se comigo o Jonas ao quarto, deixando a desonerada na cozinha com o Chico, que verdade seja, tem uma "souplesse" comportamental, invejável.  Quando a coisa se excede, dá-lhe umas bufadelas correctivas, e pouco mais.  De resto, deve pensar : "Quanta insanidade !... Que doidivanas a minha dona havia de ter arranjado, para nos atazanar a vida !"...

Erro !
A Mel, danada por proscrita, acha-se no direito de me responder à altura.  E como quem tem vagar, faz colheres, ela tem o resto da noite, para avaliar da resistência da madeira dos armários, por exemplo.
E assim, os meus armários da cozinha, prometem  ter a sua saúde gravemente comprometida !
Já os borrifei largamente, com um chamado "afastador educativo de cães e gatos " ... estão a ver o que seja, certo ?...
Em vão !...  A prova do crime está acoplada a este meu escrito ... O tricotado é perfeito !  O meu desespero, também !...
Do quarto, e de ouvido à escuta, oiço o trabalho laborioso que se desenvolve extra-paredes, e salto da cama ... em fúria, com o sono a refilar, com ímpetos de a esganar !
E lá vou eu... e atrás de mim, o Jonas que sem sossegar, tenta de novo a sua caminha que lhe sorri da cozinha ...
E a maluca, enfia então para o quarto, o que também "não vai prestar" ... pois aí é a altura de andar por cima dos móveis, deitando para o chão, pequenos bibelots, óptimos para bolas de golfe !...
E sono ... népia !!!

Bom, e só de vos contar, já estou outra vez cansada ! 😃😃😃

Hoje, no sexagésimo dia desta interminável história de pesadelo, agora ainda mais agravado na minha vida, resolvi contar-vos estes episódios macabros, para que vocês percebam que no meio disto tudo, muito saudável sou eu !!! ....  ( ahahah )

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !



Anamar

sábado, 9 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 59




À beira de numericamente completar dois meses de uma reclusão que parece ter a eternidade por dimensão, repenso se continuarei ou não, a escrever diariamente estas histórias que chamei de "pesadelo".
E repenso, por razões de vária ordem : desde logo, porque o cansaço de toda esta anómala situação que vivemos, me retira a disposição, o entusiasmo, e até alguma da alegria inicial que sentia em mim, quando comecei a rabiscar os primeiros textos.

Depois, já aqui referi vezes sem conta ( e é sentido por todos ), a indefinição carrasca do tempo, com dias que se arrastam morbidamente iguais, sem amanhãs que nos ponham em pé com esperança e ânimo ... e em que cada vez mais, acordar e sair da cama por cada dia, se mostra uma verdadeira e penosa epopeia ... amalgama as emoções num sentimento único, de cansaço e quase indiferença já !
Cada vez mais, arregimentar forças, não se sabe de onde, encarar o novo recomeço com optimismo e alguma convicção, é uma tarefa hercúlea !
Cada vez mais, fazer de conta que ... é algo que me violenta. Eu não sou dada a positividades, se delas não estiver convicta, não sou dada a discursos delirantes se não me saírem espontâneos do peito ... não sou dada a ver copos cheios, quando os vejo bem vazios ... não sou dada a pragmatismos exacerbados, embora saiba que tudo seria mais fácil para mim, encarando a realidade com o distanciamento por eles permitido.

Sou, geneticamente, uma pessoa negativa, fraca, sem resiliência notória ... impreparada para grandes confrontos com o destino.
Lido mal com as contrariedades, tenho dificuldade adaptativa às situações e aos desafios, e sossobro com alguma facilidade, "desmontando-me" emocionalmente, sem apelo nem agravo ...

Por tudo isto, duas questões se digladiam entre os meus neurónios ainda aproveitáveis :

- por um lado, os meus relatos diários começam a entediar, por semelhantes, por doídos, por falta de diversidade das vivências descritas.
Porque na verdade, à semelhança dos dias confinados às quatro paredes desta casa, aquilo que hora após hora me domina, é este marasmo cansado da repetição "ad eternum", de um esquema que não é mais de vida, mas sim de sobrevivência. Não consigo já ter fôlego, iniciativa, vontade ou gosto para colorir os dias, onde o cinzento teimosamente predomina ...

- por outro lado, penso que falhei rotundamente o desiderato que talvez tenha sonhado alcançar - que os meus escritos, tivessem junto de todos os que me lêem, um papel pedagógico pelo exemplo, um papel de utilidade, ajuda e incentivo no ultrapassar de todo este sofrimento, e que fossem capazes de canalizar sempre, uma mensagem de esperança, de optimismo, de força, de luz e de fé em relação a um futuro que todos temos, afinal, o direito a voltar a viver ...

Falhei !
Falhei porque me desconheci. Falhei porque exorbitei nas minhas capacidades. Falhei porque fui ingénua. E, "dos fracos não reza a História" ... soi dizer-se .

E hoje dou por mim, chorona muitas vezes, aflita outras tantas, desesperançada mais ainda, confusa, e mais carente talvez do que todos vocês, de um colo, de uma coragem, de um amparo ... de um ombro e de uma mão que me erga, de uma luz que me clareie este caminho de profunda cerração, neste epílogo crepuscular da minha existência !...

Até amanhã ! Fiquem bem, por favor !

Anamar

sexta-feira, 8 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 58






As "chagas de Cristo" já abriram, na mata.  As "maias" também.
Passei, olhei-as e lembrei.  Lembrei muito, porque agora dou nisto ... uma pieguice só, que me humedece constante e facilmente os olhos ...

Os últimos tempos da vida da minha mãe, foram absolutamente demolidores.  Acredito que mais para os que ficaram, do que felizmente para ela, que cumpria o seu desígnio - viver, enquanto aquele coração teimoso lhe batesse no peito.
Eu, endureci. Eu, cobri-me com a melhor carapaça que arranjei.  Eu, e os que a assistiam a ir-se duma forma inglória e injusta, dia após dia.
E desaprendi de chorar.  O nó que me sufocava ( e sufocou ) vezes sem conta, recolhia-me as lágrimas que me secavam no peito, antes de brotarem ...

Hoje, choro por isto e também por aquilo.
Hoje, choro porque me enterneço com aquela flor singela que desponta timidamente, choro pelo silêncio dos caminhos sós, choro porque o hino que a passarada me dispensa, tem trinados que me penetram a alma ...
Choro pela condição humana neste momento.  Pelas crianças e jovens, na idade do valer a pena, afastados injustamente  dos afectos, dos amigos e dos amores.
Choro por nós todos, com uma vida suspensa, que se acaba com os dias, com as semanas e com os meses.
Choro pela destruição dos sonhos.  Pelo cansaço da espera ...  Por este Inverno que nunca mais adentra a Primavera ... neste quase Verão !...
Choro, porque sofro de uma doença chamada saudade.  Saudade das pessoas, dos lugares, dos momentos.  Saudade dos que foram indo à minha frente, e saudade dos que estão por aí, algures, à distância do meu pensamento e da minha memória ...
Saudade de mim ... muita saudade de mim !  Ausência de  vida ...

