sexta-feira, 20 de novembro de 2009

" O MEU PAI É UM CABRÃO DE MERDA E UM GANDA FILHO DA PUTA..."





Credo!
Acabei de escrever o título deste post, e já olhei para ele de enviesado, dez vezes....
Aposto que a minha "audiência" hoje vai aumentar substancialmente. Aqui está o efeito das manchetes apelativas, pelos mais variados aspectos, todos os dias, nos mídia...

Fui há pouco a casa da minha mãe desincumbir-me da missão que me calhou em destino desde que ela decidiu viver na margem sul, numa zona de pinheiros, relvados, pássaros, as suas inalienáveis sardinheiras e o seu Gaspar, que é mais gente que muita gente...ou seja, fui ver o correio e regar as plantas, numa casa que está fechada há quase seis anos, escolhendo o lusco-fusco de uma tarde que invernou aos poucos, e "pedindo" que não cruzasse ninguém conhecido naquela avenida, que de conhecido meu, já tem muito pouco...pese embora os muitos anos que por ali deambulei, entre catraia, estudante, mãe de filhos e respeitável professora, do liceu que fica apenas alguns metros atrás...

"Respeitável professora"....eu, que graças a Deus ou ao Diabo continuo a ser a "Guidinha" para os agora velhotes, resistentes lá do sítio!!

O meu ânimo não era o melhor, porque não estou de facto com alma e coração para demonstrar aquela afabilidade necessária para quem está também sempre disposto a contar histórias, já mais ou menos "trôpegas" da solidão...e porque ir áquela casa, não me faz lá muito bem, sobretudo num momento em que ando a tentar reunir os meus "cacos".

A minha mãe ficou definitivamente na outra banda, corria a quadra natalícia de 2004, por razões que não vêm ao caso.
Tinha enfeitado a casa com dois ou três apontamentozitos, do que era o seu Natal por aqui : uma coroa de Natal, a dar as boas vindas a quem entra, portanto, pendurada na porta de entrada, um castiçal natalício, em que não falta o azevinho, os sininhos dourados e os raminhos de pinheiro, e claro, sobre a mesa, um Pai Natal, da Loja dos Trezentos, com aquele ar de velhinho bonacheirão, saco às costas e creio que uma lanterna, dadas as hipotéticas curtas dioptrias...e pronto...acho que nada mais.
Sempre que meto a chave à porta e entro naquele rés do chão, evidentemente às escuras, sempre sorrio e penso: "Continua a ser Natal na casa da minha mãe...ainda!..." Depois sigo pensando como sou diferente dela e como a invejo...

Aqui, na casa onde vivo, há muito mais adornos alusivos, inclusive uma árvore de Natal estilizada, em dourado, de colocar sobre um móvel por exemplo...um bonito presépio que até esqueço, bolas, velas, fitas e luzes, de quando o Natal se impregnava debaixo da pele...
Há cerca dos mesmos seis anos, que ano após ano nada sai do lugar onde está guardado...
Há assim uma espécie de um "não valer a pena" aqui dentro.
Já referi algumas vezes que sou anti-convencional, mas teria maior mérito se fosse essa a razão por ignorar a quadra decretada. Era mais coerente...Mas nem sequer é disso que se trata....É sim, aquela desvalorização que tira amor a quase tudo o que faço comigo, e na minha vida....
É assim....e não adianta violentar-me....eu sou mesmo "uma coisa".....pouco, de "gente"......

Bom, mas lá fui e vim, com a noite a anunciar-se para breve.
Com ela, fim de aulas e a multidão de estudantes, seja da escola básica, seja da secundária (porque ficam quase lado a lado), têm por regresso esse caminho. Por isso,  falo em multidão mesmo.

É a multidão dos "bué", dos"curtes a cena, meu", dos "foda-se" para a esquerda e para a direita (já nem estremeci ao escrever....tenho p'ra mim, que estou já no domínio do calão, tal a vulgarização...), "do stôr é do baril" ou "o gajo é um cromo!..."

