sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O REGRESSO À INFÂNCIA - " A GOTA DE ÁGUA "- Uma história para a Vitória ler ao Quico



Naquela manhã de Agosto, a Miquelina acabava de poisar na pocinha, que a maré preguiçosa deixara na areia.
O bando viera banhar-se e fazer a "toilette", no espelho que a água fizera na praia, ainda deserta.
Como todas as gaivotas, a Miquelina gostava de ter as penas bem limpas, penteadas e perfeitamente alinhadas.  Por isso, sempre desciam ao areal da maré baixa, a horas em que ninguém as importunava, porque a praia estava vazia.
Nem meninos traquinas, nem cães desatinados, e os pescadores da noite, seus amigos, também já estavam de partida, porque esta findara, e o sol já espreitava por detrás das falésias.
Sentia-se uma nortada fresca, nada que perturbasse, afinal !
Miquelina, depois de revisionar uma a uma as suas penas, com o bico treinado, enfunou-as e sacudiu-se, vaidosa, espreguiçando-se.

Foi aí que aquela gota de água se soltou, e às cambalhotas, meio entontecida e atordoada, sem perceber bem o que lhe estava a acontecer, veio parar ao charco que Miquelina tinha aos pés, ou melhor, às patas ...
Caíu atarantada, mas rapidamente se recompôs .  Olhou à volta, e viu que junto a si, tinha muitas, muitas outras gotas como ela, que o mar, ao recuar, ali deixara.

" E agora " ??? - pensou.

Ainda minutos antes estava aninhadinha debaixo da asa da Miquelina, e agora engrossava na areia, o caudal de muitas irmãs iguais a si.
De um lado tinha o sol que começava a aquecer com força, e do outro, o mar barulhento, que ela só via, quando a Miquelina  abria bem as asas, e planava na aragem lá no alto, bem por cima dele.


E afinal, quem era ela ??
Como poderia distinguir-se daquelas gotas todas iguais a si, que formavam o espelho em que as gaivotas sapateavam ??
Resolveu que deveria ter um nome.
"Mariluz" pareceu-lhe bem.  No fim das contas, ela era a mais pequena porção do mar imenso que gargalhava bem disposto ao seu lado, e luz era aquilo que mesmo pequena e insignificante, espalhava ao seu redor.
Por isso é que aquele charquinho, chegava a encandear quem dele se aproximasse.

Mariluz resolveu então tomar um banho de sol.  Não era o que os turistas todos faziam ??
Foi-se  deixando acariciar pelo calorzinho que lhe chegava ao coração  ( sim,  porque uma gota de água é tão pequenina, que quase é só coração ... ), e adormeceu ...
Acordou estremunhada, porque voltou a não perceber o que lhe estava a acontecer outra vez.
De facto, Mariluz sentia-se a subir, bem mais alto do que quando era transportada na asa da Miquelina.
Tão alto, tão alto, que pouco conseguia ver cá para baixo.
Mas não se sentia nada mal, porque baloiçava aconchegadinha, só que agora numa cama de algodão bem branquinha.
E deslizava ao sabor da aragem ...  Mais p'ra cá, mais p'ra lá ... e cá em baixo, bem pequenina, estava a praia onde adormecera.

Mariluz agora fazia parte de uma nuvem.
E uma nuvem, é uma coisa tão levezinha, tão levezinha, que o vento carrega p'ra onde quer ...
E por isso, Mariluz foi esbarrar no alto daquela penedia da serra ...
Não podia seguir em frente de forma nenhuma, a não ser que subisse no céu, e assim passasse por cima daquela montanha assustadora ...

Mas, " uffa ! ...  que frio " !!!
Quanto mais a nuvem subia, mais gelava ... sem cobertor que lhe valesse.
Foi, quando tiritava de frio e quase não conseguia mexer-se, que se sentiu a descer mansamente, de novo em direcção à terra, donde viera, só que descia bem embrulhada numa capinha, como uma pele de arminho, branquinha e fofa.
E foi descendo, descendo, até que poisou como uma borboleta, docemente, exactamente num ramo de azevinho, que já se enfeitava com as bagas vermelhas, para o Natal que se aproximava.
Mesmo ao seu lado estava poisado um pardalito enrufado, que inclinou a cabecinha, surpreendido, quando Mariluz poisou.

" Olá " - disse ela.
" Podes, por favor, dizer-me onde é que eu estou ?  É que eu sou a Mariluz, que vivia na asa da Miquelina, e estava numa praia linda a apanhar banhos de sol, quando de repente subi a uma nuvem.  E de lá, acabei caindo ... só que venho com outra roupa !...  Não estou a perceber nada " !!!...

O pardal olhou-a de novo, sorriu ( como os pardais sabem sorrir ), e disse-lhe :
" Agora estás numa mata de cedros, azevinhos, plátanos, pinheiros, abetos, tuías, e muitas outras plantas lindas.
Estão todas um pouco a dormir, porque é Inverno e está muito frio ;  e também há poucas flores, porque estas só vão acordar, quando o sol regressar, e for Primavera outra vez .
Tu ... tu não tens frio, porque és um floquinho de neve, e já te habituaste a ter esse casaco " !!!

Mariluz olhou à sua volta, e verificou que realmente  tudo estava vestido da sua cor, como numa festa em que todos tivessem combinado o traje a usar.

Rufino, o seu novo amigo, todos os dias passou a visitá-la, no galhinho onde ela se dependurara.
Contava-lhe do sol, dos passarinhos, dos esquilos, dos coelhos e das flores.
Falava-lhe da tal Primavera, e do Verão, em que o bosque ficava cheio de cores, de alegria dos trinados dos pássaros, que chegavam das terras do calor.
Falava-lhe dos bichinhos que ali moravam, e que começavam a sair das suas tocas, e das borboletas que sabiam dançar bailados, como ninguém ...

E  Mariluz vivia feliz, com todas essas histórias, junto às bagas vermelhas, com que o azevinho vaidoso, se adornava.

E a Primavera acabou chegando.
Os dias começaram a ficar mais quentes, e o floquinho de neve começou a perceber que de novo, algo estranho se passava .
De repente, o ramito de azevinho onde vivera, já não era seguro, e ela sentia-se a deslizar pelo limbo das folhas, como num escorrega de menino ... até que ...
" Plim " !!! - despiu o casaco branquinho, e caíu no chão,  gota de água outra vez !

A  mata  realmente  tomava  outras  cores,  outros  cheiros,  outros  sons ...
A " festa do branco " terminara, e ela pasmava com os verdes, os amarelos e os lilazes, os vermelhos e os rosas, que formavam tufos à sua volta.
Não teve nem tempo para se despedir do Rufino, porque logo começou a caminhar, empurrada cada vez mais depressa, por entre as pedras, por entre os musgos e os líquenes.
A ela, juntavam-se de todos os lados, muitas outras gotas iguais a si, e rapidamente formaram um ribeirinho, primeiro fininho, depois mais forte e largo, que não parava nunca de correr ...

E Mariluz começou uma enorme viagem, nem ela sabia para onde ...

Sempre cantando por entre margens mais ou menos apertadas, à sombra de árvores frondosas, em campos planos ou aos solavancos, lá seguiam, como se tivessem um destino a cumprir ...

Passou por lavadeiras, que riam e conversavam enquanto lavavam a roupa, passou por meninos, que com os pezinhos na água, brincavam com barquinhos de papel, como se estivessem numa corrida ...
viu animais que nunca vira, a dessedentarem-se ...
viu os agricultores felizes, a levarem pedacinhos do riacho, para que as suas terras dessem flores e frutos ...
olhou as andorinhas, que pela tardinha, rasavam as águas para se refrescarem ...
passou pelas quintas, onde os rebanhos de ovelhas, os cavalos ou as vacas, pastavam com um jeito bem preguiçoso, e de quando em vez chegavam às margens do ribeiro ( que agora, de tão largo, se chamava " rio " ), e matavam a sede ...

Por cima de si, Mariluz tinha um céu muito azul, e um sol muito quentinho.
Seguia feliz, agora num caudal tão grande, que atravessou cidades com prédios muito altos, passou por debaixo de pontes, viu barcos enormes, que pareciam casas em cima da água, e que tornavam insignificantes os barquinhos de papel dos meninos, com que se cruzara lá atrás ...
Aqui e ali havia pessoas a tomarem banho e a refrescarem-se ;  havia casais de namorados, que simplesmente olhavam o correr das águas, e sonhavam ;  havia pescadores, que lançavam a linha e esperavam adormentados que o peixe picasse ...  e espanto dos espantos ... havia, planando nos céus, de novo, gaivotas preguiçosas, embalando-se na aragem !...

Quem sabe, Mariluz encontrava a Miquelina ?!...

E o tempo foi passando, os dias foram correndo, como corria também o destino daquela gota de água.

Até que, numa bela manhã, despertou com a voz forte e troante, de rebentação nos rochedos.
O seu caminho não era mais de calma e tranquilidade ;  sentia alguma turbulência no sobe e desce, no avanço e recuo, para que era empurrada.
Verdadeiramente, Mariluz não tinha mais um caminho ...
Fazia parte do que não tinha princípio ou fim, do que tanto era azul, como verde ... ou prateado ou turquesa ...ou escuro, se irritado.
Era "casa" de seres de cores inacreditáveis, de algas e corais, de conchas e búzios, de anémonas e até de sereias, como um imenso e mágico jardim, totalmente florido.
Tanto era doce, silencioso e se deitava languidamente na areia, como se desfazia em rendas brancas, quando zangado açoitava os rochedos ...

Mariluz percebeu que voltara ao MAR, donde saíra um dia, exactamente debaixo da asa da Miquelina !
E percebeu também, que iria começar tudo de novo ...
Talvez igual ... ou com novas histórias para contar !!!...


Anamar

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