Ontem, à meia noite, a Serenata Monumental da abertura simbólica da Queima das Fitas, elevou uma outra vez os toques dolentes das guitarradas e as vozes dos estudantes, aos céus silenciosos de Coimbra ...
Não fui estudante em Coimbra, com pena minha.  Tal não se justificaria, vivendo em Lisboa, onde poderia levar adiante o meu plano de estudos.  Contudo, familiarmente acabei por me ligar emocional e afectivamente às tradições e ao revivalismo académicos ... que nunca vivi de perto, entenda-se.
No entanto, de alguma forma, Coimbra entrou-me na vida ...
E ontem, enquanto as badaladas ecoavam, e porque elas me embalavam o coração ... as lágrimas caíam-me cara abaixo ... como se fosse uma saudade real, aquilo que estava a sentir ...

Hoje, o dourado das maias era o sol que desceu aos caminhos da mata.  O seu aroma inebriante levou-me aos campos do Alentejo, levou-me às braçadas das flores frescas na jarra da entrada ... levou-me aos tempos das tranças, dos joelhos esfolados, da casa paterna ...
levou-me a outros Maios, perdidos nos tempos lá muito atrás ...
levou-me até Évora, ao tempo feliz em que a mãe trauteava a cantiguinha da sua juventude ... "dentre a paz que há na Terra, quando a noite flutua, brilha a giesta na serra, à luz branca da lua ..."

Saudades, saudades e mais saudades ...

Hoje, um amigo confessava  padecer desse mal infinito ... a saudade dos lugares onde vivera, das relações que mantivera, do bom e do mau que lhe preenchera a vida.
É exactamente isso !  Conseguimos ter até saudades do menos bom que nos atravessou os caminhos ...  porque também isso, foi história nossa !
E agora que temos todo o tempo do mundo, agora que os dias se encompridam e as noites se esvaziam do sono retemperador ... agora que os alvores das madrugadas nos encontram o peito pesado,  e  o  desconhecido  acorda  na  nossa  almofada  por  cada  manhã  que  começa ...
agora, elas, as saudades de tudo e todos, são as minhas companheiras fiéis de cada dia em que devo reerguer-me, porque simplesmente, dizem que  a vida continua lá fora !

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !




Anamar

quinta-feira, 7 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 57




Objectivamente, dia 57 ... Ontem não escrevi e hoje para lá caminho ...
O dia é 7 de Maio deste miserável ano de 2020, o que significa estarmos a dobrar, não demora, metade dos 366 dias que nos foram disponibilizados, já que se trata de um ano bissexto.
Ainda ontem comíamos as passas ao bater das doze badaladas, e inventávamos os desejos que gostaríamos de ver cumpridos ...

Eu havia chegado há cerca de um mês, da minha viagem à Península da Indochina.  Vietname, Laos e Camboja foram o destino escolhido para festejar longe daqui, o meu aniversário.
E já ansiava por meio do Janeiro que aí viria, para um passeio completamente diferente, à Lapónia, onde as "luzes do norte" se acenderiam nos céus, para mim, no que já antevia vir a ser uma experiência única e inesquecível ...
As renas, os passeios em trenó conduzida pelos huskies no meio da floresta de coníferas, o silêncio da paisagem branca e o frio intimista dos igloos na montanha ... seriam algumas das experiências ímpares que me esperavam ...
E sonhei ... sonhei muito e planeei como viria a ser este ano que então se iniciava ...
Programei economicamente o viável, comecei a ver programas das agências, a consultar sites, até a aprender como fotografar em determinadas condições e contextos ...
E porque sempre, anualmente, quando  chega determinada época do ano, eu nitidamente "descolo", eu levanto voo e faço-me aos céus ... sem emenda ou remédio ... já me sentia por aí fora, naquela ânsia meio doida e patológica ( eu acho ... 😃 ) de me ir embora ...

Depois ... veio Fevereiro ... inesperadamente, coberto com o manto da incerteza, da dor, da angústia e da morte ...
Vieram os dias injustos, escuros, longos demais. Sem rumo, e apagados de esperança.
Veio a foice do diabo e a perseguição da doença.  Vieram as lágrimas e a indefinição da vida.  Levantaram-se as grades desta prisão da alma, e fecharam-se as algemas dos corações sem paz.
Depois ... veio tudo aquilo que todos sabemos e vamos sabendo todos os dias.
Depois vieram dias e semanas e meses ... e continuamos na cela do desespero ... negra, bafienta e sem sol.  Depois, as noites e os dias mimetizaram-se e não sabemos já, se é um ou se é outro ...
E pendurámos as emoções de fora da janela, e engolimos as lágrimas e o cansaço, e guardámos nas arcas do tempo, os afectos, a alegria, a vontade e o sonho ... até melhores dias ... se esses melhores dias chegarem em tempo útil !...

Hoje, queria ir com bilhete de ida para qualquer lugar ... qualquer que fosse ... que me albergasse e me poupasse do pesadelo que vivo, neste processo contra-natura insuspeito e carrasco !
Olho as gaivotas que se embalam aqui por cima, nesta aragem forte de fim de dia.  Os pássaros já silenciaram ... Resta o vermelho afogueado lá de longe, onde o sol fraco que por aqui assomou, já dormiu há muito ...
E vou ... vou simplesmente nas asas livres do meu pensamento.  Esse, não há vírus, incerteza ou cansaço que mo impeçam !...

Até amanhã ( sei lá ... ) !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

terça-feira, 5 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 55

 





AS  CORES  DO  NOSSO  DESCONTENTAMENTO ...


Bom ... vou no quinquagésimo quinto dia deste desfolhar de dias quase iguais.
Um ciclo infinito de tempo, que parece não terminar nunca !
Também, não sei bem o que espero, ou sequer se espero que surja alguma coisa diferente.  Nada parece ter a mesma significância de antes, tudo parece ser enfadonhamente desinteressante ... e os sonhos de mudança, são isso mesmo ... apenas sonhos ...
E o sonho sempre é algo inexistente, esfumado e distante ...
A diferença está em que os meus sonhos antes, eram passíveis de concretização.  Agora, parece não haver tempo útil para isso !...

Eu já corria contra o tempo.  Eu já tinha a noção clara de que teria que definir prioridades, porque esse mesmo tempo me mostrava diariamente um aumento da precariedade da qualidade de vida. Capacidades que diminuem, entusiasmo que desvanece, força física e anímica que perde o gás ...
Isto já não se faz, porque não vale a pena ... aquilo, não justifica o empenho ... aqueloutro é demasiado cansativo para o resultado que se espera ... talvez já não faça sentido ...
Seca-se por dentro, acinzenta-se na alma, emudece-se o coração !...
Que é feito de mim ?  Onde está aquela que eu fui, há apenas alguns anos atrás ?

Sinto-me muito cansada !  Hoje estou absolutamente sem chama interior, vazia por dentro, exaurida, sem ânimo !
Tudo isto talvez resulte simplesmente da realidade que vivemos, deste quotidiano fastidioso, destes dias sem sal ...
Por isso, hoje não sou companhia aconselhável para ninguém.
Propus-me contar-vos diariamente, como foi, como é, como tem sido esta estrada sem destino, este tempo sem tempo, esta agrura que nos tolhe ... esta saga crepuscular ...
Mas já não o sei mais !...