É a geração da calça bem "arejada", dos casacos com carapuço que tapa quase tudo, das barriguinhas Danone, das garotas que só não apanham pneumonia no umbigo, porque não é sítio de pneumonia...de t-shirts que ainda ficaram da estação anterior, e que ou encolheram, ou a miúda cresceu...(é provável!...), e sempre se areja cada vez mais...

É a geração dos diálogos mais "edificantes" que se possam conceber...
Dali, não sai coelho...nem música, nem filmes, nem livros, nem temas escolares......nada, nadica de nada....um vazio que dói, uma frivolidade que abisma, um desinteresse que preocupa, uma pergunta que atormenta: esta gente vai ser o nosso país daqui a meia dúzia de anos?????...


E do meio desta amálgama hululante, deste desenfreado de loucura colectiva, de patetice doentia, de geração que é órfã, seguramente, dum Mundo em que não sabe por que o ocupa, o que deve fazer dele, cujos valores e princípios já pertencem às "Calendas Gregas"...e isso nunca souberam o que era....e eis que do meio desta TRISTE SOLIDÃO E ABANDONO....estou certa, dizia... surge, largos decibéis acima, a voz duma adolescente, que para se fazer ouvir na "manada", propalava aos quatro ventos : "O meu pai é um cabrão de merda e um ganda filho da puta!... Eu já lhe disse: Se me casca outra vez, nunca mais me vai ver a cor!..."

Bom, realmente essa frase fez-me levantar os olhos do chão...e de imediato pensei comigo: "..."cabrão" esse que foi capaz de te pôr no Mundo, e provavelmente está sim, a desempenhar um emprego "filho da puta mesmo", para te sustentar!!!...."

Benza Deus!!....

Anamar

terça-feira, 17 de novembro de 2009

"EU SEI LÁ POR QUE VIM AQUI!!!..."





Vim aqui escrever o que quero, se calhar o que não quero, o "politicamente correcto", ou talvez não... (eu que me borrifo e tenho raiva exactamente a isso, ao "politicamente correcto", ditado por "tias" que não têm onde cair  mortas"...) enfim, vim aqui, porque o dia esteve igualinho a mim, mas não consegui sequer, dele tirar partido - logo hoje que nem aulas tive ...
Vim aqui, porque é meia noite e vinte e vou agora comer um prato de sopa....
Vim aqui porque já me deitei, já me aninhei no édredon, já dormi (eu e a Rita), já acordei...continuo "atafulhada" de tudo o que não sei, não posso e não devo escrever aqui, neste espaço, com mil olhinhos a piscar e mil neuroniozinhos, a aumentarem as rotações pela curiosidade desperta....
Vim aqui, porque vou, de algum modo, levar alguém a sentir-se absolutamente acertivo quando, sem me conhecer, nem de perto, "doutamente" diz: "ai, não acho que a Margarida esteja nada feliz"....(à boa maneira das mulheres, que de facto são um espectáculo único, quando vampirescamente sentem o doce na boca, ao pressentir alguém com coração a sangrar)...
Vim aqui porque me sinto presa e tolhida, e não queria ser mais Anamar, nem Maria da lua, não ter nome, nem cara, nem olhos nem coração....
Vim aqui, porque estou há séculos a congeminar o que tenho que fazer para conseguir um atestado médico (tão poucos  usei na minha carreira), mas não tenho força, nem vontade, nem paciência, nem alma, para ir dar as convenientes aulas amanhã...
Vim aqui, porque desta vez alguém dirá: "coitada, desta é que se passou!!!..."

