segunda-feira, 20 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 40



Cada dia me levanto mais tarde.  Saio da cama sempre em protesto, e perguntando-me qual a urgência de o fazer, se a cadeira do computador está a três metros da cama, se o sofá onde não leio, está a meio metro, se tudo está mesmo ali ao lado ?!  Tudo o que é praticamente a minha realidade neste momento !...
Porquê a pressa ???
Hoje seria dia de caminhar.  A mata lá estará, com os trinados da passarada, com o seu saltitar de galho em galho ... com o silêncio expurgante dos meus fantasmas diários ...
Só que a meteorologia não percebe nada destas coisas, destas necessidades de quem vai ficando mais e mais esgotado, anestesiado e indiferente quase, já a tudo.  Sem paciência, vontade ou com o nível de entusiasmo e foco, nos limites mínimos ...
Chovia torrencialmente, como num verdadeiro dia de Inverno.  Até granizo despencou de um céu plúmbeo, sem promessa ou brecha ...
Fiquei, olhando desalentada para os vidros da janela.  Amanhã, talvez !

Neste momento, se fizer um rastreio sério àquilo que no meu interior perpassa, uma única palavra me define : desânimo !  Um desânimo atroz, um cansaço sem limites, uma fragilidade de me sentir simplesmente "pedaços" ...
Pedaços de qualquer coisa que fui, pedaços de qualquer vida que vivi, pedaços de qualquer sonho que me abandonou ...
E choro.  Choro com toda a incontenção do mundo ... Eu, que até quando a minha mãe partiu, no que foi o maior desgosto dos meus últimos anos de vida, pouco consegui chorar ...

Busco diariamente os números das nossas estatísticas, já nem me dou conta do que vai pelo planeta ... Encolho os ombros e silencio.
Não consigo estar receptiva à dureza da realidade sanitária, económica e humana que envolve o Homem, neste momento.
Dificilmente convivo com a incerteza daquilo a que chamam futuro, e sinto, com revolta, que se ele ainda existir, nos está a ser rudemente extorquido ...
Leio, vou lendo artigos, depoimentos, informações, gráficos e mais mapas com abrangências diferentes, que circulam nos media, e que têm o dom de me deixar os miolos em fervura lenta.
Leio um, bem esgalhado, bem fundamentado, de fonte credível e penso : " pois ... é isto! É lógico, faz sentido, deve ser correcto ".
Leio outro, bem esgalhado, bem fundamentado, de fonte credível ... e de novo penso : " isto vem ao encontro daquilo que me inquieta.  Explica-se bem a situação, parece correcto ".
E mais outro e outro e outro ... e o "ruído" na minha cabeça, entontece-me e alucina-me.
Defendo ou alinho com o quê ?
"Não sabemos ... não sabemos ... não sabemos " ... diz outro.

Mas um destes dias "abrem-me" a porta da gaiola.  Um destes dias "jogam-me" na rua, outra vez, fazem-me acreditar que o amanhã voltou, "tudo vai passar, ou tudo está a passar ... ou tudo já passou" ... e eu vou ter que viver outra vez ao sol, lá fora.  E nem sequer sei se aprendi alguma coisa.  E nem sequer tenho a certeza que se quiser voltar a abraçar, a beijar, a olhar ... simplesmente ... aquele que divide a calçada, o transporte, o ar , comigo ... se o possa ... se o deva fazer...
Voltar ao normal - não é sequer a questão de estar confinada - é voltar ao "normal" ...
E o que é o "normal" ?
Se nós já não somos os mesmos ! Se nunca mais o seremos ! Se as nossas vidas foram enrodilhadas, como se faz a um papel imprestável que se vai jogar no lixo ?!
Com prudência, devagar, com cuidado ... dizem as pessoas ... dizem as autoridades de saúde.
Mas nem sei sequer o que isso é ! Poderei ir ao café e reunir na mesa amigos do "antes" ?  Sem me sentir inquieta, desconfortável, a pisar sobre brasas ?!...
Posso conviver desarmada, ir ao cinema, olhar aquele Centro Comercial fantasma, escuro e silencioso  com a desenvoltura de outros dias ?!  E ver montras e experimentar modelitos, com a displicência de jogar tempo fora ?!
Conviver com o vírus que vai ficar por aí ... Conviver, como com todos os outros vírus, que já nos invadiram as vidas  - diz-se ...
Apenas não, com esta proximidade ... Apenas, não, com esta intrusão violenta ... Apenas não, com este terror semeado ...

