terça-feira, 13 de agosto de 2013

" PINTOU-SE O CÉU, COM ESTRELAS ... "



A minha mãe diz-me que está farta de viver.

E pergunta-se por que tem que o fazer, se a falência das "ferramentas" para o efeito, se acentua de dia para dia, e se já não faz gosto nisso ?!

Perante factos, não haverá argumentos !

E eu, vejo-me tolhida e limitada,  na persuasão que tento imprimir ao meu discurso, na convicção que tento exibir a responder-lhe, e que, pelos vistos, não tem qualquer eficácia.

Quando se inicia uma caminhada, deve estar-se devidamente apetrechado para o efeito.  Deve dispor-se do equipamento próprio, dos artefactos adequados,  de robustez física, e de motivação para fazê-la.
Haverá seguramente, um objectivo que nos norteia, quando nos propomos iniciá-la ...

Ora,  não existe jornada de maior grau de dificuldade e exigência, que a Vida !
Ainda por cima, somos largados na linha de partida, sem que o seja  por "moto próprio".  Nada nos é perguntado, da vontade de seguirmos no percurso, menos ainda do desejo de atingirmos a meta, lá para diante  ...
Por outro lado, é uma caminhada de grau de dificuldade que não podemos discutir, ou sequer adaptar às nossas capacidades, vontades ou escolhas, e que decorre à nossa total revelia.

E pronto ... com um automatismo que passa pela sobrevivência, armamo-nos em "Pepes rápidos", engrenamos, e seguimos.
Frequentemente, com um automatismo adquirido. Quase sempre automaticamente, sem nos questionarmos, como se fôssemos bonecos de corda, que vão caminhando ininterruptamente, enquanto esta existir.
Alucinadamente muitas vezes, atordoadamente quase sempre, simplesmente como um desígnio a cumprir ... exactamente isso ... uma sina, um determinismo, uma programação, a que não podemos furtar-nos ...

E continuamos, e continuamos sempre ... ainda que exaustos  !
Como se de um tapete rolante se tratasse ... em que os que nos antecedem, nos empurrassem, à mais pequena paragem, à mais leve tentativa de repouso, de um repouso curto mesmo, para descanso da cabeça numa pedra do caminho, para nos dessedentarmos, ou adormecermos por instantes ...

Não !  Há que seguir na vertigem, há que ir em frente.  Não podemos encravar o sistema ...

E seguimos, ainda que as pernas claudiquem, que os olhos falhem, que os ouvidos nos atraiçoem ...
Seguimos, ainda que as forças enfraqueçam, que o corpo se arraste, que uma esclerose generalizada se instale ...

E se a mente não se degrada ao ritmo do corpo, se o coração continua a sentir, com a força e a determinação de outros tempos, aí temos nós um desajuste total, uma incapacidade de progressão, uma tristeza, um cansaço e uma desistência, que nos tomam conta .
A minha mãe está nesse ponto do percurso ...
Eu, mais atrás um pouco, não consigo convencê-la do contrário, porque a bem dizer, para mim também não há "contrário".
Com clareza, objectividade, com pragmatismo,  com desassombro e sem lamechices, eu também não enxergo argumentos válidos, para a dissuadir de querer partir !
Acho que o "boneco" que componho, para expor razões em que não acredito, não é pertinente, não é convincente, não é suficientemente "real", se calhar não é justo sequer ... não é credível, em suma ...
Eu entendo-a.  Claramente eu entendo-a, e talvez a ajudasse, se pudesse ...

Entretanto as "lágrimas de S. Lourenço",  brincaram pelo céu !...
No firmamento de breu, lá onde a luz humana não perturba, e apenas a clareira prateada da luz da lua em quarto crescente, traça uma estrada no mar incessante, as Perseidas, "exigem-nos" o pedido de um desejo, por cada uma que corta fugazmente o céu ...

Sempre assim ouvi, desde menina, quando as via correr, desenhando setas de luz, no céu muito escuro e pouco iluminado, do largo da minha avó,  no Alentejo da minha infância.
E sonhava ... e acreditava então, que elas haveriam de concretizar na Vida, a realização dos desejos que lhes solicitava ...

Costuma dizer-se, que por cada ser que abandona a Terra, mais uma estrelinha se acende lá em cima ...

Tenho a certeza, que essas estrelinhas endiabradas e fujonas, feitas diabinhos à solta, brincam, travessas, num qualquer jardim do Éden, e carregam numa mochilinha, sobre as costas diáfanas, todos os desejos dos comuns mortais, todos os pedidos daqueles que por aqui continuam a caminhar no "tapete", e que ainda não tiveram o privilégio, de passarem a ser uma "lágrima de S. Lourenço" !!!...

Neste fim de semana, quando a Terra cruzou a órbita do cometa Surft-Tuttle   ( o que acontece normalmente por volta de 10 de Agosto, dia de S. Lourenço ), libertou uma vez mais, uma chuva de meteoros, as Perseidas, que anualmente, em fenómeno atmosférico repetido, nos pintaram, literalmente, numa chuva de estrelas cadentes,  romântica,   mágica   e   sonhadora  ...  o  céu ... com  estrelas !!!...


  Anamar

domingo, 11 de agosto de 2013

" É ASSIM ! "



Vivo num couraçado ... encaixotada numa cómoda de gavetas, sufocada pelo betão !

A minha casa não tem campo, não tem mar ... resta-lhe o céu.  O céu, ela tem, e com ele, o sol e a lua.
Até as estrelas são tímidas e fogem, mesmo não sendo cadentes.  As luzes humanas apagam-nas, no firmamento.
E porque tenho o céu, tenho às vezes a minha gaivota, embora haja muito, que a não vejo ...  Deve estar a banhos, para outras bandas !

E tenho o privilégio dos pôres-de-sol ... isso eu tenho !...
... lá longe, onde Sintra se queda nas faldas da serra, e onde eu adivinho o mar, que agora é manso, e no Inverno brame, enraivecido.
Sempre antes de dormir, quando a penumbra começa a descer, naquela hora indefinida em que tudo se aquieta, ele despede-se de mim.
Agora, numa fogueira laranja, de boca de fornalha, incendiando a linha do horizonte, onde o recorte das construções e de algumas árvores esparsas, desenham esfinges negras já adormecidas ;  no Inverno, brincando por entre castelos amontoados, de borrascas iminentes.
Porque também é de lá, do lado do mar, que as tempestades avançam.

E vivo num prédio de silêncios.  Um prédio de solidões, como são todos os cogumelos das grandes cidades.
São prisões que prendem sobretudo a alma, porque confinam os olhos, limitam a mente, tolhem a respiração e esmagam o coração.
São masmorras "douradas", aparentemente quentes pela proximidade humana, em tulhas de gente amontoada, mas não ...
São geladas, vazias, incapazes de sentimentos ou emoções.  São construções musculadas, que matam o sonho, com portões blindados, intransponíveis, que derrubam as pontes sobre os fossos que as rodeiam, e não deixam voar o pensamento, soltar o riso, espalhar a felicidade ...
São castelos assombrados, inacessíveis, tirados das histórias das bruxas e dos gigantes ...

Depois, no que a vista alcança, o campo nunca é à séria.
Os jardins são de plástico, desenhados e arquitectados a régua e esquadro, a lembrarem aqueles de brincar, colocados nas maquetes dos artistas, ou nas cidades em movimento, das mega-construções da Legolândia, que  pasmam  a vista, pelo pormenor, pela criatividade e paciência, mas que não são para mexer ...
Aquelas em que os combóiozinhos nos deliciam sobre os carris, os bonecos mexem os braços, os semáforos acendem e apagam, uma fonte ou riacho corre ... e é tudo a fingir ... tudo a enganar ...

Ao pé de mim não há verde de verdade, não há água a serpentear livre, não há cheiro a caruma, nem a sombra, nem a mata.
Não tenho castanheiros, nem eucaliptos, nem abetos, nem pinheiros, nem árvores centenárias com troncos fofinhos, com musgo e líquenes a cobri-los ...
Não nascem urzes, nem pilriteiros, nem mimosas, estevas ou carrasquinhos ...
Ao pé de mim, não há rochas, nem pedras, nem sequer terra.  Daquela autêntica, onde se metem as mãos e se sente vida.
Só há calçada arrumadinha, e alcatrão, muito alcatrão, que não dá nem uma flor ordinária ...