Vim aqui...porque esta droga, ainda é o único buraco para onde vomito o fel, nem que seja por sarcasmo...é o único local onde publicamente, a minha filha, por exemplo, e exactamente como todas as pessoas que são o meu avesso e não me entendem, se dão ao luxo de me confrontar com a minha loucura explícita...
Vim aqui para que digam: "que saturação...é sempre a mesma merda de registo, chova ou faça sol"...
Vim aqui para que me chamem bipolar, depressiva, neurótica, esquizofrénica, tontinha (numa hipótese quase lisongeira)...
Vim aqui porque sou infantil e utópica, porque não cresço, porque fiz "menos" um ano e a ressaca ainda mexe... As pessoas pasmam porque eu me amarguro até à alma com isso, porque simpaticamente (eu entendo) me parabenizam e desejam felicidade...quando eu me pergunto...parabéns de quê? Felicidade, como, se não sei bem o que isso significa...Se for apenas acordar viva todas as manhãs, cumprir o "cardápio" do dia e andar...então para quê?...

Em suma, vim aqui, para amanhã ter detestado exactamente...ter vindo aqui, assim...

Como todos os doidos, tenho afinal direito aos meus momentos de "fúria"....Desculpem lá, mas isto é assim: baboseiras, todos dizem e fazem...talvez menos genuínas que as minhas...e eu...estou extenuada...o caminho está cada vez mais e mais lixado!!...

Anamar

terça-feira, 10 de novembro de 2009

ESTÓRIAS DA "HISTÓRIA" OU "SE BEM ME LEMBRO..."






Se o meu pai fosse vivo, comemoraria hoje, sessenta anos de casamento com a minha mãe. Essa, não esqueceu a data, e eu também não.
O casamento dos meus pais foi sempre algo singular com que convivi, mas que eu assimilei pacificamente, também não sei porquê...Talvez porque não fosse cabível nessas gerações,  serem equacionadas certas questões, menos ainda, colocadas.
Era assim, porque foi assim...nada a acrescentar.

O meu pai, filho maior de cinco irmãos, deixou a escola, não faço ideia com que escolaridade atingida, e com sete anos já era moço de recados ou marçano de armazém, como sempre lhe ouvi dizer.
Alentejo profundo, muitas dificuldades, famílias grandes, época de fome mesmo...havia que trabalhar no que, e como se podia, para ajudar em casa.
No caso do meu pai, a troco de comida, porque os préstimos de uma criança de sete, oito anos, são parcos.
O meu avô, que não conheci, era sapateiro, mas costumava acabar as tardes de pouco trabalho, na mesa da taberna da aldeia, presumo que o único luxo que se permitia. Era o tempo do "pé descalço", e as botas, se existiam (robustas e cardadas para durarem), tinham que ser poupadas.

A pobreza grassava numa terra de meia dúzia de senhores. Trabalhavam-se os campos se o tempo o permitia, debaixo de sol impiedoso nos Verões torturantes do Sul ; mas os Invernos rigorosos e muito longos, traziam a fome às mesas, e quando na janta havia uma açorda de pão dormido, quantas vezes sem azeite por a almotolia já o não ter, e os "lavradores" nem sempre se compadecerem da aflição, já era confortante...
Piores eram as noites em que se ia para a cama mal o sol se punha, por não haver lenha para a lareira e o estômago roncar, de vazio...

O meu pai fez-se gente, "criou" praticamente os irmãos, saldava as dívidas do próprio pai e partilhava o que podia, com a mãe, que também não conheci, mas que das fotos a que tive acesso, sempre me pareceu uma velhinha pequenina, sofrida, frágil, infeliz...inertemente infeliz!...

O meu pai casou e a mulher com quem o fez, morreu três anos mais tarde...tísica, doença vulgar na época, como sabem (estou a falar  sensivelmente do meio da década de 30).
Nunca chegaram a viver em coabitação, dado que a senhora foi permanentemente sujeita a tratamentos em termas e sanatórios.
Ficou então o meu pai, muitos e muitos anos viúvo, tantos que chegaram para que conhecesse a minha mãe, desde os três anos de idade (os meus avós maternos detinham um estabelecimento hoteleiro que o meu pai frequentava, devido à sua actividade profissional ).
Acabou casando com a minha mãe, tinha ela já vinte e nove anos, e ele...mais dezanove...