Ofereço-vos o que chamei de "cores do nosso descontentamento" ... cores da mata, sinais mudos do meu cansaço e amargura ... Luzes sem alvorada ... silêncios cúmplices do que arrasto comigo enquanto por lá caminho ...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

segunda-feira, 4 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 54




Dia Zero !


Vive-se hoje o primeiro dia do Estado de Calamidade que pôs fim ao Estado de Emergência em vigor por três períodos de quinze dias cada, tendo sido sucessivamente revogados.

Com ele, e com o país praticamente encerrado em termos globais, o confinamento dos cidadãos foi uma realidade.  Ele começou aliás, antes mesmo de terem sido decretadas superiormente, aquelas medidas de excepção, quando as escolas assumiram o ónus do encerramento, logo que nelas ocorreram os primeiros casos de infecção.
A preocupação era conter a explosão epidémica descontrolada, como ocorreu catastroficamente nos países vizinhos, Espanha e Itália, evitando a subida exponencial da curva dos infectados, com a consequente sobrecarga do Serviço Nacional de Saúde.
Assim, arrastando no tempo o avolumar do contágio, achatou-se a exponencial de crescimento, evitando-lhe um pico abrupto, para o qual os meios materiais e humanos poderiam não ter suficiente  capacidade de resposta.
E parece ter efectivamente resultado esta estratégia delineada, pelo menos, por enquanto.  Os números cresceram paulatinamente, não se criou qualquer situação de ruptura, e trabalha-se a nível de socorro hospitalar, com uma confortável margem de resposta disponível.

Como sabemos, existem, do ponto de vista científico, duas vertentes distintas de abordagem do tratamento da pandemia :
- a dos países que optaram por evitar medidas drásticas de restrições a nível da comunidade, não decretando emergência com consequente confinamento rigoroso, como foi por exemplo, o caso da Suécia, onde as escolas não encerraram, o comércio e o convívio social continuaram a existir, e em que se apostou  na estratégia da contaminação comunitária, como medida defensiva para o alastramento da doença.
Em consequência, as faixas etárias mais problemáticas, em termos de vulnerabilidade acrescida, até pela existência cumulativa de comorbilidades, ficaram desprotegidas, incidindo nelas a ocorrência da maior taxa de mortalidade.

- a dos países em que Portugal se insere, em que a aposta recaíu sobre um rigoroso confinamento e distanciamento social entre os cidadãos, encerramento total de fronteiras, escolas, serviços, comércio e indústria e a implementação de restrições  rigorosas ( por forma a acautelar o que ainda ficou em laboração ), em áreas como a dos transportes e dos serviços mínimos básicos, como estabelecimentos de venda de bens alimentares, serviços de protecção civil, farmácias e evidentemente todos os espaços associados à saúde.

Pela análise das estatísticas, parece verificar-se uma certa eficácia no desenvolvimento e aplicação destas estratégias ... os números parecem ser benévolos e parecem corresponder às expectativas colocadas na aplicação das medidas escolhidas.
Não estamos de nenhuma forma, na lista dos países mais massacrados quanto à evolução da pandemia, nem quanto ao número de infectados nem sequer quanto ao número de óbitos contabilizados, parecendo existir uma progressão controlada da mesma.

Acontece que o Estado de Emergência cedeu lugar, como disse, a partir de hoje, ao referido Estado de Calamidade, juridicamente caracterizado por algum alívio das medidas de contenção e de confinamento social, revisionado igualmente em períodos de quinze dias, de forma faseada.
Os direitos e as liberdades individuais são agora menos penalizados, e pouco a pouco, "a bela adormecida" desperta !...
O país "acorda" deste torpor temporal, e reinicia passos prudentes de uma marcha cautelosa, lenta, mas vital, já que a economia quase totalmente imobilizada, antevê e já denuncia, um futuro negro pela frente, em que socialmente, grandes convulsões se adivinham.
Aliás, eu tenho para mim  que a abertura do país  proposta pelo Governo e homologada pelo Presidente da República, se deveu exactamente a uma pressão insustentável, por parte  das estruturas económicas e sociais, para que o confinamento não se arrastasse por mais tempo.
Já que, efectivamente, ao que parece, essa decisão não se espaldou em unanimidade de parecer, das estruturas sanitárias do país.

Acontece que dois meses de confinamento  ( que se completam brevemente ) têm sido algo excessivamente pesado nas nossas vidas.  Dias iguais, sem objectivos, metas ou horizontes, com as vidas viradas do avesso, com realidades familiares difíceis de gerir, com um crescente de angústias, incertezas, dor e sobretudo medo, a povoarem o nosso quotidiano ... com uma antevisão altamente preocupante e negativa, do futuro das pessoas
O cansaço instalou-se, a fragilidade psicológica de cada um tendeu a acentuar-se.
Mas cumprimos.  Genérica e ordeiramente cumprimos !

Agora, vem o calor, vêm os dias de céu azul, vem a praia, o mar, o campo ... e o ar livre que precisamos respirar ...
Agora, vem a tentação lá de fora, vem o convite implícito e até legítimo, poderíamos dizer, de deixar a casa para trás.
Vem a necessidade imperiosa do convívio, da conversa, do abraço, do beijo ... o desejo louco de voltarmos a sentar no colo, aqueles que há muito apenas vemos através de um écran, atrás do vidro protector de uma janela ... à distância de uma sacada .
Agora vem o cinema a que não vamos, vem a festa de aniversário que não festejamos, vêm as gargalhadas que não dividimos ... os dias que não partilhamos ...

Vem tudo isso ... mas ...

Agora, joga-se a segunda parte do grande "derby" das nossas vidas ... É o tudo ou nada, no desafio que começámos ...
Agora, que o poderíamos fazer ... não o devemos fazer !
Agora, é a prova de maturidade que todos precisamos e merecemos !
Agora, o convite do acessível, da inconsequência, da prevaricação gratuita ... da  irresponsabilidade fácil ... tentam-nos  a  cada  esquina ...  Mas  agora  é  a  hora  de  dizer  "NÃO" !!!

Só mais um pouco ! Continuemos vigilantes, em casa.  Por nós e por todos os outros !!!...
Por PORTUGAL !!!

Até amanhã ! Fiquem bem, por favor !

Anamar

domingo, 3 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 53


Mais uma efeméride nestes tempos conturbados que vivemos : hoje é o Dia da Mãe deste ano 2020 de má memória.
Dia atípico e estranho, dia de céu azul, de temperatura repentinamente elevada, numa Primavera que se afirma em cada canto, na explosão incontrolável de uma natureza em renovação, com a força da seiva da Vida !

É o meu quinquagésimo terceiro dia de uma peregrinação sem ter fim !
É um dia doído, de silêncios, de memórias e de saudades ...
Maio não era o "meu" mês de festejar com a minha mãe. 
O "nosso"  Dia da Mãe, sempre caía a 8 de Dezembro de cada ano, dia de Nossa Senhora da Conceição, feriado nacional, instituído pela Igreja Católica como preito de homenagem à Mãe e Padroeira de Portugal.
Sempre assim foi, desde que nos bancos da escola eu rabiscava umas letrinhas no cartão improvisado, demonstrando-lhe o meu amor e gratidão !

Cresci, mas sempre nessa data, entre nós as duas se mantinha o acordado.  Flores, chocolates ou um qualquer outro agrado, lhe deixava no colo, reiterando por cada ano, a expressão do meu imenso afecto para com aquele ser que me pôs no mundo, e que nunca me faltou na vida !
A sua doçura, a sua entrega, a sua presença e dádiva incondicionais, continuam a iluminar os meus dias !

A minha mãe já partiu.  Fisicamente.  Apenas fisicamente, porque no meu coração e na minha alma, eu sei que ela foi só ali ... regar as sardinheiras que tanto amava !

Hoje lembrei-a ... muito ...
Lembrei-a, quando as flores da minha filha, deixadas à distância sobre o tapete da porta, me apertaram aquele nó na garganta ... Quando nos olhámos longamente, e a vontade de a estreitar ao peito ficou por isso mesmo ... pelo olhar embaciado e triste ...
Lembrei-a, quando pelo telefone escutei as palavras da outra, que a distância e as leis impediram sequer que nos "sentíssemos" ...
Lembrei-a, quando pensava  em tantas outras mães, velhinhas e sós, espalhadas por esse mundo fora, também à distância de uma vidraça, à distância de uma porta cerrada, das palavras tão impessoais do telefone ... do isolamento de uma cama de hospital ...
Lembrei-a, quando pensava em tantas filhas que nem sequer lhes puderam dar um último adeus, um último beijo ... um último olhar de despedida ...

E uni-me a todas em pensamento, em partilha de afecto, em mágoa e tristeza profundas ... E senti que apesar de tudo, ainda sou uma privilegiada ... pois não houve distância para o coração, não houve confinamento para o amor e não há afastamento, quando o sangue que amarinha as nossas veias é o mesmo !!!

Até amanhã !  Fiquem  bem, por favor !



Anamar

sábado, 2 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 52





Hoje estou melancólica, saudosa, com lágrimas de emoção que voltam a toldar-me os olhos.
Revi fotos, olhei vídeos outra vez, reli alguns dos escritos ... voltei a afagar docemente o livro ...
Estava um dia como o de hoje, solarengo, quente, com cores e cheiros inesquecíveis.
Era terça-feira, naquele Maio de há três anos atrás ...
E no entanto, eu não sou mais aquela desse dia, e esse dia nada tem a ver com o dia em que hoje o recordo ...

"Silêncios" foi o nome que escolhi para aquele "ensaio" de poesia, onde a minha alma e o meu coração não cabiam lá dentro !
Foi assim uma espécie de coisa vivida, da qual ousamos duvidar se o terá sido ... tal a perfeição do sentido !
Foi uma insuspeita reunião de sonho, amizade, afectos de toda a ordem e todos os tamanhos ...
Foi um pulsar onírico que me atirava com os sentidos p'ra fora do peito, sem contenção ou represa.
Foi o riso, foram as lágrimas, os nós na garganta, o aperto dos abraços, a doçura dos beijos trocados ... as palavras voejando pela sala ... a música soltando-se e  Enya  perpassando pelo meio das flores ... flores de Maio ... margaridas, sempre !...
Foi o dia em que o longe se fez perto.  Em que todas as estradas pareciam ter rumado aqui.  Onde as palavras uniam e não chegavam para dizer tudo ... E tudo era muito ... tudo era IMENSO !
Foi dia de reencontros, de partilha, de histórias, de memórias ... de encantamento !...

A minha mãe ainda estava comigo, embora talvez não soubesse sequer o que ocorria.
A Teresa esteve presente, escondida ainda na barriga da mãe.  Viria ao mundo mês e meio depois.
As minhas filhas, genro e netos também, à excepção do António que tinha teste de Física e Química no dia seguinte ... 😃😃
Os amigos ... de todos os lados !  Os que me ajudaram na empreitada desta concretização, a Lena, o Mica, o Pedro ainda cheio de saúde ...
O espaço escolhido - a Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos - com a sala linda, organizada nos pormenores.  O Zé Eduardo na produção vídeo e áudio, o António, que de Évora se abalou para fotografar e filmar ... para me abraçar.  A Maria d'Aires, o Vereador da Cultura, e uma sala totalmente repleta de rostos amigos, de muita alegria, de infinita felicidade !
Eu, vivendo um sonho !

Hoje, três anos volvidos ...os silêncios desceram na minha vida ... desceram nas nossas vidas ...
Ficaram as memórias, ficaram os afectos que sempre suplantam distâncias, que sempre vencem fronteiras, estendem braços e dão mãos ... sempre unem os corações de quem se quer bem !

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !



Anamar

sexta-feira, 1 de maio de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 51




" NO  TEMPO  DAS  CEREJAS "


1º de Maio !...

Quando penso no 1º de Maio, sempre me ocorre o primeiro 1º de Maio ... o de 74 !
O primordial, o virginal, como o é tudo aquilo em que muito acreditamos e nos enleva !

Era o tempo das cerejas, era um tempo leve, de céu azul, e muito sol.
Estava um dia quente, sim, a anunciar tempos de bonança, que talvez não viessem nunca  a honrar a suspeição, ou tão somente o desejo.

Lembro de ter uma casa nova, onde implementava os preparativos da estreia ... Lembro de ter uma única filha  ( oito meses de menina, com caracóis loiros e rosto de porcelana ), sentada na alcatifa rosa-carne da divisão totalmente vazia ainda, contígua à cozinha, onde eu arrumava, arrumava, arrumava ...
Lembro de que não havia brinquedos que a aliciassem a entreter-se, para que eu pudesse aproveitar a tarde a que me propusera ... E  lembro que nas ruas havia um sonho que voava de galho em galho ...

Lembro que sentia estar a perder qualquer coisa  sumamente importante, como o são as coisas únicas, na vida.  E também, que invejava não engrossar a marcha, vinda de todos os cantos, marcha de todas as raças, de todas as gentes, que se fizera rio único, de caudal gorgolejante e impetuoso.
Rio que inundava as praças, as alamedas e os largos. Rio que não permitia represa !
Um  poema  de  frases soando a liberdade ... vírgula a vírgula ... parágrafo a parágrafo ... escrito por todos nós !

E lembro os cartazes, as bandeiras, os hinos, as cores e as siglas ... as canções-arma, os risos cúmplices partilhados, divididos pelos rostos exaltantes ...  E os abraços dados aos desconhecidos ... a mistura dos suores de todos, os que naquele tempo, eram mais que irmãos ...
Os slogans, as palavras-norte e as palavras-ordem. E os braços no ar, quando o punho fechado, apenas significava vitória ...
Porque, no tempo das cerejas, ter a mesma esperança, rejubilar sem diques ou contenções, com a mesma alegria dos ideais únicos ... era  fraternizarmo-nos, como nunca voltou a repetir-se em tempo algum !...

Que importava ser mais ou menos vermelho ??!!
Que importava ter foice e martelo, ou rosa, ou estrela ... se ainda escorríamos para a mesma foz ??!!!

Os cravos não regateavam peitos ...
Uma força hercúlea pintava de certezas as ruas, os corações, e as almas.   Engalanava-se de vontade, de quixotismo, de sinceridade e de pureza.
Era  Abril, adentro o Maio que começara !... Era a festa que não cessara ... uma semana corrida !