Como podemos seguir em frente, com a mesma inocência de antes, se os camiões de mortos circularam em Bérgamo ?!
Se os nossos entes queridos desceram ao sepulcro, no abandono de uma não despedida ?!
Se no mundo correm rios de sangue de corações e almas despedaçadas ?!
Se os cantares esvoaçaram das janelas e das varandas iluminadas, para que o medo não passasse ?!
E as palmas se eternizaram em homenagem e em honra dos que lutam na linha da frente, em dádiva, em entrega, com denodo e coragem ?!  Na expressão singela da nossa infinita gratidão ...
Como podemos seguir em frente ... se as nossas crianças e os nossos jovens vivem um atropelo que jamais esquecerão nas suas vidas e que também a eles, coartou o sonho e a liberdade de asas ?!
E os nossos velhos, muitos, demasiados,  não tiveram mais fôlego para respirar, para ter esperança e esperar verem os seus outra vez, à cabeceira, nos lares de solidão ... e partiram ?!...

Como posso seguir em frente se aquele mar, aquela serra, aqueles cheiros, aquele sol quente que me aquece a alma estão longe, longe ... e são irresgatáveis, porque nem eu resgato a pessoa que já fui ...

Enfim ... como o dia, assim estou eu, tentando olhar uma nesga de azul perdida no meio da tempestade, lá fora ...

Anexo três artigos de opinião, que ilustram tudo aquilo de que falo.  Três artigos que deixo à vossa reflexão.  A informação será a arma do nosso esclarecimento, sempre !
Talvez amanhã seja um novo dia ...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !


ENTREVISTA  COM  ANDRÉ DIAS - Doutorado em Modelação de Doenças Pulmonares pela Universidade de Tromso, na Noruega






" Eu não aguento muito mais "

É imperioso um equilíbrio.  Não podemos ficar fechados em casa muito mais tempo.  Precisamos de viver.  Precisamos de conviver.  Precisamos de nos mexer.  E precisamos de cuidar de todas as outras doenças.


19 Abril, 2020,  00:02   - VANDA GUERRA-  Revista "O Observador"


"Pior que morrer, é morrer sem viver". -  André Pengorin


Decorridas cinco semanas de confinamento, sinto-me no limite.  E confesso que me estou a borrifar para os números do Covid-19, sigo-os muito por alto.  Pareceu-me importante no momento inicial ficarmos o mais resguardados possível, quer para proteger os mais frágeis quer para "testar" a nossa capacidade de resposta, em recursos materiais e humanos.  Dar tempo aos profissionais de saúde de se prepararem e identificarem a melhor forma de gerir o que aí vinha.


Uns chamam-nos milagre, outros dizem que estamos piores que os outros.  Na realidade, independentemente dos números, vários são os cientistas que consideram este vírus tão perigoso ou mortal como qualquer outro.  Ainda esta semana, Maria Manuel Mota, directora do Instituto de Medicina Molecular, disso ao Expresso que, " este é um vírus que "quer viver " e vai-se adaptando a viver connosco.  E nós vamos ter de adaptar-nos a viver com ele ".

Uma coisa é certa : "não é o primeiro, não será o último, temos constantemente vírus nas nossas vidas.  Este é mais problemático do que uns e menos do que outros".  Acrescenta ainda que " na sua opinião pessoal, é necessário proteger os mais idosos mas não se pode "estagnar" a vida dos mais jovens".  Se ela o diz que é cientista, quem sou eu para discordar ?  Mas nem chego a desacordo, antes pelo contrário, concordo em absoluto.