Será escusado dizer que a minha existência terá representado para ele, uma relação de avô-neta e não de pai-filha. Sempre fui tratada, como já aqui descrevi sobejamente, com os desvelos, as preocupações, os "apaparicamentos" de um avô e não de um pai.
Estava pouco tempo em casa, pois era viajante de um armazém de ferragens, que com mais dois sócios, conseguiu concretizar. Assim, por esse Alentejo fora, de "camioneta da carreira", de comboio, de "carruagem" (ainda as  havia), até de burro...como "caixeiro-viajante, perambulava de terra em terra, e se estava mais afastado, nem os fins de semana vinha passar a casa.
Fui, portanto, cuidada quase exclusivamente pela minha mãe, que tinha sobre si, a total responsabilidade da minha educação e formação.

Quando era um fim de semana em que o meu pai estava, sentia-me mais acompanhada, talvez protegida. A maior parte do tempo, a casa era excessiva para nós as duas.
Habituei-me a isolar-me, a viver "para dentro"; a minha mãe, com o brio da mulher alentejana, tinha aquelas exigências de ordem, limpeza, organização, desmedidas e por vezes sem sentido.
Assim, o seu tempo era passado num permanente afã com a casa, com o meu arranjo, com o meu desempenho escolar, a minha alimentação...tudo como se tivesse que prestar contas a algum "patrão".

Não se criou nunca uma cultura de diálogo, de cumplicidades entre nós as duas. Eu diria que cada uma tinha o seu mundo.
Eu pensava "para dentro", se sofria, era comigo mesma, se tinha dúvidas, inquietações, alegrias ou mágoas, também teria que ser entre mim e mim.
Era uma "mulherzinha" pequena; uma criança com responsabilidade de adulta; sabia que não podia defraudar as expectativas com que me investiram. Lembro-me de ser sempre muito sozinha.
A minha casa não era frequentada por outras crianças, nem eu ia a casa de possíveis amiguinhas. A minha mãe sempre achou que não se devia "maçar" ninguém, e em casa havia que manter a arrumação e a ordem, coisa difícil, com duas ou três crianças juntas.
Lembro uma festa de aniversário de uma colega do colégio, filha do Presidente da Câmara da cidade, a Elisinha...e lembro, o meu ar aparvalhado quando vi que a Elisinha tinha um quarto de brinquedos, só para ela e os amiguinhos brincarem, um mundo onde ela reinava!.... Aquilo para mim, era demais...eu achava que só existia nas histórias contadas nos livros...

Ocupava assim os meus dias, a estudar (para ser uma aluna referenciada e premiada no liceu que frequentava), a ler ( o mais que podia), a escrever e a esconder o que escrevia (porque tinha vergonha de mostrar aquilo que passava para o papel) e a sentir sempre que se a vida era só aquilo, não valia muito a pena...
Passava horas a ver a minha rua, da janela do primeiro andar. Em frente havia uma chaminé em tijolo, de uma fábrica, e nessa chaminé, em cada ano, um casal de cegonhas sempre regressava para aí nidificar.
Eram "figurantes" de guiões de filmes que eu recriava na minha cabeça...eram companhia para mim...e como eu ficava feliz, quando numa bela manhã, acordava e elas estavam lá...
Eu ficava tão grata, mas tão grata...e elas nem sabiam!!...
Sempre que volto a Évora, faço questão de passar na "minha rua", à "minha porta"...e na primeira vez que isso aconteceu, de imediato o meu olhar procurou a chaminé...Ela já não existia...mas eu também já não era mais uma criança!!...

Lembro ainda, e não deixa de ser interessante que o lembre...(hoje deu-me pr'aqui...), que o meu caixote de brinquedos "jazia" na despensa da casa, bem arrumada, como seria esperável, e só de lá saía quando o humor da minha mãe se "compadecia" com as minhas lamúrias. Mas, depois de na cozinha, atrás da porta, eu ter armado a "cantareira"...logo se esgotava o tempo concedido. Havia que arrumar tudo de novo e voltar a colocar na despensa, porque a cozinha não era para estar desarrumada...