Ao pé de mim, os pássaros não cantam.  Aliás, nem há pássaros ...
As andorinhas partiram há muito, para a quietude das aldeias, onde há beirais, que aqui também não há ...
Há pombos ... pombos de cidade, que até esqueceram já, como é arrulhar !
E depois, há um ou outro canário ou periquito, nas janelas, ainda mais prisioneiros e desesperançados que eu, em grades dentro de grades ... a sonhar que lá fora há liberdade ...

Ao pé de mim, não há "gente" ... Porque "gente" conhece-se, ama-se, sofre junto, ri junto ... cumprimenta-se, pergunta-se pelo pai, pela mãe, pelas coisas ... as nossas coisas, as nossas vidas ... com vontade, com preocupação verdadeira ...
"Gente", partilha-se, dá-se, divide-se ...  "Gente", está lá ... de dia e de noite !
Aqui, a porta fecha e separa os mundos !...

Eu vivo para o céu.  Eu vivo para cima.
Passeio-me  pela  alameda  de  azul,  que  tenho  à  frente  da  minha  janela ...
À tardinha,  converso com Vénus, quando ela abre a noite, e despeço-me do sol, quando ele me acena em despedida ...
A lua, há muito me conhece.  Com ela tenho um diálogo privilegiado.
É tão louca quanto eu, tão versátil quanto eu, tão sonhadora quanto eu ... tão nostálgica quanto eu ...
E finge, consegue fingir sempre, nos rostos que me mostra.  Diz que não está, e está, diz que cresce quando mingua e que mingua quando cresce, e desafia-nos os sentidos, quando, bem cheia, na escuridão, se abandona, lasciva,  lânguida,  e provocadora se desnuda, atentando-nos despudoradamente ...
É mulher !!!...

Vivo num couraçado ...
Mas o destino não me prende !  Derrubo todos os muros que me cercam, com o sonho, que é livre ...   Viajo pelas copas das árvores, que vêem o Mundo de cima ...  subo ao alto das penedias com as águias reais e os grifos ...
Invento o cheiro da mata, das clareiras da serra, e da terra molhada ... para dormir em paz ...
Banho-me nas águas incessantes nos rochedos, e perfumo o meu corpo, com alfazema e maresia ...
Acredito que oiço os pássaros, a pipilar pelos galhos ... e escuto o piado das corujas, no silêncio das madrugadas ...

E oiço os lobos ... tenho a certeza que oiço os lobos ...
Eles estão lá, nos alcantilados da minha mente, a uivar, quando a lua cheia sobe no céu, e me faz descer uma lágrima ...

Vivo num couraçado ...
E estou a enlouquecer aos poucos ... que eu sei !!!...

Anamar

sábado, 10 de agosto de 2013

" NAÏVE " ( Os agapantos )



Os agapantos da serra, murcharam no meu jardim,
como morreu o amor que pensavas ter por mim ...

Os agapantos traziam o canto livre das aves,
traziam a paz  do monte, nas singelas flores lilazes ...

Acabaram por morrer, como tudo nesta vida ...
Só eu, vou levar comigo nessa hora de partida,
os meus sonhos de menina, os meus sonhos de mulher ...
O meu jardim ficou triste,
já nem mesmo sei se existe ...
não mais me sorri, sequer !...

A serra guardou consigo, tudo o que nela inventei ...
onde julguei ser feliz,
aquilo que o vento diz,
e em que eu acreditei ...
Ela conhece os segredos que guardei no coração ...
Guardei-os mal guardados  ... eram sonhos só sonhados...
E os agapantos morreram, como morreu a paixão ...

Por que os não regaste, amor ?!
Não lhes deste de beber ?!
Por que não lhes deste a esperança, que os faria renascer ??!!

Olho p'ra eles e penso, que não  quero  viver assim ...
Os agapantos da serra, morreram no meu jardim !...

Os agapantos partiram ... Apenas, não percebi,
que te levavam com eles,
que te roubavam de mim ...
Que partias sem olhar, que dobraste aquela estrada ...

Os agapantos se foram ...
e, amor ... fiquei sem nada !!!...



Anamar

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

" PENSANDO ALTO ... "



A gente vê quando as pessoas têm ânimo, quando a vida lhes ganhou cor, quando uma qualquer luz lhes iluminou o túnel, o horizonte, a estrada ... o que quiserem ...
A gente vê, quando as pessoas têm objectivos, sonhos e esperanças por que lutar, e não arrastam simplesmente dias descoloridos, compostos por horas compridas, que se vão desfiando ao sabor dos ritmos do Universo ...
A gente vê, quando é madrugada na vida das pessoas, quando já é meio-dia dado, e quando o crepúsculo se instala, porque a tarde começa a descer ...

A gente vê ...

E  vê  também,  como  tudo isto em que estamos mergulhados, é grotesco, profundamente grotesco ... risível ( para não chorarmos ), pelo absurdo.
Porque tudo isto por aqui, é uma piada seca, de mau gosto, que nem um esgar amarelo nos faz aflorar aos lábios.  Tudo isto, está mais para filme de terror, e de má qualidade !...

Acho que carreguei , na alma, o silêncio e a solidão do Alentejo .
Acho que rever lugares, pessoas, cores, cheiros ... sentir o calor do sol a pino, sobre as terras secas e adormecidas, sentir a sombra de árvores esquálidas, também elas mortas de sede ... me instalou de novo, no coração, um olhar melancólico e magoado, sobre a Vida, a minha vida, este caminho  "trágico" que percorro, de "estação" em "estação", num calvário declarado, rumo ao meu  Monte das Oliveiras ... esta jornada que não pedi, que não gosto, que não quero ... que não aceito ...

Não gosto de acordar por cada manhã ;  brigo com a imagem que o espelho me devolve ... enraiveço-me porque não vejo, não oiço, porque não sei por onde anda a agilidade do meu corpo, que hoje me atrapalha, e começa a ser bagagem incómoda ... porque tenho medos, porque os fantasmas começam a assaltar o meu "quintal",  à minha revelia, e me assombram, não as noites ... mas os dias ...
Não convivo, nem aceito as "brancas" que me sincopam a escrita, não convivo com o "engasgamento" mental, a falta de escorrência na expressão do que pretendo transmitir, a falta de fluidez no discurso, as dúvidas e hesitações na ortografia ...
Assusto-me com o desfasamento entre a mão e o cérebro ...

E entendo que só pode ser uma ironia, uma piada de mau gosto, uma injustiça mais, uma maldade, uma violência ... um crime ...
... porque eu não vivo, se deixar de escrever, e ... não se tira o pão, da boca de quem tem fome !...
Não convivo com a falta de paciência para ouvir e ver gente, mas depois, sinto-me mortalmente mal, por não ouvir nem ver gente ... e a solidão enlouquece-me !...

Não consigo caminhar num caminho indefinido, sem objectivos ou metas, calcorrear uma estrada que leva a nenhures, e que, ora corta desertos áridos, sem nortes ou rumos, ora penetra florestas labirínticas e escuras, cujos troncos me sufocam, cujos espinhos me  rasgam, me sangram, me dilaceram ... e cujos trilhos me confundem e esgotam ...

"Os apaixonados envelhecem juntos" - diz o pacote de açúcar, que o empregado acabou de me deixar na mesa ... Eu, que adoço com adoçante ...

Sorri para dentro de mim mesma ...
As lágrimas, que até já correram, afloraram de novo, à medida que o estrangulamento na garganta recrudesce, e que a aflição no peito, que  me tira o ar, me tomou mais e mais ...  e  me  atraiçoa,  aqui,  neste  café  de  todos  os  dias,  às  mesmas  horas,  com  sol  ou  com  chuva ...

Talvez !...
Talvez  seja  só  esta,  a  fórmula  secreta  e  simples  de  se  conseguir  cumprir  o  Destino ... Apaixonadamente !!!...

Anamar

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

" REGRESSAR A CASA "




Não foi uma chegada, não foi uma visita, não foi um fim de semana ... foi simplesmente um "regresso a casa" ...

O Alentejo vestia-se de castanhos, ocres e verde pardo dos sobreiros, das oliveiras e azinheiras.
Os tons mimosos e verdejantes da Primavera tenra, já foram,  os pastos secaram, as flores murcharam.
A charneca não está mais em flor, nesta época do ano.  Pintou-se como um quadro de terra queimada, e a meio do dia, é a boca de uma fornalha, com o sol a pino sobre o montado.
As papoilas, as macelas, os malmequeres, e as flores roxas, que decoravam profusamente a paisagem meses atrás, secaram.
Nos campos, apenas o restolho que ficou, e as plantas resistentes, como a esteva, as giestas e a urze, agora não floridas, persistem e resistem ao braseiro ...