Pela primeira vez,  num coro único de corações, todos, mas todos mesmo, tínhamos a ingenuidade de marinheiros de primeira viagem,  a alegria de putos soltos e livres,  a gargalhada que não comprometia nem assustava, em uníssono com a gargalhada  do  "camarada-irmão",  desconhecido ... ali,  ao  nosso  lado, com  a  mão  no  leme,  que  nem  nós !!!...
Tínhamos o êxtase e o deslumbramento, de ver uma história sonhada, que parecia finalmente saltar da ficção à vida !
Tínhamos a convicção, que passo a passo, atingiríamos a almejada meta !
Tínhamos a determinação dos que sabem o que querem ... ou a inconsciência de que bastava Querer, com aquela força ... para Ter !
Fossem lá dizer-nos que não era assim !!!...

Foi um dia de sol, de céu azul ... um dia quente, que respirava Liberdade !!!...

Foi o tempo das cerejas !

Hoje, mais do que nunca, neste dia de trevas, cansaços e incertezas, apesar do céu que teima em ficar azul lá fora, não consigo acender o sol aqui dentro ... ainda que as cerejas não desistam ... porque afinal, é Maio outra vez !!!

Anamar

quinta-feira, 30 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 50




Cumpro hoje meia centena de dias do meu isolamento profiláctico voluntário .

Desde logo voluntário, portanto não há do que me queixar !
Mas, cinquenta dias é de facto uma marca registável, e como o Homem é um animal de hábitos, não sei mesmo como vou readaptar-me à nova vida ! 😃😃
Nova vida porque, terminado que será o Estado de Emergência já neste fim de semana, o desconfinamento sofre substanciais alterações inerentes, já que o Estado de Calamidade Pública a ser implementado a partir da próxima semana, vem logicamente investido de outras determinações legais.

Pode achar-se que a fronteira da "liberdade" está portanto, a um passinho de ser alcançada, e o nosso degredo a um passinho de encontrar um fim ...
Como se a crise sanitária trazendo a reboque a crise económica já profundamente instalada na sociedade, cessassem, por um qualquer passe de mágica legislativo !...

Acordo diariamente angustiada, perdida, como se lá fora me esperasse uma cerração daquelas bravas, de dia de Inverno sem remédio.  E confino-me mais e mais ao conforto dos lençóis, como último reduto ou trincheira, antes de ter que voltar a encarar um outro dia.
Dia sem perspectivas, sem horizontes, projectos, planos, sonhos ... luz !
Dia que afinal é só tempo a passar, tempo a consumir-se ... vida a delapidar-se !

Não me têm afligido por demais os dias de solidão ou afastamento.  Desde sempre sou uma pessoa de hábitos simples, vida muito caseira e pouco exigente.  Não sou de precisar de agendas sociais preenchidas, para justificar a minha existência.
Não foi portanto a ausência deste tipo de coisas na minha vida, que me deixou aturdida, desconfortável e angustiada.
Aquilo que progressivamente me tem deixado em perda, é a impossibilidade de querendo ... poder fazer ...
Explicando melhor, não querer ir, podendo ir ... querer estar, não podendo estar!... Fiz-me entender ?!
É a impossibilidade de reavermos a nossa vida lá fora - a que conhecíamos - e que já lá não está, quando deitarmos a cabeça fora da porta ...
Porque, quando com pezinhos de lã, titubeantes, cautelosos e imprecisos experimentarmos a andar de novo, será como se o fizéssemos pela primeira vez, como se, desconhecido o caminho, o perigo nos espreitasse a cada esquina e nos remetesse correndo, à nossa toca, no primeiro sinal de insegurança ou alarme ...

Eu sinto isso.  Eu antecipo-me isso.  Eu, continuo com medo ... medo não só da doença, mas da estranheza de tudo o que me espera além fronteiras.  Das pessoas que não são mais as mesmas que deixei, dos lugares que inexistem e se perderam como o eram, dos sonhos interrompidos e não cumpridos ... de mim, que não acho mais nesta amálgama de escombros de emoções : dúvidas, cansaço, angústias, incertezas sem tamanho ... e tristeza.  Muita tristeza !
Tristeza pela antecipada, mas já sentida, desestruturação social.  Cataclismo económico, maior empobrecimento, miséria outra vez, crises familiares, sofrimento, desemprego e fome.
Também em todos esses aspectos, uma crise mundial sem guarida !

Por tanto e tantas coisas complicadas e difíceis já passou a minha geração !  Tantas provações já atravessámos !  Tão experimentados temos sido pelo destino !
Faltava ainda sermos espoliados de vida em vida ???!!!...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !



Anamar

quarta-feira, 29 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA"- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 49




É impressionante como me "embanano" no tempo com alguma frequência, sobretudo depois da mudança da hora !
Este novo horário, ainda me baralha os ritmos biológicos e outros.
Com a luminosidade solar enganadora a iluminar-nos até mais tarde, quando julgo que ainda tenho uma tarde pela frente, já quase são horas de recolha ao ninho !
Quando penso que tenho todo o tempo, para placidamente escrever ... horas de jantar !  Enfim, ando mais atrapalhada temporalmente ( agora que pareço dever ter todo o tempo do mundo ), do que antes destes calendários loucos de vida, se terem instalado ...
Significa isso que começo a padecer do novo tipo de "stress" ... o stress covid-19 !!!  😃😃

Acresce que hoje tinha uma vídeo-conferência importante, ao fim da tarde, de que já só assisti a metade, porque me esqueci completamente ... e como tal, a minha "história de um pesadelo" na sua quadragésima nona versão, saíu totalmente prejudicada, pelo que apresento as minhas desculpas.
Amanhã atingirei a meia centena de dias, enclausurada neste confinamento que todos conhecem.
E falaremos de novo ... prometo !

Assim, assinalo a minha passagem por aqui hoje, oferecendo-vos um tema musical que me é particularmente querido, de uma intérprete cuja voz me fascina : a irlandesa Énya.
A faixa que escolhi, foi-o por três razões :

A primeira, porque este meu post de hoje, a comunicação da minha janela convosco, referencia alguma coisa que nas nossas vidas não conseguimos controlar, driblar e manipular ... que decide, determina e resolve ... e com a qual me relaciono muito mal  - o Tempo !

A segunda, porque esta canção está, "ad eternum", emocional e afectivamente ligada a mim, já que  marca uma data inesquecível na minha história ... 2 de Maio de 2017 ... quase a perfazer três anos portanto, no que foi um dos dias mais felizes da minha vida, o lançamento do meu livro de poesia "Silêncios", que reuniu de uma forma gratificante e eterna, amigos de perto e de longe, que me emocionaram, acarinharam e honraram, fazendo-se presentes na minha festa !!!
E como foi lindo esse dia !!!...
"Only time" foi o tema de fundo escolhido, num vídeo que passou na abertura da sessão.

A terceira razão, prende-se à associação que faço deste mesmo momento que atravessamos nas nossas vidas, das inquietações sem resposta, das angústias sem solução, da luz que não temos no fundo do túnel ...  com esse Tempo carrasco, que se arrasta ... com esses minutos que parecem horas, e dias que parecem anos ... e que só ele sabe, só ele decidirá, só ele dirá quando chegaremos ao fim do flagelo, da escuridão e da dor !...
Para onde irá a estrada ... para onde nos levarão os dias ??