O confinamento aconteceu uma semana antes de ter sido decretado pelas autoridades.  Nós, portugueses, temos mostrado mais sabedoria e maior maturidade que as autoridades todas juntas.  Fomos nós que avaliámos e percebemos o timing certo para o início deste confinamento e agimos de imediato.  Decorridas cinco semanas, parece-me ser o momento de, com algum afastamento e a protecção possível, recuperarmos a vida normal.  Não é só a economia que não aguenta.  Eu também não.  Sinto a minha saúde- para já física mas em breve, mental - a deteriorar-se por estar em casa.  E sim, eu sou uma privilegiada, que tenho casa e acesso ao que é essencial.


No Uganda uma mulher morreu enquanto tentava percorrer 3 Kms a pé para dar à luz no hospital mais próximo porque os taxistas recusaram levá-la.  São realidades incomparáveis, com um ponto único em comum - qual é o limite para o afastamento social?


É imperioso encontrar um equilíbrio.  Não podemos ficar fechados em casa muito mais tempo.  Precisamos de viver.  Precisamos de conviver.  Precisamos de nos mexer.


E precisamos de cuidar de todas as outras doenças.  Para quem gosta de números, também há números de mortes não Covid-19 - e comparativamente com os anos anteriores, aumentaram.  Porque as pessoas têm receio de ir ao hospital e porque os hospitais cancelaram todos os exames "não urgentes".  Como é que sabem se são urgentes ou não?  Eu por exemplo, tenho uma dor nas costas e dormência há meses.  Como não sou de me apressar a ir ao médico, só fui passados uns 4 meses.  Marquei os exames recomendados para daí a mais uns 2 meses.  Foi tudo cancelado.  Não estou preocupada com o meu caso particular que, seguramente, pode esperar.  Mas eu interrogo-me sobre outras situações.  Quantos exames cancelados poderiam denunciar situações que requerem tratamento urgente?


Não podemos passear ao ar livre mas podemos estar horas numa fila de supermercado?  Não podemos passear sozinhos na praia mas podemos passear o cão no jardim?  Não podemos ir a um restaurante mas podemos comprar comida online ou take-away e ver grupinhos de "Uber eats" junto ao McDonalds à espera de pedidos ?  Não nos podemos deslocar de carro sozinhos ou família mas os polícias que nos controlam os passos podem estar em amena cavaqueira, sem qualquer cuidado com distâncias ou protecção pessoal ?


Os meus pais, na casa dos 80 anos , reclamam por não verem os netos.  Dizem eles que preferem ficar doentes do que não verem os netos.  E eu, apesar de os contrariar, percebo e concordo.  Qual é o ponto de prolongar a vida de qualquer um de nós se não a pudermos viver ?  Se temos de ficar longe de quem mais gostamos ?  Se não podemos fazer o que mais prazer nos dá ?  E na realidade, se isto é verdade para todos, não será mais ainda para eles ?


O ponto está no equilíbrio e esse tem de estar no bom senso e responsabilidade de cada um de nós.  Obrigar a este confinamento muito mais tempo não mata só a economia.  Mata-nos a todos.




"Eu  explico"


JOSÉ MATOS -   Bastonário da Ordem dos Biólogos


18 Abril 2020,  1,01 h



Vamos parar de adivinhar o comportamento de um vírus que não conhecemos, apenas com base em modelos matemáticos de utilidade incontestada, mas que não conseguem incluir na equação os múltiplos parâmetros que afastam a Biologia das ciências exactas.



Atribuem-se muitas histórias e citações a grandes nomes da ciência.  Uma das minhas preferidas, independentemente de ser verdadeira ou lenda, é a de que um jornal Norte Americano terá encomendado ao cosmólogo Carl Sagan um artigo de cinco mil caracteres sobre se haverá vida noutros planetas, ao qual o cientista enviou como resposta uma página inteira com a mesma frase :

 " Não sabemos !  Não sabemos !  Não sabemos !"

Como eu gostaria que muitas pessoas actualmente seguissem este exemplo e se inibissem de publicar palpites, diagnósticos , prognósticos, gráficos sobre a Covid-19, quando a resposta deveria ser : 

" Ninguém sabe !"

Vamos então responder correctamente a algumas questões :


- Quando vamos atingir o pico.  Em que dia / semana ?   - Não sabemos !


- Quando será seguro sairmos todos à rua / os estudantes voltarem às aulas presenciais ?  - Não sabemos !


- Quem já apanhou Covid-19 ficará imune e não pode voltar a ser infectado ? - Não sabemos !