A Lolinha, uma boneca de porcelana daquelas com mola na barriga, que quando se balançavam p'ra frente e para trás faziam um "pseudo-choro" mais aproximado a miado de gato, era demasiado mal empregada para que sequer eu lhe mexesse muito, não fosse desastradamente parti-la...o que seria uma verdadeira calamidade...
Realmente, a Lolinha vestia de cetim, tinha olhos azuis com pestanas, que abriam e fechavam, tinha cachos de cabelos louros, que a tornavam uma espécie de princesa ; foi a primeira boneca que o meu pai me ofereceu, (num Natal em que veio a Balanço de fim de ano, à Firma), deixando-me louca de felicidade. Ainda lembro o papel que embrulhava a caixa que a transportava...era branco com florzinhas soltas, azuis, e lembro com total nitidez a chegada do meu pai, vindo de viagem de Lisboa,  à cozinha, e o balançar da caixa, para que a Lolinha "miasse"...Talvez eu tivesse os meus 5, 6 anos...e uma estupefacção e alegria sem tamanho...
A Lolinha dura, por tudo isto, até hoje. Hoje, sim, religiosamente guardada por todas as razões do mundo, numa vitrina, na companhia de outros objectos da minha "história", que sobreviveram estoicamente ao tempo. Um deles, é um serviço mínimo de chá, em porcelana, decorado com figurinhas do Walt Disney, com que me presentearam mais tarde e com o qual, obviamente, também nunca brinquei.

Quando penso em brinquedos e brincadeiras...brinquedos e brincadeiras felizes, logo os associo aos dias de férias, passados em casa dos meus avós maternos ou tios complacentes.
Nessas férias é que eu me "esbaldava" a brincar, simplesmente porque os meus brinquedos eram então cacos de loiça partida, frascos e frasquinhos sabe-se lá do quê, latas e caixinhas, bocados de espelhos...verdadeiras preciosidades, catadas numa montureira de objectos inúteis lançados num terreno baldio.
Essa montureira era para mim uma verdadeira "arca do tesouro". Não havia prazo para se desmancharem as casinhas construídas;  porque já estavam partidos, os "tesouros" das minhas brincadeiras, não corriam o risco de se partirem mais...porque não eram de ninguém, ninguém os queria de volta.
Com eles, erguia salas, quartos, cozinhas...verdadeiros palácios do meu imaginário infantil. Eu usava "salto alto" com os carrinhos de linhas da minha avó, atados aos sapatos e colocava óculos escolhidos entre os quinhentos mil pares, redondinhos e de tartaruga, que existiam num cesto, comprados nas feiras, para solucionar urgências de oftalmologia, e que já ninguém queria...

Essas férias eram felizes; eu andava solta, de casa de tios para casa de primos, para casa de avós, para casa de amigas (porque lá, como se percebe, já era inócuo que eu tivesse meninas para brincar, sujar-me, esfolar joelhos...).
Eu era disputada por toda a família e todos me queriam fazer um agrado ; era o "brinhol" - a tradicional "fartura" -  que o meu tio comprava para o meu pequeno almoço, era a romã, arranjada com açúcar numa tacinha para o lanche, eram os pratos principais que eu mais gostava, era o "pirolito" de berlinde no gargalo, bem geladinho do poço do quintal...enfim, até tinha uma tia, que me pesava quando eu chegava, para que ao partir, eu tivesse uns quilitos a mais...
A minha mãe, rodeada pelos pais, irmãos, tios, sobrinhos e amigas, até me esquecia, e eu transformava-me numa cabrita solta e feliz!
Nesses dias havia gente, havia conversa, mesa cheia, risos, histórias contadas, notícias dadas...família!...

Em Évora, havia nós duas e uma casa de dois andares com nove divisões, que sempre me pareceu imensa, triste e escura.
Se estávamos na cozinha, o resto da casa tinha logicamente as luzes apagadas. O corredor que terminava na escada para o piso de baixo, tinha sempre a luz apagada e só se acendia se fazia falta.
Eu dormia com a minha mãe, quando o meu pai não estava e sempre me parecia ver sombras, vultos, figuras fantasmagóricas que se agigantavam ao longo das paredes.
E eu tinha medo...lembro-me de ter medo daquela casa...