"ONLY  TIME" para vocês, com todo o meu carinho !

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

terça-feira, 28 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 48






ALGUÉM  QUE  ME  EXPLIQUE ...

Já não sonho.  E já não sonho, porque passo parte das noites, razoavelmente acordada.
Ontem sonhei que lanchava, com a minha neta Vitória, um belo bolo de chocolate que ela fizera para nós ... Isto deve querer dizer qualquer coisa !...

Nestes tempos conturbados, ela tem-se especializado em bolos, ao que parece.  Veio trazer-me um, ao patamar da escada, no sábado de Páscoa, dia particularmente difícil para mim, não por estar só, e só ...  há tempo longo e entristecido, mas porque nesse dia, a minha mãe faria 99 anos de existência e 2 em que me havia deixado ...

Eu dantes sonhava muito.  Eram "filmes" e mais filmes, coloridos, que desfilavam pelas madrugadas.  Com eles "revia" muita gente, com eles vivia histórias, com pouco nexo a maioria, outras em que o final ansiado, sempre me driblava ... e pumba ... quando eu achava que ... acabava-se o sonho !...
Eram tempos de preocupações relativas, sem atribulações excessivas, pesadelos não me visitavam habitualmente e, afinal tudo se encaixava simplesmente dentro das vivências do dia a dia .
A vida corria mansa, e eu não sabia !...

Neste momento, os sonhos, como a vida, viraram de pernas para o ar.
E eu levo as noites a ver se os pesadelos reais se compadecem, e me deixam ir descansando qualquer coisa nos intervalos ... antes que fique louca de vez !

Estou no quadragésimo oitavo dia do confinamento voluntário a que me propus, antes mesmo de decretada a primeira emergência, pelo Presidente da República, no passado dia 18 de Março.
Tenho respeitado, com maior ou menor dificuldade, as medidas restritivas com vista à contenção da propagação do contágio pandémico, que como sabemos, semeia a morte e a destruição em todo o planeta.
E respeito-as, na dor do isolamento, na dor do afastamento afectivo, no cansaço de dias intermináveis e iguais, na ansiedade, no meio de uma angústia tremenda e tomada por um medo que não desvanece, numa preocupação crescente, mais do que em relação a mim ... em relação aos meus familiares e
amigos.
Respeito-as ainda que a esperança também vá indo, ainda que o acreditar na reposição da vida, que era a nossa ... também vá sumindo em direcção a um horizonte progressivamente mais longínquo ...

Chegámos a hoje, com mais de 24 mil infectados, com quase mil óbitos e com um desconfinamento reconfirmado pelas esferas sanitárias e políticas responsáveis, a partir do próximo 2 de Maio, conforme agendado em pauta.
Marcelo diz que o fim da emergência não é o fim do surto ... Menos  ainda  do  susto,  digo  eu ...
Todos sabemos que com isso, o país não abre propriamente portas, e que a prudência de cada um será a única chave protectora de si mesmo e dos outros.  Todos sabemos que longe disso, a realidade será bem outra !
Portanto, dependerá  de todos e de cada um, a manutenção do equilíbrio possível alcançado, e que se tem mantido até aqui.
Até porque, vamos partir para o desconfinamento, não em condições exactamente adequadas, mas com contágios acima da média ideal, de acordo com as preocupações manifestadas pelo SNS ... o que parece demonstrar uma inversão do discurso e da estratégia do Governo, usados até aqui.
As regras, apesar de uma flexibilização das directivas, continuam a passar por distanciamento social, protecção individual pelo uso mais generalizado de máscaras, e atitudes de seriedade e responsabilidade enquanto cidadãos que somos, de um país abrangido pela crise insana que se abate mundialmente.
Vamos dando passos controlados e revisionados regularmente, podendo mas não desejando, ter que inverter as estratégias implementadas - diz o Primeiro Ministro.


Ao longo de todo este caminho,  tenho acompanhado exaustivamente as análises, posições e  directivas que o Governo de António Costa tem tomado, e a forma assertiva, corajosa e cautelosa com que tem encaminhado todo este processo, tacticamente escorado e apoiado pelos responsáveis superiores da Saúde, pelos diferentes partidos políticos que para o efeito soube cativar, e de cujo apoio nunca prescindiu,  de todas as estruturas da sociedade civil, na área económica, empresarial e da banca, que soube implicar e envolver na causa única de interesse nacional, acrescendo ainda, a forma inteligente e sólida com que envolveu o Chefe Supremo da Nação, em todas as determinações a serem implementadas. Mesmo as mais difíceis de consumar.
Eu diria que se deve a esta coesão objectiva, o sucesso tido até ao presente, no desenvolvimento controlado da crise epidémica, e bem assim, o controle económico possível, obstando a maiores e inevitáveis danos para a sociedade em geral.
Por tudo isto, lhe tirei incondicionalmente o chapéu !

Hoje, contudo, estou profundamente perplexa e confusa.
Faz parte do agendamento da desconfinação, entre outras medidas, a reabertura das creches e infantários no próximo dia 1 de Junho.
Ora não haverá, quer-me parecer ( se exceptuarmos os lares e residências séniores ), local onde o distanciamento social  menos respeitado e praticado, possa ocorrer.
A faixa etária das crianças nessas instituições, não é passível da mais pálida compreensão sobre o que na realidade vivemos, do que está em jogo, e dos riscos a que se submetem nesses espaços.
Seja no convívio entre as crianças, seja no relacionamento com o pessoal que com elas priva, seja com a intrusão de elementos exteriores aos colégios ( famílias e outros ), o risco da proliferação de contágio é exponencial ... parece-me óbvio !
E parece-me também um perfeito "tiro no pé" e uma imprudência sem tamanho, abrir a hipótese de uma repetição do que ocorreu nos lares, com as nossas crianças !
Já sabemos claramente, que elas não são de todo, imunes à contaminação pela Covid-19 !

Neste momento, acresce mais uma preocupação nesta área, já que no Reino Unido, mas também em Itália e Espanha, surgiram casos graves ( inclusive com óbitos ), entre crianças , motivados por uma síndrome inflamatória rara, requerendo internamentos em cuidados intensivos, com suspeita de possível ligação com a Covid-19.
Essa afecção misteriosa está a alarmar a classe médica, sobre a sua real origem, e está a ser alvo de investigação e estudo urgentes.  Não poderá, contudo, ser descartável !

Não gosto de personalizar excessivamente, em público, aquilo que escrevo.  Tenho posições pessoais, mas não perco de vista os interesses e as correntes de opinião, mais gerais.
Contudo, desta feita, vou colocar esta questão que me assombra a alma, me sufoca o coração e me deixa as noites em claro, na primeira pessoa :
Sou avó de uma criança que completará três anos, no próximo mês de Junho.  A mãe é enfermeira e o pai, ligado a uma empresa internacional na área das energias renováveis, trabalha fora do país.
A creche que a Teresa frequenta, encerrou portas, quando deliberado superiormente.
Em consequência do Estado de Emergência, a menina ficou confinada em casa à guarda da mãe, que obviamente não podendo  sequer beneficiar da possibilidade de tele-trabalho, dada a especificidade das suas funções, foi abrangida pela lei governamental de crise, que abrange pais de menores de 12 anos, e que por isso não podem prestar serviço no local de trabalho, auferindo apenas uma percentagem remuneratória.