A passarada recolhe-se, para rasar os campos, apenas pela fresca da tarde.
As andorinhas, exibem então, bailados de prima-dona, de felicidade e paz.  Acompanham-me desde menina ...  Estão comigo desde os beirais da casa dos meus avós !
Até as cegonhas já foram.  Os postes de alta tensão estão mais sós, com os ninhos a  desníveis, abandonados até à próxima época de nidificação e acasalamento.
Demandaram África, nas suas deambulações sazonais.

O gado no campo, procura  as sombras. 
As vacas, e os rebanhos de ovelhas, sobretudo, fazem a sesta, e só regressam ao pastoreio, ao fim do dia, e pela fresca da manhã.
Nessas alturas, o Alentejo tem os sons todos da vida.  Os chocalhos ecoam planície fora, perto e longe, as aves chilreiam e enchem os céus de trinados.  As abelhas, os zângãos, as cigarras ensurdecedoras e os grilos, compõem sinfonias e lengas-lengas monótonas e imparáveis ...

A brisa corre então, mansa e abençoada, e resmalha nas folhas da vegetação perene e resistente.
Ao longe, às vezes, ouve-se um sino que não repica ... apenas lança no ar, badaladas dolentes, espaçadas ... sonolentas ...
Nunca se sabe se dá horas, se chama a finados, se lembra melancolicamente, apenas, que o Alentejo ainda vive, estando embora amodorrado ...

Porque o silêncio, aquele silêncio audível que nos trespassa até à alma ...  o cheiro, aquele cheiro adocicado que sobe dos campos  e nos enche até ao âmago ... a cor, aquela uniformidade da cor da terra, em ondulações de amarelos, castanhos e fogo, entranha-se-nos na pele e cola-se ... cola-se para todo o sempre, por debaixo dela !...

A planície, cujo único limite é o céu, que tremeluz nas ondas de calor que se levantam do chão, lá na linha do horizonte, a perder de vista ... essa, é a cama que nos foi destinada !...

E a pulsação da terra, o seu apelo sequioso, entre vida e morte, tem o frémito de um corpo fecundo  de mulher, é o útero de paixões-ímpetos ... mas é sempre força de renascimento e de Vida !...

"Regressar a casa", volver às raízes, pisar o chão, olhar o sem-fim do firmamento ( que o sol alaranja e incendeia quando se põe, e que as estrelas pintam, quando pintalgam o breu das noites, sem luzes que perturbem ) ...beber o silêncio da paz que me invadiu a alma ... deixar que o calor do monte me percorresse as veias, e me aquecesse o coração ... falar com as pedras, e dançar com a brisa da tarde ... foi alguma coisa que me revitalizou, me invadiu, me impregnou, me transcendeu ...

...  e me transportou, numa viagem onírica, até àquela menina das tranças, trigueira e ladina, que há já tanto tempo ficou lá para trás !!!...

Do Alentejo, voltei ... Mas já tenho saudades !!!...

Anamar

quarta-feira, 31 de julho de 2013

" SE ... "



Se me esqueceres ...

Quero que saibas uma coisa,
das mil, que tinha p'ra te contar ...
de outras mil que não disse,
mas sabes adivinhar ...
Tu que vives por aí,
e esses são caminhos nossos,
jamais vais poder fugir,
ignorar ou fingir ...
Porque o mar, no areal,
repete a mesma canção,
e faz-te sentir no peito,
o pulsar do coração
quando me aninhava em ti,
repousava no teu cólo ...
E as gaivotas vão dizer,
pelos rochedos perdidos,
o calor do meu desejo,
o sussurro dos gemidos ...

As flores pelas arribas,
ou  as  espalhadas nos montes,
sempre vão contar segredos,
que ecoam nos horizontes,
e que são a nossa história ...
Juntos,  ainda os sonhámos ...
e era simples, afinal,
aquilo que desejámos ...

A serra sempre irá lembrar ...
quando o sol já partir,
e a fogueira sobre o mar
chama as aves a dormir,
quando a brisa aquietar,
quando a mimosa florir ...
quando os cheiros de doce e sal
se misturam pelas tardes,
e as sombras lá no pinhal
abrem alcovas no chão,
onde os desenhos dos corpos
para sempre, ficarão ...

Se me esqueceres ...
uma só coisa te peço :
Por tudo o que já vivi ...
diz-me amor, que não entendo,
por que razão não me esqueço
que eu também já te esqueci ??!!...

Anamar

terça-feira, 30 de julho de 2013

" CHEGA !... "



Há vinte e um anos, o meu pai partiu.
Era então uma quinta-feira com sol, como hoje.  Com calor, a mascarar o frio da morte.
Mas ela rondava por ali, e levou-o de mim, na primeira grande perda da minha vida.

Eu não suspeitava então, como a vida é feita de perdas.  Como nos vamos esfarrapando dia após dia, como nos vamos amputando, afecto depois de afecto.
Eu não sonhava de facto, como o nosso caminho se vai bordando de silêncios, de solidões, de ausências ...
E como ele se faz tão rápido, como corre indiferente, à medida que se agigantam o desencanto, o sofrimento ... e o vazio se instala.

Há quatro anos, partiu o Óscar.
O Óscar foi o meu gato durante dezasseis anos, e pode parecer ridículo, insano até, que aqui refira a sua perda, parecendo colocá-la ao nível da perda do meu pai.

Os amores não têm gradações, não têm tipologia, não são triados, nem escalados ...
São simplesmente AMORES !...

Com eles ensolaramos a vida, com eles acordamos vencedores por cada dia cansado, com eles percebemos que vale a pena, até o que de facto é insignificante e pequeno.
Com eles, somos capazes, apostamos, desafiamos, tornamo-nos invencíveis, tornamo-nos hercúleos ...
Com eles, ficamos crianças na pureza das emoções, crédulos na força das convicções, despidos do sombrio que nos habite, generosos e incontidos no esbanjamento do melhor dos nossos corações ...

Por isso, o Óscar também me levou um pouco ...
E eu empobreci, seguramente !

Mas continuava sem suspeitar de como a vida, certeira, cirúrgica, assertiva, me iria atingindo, na inevitabilidade dos tempos ...

E de mansinho, aqui e ali, sem me avisar, preparar, sem se condoer com o estrago, como um meliante salteador, ela foi invadindo, pela calada, a minha propriedade emocional e afectiva.
E sem piedade, saqueou, vai saqueando diariamente, vai carregando de mim tudo o que pode, vai-se apropriando do corpo, do coração, da mente, da alma, do sorriso, da alegria ... e vai-me confinando mais e mais, à exiguidade de mim mesma ...

O ser que sou hoje, está cansado, exausto, exaurido de vontade, vazio de esperança, nu de sonhos ... gasto ...
Hoje, sou uma anciã que se arrasta na escalada da montanha, sou um caminheiro que titubeia os passos da jornada, sou um viajante hesitante do percurso, sou um viajeiro sem convicção do destino !...

Hoje, eu não quero mais !
Hoje, eu já li e já fechei, todos os livros que tinha que ler, já virei todas as páginas que tinha que virar, já abandonei todas as personagens, de todos os filmes que povoaram a minha existência ...

Hoje, eu digo ... CHEGA !!!...

Anamar

segunda-feira, 29 de julho de 2013

" METADES "



Metade de mim é sonho,
Outra metade é sofrer ...
Eu sou feita de metades
com sabor a eternidades,
e não sei  o que é Viver ...

Tenho outra metade ainda,
( porque eu tenho as que eu quiser ... )
que entre desespero e dor,
entre a paixão e o amor,
não se decide, sequer !

Balançam entre a Vida e a Morte,
todas as minhas metades ...
E o tempo que chega, vai ...
sem que  eu  mesma diga um ai ,
leva consigo as saudades ...

Saudades da que já fui,
Saudades do que vivi,
Saudades de quem amei,
de todos a quem me dei,
Loucas saudades de ti  !...

E o Verão vai indo embora,
já vejo chegar a hora de tombar a escuridão ...
A noite não tem luar,
no meu corpo, a navegar,
correm rios de solidão !...

Vê se juntas as metades,
Vê se me constróis inteira ...
Vê se encontras  quem eu era,
antes que eu canse da espera,
e parta ...  queira ou não queira !!!


Anamar

domingo, 21 de julho de 2013

" E ASSIM SERÁ ..."



Dizia-se baixinho no café :  "Parece que ela se suicidou" ...
Baixinho, muito baixinho, como se houvesse um pudor estranho, quase um temor incompreensível, pelo acto voluntário, mas reprovável, socialmente.

