sábado, 23 de março de 2013

" SE EU FOSSE ... "



Hoje, se eu fosse pássaro, "desensarilhava" a cabeça de debaixo da asa, sacudia as penas, punha as duas patas naquele galho, inclinava a cabeça de lado ( sabem como os pássaros olham ? ) ... dava balanço, saltava no espaço, naquela mata verde, e perdia-me de ramo em ramo ...

Hoje, se eu fosse pássaro, decretava que já chega de Inverno lá fora  e cá dentro do meu coração, porque o céu estrebucha pelo meio dos farrapos das nuvens teimosas, para ostentar o seu azul, e o sol muito envergonhado ( por ter deixado a chuva tombar em hecatombe na noite passada ), esforça-se para nos convencer que é Primavera ...
E bolas, é Primavera  mesmo !!!...

Ela chegou este ano, muito nos bicos dos pés ... porque o Inverno bravo, não há meio de deixar o posto.
Tocou as campainhas das dedaleiras em flor, desceu as cortinas roxas das glicínias, em chuva perfumada, engalanou os ipês, com todas as cores que imaginamos e com aquelas que nem sequer sonhamos.
Deixou que as cerejeiras e as amendoeiras celebrassem o pecado da luxúria, porque efectivamente ninguém lhes resiste, quando todas "prosas", assomam pelos campos, a atrair descaradamente as abelhas ...
E nem as borboletas, que lhes competem nas cores, ficam indiferentes ...
Ordenou que os perfumes se misturassem, e criassem uma nova fragrância inebriante, que o nosso olfacto nunca experimentou, tocou os címbalos dos campanários, todos os sinos, sinetas e guizos dos pastoreios em eco na planície, e pintou e repintou com o vermelho-sangue das papoilas, com o branco e amarelo das macelas, com o roxo das lavandas, o azul do alecrim e o dourado das giestas, que não tarda nada, explodem  provocadoramente,  com  a  mania  que  são  as  rainhas  da  minha  charneca  toda  ela  em  flor, como  disse  Florbela ...

Hoje, se eu fosse um menino,  "desunhava-me" a dar força ao balancé da Vida, e ia fazê-lo subir tão alto no céu, que de lá, eu veria o Mundo, de certeza.
O Mundo todo, para cá e para lá.
E a Terra ia ficar pequenina, muito pequenina, por debaixo do meu "pássaro voador" ...
E ia balançar, balançar, porque o cansaço nunca iria chegar, já que o sol iria ficar preguiçoso para dormir, e não ia haver pai nem mãe, que me fizessem ir dormir também ...

Hoje, se eu fosse um floco de neve, das montanhas brancas, ia acordar, espreguiçar-me estonteado, com os olhos a piscar pela luz do sol a pino, despia rapidamente o casaco de arminho que me cobrira há tempo demais, e ia escorregar num escorrega de brincar, pelos troncos dos pinheiros, dos abetos, dos castanheiros, e ia olhar todas as bagas vermelhas, laranjas e indigo, que pendem dos ramitos ...

Hoje, se eu fosse jovem outra vez, pegava no chapéu de fita, colocava-o nos cabelos soltos, agarrava de braçada a  ceira  de vime pousada na entrada, e partia pelos campos, a catar os medronhos, os mirtilos, as amoras, as framboesas, e todos os frutos silvestres que nem sonhamos ... os ouriços dos castanheiros, as tâmaras  maduras das tamareiras , as boquinhas de lobo, as madressilvas que desperdiçam perfume a esmo, as "chagas de Cristo", os "copos de leite" bravios ... e claro ... ramos e ramos de mimosas ... até que não pudesse mais com o carrego ...

Hoje, se eu fosse Mulher, ia tirar a roupa que me prendeu demais, pelo longo tempo cinzento e frio, ia despir os pés para que eles pudessem sentir a dureza da areia molhada da beira-mar, ia soltar as madeixas ao vento, e ia correr na babugem das ondas .
Hoje, se eu fosse Mulher, ia rebolar-me no verde das algas que atapetam os rochedos da maré baixa, e no verde do musgo que forra o chão das matas, lá da serra.
Ia abrir-me na flor, que desabrocha e mostra as primeiras pétalas coradas, como o meu rosto afogueado.
Ia dar-me, como as corolas dão o seu suco doce e húmido, ao bico dos colibris, ou ao beijo atrevido dos abelharucos ...

Hoje, se eu fosse anjo, teria presumivelmente uma coroa de boninas nos caracóis dourados, duas asas pequeninas nas costas, umas bochechas rosadas, e o riso inconsequente de todos os querubins, empoleirados nas nuvens que ladeiam o Criador ...

E aí, se eu fosse anjo, ordenaria que mesmo sendo Primavera, e embora este Mundo tivesse que acordar ao som das minhas trombetas ... eu jamais acordaria deste delírio gostoso, que por instantes me transportou numa viagem de sonhos, sem pagar bilhete, sem sair do mesmo lugar, e sem sair do torpor embriagante, que me fez acreditar que a Primavera já tinha chegado, afinal !!!...


Anamar

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