A creche abrirá no próximo Dia da Criança, 1 de Junho.  A Teresa, reingressará ( ou não ), porque a mãe deverá retomar a sua actividade.
A nossa família é constituída apenas por mim e pelas minhas duas filhas ... a mãe da Teresa e outra com 3 filhos, em casa, em tele-trabalho.
Como é lógico, os avós da Teresa são pessoas de uma faixa etária que corresponde a um grupo de risco, pela idade que detemos.
A tia disponibilizou-se para alojar a Teresa no seu agregado familiar, com a condição da mãe, pombo-correio entre hospital e casa, não contactar a criança, a fim de não colocar em risco, toda a sua própria família.
Inviável ... com uma criança de três anos e que em situação normal,  vive  quase em exclusividade com a mãe.
Como se lhe explica ... o quê ???!!!
Eu, não posso conviver com a ideia da minha neta ter que correr riscos de saúde, regressando, sabe-se lá em que condições, ao colégio !  Eu, estou disposta a ficar com ela.  Nem a mãe nem a tia, concordam !!!

Alguém, por favor, me explique a lógica de tudo isto !
Alguém, por favor, me dê uma solução para esta situação ... já que, mercê de tudo o que antecipo, o sono e a paz não me favorecem, nas noites de silêncio e escuridão, onde tudo é sempre mais negro, e em que o túnel onde me encontro, não tem mesmo nenhuma luz ao fundo !!!

Abrir as creches, configura-se-me  portanto, uma medida meramente economicista, permitindo que muitos trabalhadores que têm filhos à guarda, retomem as suas actividades.
Qual será o preço a pagar-se então, socialmente e em vidas humanas, se em consequência disso, tiver que ocorrer um recuo no caminho dolorido que até aqui fomos percorrendo ??!!...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

segunda-feira, 27 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 47




Hoje nem a mata me animou ...
Era dia de caminhar, e lá fui, pouco depois de sair da cama.
Bem sei que não estou nada famosa, depois da extracção do dente de que vos falei na passada semana.  O que configurou um alívio psicológico sem tamanho ( o facto de ter tomado a decisão de o fazer ), para mim que sou uma criatura absolutamente indescritível em matéria de dentes e dentistas, veio a mostrar-se um processo complicado.
Tratava-se de um dente difícil ( um siso, que só por si não é "pera doce" ), e do meu ponto de vista, o médico não acautelou a pós-intervenção, com a prescrição de alguma terapêutica, profiláctica de possível complicação que pudesse ocorrer.
"Um paracetamol, se tiver alguma "moínha" ... Não é preciso mais nada !"

Meu dito, meu feito.  Do paracetamol, a cratera que ficou, até se riu ...
Passei para analgésico substancialmente mais forte ; a dor cedia e passado o efeito, recrudescia.
Acresce que o médico, neste período que atravessamos, só presta serviço uma vez por semana, e ainda assim, apenas em urgências.  Ontem o maxilar latejava, sentia-me indisposta, sem paciência ou sequer vontade de me mexer.
Através da minha filha que é da área, consegui contactar uma médica dentista que estava igualmente em urgências, e que me prescreveu então, uma terapêutica mais agressiva.
Veremos se me livro de antibiótico, e se com o anti-inflamatório que agora faço, de 6 em 6 horas e mais alguns outros cuidados, consigo resolver a situação ...

Todos estes contratempos - que nos últimos dias têm "ajudado" maravilhosamente a suportar o período que atravessamos - ainda o têm tornado mais penoso e insuportável.
Nada de mais ...  Na verdade, simplesmente acidentes de percurso, em que a parca paciência de que dispomos e menor capacidade resiliente,  mais dificultam as horas que se vivem ... só isso !

É um facto, que 47 dias de uma vida totalmente virada ao contrário, de uma realidade aberrante e inesperadamente surrealista, não são pouca coisa ...
É um facto, que aparentemente, deveríamos estar mais optimistas e pacientes, com a perspectiva do fim da emergência, a partir do fim desta semana ...
É um facto que teoricamente isso, de alguma forma, representaria uma luz no fundo deste túnel interminável e escuro, onde vivemos confinados neste degredo, por tempo que parece infinito ...

Mas ... há um mas, que é o que sempre escangalha tudo ...
Sabemos bem, em boa consciência, que nada é assim tão linear quanto o desejaríamos, e que por assim dizer, pouca coisa mudará expressivamente, nos tempos que se avizinham ...
Todos sabemos que não se imagina sequer, quando a vida se nos mostrará como o era anteriormente, se é que alguma vez isso poderá ser restabelecido ...
Quando será que conseguiremos circular nas ruas, nos locais públicos, de compras, de lazer, por obrigação ou por mera descontracção ... sem medos ou suspeição ?  Sem literalmente "fugirmos" de quem se cruza connosco, de quem se nos avizinha nas filas, de quem ocupa o lugar ao lado, no transporte, ou ocupa a cadeira contígua, na sala escura do cinema ?!
Quando será que voltaremos a planear escapadinhas, fugas de fim de semana ... viagens para aquele destino que já nos sorria no horizonte ?!
Quando voltaremos às compras, naquela "insurreição" tipicamente feminina, urgente e gratificante, de renovação do guarda-roupa onde sempre falta uma coisinha ... para a estação que se apruma a chegar ?!
Ou para quando, almoçarmos naquele bar de praia, banhados pelo sol dos dias promissores que aí vêm ... sem pressas ou urgências, degustando apenas, pelo prazer de o fazer sem horas, ou condições ... jogando displicentemente, "conversa fora", com todo o tempo do mundo ?!
Ou voltarmos a levar as nossas crianças ao parque, numa afobação de despertarmos baloiços silenciosos há tempo de mais, numa ânsia de lhes ouvirmos de novo as gargalhadas, as corridas ... e as teimosias também ?!
Quando será que deixaremos de ver os nossos e todos os que amamos, à distância de uma vidraça, à distância do passeio em frente, ou do patamar da escada ?!
E termos de preencher o buraco no peito, termos de suster o nó na garganta e as lágrimas teimosas ... porque tudo é mais prudente que continue a ser apenas virtual ?!
Para quando os aniversários, as reuniões familiares, a partilha de acontecimentos, de eventos, de todas aquelas coisas que falam a nossa linguagem dos afectos ?!
 ... ou tão só e tão simples, quanto o dividirmos apenas a mesma mesa do café, como nos tempos em que as nossas preocupações não iam muito além das novidades do quotidiano ... e em que tudo era razoavelmente certo e seguro ?! - achávamos nós ...

Quanto tempo vamos precisar para nos reerguermos ?
Quanto tempo vamos precisar para reidentificarmos outra vez, o nosso mundo lá fora ?
E para secarmos as lágrimas entretanto derramadas, as feridas entretanto escancaradas, as ausências que se tornaram irresolúveis ?
Quanto tempo precisaremos para readquirirmos a alegria, tropeçando que estamos nos destroços da existência ?  E para confiarmos outra vez no conceito de vida ... tão precária e efémera ela se mostrou  ?...
Quem nos restituirá o tempo que estamos a perder, por cada dia deste simulacro que vivemos ?
Quem nos devolve a esperança, a força e a confiança de que talvez ainda o possamos desfrutar ... apesar deste parêntesis injusto e interminável ???
Quando preencheremos este vazio dolorido que nos deixa num deserto de referências, e que nunca mais nos redime ao que algum dia fomos ... tão distante nos parece já esse dia ???