Entrei e havia esse rumor.
O que é facto, é que a mesa habitual estava desocupada, parecendo que, a ser verdade, ninguém ousasse tomar para si, "propriedade alheia".

Estranho !
Por que é a sociedade tão lesta a julgar, a valorar, a decidir ?...

"Ela não tinha direito a dispor do que era seu ?  Ora essa !  Era o que faltava !" - pensava eu.

No entanto, nos outros dias, quando ela ocupava aquela mesa, olhando o vácuo, abafando os ruídos com música nos ouvidos, alheando-se do barulho ambiente ( uns dias, ensurdecedor, outros quase inexistente ), quando fingia enganar a solidão com um livro, cujas páginas nunca viravam ... ninguém sabia, se preocupava, ou sequer se interrogava, se aquela mulher estava em paz.
As pessoas sabiam lá !

Cada indivíduo é um mundo, e a sociedade actual é feita de mundos, cujas fronteiras se tocam, sem que exista no entanto, nenhum Tratado Schengen que permita a livre circulação de dores, mágoas, alegrias, dúvidas, solidões, de uns para outros ...
As células individuais abrem de manhã, por cada dia que começa, jorram pessoas, carregadas com a mochila dos destinos, muitas vezes insuportavelmente pesada ...
Se têm força, robustez, coragem para a carregarem ... nunca ninguém sabe, sequer suspeita !

Trocam-se sorrisos, palavras de circunstância, afloram-se as almas e os corações ...
Só se afloram ...
As pessoas não passam das franjas dos mesmos, não ultrapassam o limbo, a antecâmara, a "babugem" da correnteza ...

E todos somos irremediavelmente anónimos, irremediavelmente estranhos ( sempre estrangeiros em terra de ninguém ... ), irremediavelmente transparentes para sermos vistos ... irremediavelmente nada ... ou muito pouco !...

Neste café, onde a mesa "dela" continua vazia, lembro tantos rostos já, que sumiram, tantas deserções que deixaram lugares vagos, sombras, figuras já esbatidas, que seguiram "rumo" ...
E a realidade de todos os dias, perdura inalterável, insensível aos ritmos de vida ou de morte.
Depois dos Invernos vêm os Verões, voltam os Invernos ...  E as histórias escrevem-se, desenham-se, na cadência de uma página por dia, inapelável, enjoativamente iguais, sem demais colorido, sem demais luz, sem demais esperança ou sonho ...

E assim será ...
... a menos que achemos que já vimos o filme todo, que a sessão terminou, a história foi contada, e são horas de acender as luzes e arrumar a sala ...

E isso, foi provavelmente o que ela achou !...

Aí .... lá vai ficar mais uma mesa vazia, naquele café,  que  parece  adormecido  nos  tempos,  há  décadas  e  décadas ... há  vidas  e  vidas !...

Anamar

quarta-feira, 17 de julho de 2013

" A JANELA "



A minha mãe tem noventa e dois anos.  Já aqui o referi algumas vezes. 
Sempre teve imensa actividade, doméstica, é certo, mas essa era a sua vida.
Eu costumava dizer que ela só estava feliz, quando chegava ao fim, e recomeçava.
Era o pó, as lavagens, os areados, os passados ... enfim, inventava onde não havia, limpava o limpo, via o que não existia, subia, descia  a  cadeiras, escadotes, para locais inacessíveis, e realizava-se, argumentando que "na sua casinha se podia entrar a qualquer hora, porque tinha tudo limpinho " ... como  se  isso  constituísse  uma  espécie  de  provas  prestadas,  documentos  exibidos ...
E era verdade !!...

Doméstica que era, ocupava assim os seus dias, fazia disso os seus horizontes, que complementava, nos anos idos, com rendas, ou bordados, com as notícias desportivas do seu clube de coração ( que acompanhava de perto ), e com alguma que outra novela brasileira, de preferência novelas de época ( históricas, com cariz social ou antropológico ...  Lembro a Gabriela, de Jorge Amado, lembro o Casarão, o Pantanal, a Escrava Isaura, a Tieta do Agreste ... ).

Além disso, "vivia" de perto, demasiado perto, a minha vida, a vida e as preocupações das netas e os seus percursos ... depois também  já, dos bisnetos.

Mas, claro, pela minha mãe, os anos passaram.
Foram indo, e limitando naturalmente as suas capacidades, foram-lhe retirando as possibilidades de resposta, à vontade que ainda manifestava de manter o ritmo, foram-na confinando a uma realidade progressivamente mais encurtada, a horizontes progressivamente mais estreitos ...  foram-na encurralando em casa, porque a mobilidade, obviamente se deteriorou.

Mas a sua cabeça recusou abrandar o ritmo.
Recusou aceitar a imagem degradada e depauperada, com que o transcurso do tempo, implacavelmente a presenteou !

E o  seu discurso, é inapelavelmente o mesmo.
Um discurso desanimado, triste, infeliz, com sabor a injustiça ... perante uma vida que a deixou viver até aos 92 anos !!!...
Um discurso de desencanto, objectivo, duramente realista, na verdade.
Palavras de quem já está a ver a vida do "outro lado", sem cosméticas ou ilusões.
Palavras conclusivas de quem já percorreu muito caminho, de quem tem o saber da experiência acumulada, sem utopias ou espectativas.
Visão de quem já não espera nada, além do acordar diariamente, desejando que não haja percalços acrescidos  à sua vida,  ora tão descolorida ...
Cansaço de quem já não reivindica, de quem foi compelida à acomodação, de quem, uma solidão de alma, tomou conta ...

Os principais e vitais sentidos, estão reduzidos.
A minha mãe ouve muito mal, vê muito mal, mexe-se mal ...
Estes factos, "marginalizaram-na" naturalmente, em relação à realidade em que se insere :  afastam-na, e remetem-na para um mundo interior, de muito silêncio e sombra.
Limitam-na a um espaço físico absolutamente restrito, levando-a a um natural desligar do que a rodeia, a uma postura depressiva e desistente, muitas vezes.

Incomoda-me, dói-me, mas dá-me sobretudo uma raiva incomensurável, deparar-me com aquela fortaleza que ela me habituou a considerar, aquela gigante perante a Vida, que ela sempre foi, aquele pilar que não abanava, menos ainda desmoronava ...  assim, amarga, triste, cansada ...  contudo tão absolutamente clarividente, realista e consciente !...

A Vida é de facto isto, e não mais !
Não tenhamos dúvidas, que todos, mas todos, a calcorreamos, dando os mesmos passos, atingindo os mesmos patamares, galgando as mesmas subidas, e descendo as mesmas encostas ; 
tendo as mesmas ilusões e os mesmos desígnios, ao caminharmos para metas que julgamos determinantes para a nossa felicidade, acreditando que atingidos estes e aqueles desideratos, chegaremos a estádios de realização pessoal, bem-estar e satisfação totais, que nos preencherão completa e gratificantemente ...

E depois ... não é exactamente nada disso !

A verdade crua e dura, é, como a minha mãe diz, uma ilusão, em que a Vida, que "tudo nos dá e tudo nos leva", nos faz acreditar, impiedosamente, indiferente ao nosso acordar penoso e dolorido, face à realidade, dia após dia, ao ritmo a que a esperança, a força e o acreditar, nos abandonam, também !...

E eu sei que tudo é claramente assim.
E por cada vez que volto de perto dela, mais e mais me amarguro e angustio, como se ela  simplesmente me acordasse, pegasse na mão, e me fizesse assomar a uma qualquer janela, através da qual eu assistisse ao desfilar de um filme de terror, a preto e branco ...

...bem longe da produção cor-de-rosa de que julgamos frequentemente ser protagonistas !!!...

Anamar

terça-feira, 16 de julho de 2013

" MONDADEIRAS DO MAR "



Quando a maré desce,  os pescadores descem às rochas.
Indistintamente, homens e mulheres catam no que o mar deixou à vista, o sustento para o dia, o peixe que arpoam e vendem, e as algas que secam e vendem para a Índia.

É assim Zanzibar ... é assim, África ...

Debruçam-se sobre o mar rasteiro, como as mondadeiras no meu Alentejo se debruçam sobre os regos das sementeiras, na altura das mondas.

Também aqui por cima, o sol é abrasador.
Também aqui, as mulheres se embiocam nos panos típicos dos seus trajes, em explosão de cor .
Também aqui protegem o rosto, como lá, nos campos de solidão.
Aqui, também os areais estão sós, e o mar não é um mar, é um lago de águas sonolentas, de todos os turquesas, azuis, verdes e prateados ... que dorme, como a dolência desta gente, que vive acocorada nas soleiras das portas, sob as copas das árvores, na beira das estradas ... onde haja uma nesga de sombra ... a qualquer hora !...

