segunda-feira, 27 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 47




Hoje nem a mata me animou ...
Era dia de caminhar, e lá fui, pouco depois de sair da cama.
Bem sei que não estou nada famosa, depois da extracção do dente de que vos falei na passada semana.  O que configurou um alívio psicológico sem tamanho ( o facto de ter tomado a decisão de o fazer ), para mim que sou uma criatura absolutamente indescritível em matéria de dentes e dentistas, veio a mostrar-se um processo complicado.
Tratava-se de um dente difícil ( um siso, que só por si não é "pera doce" ), e do meu ponto de vista, o médico não acautelou a pós-intervenção, com a prescrição de alguma terapêutica, profiláctica de possível complicação que pudesse ocorrer.
"Um paracetamol, se tiver alguma "moínha" ... Não é preciso mais nada !"

Meu dito, meu feito.  Do paracetamol, a cratera que ficou, até se riu ...
Passei para analgésico substancialmente mais forte ; a dor cedia e passado o efeito, recrudescia.
Acresce que o médico, neste período que atravessamos, só presta serviço uma vez por semana, e ainda assim, apenas em urgências.  Ontem o maxilar latejava, sentia-me indisposta, sem paciência ou sequer vontade de me mexer.
Através da minha filha que é da área, consegui contactar uma médica dentista que estava igualmente em urgências, e que me prescreveu então, uma terapêutica mais agressiva.
Veremos se me livro de antibiótico, e se com o anti-inflamatório que agora faço, de 6 em 6 horas e mais alguns outros cuidados, consigo resolver a situação ...

Todos estes contratempos - que nos últimos dias têm "ajudado" maravilhosamente a suportar o período que atravessamos - ainda o têm tornado mais penoso e insuportável.
Nada de mais ...  Na verdade, simplesmente acidentes de percurso, em que a parca paciência de que dispomos e menor capacidade resiliente,  mais dificultam as horas que se vivem ... só isso !

É um facto, que 47 dias de uma vida totalmente virada ao contrário, de uma realidade aberrante e inesperadamente surrealista, não são pouca coisa ...
É um facto, que aparentemente, deveríamos estar mais optimistas e pacientes, com a perspectiva do fim da emergência, a partir do fim desta semana ...
É um facto que teoricamente isso, de alguma forma, representaria uma luz no fundo deste túnel interminável e escuro, onde vivemos confinados neste degredo, por tempo que parece infinito ...

Mas ... há um mas, que é o que sempre escangalha tudo ...
Sabemos bem, em boa consciência, que nada é assim tão linear quanto o desejaríamos, e que por assim dizer, pouca coisa mudará expressivamente, nos tempos que se avizinham ...
Todos sabemos que não se imagina sequer, quando a vida se nos mostrará como o era anteriormente, se é que alguma vez isso poderá ser restabelecido ...
Quando será que conseguiremos circular nas ruas, nos locais públicos, de compras, de lazer, por obrigação ou por mera descontracção ... sem medos ou suspeição ?  Sem literalmente "fugirmos" de quem se cruza connosco, de quem se nos avizinha nas filas, de quem ocupa o lugar ao lado, no transporte, ou ocupa a cadeira contígua, na sala escura do cinema ?!
Quando será que voltaremos a planear escapadinhas, fugas de fim de semana ... viagens para aquele destino que já nos sorria no horizonte ?!
Quando voltaremos às compras, naquela "insurreição" tipicamente feminina, urgente e gratificante, de renovação do guarda-roupa onde sempre falta uma coisinha ... para a estação que se apruma a chegar ?!
Ou para quando, almoçarmos naquele bar de praia, banhados pelo sol dos dias promissores que aí vêm ... sem pressas ou urgências, degustando apenas, pelo prazer de o fazer sem horas, ou condições ... jogando displicentemente, "conversa fora", com todo o tempo do mundo ?!
Ou voltarmos a levar as nossas crianças ao parque, numa afobação de despertarmos baloiços silenciosos há tempo de mais, numa ânsia de lhes ouvirmos de novo as gargalhadas, as corridas ... e as teimosias também ?!
Quando será que deixaremos de ver os nossos e todos os que amamos, à distância de uma vidraça, à distância do passeio em frente, ou do patamar da escada ?!
E termos de preencher o buraco no peito, termos de suster o nó na garganta e as lágrimas teimosas ... porque tudo é mais prudente que continue a ser apenas virtual ?!
Para quando os aniversários, as reuniões familiares, a partilha de acontecimentos, de eventos, de todas aquelas coisas que falam a nossa linguagem dos afectos ?!
 ... ou tão só e tão simples, quanto o dividirmos apenas a mesma mesa do café, como nos tempos em que as nossas preocupações não iam muito além das novidades do quotidiano ... e em que tudo era razoavelmente certo e seguro ?! - achávamos nós ...

Quanto tempo vamos precisar para nos reerguermos ?
Quanto tempo vamos precisar para reidentificarmos outra vez, o nosso mundo lá fora ?
E para secarmos as lágrimas entretanto derramadas, as feridas entretanto escancaradas, as ausências que se tornaram irresolúveis ?
Quanto tempo precisaremos para readquirirmos a alegria, tropeçando que estamos nos destroços da existência ?  E para confiarmos outra vez no conceito de vida ... tão precária e efémera ela se mostrou  ?...
Quem nos restituirá o tempo que estamos a perder, por cada dia deste simulacro que vivemos ?
Quem nos devolve a esperança, a força e a confiança de que talvez ainda o possamos desfrutar ... apesar deste parêntesis injusto e interminável ???
Quando preencheremos este vazio dolorido que nos deixa num deserto de referências, e que nunca mais nos redime ao que algum dia fomos ... tão distante nos parece já esse dia ???

Bom ... isto hoje está assim !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

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