Bom ... isto hoje está assim !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

domingo, 26 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 46



DAY  AFTER ...

A festa foi o que pôde ...
A festa foi o que foi ...





" Foi bonita a festa, pá !!! "

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sábado, 25 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 45




25  de  ABRIL

Hoje um dia particular !  Na nossa História e nas nossas vidas !
Um dia que tivemos a honra e a sorte de viver.  Um dia absolutamente ímpar, em que a força do sonho, da coragem e da esperança, venceu as trevas de um país triste ... que naquela madrugada acordou para a luz de um amanhã melhor ... Este que vivemos em democracia e liberdade !

Dia carregado de emoções, de memórias, de alegria também ... e de muita confiança, apesar dos tempos doloridos que atravessamos ...

Queria ter escrito um poema, um poema que carregasse o meu sonho, sempre ... um poema que transportasse a minha gratidão, por todos os que então ... mas hoje também, reescrevem a História do meu país ... nestes dias em que a escuridão volta a tentar descer sobre nós ...
Mas não consegui !
As palavras estão cá, no meu peito, atravancadas ... atropelam-se ... mas não saem ...

Por isso vos ofereço neste dia, em que a emoção me salta outra vez, em cada estrofe do Zeca, em que aflora em cada palavra do Chico, em que as lágrimas me assomam fáceis  nos olhos, nesta doce pieguice que me aconchega a alma e o coração ... um poema escrito há já alguns anos, e que integra o meu livro "Silêncios" ...


SEMPRE 25 DE ABRIL

Uma semente ficou na floreira do jardim
Continua a dar-me cravos e molhinhos de alecrim ...
São cravos do nosso sonho
sonhados naquele dia,
são sinais de um homem novo,
são a vontade de um povo,
foram um rumo e um guia !

E os sonhos que Abril abriu
pelas madrugadas fora,
foram paridos na dor, foram vividos no amor,
estão vivos até agora !
Nas algemas da desgraça
ninguém mais nos vai prender,
enquanto o coração sonhar,
tiver fé e acreditar,
na força do nosso crer !

São cravos que a alvorada entregou na nossa mão,
rostos erguidos de gente com coragem, resistente,
e que sabe dizer NÃO !...

E por isso, Portugal
que acordaste à claridade,
não adormeças teu chão !
Vem p'ra rua, vem dançar,
faz ouvir a tua voz ...
Lança ao vento a liberdade,
acorda toda a cidade,
como o eco de um trovão !!!...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sexta-feira, 24 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 44





Não sei o que vos diga, hoje ...
Os dias genericamente repetem-se, as vivências são próximas, tudo é muito fastidioso e insípido !
Hoje foi dia de caminhar.  Mais animada apesar de tudo, já que, mercê da extracção do famigerado dente que me atormentava o espírito - no que foi um alívio de alma incomensurável -  o analgésico que tenho tomado em paliativo, foi por assim dizer, um "dois em um" ... e o incómodo da ciática, passou também !
Portanto digamos, estou novinha em folha !...

Os dias de Primavera instalada, começam a ensolarar.  Corre um vento excessivo, agora de tarde. De manhã tudo estava mais sereno e mais bonito !

Com esta acalmia promissora do tempo, sente-se claramente um espírito mais solto e leve, nas pessoas. 
Com o levantamento do Estado de Emergência no próximo 2 de Maio, que já espreita à porta, com a saturação do isolamento que nos tem remetido a esta vida de eremitas ... e com os números felizmente generosos na nossa terra, das estatísticas da Covid-19 ... acho que um qualquer "frisson" já toma conta dos espíritos.
E à semelhança de algum confinamento, que em Março antecedeu mesmo, as determinações do governo, receio seriamente que também o desconfinamento agora, entre em velocidade de cruzeiro, antes do prudente.
Noto claramente mais movimentação nas ruas e mais trânsito nas vias públicas.  Noto as pessoas aparentemente menos policiadas, menos contidas, notoriamente menos assustadas, creio.
E aí, pode residir o busílis da questão !
Nós somos muito de gritar por Santa Bárbara ao trovejar ... e também de "enquanto o pau vai e vem, folgarem as costas" ...  Só espero, para bem de todos nós, que não venhamos a apanhar um valente "cagaço" um destes dias, ao consultarmos números de que as pessoas parecem ter-se indiferentizado, nos últimos dias ...
Eu sei que também é um processo de defesa pessoal.  Uma maneira de não deixarmos que a angústia, a tristeza e a aflição que sentimos impotentemente ao constatar as estatísticas avassaladoras internacionais, nos dominem e nos destruam ainda mais.
Contudo, não convém fazer muita fé em "milagres" e em chaves premiadas de totolotos do destino !...

Amanhã comemora-se mais uma efeméride da História de Portugal, o quadragésimo sexto aniversário da nossa Revolução dos Cravos, o 25 de Abril de 1974.
Num período complicado das nossas existências, em plena pandemia da Covid-19, pouco mais se pode fazer que lembrar, já que os habituais festejos, iniciativas sociais e políticas, manifestações de rua e outras, não são viáveis, dadas as medidas restritivas do distanciamento social exigido.
Assim, haverá uma cerimónia restrita, na Assembleia da República, e através das televisões ou da Internet, assistiremos, no recôndito das nossas casas, aos eventos que a propósito sejam emitidos.
Às 15 horas, todos iremos às janelas, para, em comunhão e uníssono, cantarmos a canção que nem os tempos nem as eras, apagarão nas nossas vidas : "Grândola, vila morena" do eterno Zeca !!!

O 25 de Abril  ganhou-se nas ruas, ganhou-se na esperança e na fé de uma liberdade sonhada e finalmente alcançada por um povo sofrido, que soube dizer "basta" !
Essa madrugada mágica ensinou-nos palavras de coragem, de força e de resistência ... coisas de gente forjada na desgraça, no silêncio e no obscurantismo de gerações amordaçadas, sem direito ao sonho em futuros dignos !
Ensinou-nos as palavras solidariedade, fraternidade e esperança ...

Outra madrugada é esta !  Outra luta é agora ...
Ganha-se em casa, com a esperança, a fé e o sonho sonhado, de podermos dar os braços outra vez, de podermos dar as mãos, erguer os cravos do nosso crer ... e irmos para as ruas cantar ... numa qualquer alvorada que há-de vir !
Ganha-se nos hospitais, onde os corações se entregam, nos lares onde os sorrisos amparam, nas escolas que hão-de abrir, quando já não houver grades erguidas ...
Ganha-se nas famílias que se reinventam, nos afectos que voejam além do espaço e nos velam à cabeceira ... ganha-se na certeza que nunca o longe se fez tão perto ... só porque assim o queremos !...

É Abril outra vez !...
Em Abril, aqui e agora, vamos ganhar hoje o cravo da nossa vitória sobre a dor, o desespero e a MORTE !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar