terça-feira, 5 de março de 2013

" A MINHA COMPANHEIRA DE VIDA "



O dia não podia ter amanhecido mais adequado.
É meio dia, mas a escuridão da rua adivinharia umas seis ou sete da tarde.  Chove torrencialmente, ininterruptamente.
O céu está uniformemente plúmbeo, o que indicia uma continuidade atmosférica, sem alteração possível.

O dia não podia de facto ser mais adequado ...
É um dia de partida, um dia de despedida, como são todas as partidas, e ainda mais as partidas definitivas.

A Rita vai embora.
Marcou hoje, exactamente 4 de Março, ironicamente uma data que já me estava marcada no calendário do coração, para me deixar.
Deixar mais só, mais pobre, mais abandonada ...

A Rita viveu comigo, catorze anos da sua vida .
Foi o animal mais dócil, mais meigo e menos exigente, que alguma vez conheci.  A Rita era filha do medo, era marcada desde os seus primeiros tempos de vida, pelo susto e pelo sobressalto.
Talvez por isso, nunca exigiu, nunca reivindicou, nunca definiu território.
A Rita nunca soube que tinha armas de defesa, perante nada nem ninguém.  Assim foi com os humanos, assim foi com o Óscar, assim foi com o Jonas.
A Rita acomodava-se aos espaços, às situações, às limitações ... sempre cordatamente.
Enquanto o Óscar viveu, como líder que era, impôs-se na relação comigo, e a Rita aceitava os restos.
O Óscar partiu há três anos e meio, e só então a Rita consciencializou o seu espaço de direito, físico e afectivo.
Passou a dividir os longos serões de Inverno, na cama comigo, primeiramente aos meus pés, sobre o édredon, quando a televisão se fazia razão de vida ;  depois, aos poucos, arriscou entrar na roupa, arriscou deitar-se corpo com corpo, ao meu lado, e parecia responder à chamada, nas noites mais frias, quando eu lhe dizia : " Vá Rita, aquece a dona" !...
Adquiriu rituais próprios.
Logo que a luz se apagava, subia até ao meu rosto, e cheirava, tacteava com os bigodes que me faziam cócegas, por forma a perceber para que lado eu estava voltada, porque era sempre nesse, que ela pedia com a pata, para entrar.
Eu levantava a roupa, ela hesitava um pouco, e acabava aninhando-se junto de mim.
Saía e entrava ao longo da noite, mas não abandonava a minha companhia.

Quando o tempo aquecia, trazia a Rita para a sala principal, para uma cadeira junto à secretária, e aí passava as noites.
Havia demasiado calor, para dividir a cama comigo.

A Rita adorava o sol.
Nas manhãs em que este banhava a minha casa, percorria o chão da sala atrás dele.
Quando o Jonas entrou, a sala fechou-se, porque o Jonas é um bébé desatinado, à espera que a "maturidade" o impeça de fazer mais disparates além dos que já conseguiu fazer, desde que chegou.
Roubei então o sol à Rita, que ia até à porta de vidros, que lhe impedia o acesso, e olhava, saudosa dos dias, em que as manhãs eram calmamente relaxantes, no quentinho das carpetes.
Mas também aí ela não reclamava.
Voltava pacientemente, submissa, conformada ...

Posso dizer que os únicos tempos mais tranquilos e felizes, passaram a ser para ela, as noites que partilhava na minha cama, quando a porta do quarto se fechava, o Jonas ficava no exterior, e ela finalmente saía de debaixo da camilha, onde permanecia no escuro, por todo o dia, tentando furtar-se ao seu contacto.
Porque até dele, ela parecia ter medo !...

A Rita nunca teve um olhar alegre, sempre me olhou melancolicamente, contudo sempre pareceu entender-me.
Tenho a certeza, que seguramente "me" sentia.
Muitas vezes, em momentos mais difíceis da minha vida, os seus ouvidos foram os únicos que me ouviam dizer : " Rita, isto hoje está mau ... vês ?!..."  enquanto me olhava ... olhava apenas ... a forma mais eloquente que os animais têm de se mostrarem  presentes e nos dizerem : "Estou cá !..."  com toda a dedicação e amor que nos devotam ...

Hoje, que chove, que está frio e cinzento, a Rita vai embora ...
Desta vez, ela não pensou em mim.
Não pensou como vou ter frio sem ela na minha cama, como me vou sentir desamparada, sem ela me ouvir, como me vou sentir órfã, sem o verde dos seus olhos fixos em mim, a dizerem-me como sempre : " Deixa ... melhores dias virão !  Aguenta-te firme, porque estamos aqui as duas " !!!...

Porquê, Rita ... por que foste ??!!
Logo agora !!!... Também tu !!!...

Anamar

Sem comentários: