ALGUÉM QUE ME EXPLIQUE ...
Já não sonho. E já não sonho, porque passo parte das noites, razoavelmente acordada.
Ontem sonhei que lanchava, com a minha neta Vitória, um belo bolo de chocolate que ela fizera para nós ... Isto deve querer dizer qualquer coisa !...
Nestes tempos conturbados, ela tem-se especializado em bolos, ao que parece. Veio trazer-me um, ao patamar da escada, no sábado de Páscoa, dia particularmente difícil para mim, não por estar só, e só ... há tempo longo e entristecido, mas porque nesse dia, a minha mãe faria 99 anos de existência e 2 em que me havia deixado ...
Eu dantes sonhava muito. Eram "filmes" e mais filmes, coloridos, que desfilavam pelas madrugadas. Com eles "revia" muita gente, com eles vivia histórias, com pouco nexo a maioria, outras em que o final ansiado, sempre me driblava ... e pumba ... quando eu achava que ... acabava-se o sonho !...
Eram tempos de preocupações relativas, sem atribulações excessivas, pesadelos não me visitavam habitualmente e, afinal tudo se encaixava simplesmente dentro das vivências do dia a dia .
A vida corria mansa, e eu não sabia !...
Neste momento, os sonhos, como a vida, viraram de pernas para o ar.
E eu levo as noites a ver se os pesadelos reais se compadecem, e me deixam ir descansando qualquer coisa nos intervalos ... antes que fique louca de vez !
Estou no quadragésimo oitavo dia do confinamento voluntário a que me propus, antes mesmo de decretada a primeira emergência, pelo Presidente da República, no passado dia 18 de Março.
Tenho respeitado, com maior ou menor dificuldade, as medidas restritivas com vista à contenção da propagação do contágio pandémico, que como sabemos, semeia a morte e a destruição em todo o planeta.
E respeito-as, na dor do isolamento, na dor do afastamento afectivo, no cansaço de dias intermináveis e iguais, na ansiedade, no meio de uma angústia tremenda e tomada por um medo que não desvanece, numa preocupação crescente, mais do que em relação a mim ... em relação aos meus familiares e
amigos.
Respeito-as ainda que a esperança também vá indo, ainda que o acreditar na reposição da vida, que era a nossa ... também vá sumindo em direcção a um horizonte progressivamente mais longínquo ...
Chegámos a hoje, com mais de 24 mil infectados, com quase mil óbitos e com um desconfinamento reconfirmado pelas esferas sanitárias e políticas responsáveis, a partir do próximo 2 de Maio, conforme agendado em pauta.
Marcelo diz que o fim da emergência não é o fim do surto ... Menos ainda do susto, digo eu ...
Todos sabemos que com isso, o país não abre propriamente portas, e que a prudência de cada um será a única chave protectora de si mesmo e dos outros. Todos sabemos que longe disso, a realidade será bem outra !
Portanto, dependerá de todos e de cada um, a manutenção do equilíbrio possível alcançado, e que se tem mantido até aqui.
Até porque, vamos partir para o desconfinamento, não em condições exactamente adequadas, mas com contágios acima da média ideal, de acordo com as preocupações manifestadas pelo SNS ... o que parece demonstrar uma inversão do discurso e da estratégia do Governo, usados até aqui.
As regras, apesar de uma flexibilização das directivas, continuam a passar por distanciamento social, protecção individual pelo uso mais generalizado de máscaras, e atitudes de seriedade e responsabilidade enquanto cidadãos que somos, de um país abrangido pela crise insana que se abate mundialmente.
Vamos dando passos controlados e revisionados regularmente, podendo mas não desejando, ter que inverter as estratégias implementadas - diz o Primeiro Ministro.
Ao longo de todo este caminho, tenho acompanhado exaustivamente as análises, posições e directivas que o Governo de António Costa tem tomado, e a forma assertiva, corajosa e cautelosa com que tem encaminhado todo este processo, tacticamente escorado e apoiado pelos responsáveis superiores da Saúde, pelos diferentes partidos políticos que para o efeito soube cativar, e de cujo apoio nunca prescindiu, de todas as estruturas da sociedade civil, na área económica, empresarial e da banca, que soube implicar e envolver na causa única de interesse nacional, acrescendo ainda, a forma inteligente e sólida com que envolveu o Chefe Supremo da Nação, em todas as determinações a serem implementadas. Mesmo as mais difíceis de consumar.
Eu diria que se deve a esta coesão objectiva, o sucesso tido até ao presente, no desenvolvimento controlado da crise epidémica, e bem assim, o controle económico possível, obstando a maiores e inevitáveis danos para a sociedade em geral.
Por tudo isto, lhe tirei incondicionalmente o chapéu !
Hoje, contudo, estou profundamente perplexa e confusa.
Faz parte do agendamento da desconfinação, entre outras medidas, a reabertura das creches e infantários no próximo dia 1 de Junho.
Ora não haverá, quer-me parecer ( se exceptuarmos os lares e residências séniores ), local onde o distanciamento social menos respeitado e praticado, possa ocorrer.
A faixa etária das crianças nessas instituições, não é passível da mais pálida compreensão sobre o que na realidade vivemos, do que está em jogo, e dos riscos a que se submetem nesses espaços.
Seja no convívio entre as crianças, seja no relacionamento com o pessoal que com elas priva, seja com a intrusão de elementos exteriores aos colégios ( famílias e outros ), o risco da proliferação de contágio é exponencial ... parece-me óbvio !
E parece-me também um perfeito "tiro no pé" e uma imprudência sem tamanho, abrir a hipótese de uma repetição do que ocorreu nos lares, com as nossas crianças !
Já sabemos claramente, que elas não são de todo, imunes à contaminação pela Covid-19 !
Neste momento, acresce mais uma preocupação nesta área, já que no Reino Unido, mas também em Itália e Espanha, surgiram casos graves ( inclusive com óbitos ), entre crianças , motivados por uma síndrome inflamatória rara, requerendo internamentos em cuidados intensivos, com suspeita de possível ligação com a Covid-19.
Essa afecção misteriosa está a alarmar a classe médica, sobre a sua real origem, e está a ser alvo de investigação e estudo urgentes. Não poderá, contudo, ser descartável !
Não gosto de personalizar excessivamente, em público, aquilo que escrevo. Tenho posições pessoais, mas não perco de vista os interesses e as correntes de opinião, mais gerais.
Contudo, desta feita, vou colocar esta questão que me assombra a alma, me sufoca o coração e me deixa as noites em claro, na primeira pessoa :
Sou avó de uma criança que completará três anos, no próximo mês de Junho. A mãe é enfermeira e o pai, ligado a uma empresa internacional na área das energias renováveis, trabalha fora do país.
A creche que a Teresa frequenta, encerrou portas, quando deliberado superiormente.
Em consequência do Estado de Emergência, a menina ficou confinada em casa à guarda da mãe, que obviamente não podendo sequer beneficiar da possibilidade de tele-trabalho, dada a especificidade das suas funções, foi abrangida pela lei governamental de crise, que abrange pais de menores de 12 anos, e que por isso não podem prestar serviço no local de trabalho, auferindo apenas uma percentagem remuneratória.
A creche abrirá no próximo Dia da Criança, 1 de Junho. A Teresa, reingressará ( ou não ), porque a mãe deverá retomar a sua actividade.
A nossa família é constituída apenas por mim e pelas minhas duas filhas ... a mãe da Teresa e outra com 3 filhos, em casa, em tele-trabalho.
Como é lógico, os avós da Teresa são pessoas de uma faixa etária que corresponde a um grupo de risco, pela idade que detemos.
A tia disponibilizou-se para alojar a Teresa no seu agregado familiar, com a condição da mãe, pombo-correio entre hospital e casa, não contactar a criança, a fim de não colocar em risco, toda a sua própria família.
Inviável ... com uma criança de três anos e que em situação normal, vive quase em exclusividade com a mãe.
Como se lhe explica ... o quê ???!!!
Eu, não posso conviver com a ideia da minha neta ter que correr riscos de saúde, regressando, sabe-se lá em que condições, ao colégio ! Eu, estou disposta a ficar com ela. Nem a mãe nem a tia, concordam !!!
Alguém, por favor, me explique a lógica de tudo isto !
Alguém, por favor, me dê uma solução para esta situação ... já que, mercê de tudo o que antecipo, o sono e a paz não me favorecem, nas noites de silêncio e escuridão, onde tudo é sempre mais negro, e em que o túnel onde me encontro, não tem mesmo nenhuma luz ao fundo !!!
Abrir as creches, configura-se-me portanto, uma medida meramente economicista, permitindo que muitos trabalhadores que têm filhos à guarda, retomem as suas actividades.
Qual será o preço a pagar-se então, socialmente e em vidas humanas, se em consequência disso, tiver que ocorrer um recuo no caminho dolorido que até aqui fomos percorrendo ??!!...
Até amanhã ! Fiquem bem, por favor !
Anamar