Dir-se-ia que África não vive, "modorra" ensonada, não esperando nada ... simplesmente !...



Anamar

domingo, 14 de julho de 2013

" QUASE JÁ ... "



Importa-te, se eu não me importo ...

Importa-te se me habituei a gostar do cinzento ... eu,  que mergulhava até à exaustão, nas cores da Vida, e esgotava todos os matizes da caixa das aguarelas disponíveis ... nos meus dias !

Preocupa-te se já não choro,
porque o choro me deitava as mágoas pelas portas da alma ...

Aflige-te com a minha indiferença,
já que a conformação, nunca foi meu princípio de existência ...

E se não esbracejo, se não me debato ...
é porque aceitei ser náufraga, e desisti de encontrar um rochedo ou um tronco, de arrumo para o coração ...

Pergunta-te por que já não elevo os olhos para o sol ... por que não corro a espreitar as estrelas ou o luar ... por que não colho mais braçadas das flores nossas, nos campos além ?!

Sabes ?

Isso era no tempo em que as gaivotas voavam livres,
as penedias da serra  falavam comigo, e a copa das mimosas nos aninhava em segredo ...

Isso era no tempo, em que nos contávamos histórias, nos desvendávamos os corações, dividíamos sonhos e amarguras ...
enquanto partilhávamos desejos, esperanças e projectos, com  vulcões de sentimentos e emoções ...

Era no tempo em que nos falávamos ... em que tu percebias a minha linguagem, e eu percebia os teus sentires !...

...ou eu pensava que era assim ... simplesmente !

Hoje ...
Hoje, estou sentada semi-morta, na beira do caminho ...
Estou sem o norte, que as estrelas ensinam no firmamento ...
Estou sem a vontade que faz existir o Homem, por cada dia em que acorda ...
Estou sem a luz do sorriso, no âmago do meu ser ...
Estou sem a fé que faz valer a pena ...

e não me importo ...
HOJE, eu já quase não me importo !!!...

Anamar

sábado, 13 de julho de 2013

" INTERMEZZO"



Escrevi  muito pouco durante a minha estadia em Zanzibar.
Foram, aliás, umas férias, digamos, um pouco atípicas.
Dir-se-ia que entrei na modorra de África, e fui engolida por uma espécie de adormecimento do espírito.
Embebedei-me da beleza natural, atordoante, senti a displicência da despreocupação inerente a tudo o que me rodeava ... e fui deixando apenas, transcorrer o tempo.

Pela primeira vez  em circunstâncias idênticas, creio, senti-me dominada por alguma angústia.  As notícias político-sociais de Portugal caíam-me em cima, através do ciber-espaço, que sempre nos atropela, não nos poupa, e não nos deixa indiferentes em lugar nenhum do Mundo.
Como seria abençoado, piedoso, saudável mesmo, que nos deixassem esquecidos no outro lado do planeta, ignorando que a laranja tem duas metades !...
Mas cada vez menos, isso é possível !
E cada vez mais, as realidades que vivemos nos atropelam inapelavelmente, e conseguem desestabilizar o nosso "eu" interior.

Depois, confirmou-se o que eu estou farta de saber, e que toda a gente sabe : nós carregamos as "nossas coisas", que pesam arrobas, nós damos-lhes outros ares, nós damos-lhes banhos, que julgamos de felicidade imaginada ( ou sonhada ), e voltamos a trazê-las, mais pesadas, se possível ...
Arejadas, mas não limpas, lavadas mas não asseptizadas ... igualmente irresolúveis !!!...

E quando saímos da bênção que é, partilharmo-nos com a Natureza gratuita e livre, mergulharmos no "pote de vitaminas" que tudo aquilo é ... e regressamos às quatro paredes do nosso quarto, à colmeia  que  é  o  nosso  edifício,  à  "marabunta"  que  é  a  nossa  cidade ...

Quando o betão começa outra vez a elevar paredes, e a agigantar-se, fechando-nos os horizontes ...

Quando o sol começa a empalidecer, os cheiros a esmorecerem, as cores a acinzentarem ...

Quando o som do silêncio que nos sufoca nas horas de solidão, aumenta desmesuradamente os decibéis de volume ...

... percebemos que exaurimos o balão ansioso, das espectativas criadas, esvaziámos as reservas das ilusões cultivadas, gastámos até esgotar, a fé ( que na verdade o não chegou a ser ... sempre soubemos ) , e que tudo não passou de um "intermezzo" inventado, de uma frase largada entre parêntesis, de um daqueles sonhos efémeros, que acaba sempre, no melhor ponto da história !!!...

Anamar

sexta-feira, 12 de julho de 2013

" ÁFRICA"



Iniciei alguns, dos poucos apontamentos escritos durante a minha estadia no arquipélago de Zanzibar, com o texto que constitui o meu post anterior, que colhe e encerra a emoção dos meus primeiros momentos em África.

África ... um continente que não mais voltei a pisar, desde os meus vinte anos, e que por isso faz parte do meu imaginário de juventude.
Contudo, reencontrei a "velha" África, com o misticismo, a magia, o carisma, que não se descrevem. Apenas se sentem !

São  irrepetíveis  em qualquer outro lugar do mundo, todas as sensações, toda a emoção, todo o despertar de alma, que só ali se vivenciam ...
Não há outro local, onde os cheiros sejam aqueles, onde a terra que pisamos tenha o vermelho daquela, como o das flores das acácias, onde as cores tenham a intensidade que ali nos exibem, desde as da natureza selvagem e virgem, às dos panos, com que as mulheres se envolvem, da cabeça aos pés ...
Não há outro canto do planeta, onde a vida corra mansa, amodorrada na sombra dos coqueiros, dos embondeiros, dos baobás, das palmeiras, das acácias, das miríades de árvores, centenárias e generosas no aconchego ...

Lá, onde as areias são brancas e finas, como farinha nas nossas mãos, o mar tem todos os tons de turquesa, azul, esmeralda, verde, prateado,  que a mente humana nem concebe, e que nenhum pintor reproduz.
As águas são absolutamente transparentes e cristalinas.
Os fundos adivinham-se, e esses jardins submersos, encerram uma multiplicidade de cores, de formas e de vida, que nos extasiam !
Se a maré está baixa e os leva até lá longe, os pescadores, munidos de arpões, "catam", junto ao recife de coral, o sustento diário ...
Ou embarcam nos "dohws" ou nas "ngarawas", embarcações rudimentares e artesanais, com que, a poder da força dos braços, impulsionadas por um pau, ou com a tradicional vela triangular de Zanzibar, navegam à bolina.


As populações são paupérrimas, as condições de vida, coisa de verdadeira sobrevivência.
Vive-se da terra que tudo dá, vive-se do mar que tudo dá, vive-se com a alegria do sol quente, estampada nos rostos, sem ansiedades, ou inseguranças, com a postura de quem sabe, que a simplicidade e a sapiência da vida, se resume a vivê-la ... diariamente !...

A língua nacional é o dialecto "swahili", e a religião, vivida com o fundamentalismo que lhe conhecemos, é, obviamente, a muçulmana.
Ela condiciona a vida, os hábitos, os trajes.
A burka, a abaya, o khimar, o hijab, são permanentes na vivência feminina, desde a infância, e escondem rostos lindos de todas as idades

A cultura é polígâmica.
Cada homem tem relações maritais com várias mulheres, e de todas elas, tem todos os filhos que vierem.
A mulher é socialmente subalternizada.  O islamismo confina-a  a um lugar muito específico.
Ela é objecto de procriação, e garante da manutenção da  família.  Ela desempenha todos os trabalhos domésticos, familiares, e desce aos campos para os amanhar.
Também avança pelo mar adentro, na recolha de algas, para secar e vender, se as águas as oferecerem.

Zanzibar é a "ilha das especiarias".
O seu aroma picante e adocicado, impregna o ar, tempera os alimentos, magistralmente confeccionados,  conforta o espírito e desperta os sentidos.
Por ela os portugueses passaram e deixaram marca, na demanda da Índia, nos idos anos do século XVI.

E é numa praia deserta, olhando para o azul turquesa do oceano, que Zanzibar mostra todo o seu charme.
para nos apaixonarmos por esta ilha, cheia de mistérios, não é preciso mais do que isto !!!...


              "Karibu,  Zanzibar" !....  "Djambo !...