- Quando teremos uma vacina ?  Uma única vacina será suficiente para toda a população mundial ?  -   Não sabemos !


Na realidade, o " Não sabemos" é a resposta curta.  A resposta mais completa é : " Ainda não sabemos.  Podemos fazer uma previsão, mas ela será tão falível que não constitui um exercício interessante nem muito útil !"


E porque não sabemos ? Por duas razões principais : 


I) porque estamos a enfrentar um vírus até à data ainda desconhecido ( chamemos-lhe "novo" para facilitar    e 


II) porque estamos a assistir a uma interacção entre vírus e humanos influenciada por inúmeros factores que não controlamos.


Estamos perante várias áreas das ciências biológicas ( virologia, imunologia, fisiologia, epidemiologia, ecologia, etc ) e temos que entender que o objecto de estudo da biologia - a Vida - é muito complexo e distinto.  O valor de "pi" é igual aqui e na China.  Um átomo de hidrogénio é igual aqui e na Austrália.  Mas nenhum rato é idêntico a outro, em Portugal e em qualquer desses países.  Porque ainda que fossem geneticamente muito iguais, o ambiente que os rodeia é distinto e dezenas ou centenas de factores irão influenciar o seu comportamento.


E por isso, podemos criar cenários e fazer projecções, por comparação com outros coronavírus conhecidos ; podemos comparar esta com outras epidemias, mas a realidade é que não sabemos se este vírus irá ter um comportamento semelhante ao de outras situações já conhecidas.  Sabemos desde já, por comparação do material genético deste novo vírus isolado a partir de milhares de pessoas infectadas em todo o mundo, que os vírus que circulam em Portugal já não são geneticamente iguais aos que circulam na China e não são todos geneticamente iguais entre si.  Serão essas diferenças significativas ?  Mais uma vez : Ainda não sabemos !


Mas então nunca vamos saber ?


Sim, iremos ter respostas a todas essas perguntas.  Iremos ter vacinas eficazes, muito provavelmente iremos ter medicamentos anti-virais mais eficazes e específicos.  Mas para que isso aconteça são necessárias duas coisas fundamentais e interligadas : Tempo e Ciência.


É necessário tempo para perceber não só como se comporta o vírus em função da imunidade crescente da população, em função da temperatura, da humidade e de muitos outros factores ambientais, mas também tempo para percebermos qual o grau de eficácia das medidas implementadas pelos governantes nos diferentes países, e acima de tudo qual a capacidade dos cidadãos para cumprirem essas medidas.  Basta que uma centena de pessoas potencialmente infectadas ignorem olimpicamente as medidas de distanciamento social, e todas as projecções puramente matemáticas caem por terra, como temos assistido quase diariamente.


E é preciso Ciência porque tem sido ela que nos últimos séculos nos tem permitido vencer estes desafios ( e chamo-lhes desafios para não aborrecer aqueles que, por qualquer razão, encaram de forma demasiadamente literal e repudiam a palavra "guerra", embora depois utilizem calmamente expressões como "luta contra a epidemia" e "enfrentar esta batalha" ).

Foram as vacinas, os antibióticos, o diagnóstico molecular e tantos outros avanços que nos têm permitido e irão permitir encontrar as respostas para todas as nossas perguntas, que nos trarão a prevenção, o diagnóstico e o tratamento.  Não serão as curas milagreiras das redes sociais, divulgadas por alguém que sem qualquer evidência científica reclama saber mais do que todos os cientistas do mundo.

Por isso, vamos parar de adivinhar o comportamento de um vírus que não conhecemos, apenas com base em modelos matemáticos de utilidade incontestada, mas que não conseguem incluir na equação os múltiplos parâmetros que afastam a Biologia das ciências exactas.  Vamos ser ( muito ) solidários com quem tem a difícil responsabilidade de tomar todas as decisões indispensáveis e vamos dar o tempo e os recursos necessários aos cientistas para que possam ajudar a chegar mais rapidamente ás soluções desejadas.  Concentremo-nos nisso e não em ficar felizes porque ao contrário de ontem e de amanhã, a nossa previsão do número de infectados hoje acertou.



Anamar

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