Anamar

quinta-feira, 11 de julho de 2013

" E VOLTEI ... "



Quando eu vejo o mar,
este mar lascivo e sedutor, que apenas se deita e espreguiça, lânguido, num convite sem pudores ...

Quando eu piso a areia, de mansidão, e bebo a brisa que passa ...

Quando oiço os pássaros no coqueiral,  e em todas as mil árvores e plantas que desabrocham, em explosão de verde ...

Quando o sol me beija e embala, sem pressas ...

Quando os cheiros de todas as especiarias do mundo, se misturam, picam o ar, e o adocicam ...

Nessa altura então, eu esqueço o Mundo, e sinto claramente, que aqui cheguei numa maré qualquer, há gerações e gerações ... e aqui fui largada, no meio das algas, das conchas e dos corais ...
e adormeço em paz ...

... quando eu vejo o mar !...

Anamar

terça-feira, 25 de junho de 2013

" ATÉ JÁ ! "



Estou sem tempo.
Hoje falta-me o tempo útil que me sobra quase sempre.  Aquele que me leva a pensar, maturar ideias, reflectir, sentir, balancear tudo ... demais ... exaustivamente.

Estou de partida, pois como vos disse, houve um dia lá atrás, em que me deu "a louca" ... lembram-se ?
Um dia em que senti aquela inadiável certeza, que teria que  "fugir" daqui, sem apelo nem agravo. Teria que levar os meus problemas a banhos ... teria que pôr o coração de molho, para o refrescar e apaziguar !...

E vou.
Vou para a  terra das especiarias, das areias brancas e águas cristalinas, vou para os mares cortados pelos "dhowas" ... vou para o calor quase equatorial ... onde se apela aos sentidos, seguramente.

Contar-vos-ei !

Por  ora,  vou  perseguir  esperançadamente, a convicção  de  Saramago :  "É preciso andar muito, para se alcançar o que está perto " !....

Tenho a certeza que ele sabia do que falava !!!...

Deixo-vos o meu abraço bem apertado ... e ... até já !!!

Anamar

domingo, 23 de junho de 2013

" O LABIRINTO "



O sol deu lugar à lua.
Esperou que ela despertasse e se elevasse, imponente, no céu.
Era um sol imenso, uma bola de fogo laranja, a arder no firmamento, descendo lá para onde estará o mar ...
Do outro lado, uma bola de prata erguia-se, desde Monsanto ( uma super-lua cheia em perigeu, neste solstício de Verão, como não se verá nos próximos tempos ), a fazer-me sentir ainda mais só ...

E de repente, o tempo deixou de ter tempo, e sempre falta tempo para sentirmos que afinal há vida ...
As cerejas pousadas na mesa, o vinho esgotado na garrafa, os pratos vazios, o CD ainda na aparelhagem.
Os olhos humedecidos pelas lágrimas que correm ... sempre correm, na impotência de fazer parar o tal  tempo.
O que foi dito, e o que infinitamente ficou por dizer, e nunca será dito, porque o tempo é isto ...

No canto da alma, a certeza do outro, tão perto e tão longe ...
E o rio de permeio, de corrente alterosa, águas agigantadas e revoltas, sem pontes já erguidas, a mostrar onde ficas tu e onde fico eu.
E passarão dias e noites, e sóis e luas ... e o lugar daquela cama, guardará o calor do teu corpo, e a expressão do teu rosto estará para sempre, nos espelhos desta casa.
O contorno das mãos que me passeiam a alma e o corpo, escondem segredos que só elas conhecem ... e vão escondê-los para sempre.

Porque há um "para sempre" entre nós, e há um "nunca" também !...

E os caminhos seguiram-se a outros caminhos, e o emaranhado das veredas da serra, confusas e labirínticas, cerraram-se à nossa volta, com as raízes cobertas de musgo, das árvores centenárias, a sufocarem-nos, como tentáculos de polvos gigantes.
E a luz difusa do fim  de  tarde, coada por entre as ramagens, foi escurecendo os atalhos, e as clareiras deixaram de ter flores silvestres a despontar, porque não havia mais luz que chegasse.
Nem o sol nem a lua, nos iluminaram as vidas ...

E andámos perdidos tempos demais.
Cansei-me de deixar fiapos do meu vestido, nos carrasquinhos, a marcar os destinos ...
Cansei-me de te gritar a minha solidão, como o lobo uiva em noites de lua, no silêncio da penedia ...
Cansei-me de soluçar em estertores de morte, junto às fontes da floresta ...
Cansei-me de pedir às ondas das ravinas, que te acenassem recados, que nunca vinham devolvidos nas marés ...
Cansei-me de apanhar ramos de todas as flores que eu conhecia, perdidas nas falésias sobranceiras ao mar, que era azul e verde e prata e cinza ...

E até as flores amarelas sem nome, as margaridas selvagens, as madressilvas, as pedras e as conchas, definharam nas minhas mãos ... porque se foram esquecendo de como era sonhar ...

E fui adormecendo um sono sem cor ... um sono sem sonhos ... um sono sem desejos, vontades ou creres ...
Porque passou tempo demais, e eu fiquei entorpecida do cansaço da espera, fiquei entontecida da exaustão do percurso, fiquei esgotada do labirinto insolúvel,  desesperançado, sem ar e sem volta, que é a minha existência ...


 


Anamar

sábado, 22 de junho de 2013

" AS MÃOS "



Olhei as minhas mãos ... Não as conheço !
Fugiram de mim sem me avisar.

Estas mãos estão cobertas por uma folha de papel ressequido, e pregueado pelos instantes que declinaram na linha do tempo, ano após ano.
Sobra pele, mirrou o conteúdo, e por isso, aquela teve que se encolher em quadrículas labirínticas, desenhando um reticulado de padrão uniforme.
Por ele, circulam linhas azuladas mais ou menos salientes, no descarnado da estrutura.  São arbóreas, correm como rios que soubessem exactamente onde é a foz.  São como troncos de árvores, que tivessem perdido a folhagem, no pico do Inverno.

As manchas castanhas do "sarapintado" da vida, salpicam-nas. São sempre mais.  Todos os dias são mais ...
Não me incomodam.   São manchas que não doem, não ardem, não causam prurido.  Nada .
São apenas manchas silenciosas de sinalização.  São "lembretes" diários, ali, frente aos meus olhos.
Implacáveis ... a recordarem-me que são viajantes chegados agora.  Não vieram comigo.  Assaltaram-me o percurso, quando o percurso já ia longo !

Lembro as mãos do meu pai, pouco antes de morrer ...
Mal lembro o rosto, mas lembro as mãos pálidas, largadas ao abandono da cama.
Lembro a estrutura óssea adivinhada, que mantinha aquela pele que as cobria, onde não havia carne, só pregas, e "estradas" azuis que enchiam e esvaziavam, conforme a posição que ocupavam.

Penso nas mãos da minha mãe, que deixaram de ser sensíveis, deixaram de ter firmeza ou capacidade de preensão.
Mãos que seguraram, que prenderam, que abraçaram com determinação, abrem-se hoje como uma rosa envelhecida que deixa cair as pétalas, inevitavelmente ...

As mãos contam histórias ... demasiadas histórias .

Quando se nasce e ainda não se abriram os olhos, já com elas se agarra um dedo que nos estendam.
Não sabemos quem nos deu esse suporte, não lembramos quem nos estendeu esse dedo, nem porquê, nem para quê ... mas sabemos que o agarrámos ... seguramente o prendemos.
Foi então a primeira vez que agarrámos o Mundo !...

Com as mãos fizemos tudo. Elas foram olhos, mente e coração !
Elas tacteiam mesmo, as almas que nos cruzam.
Embalam, acariciam, falam-nos do calor do que tocamos, cumpliciam-nos poemas, sussurrados no silêncio do amor ;  balbuciam-nos ao ouvido, na doçura do afago, a certeza de estarmos juntos, quando nelas envolvem outras mãos, que por isso são nossas também ...
Prendem os nossos afectos, e cerram-se à sua volta, em nós fortes, para os não deixarem partir ...

Chegam connosco e connosco se vão ...
Como tudo em nós, carregam a marca indelével dos tempos, contam as histórias das existências, têm as memórias dos caminhos ...

Quando finalmente elas abrem, e desistem exangues, estaremos seguramente de partida ...

Anamar

terça-feira, 18 de junho de 2013

" 17 DE JUNHO DE 2013 - SEGURAMENTE UM MARCO NA HISTÓRIA DESTE PAÍS "



O meu post de hoje, insere-se naquele princípio que tenho, de que este meu espaço, além de ser prioritariamente destinado ao meu "débito de alma", deverá ser também, uma tribuna de opinião dos que a quiserem utilizar, e bem assim, um espaço de divulgação de tudo o que,  por o considerar  importante,  deverá por isso fazer notícia, e consequentemente ser divulgado.

Sendo assim, e porque ocorreu ontem o culminar de uma jornada de luta social, política e também moral, da classe docente, tão vilipendiada sobretudo nos últimos tempos, pelas medidas implementadas e a implementar pelo Governo deste país , as quais em última análise visam desmantelar e aniquilar o ensino público, trucidando, como se sabe, a classe docente, e a sua dignidade ... jornada essa que se centrou na Greve Geral aos exames do Ensino Secundário, que começavam ...

Quis aqui deixar, p'ra memória futura, alguns artigos que considerei bem escritos, objectivos e isentos, publicados por algumas personalidades, públicas ou não, para que, daqui a uns anos, nos lembremos, e releiamos os testemunhos actuais.



QUEM  TEM  MEDO  DOS  PROFESSORES ?
 
Quando a classe se une; quando a inércia se sacode; quando a doentia tendência que os professores têm para cumprirem tudo, aceitarem tudo sem um queixume, se transforma na revolta de quem já não aguenta mais; quando os professores tomam consciência do poder que detêm e o exercem, o país treme ...
Tremem os políticos ao verem escapar-se-lhes debaixo das garras dominadoras, a classe que ( justificadamente, diga-se ... ) acreditavam mais submissa, a mais sensível à chantagem emocional. Os direitos dos jovens, pois claro !
Tremem os pais ao verem ameaçados basicamente, os seus organizadinhos planos de férias, pois que outra coisa
Hipócritas, uns e outros !


Não os comovem as crianças com fome, a única refeição diária retirada das escolas, a ASAE que há anos se pôs a medir batatas e encerrou ou inviabilizou as boas cantinas escolares, agora reféns da normalizada fast food de empresas duvidosas.
Não os comovem as escolas fechadas, as crianças deslocadas, as escolas-fábrica em que cada aluno não é sequer um número, o interior do país desertificado, as longas viagens de e para casa, o tempo com a família, inexistente.
Não os comovem os livros deitados fora, que deixaram de servir porque sim: o novo programa de matemática para quê se o outro dava mostras de funcionar, o (des)acordo ortográfico para benefício de quem...
Não os comovem os professores massacrados que lhes aturam os filhos todo o dia: «Já não sei o que fazer dele, dela.., em casa é a mesma coisa.. ».
Não os comovem os alunos que querem aprender e não podem, a indisciplina na sala de aula e os professores esgotados, deprimidos, muitas vezes doentes, os professores que desabam a chorar no meio da aula, a tensão, as pulsações que disparam... e como é que se pode ensinar assim?

Não os comovem os professores hostilizados publicamente por ministras, escritores, comentadores, opinadores - e já lá vão anos de enxovalhamento!
Não os comovem as políticas aberrantes do ministério da Educação, as constantes alterações aos curricula, aos programas, as disciplinas de uma hora semanal a fingir que existem e os professores que se adaptam aos caprichos todos, formações atrás de formações, obrigatórias todas, pagas do próprio bolso algumas.
Não os comovem as condições de trabalho e de saúde de quem lhes zela pelos filhos, as horas insanas passadas na escola, as tarefas sem sentido e as outras, o tempo e a disposição que depois faltam para tudo o resto que fazem em casa, preparar aulas, orientar trabalhos, corrigir testes, as noites que não dormem e... amanhã aguenta-te que não são papéis que tens à frente, mas sim pessoas!

Não os comovem vidas inteiras de andar "com a casa às costas", 10, 20, 30 anos contratados (dantes chamavam-se 'provisórios'), de Trás-Os-Montes ao Algarve e é se queres ter emprego. SEMPRE assim foi até conseguirem um lugar no quadro de efectivos numa escola - e agora aos 40, 50, à beira de vínculo nenhum! - as regras que mudam, a reforma que se alonja, a carreira de há muito congelada, os sucessivos cortes no salário, os impostos uns atrás dos outros e depois... cara alegre que tens a responsabilidade de ensinar, formar, educar os nossos jovens, futuro deste país ou de outro para onde imigrem, será mais certo.

E eu digo, professora que fui, professora que serei sempre e já não vos aturo: VÃO-SE FODER com as vossas preocupações da treta, a vossa chantagem e as vossas ameaças, os vossos apelos aviltantes. E não, não peço desculpa pela linguagem, que outra não há que dê a medida da raiva.

Quem é que vocês, políticos, associações de pais, pensam que são?

Vocês, que destroem tudo o que de bom se tinha conseguido neste país? Que promovem o regresso à miséria, ao cinzentismo, à ignorância? Que se estão borrifando para os alunos e as famílias, a qualidade do ensino nas nossas escolas públicas? Que tiram ao Estado para darem aos privados? Que acabam com apoios onde eles eram vitais, aos alunos mais pobres, aos alunos com deficiências? Que despedem psicólogos e professores do ensino especial? Que, em exames, recusaram tempo extra aos alunos que a ele tinham direito? Que não fazem nada para promover a educação, os vossos podres serviços públicos reféns do vosso oportunismo, da vossa falta de valores, do vosso cinismo?

Vocês, que atacam os professores mas lhes confiam os vossos filhos? Que não os educam em casa, mas esperam que eles o façam na escola? Que agora defendem a "mobilidade especial" quando antes defendiam a estabilidade, se queixavam de que as crianças mudavam de professores todos os anos? Que não percebem que um professor maltratado é um profissional menos disponível para os alunos que tem à frente? Que a luta dos professores é a luta pelos vossos filhos, pela qualidade da sua educação, pelas oportunidades do seu futuro?

E vocês, opinadores "de bancada" que continuam a achar que os professores trabalham pouco e ganham muito, por que se queixam agora desta greve (três meses de férias, é?!), quando nunca antes se queixaram das condições miseráveis em que vocês próprios sempre viveram? Por que não se queixam dos dinheiros mal-gastos destes políticos? Por que não se queixam de um serviço público de televisão que vos embrutece e vos torna prisioneiros de quem vos engana todos os dias, vos impede de terem pensamento próprio? Por que não se queixam da razia deste governo sobre os funcionários públicos, dos serviços que vão funcionar muito pior, das horas de espera que vão aumentar nos hospitais, nos centros de saúde, nos correios e nas repartições todas, a "má-cara" de quem, maltratado, vos vai atender com pouca paciência e muito cansaço?

A vocês que, pelos vistos não sabem o que é uma greve, nunca vos vi defenderem os professores do vosso país. Vi-vos aplaudirem uma ministra que vos "ganhou", "perdendo-os". Vi-vos porem-se contra eles, ao lado dos filhos que vocês não souberam nem se preocuparam em educar. Vi-vos irem às escolas apenas para insultarem ou ameaçarem os que nela todos os dias "dão o litro" para que os vossos filhos sejam melhores que vocês, tenham as condições de vida que vocês não puderam ter.

Os professores não estão de férias, como vocês, que tudo julgam saber, gostam de apregoar.
Os Professores estão em greve. Finalmente! Os Professores levaram anos a aguentar pauladas. Anos e anos a serem, eles, prejudicados. Agora fazem greve, dizem BASTA!
Vocês, deviam fazer o mesmo, assim a educação que a escola pública vos proporcionou vos tenha garantido sentido crítico, pensamento autónomo e DIGNIDADE.

MILAN KEM-DERA

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    RECADO AOS PROFESSORES (acerca das greves) 

    DE UM PAI E ENCARREGADO DE EDUCAÇÃO

    Tenho ouvido por aí dizer, que se prejudica o bem-estar dos alunos, que por sua vez, têm visto os seus orçamentos familiares reduzidos ao mínimo, e quando cada vez mais são os casos em que vão para as escolas sem refeições.

    Tenho ouvido por aí dizer, que se prejudica os programas das férias dos alunos e dos seus pais, férias estas sem subsídios, no entanto, já pagos aos boys.

    Há quem fale também, numa estabilidade familiar dos alunos, que será prejudicada, quando as famílias cada vez mais vêem os seus rendimentos passados em recibos verdes, cheques caridosos da segurança social, ou nalguns casos ... reduzidos a zero, com as malas feitas para ir tudo morar para a casa da avó, porque os pais (dos tais alunos), não têm como pagar a renda da casa, morada do seu quarto, dos seus haveres, e de grande parte dos episódios do seu universo afectivo.

    Tenho ouvido pessoas dizerem, que a prioridade das escolas não são as lutas entre governo e professores, mas sim os alunos, mas que são as mesmas que fecham escolas aos mesmos alunos, os correios aos pais dos alunos ou os centros de saúde, aos avós dos alunos.

    Anda aí quem apregoe, a qualidade de um sistema de ensino público, quando, no entanto se quer reduzir o número de professores ao mínimo, ou se transfere para lucrativas empresas privadas de amigos, a "responsabilidade" da educação em Portugal, em processos muito pouco claros. Empresas estas que depois contratam professores tornados low-cost pela "conjuntura económica adversa".

    Anda aí muita gente a dizer muita coisa ...

    A função de um professor é ensinar,
    não só Matemática, ou Português,
    Inglês ou Filosofia ...

    Podem então desde já, ensinar aos miúdos, como se luta por direitos, contra as precariedades que se querem impor às pessoas, e como se garreia contra um sistema injusto.

    Ensinem-lhes o que è a luta cívica. E podem começar o próximo ano lectivo, logo na primeira aula, a contar a vossa história, aos milhares e milhares de alunos em Portugal.

    Ensinem-lhes carácter ! ... que é aquilo que muita gente que eu ouço por aí falar de alunos, não tem.

    Joao Anonimo

             

Os professores, por José Luís Peixoto

Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança.


Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios - José Luís Peixoto
Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios - José Luís Peixoto

O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.
O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva. O trabalho dos professores é a generosidade.
Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais de ontem. O acto que praticam é igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. O conhecimento que enche as páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência daquilo que os professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os professores recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.
Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança. Vemo-los a dar forma e sentido à esperança de crianças e de jovens, aceitamos essa evidência, mas falhamos perceber que são também eles que mantêm viva a esperança de que todos necessitamos para existir, para respirar, para estarmos vivos. Ai da sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está vivo. Mesmo que ainda respire, já morreu.
Envergonhem-se aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se aqueles que dizem que não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são maiores é quando o esforço para ultrapassá-las deve ser mais intenso. Sabemos que estamos aqui, o sangue atravessa-nos o corpo. Nascemos num dia em que quase nos pareceu ter nascido o mundo inteiro. Temos a graça de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o entendimento do que significa estar aqui, nesta posição. Em anos de aulas teóricas, aulas práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo, sumários escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar. Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos facilmente à conclusão que, como nas aulas de matemática ou de filosofia, não há problemas que disponham de uma única solução. Da mesma maneira, não há fatalidades que não possam ser questionadas. É ao fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.
Recusar a educação é recusar o desenvolvimento.
Se nos conseguirem convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que aquele que encontrámos, o erro não será tanto daqueles que forem capazes de nos roubar uma aspiração tão fundamental, o erro primeiro será nosso por termos deixado que nos roubem a capacidade de sonhar, a ambição, metade da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos avós. Mas espero que não, acredito que não, não esquecemos a lição que aprendemos e que continuamos a aprender todos os dias com os professores. Tenho esperança.
Artigo de José Luís Peixoto, publicado na revista Visão de 13 de Outubro de 2011



Carta aberta ao Professor Nuno Crato


Caro Professor Nuno Crato,

Acredite que é com imenso desgosto que lhe escrevo esta carta aberta.

Habituei-me, durante anos, a ler e a concordar com o muito que foi escrevendo sobre o estado do ensino em Portugal. Dos manuais desadequados à falta de exames capazes de avaliar o real grau de aprendizagem dos alunos; do laxismo instituído à falta de autoridade dos professores; do absoluto desconhecimento do que se passava nas escolas, por parte do Ministério da Educação à permanente falta de materiais e condições nas escolas. Durante anos, também eu me revoltei com a transformação da escola pública em laboratório de experiências por parte de políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação. Foi por isso com esperança que me congratulei com a sua nomeação para Ministro da Educação do actual governo.

Por isso, Professor Nuno Crato, me surpreende que, à semelhança dos seu antecessores, não tenha sido capaz de resistir à tentação de transformar os seus colegas de profissão nos maus da fita, mandriões, calaceiros, incapazes de trabalhar míseras 40 horas por semana. Surpreende-me e entristece-me.

Sabe, Professor Nuno Crato, sou filho de professores e durante a minha infância e adolescência habituei-me a compartilhar o meu tempo, os meus livros, os meus cadernos e muitas vezes o meu almoço e o meu lanche, com os milhares de crianças que, ao longo de anos de esforço e dedicação, eles ajudaram a educar pelas aldeias mais recônditas do nosso país. Habituei-me a aguardar pacientemente a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar, para que restasse um pedaço de tempo para uma história, uma conversa, um mimo. Nunca lhes pressenti na expressão uma nota de arrependimento, antes de felicidade, por um trabalho que adoravam fazer e que eu adorava que fizessem. E, não imagina o orgulho que sentia quando nos cruzávamos com muitos dos seus ex-alunos e lhes via no rosto uma expressão doce de eterna gratidão - Se não tivesse sido o Senhor Professor ...não sei o que teria sido de mim!

Depois, casei-me com uma professora e voltei a ter de me habituar a compartilhar o meu dia-a-dia, o meu computador, os meus tinteiros, os meus dossiers, o meu papel, as minhas canetas, com milhares de outras crianças e adolescentes. Voltei a ter de me habituar a aguardar a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar. Com a diferença de agora, a tudo isso, se somarem milhares de páginas de legislação para ler, a grande maioria escrita num português que envergonharia os meus pais e grande parte dos seus ex-alunos; dezenas de relatórios para redigir; novas metodologias de ensino para estudar; manuais diferentes de ano para ano para analisar; telefonemas para pais de alunos problemáticos a efectuar; acompanhamento de alunos com dificuldades, reuniões de pais, reuniões de avaliação, reuniões de preparação, reuniões de grupo, assembleias de escola, visitas de estudo, estudo acompanhado, aulas de substituição, vigilância de exames. Confesso que ao longo dos anos, fui conseguindo roubar à escola, um pouco de tempo para mim. Mas, mesmo desse tempo roubado a custo, muito era passado a falar da desmotivação generalizada causada pelo desleixo, pela falta de objectivos, pela ausência de meios, pela violência, pela falta de autoridade, enfim, por tudo aquilo que o Professor Nuno Crato tão bem descrevia nas suas análises.

Durante estes muitos anos a viver com professores, nunca me passou pela cabeça perguntar-lhes quantas horas trabalhavam. Mas, fazendo um esforço de memória, sou capaz de contabilizar os milhares de horas que o seu trabalho para a escola roubou à minha família. Os milhares de refeições em conjunto que não se realizaram, os milhares de conversas que não pudemos ter, os milhares de madrugadas passadas em claro, os milhares de filmes que não vimos juntos, os milhares de musicas que não ouvimos, os milhares de livros que não lemos, os milhares de passeios que não demos.

Não sei se esses milhares e milhares de horas perfazem as tão badaladas 40 horas de trabalho por semana que agora se discutem, mas sei que se fosse professor estaria a favor dessas 40 horas de trabalho semanais, desde que realizadas integralmente na escola, sem nunca mais, ter de trazer trabalho para casa, de gastar uma gota de tinta do tinteiro da minha impressora, de ocupar um byte de memória do meu computador, de usar uma folha da minha resma de papel, de ocupar a minha sala com trabalhos de alunos, de perder as minhas noites, os meus fins-de-semana, os meus dias de descanso com a preparação de aulas, reuniões ou relatórios. Se assim for, pelo menos, numa coisa os professores passarão a ser efectivamente iguais a todos os outros funcionários públicos, que deixam o seu trabalho e os seus problemas laborais na porta de saída da repartição.

Infelizmente não acredito que assim seja e o que acontecerá é que os milhares de professores, mal pagos, mal amados, maltratados, continuarão a acumular às 40h que agora se pretendem instituir, milhares e milhares de horas de trabalho gratuito roubadas às suas famílias, ao seu descanso, ao seu lazer, pelo simples motivo de se orgulharem de ensinar e não permitirem que os mesmos políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação instalados no Ministério há anos, destruam a essência da sua profissão.

Caro Professor Nuno Crato, é por isto que os seus colegas de profissão estão em greve e não entender isto é não entender nada sobre educação. Por isso, não se admire se um destes dias forem eles a fazer aquilo que o professor tanto prometeu, mas não teve coragem de cumprir: implodir o Ministério da Educação em defesa da educação em Portugal.

João A. Moreira, em 14.06.13


Anamar