Eu disse há pouco que a relação dos meus pais era singular...
Hoje, pensando nela, verifico que o sentia, mas nunca o coloquei em causa ou o interroguei. Não recordo os meus pais dialogarem ou sequer conversarem normalmente, como julgo que os casais fazem ou devem fazer.
Nunca vi sequer uma troca de carícias mais ou menos íntima, entre eles.
De facto, o meu pai representou-me sempre uma figura hermética, que cruzou a minha vida e que acabei não conhecendo.
Nunca identifiquei ou reconheci uma sexualidade normal entre aqueles dois. E penso que isso me marcou e me fez encarar as relações afectivas, a ligação num casal, a abordagem e a vivência sexual dentro do mesmo, de uma forma muito particular, até muito tarde, ou pelo menos, até que a maturidade real, me catapultasse a uma capacidade de análise das coisas, mais objectiva e correcta.

Casei com dezanove anos...e tenho a certeza que o meu casamento foi atropelado ou mesmo dinamitado pela menina que eu fui, pela adolescente em que me tornei...pela adulta profundamente inacabada ou imperfeita que fui capaz de formar!...

E pronto!
Estas "estórias" da parte primeira da minha verdadeira história, já vão longas!....
Tudo o que se lhe seguiu e de que recolho até hoje, entre fruta apetitosa, muita fruta bichada....irá acompanhar-me inevitavelmente sem capacidade de grandes alterações já, enquanto por cá andar, pois afinal, mesmo sem pedirmos, há inumeráveis determinantes exógenas, que talham por vezes mais profundamente um indivíduo, do que as próprias marcas genéticas...

Anamar

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

"QUEREM MAIOR CLARIVIDÊNCIA??..."



"Encontrei" um sósia mental...
Eu explico: um sósia mental meu, é alguém que pensa, sente, interpreta as realidades, os sofrimentos, a vida, igualzinho, igualzinho a mim....
E digo "encontrei", porque me veio parar às mãos, um texto seu, que me fez exactamente...parar!
Até a linha um pouco sarcástica e clarividente, de analisar e de exprimir o que nos povoa a alma e nos lança inquietudes no espírito, é muito "colada" à forma como eu  sinto, exponho, entendo.
O sabor agridoce da sua interpretação da vida, até me deixou um pouco mais tranquila...e agora, a dúvida existencial que se me coloca, é se estou mais para ET, como referia no último post, ou se mais para louca, desinserida, "outsider", como um girassol que tivesse nascido vermelho-papoila, num campo "normal" de girassóis amarelos-sol!!...

Como o "meu sósia mental" tinha um nome que não me dizia nada (seguramente ignorância atroz da minha parte), fui indagar na NET e sei agora, tratar-se de um psicanalista, teólogo, filósofo, escritor (tanto em prosa como em poesia), brasileiro, do Estado de Minas Gerais, com 76 anos.
É ele Rubem Alves...um psicanalista heterodoxo como se auto denomina, um "mergulhador" na alma humana, diria eu...

Girassóis amarelos..."normais"...
"Normal"...mas o que verdadeiramente é o normal?

"Toda a pessoa com saúde mental aparente, é um psicopata latente"...

Esta frase de clarividência e desassombro totais, é um desafio à tomada de consciência de uma convicção absoluta generalizada e acomodada, de que o ser humano para se enquadrar, deve posicionar-se nos figurinos e nos arquétipos pré-determinados.

Rubem Alves é a "pedrada no charco", é a "contra-corrente", é a coragem de assumir o diferente, é a força e a frontalidade de dizer "não"...
Tanto haveria para ser dito...Eu fiquei fascinada com a polivalência de uma mente sã e um espírito genuíno!

Não resisti a passar-vos dois textos seus, que dispensam, creio, demais comentários...

"SAÚDE MENTAL"
Fui convidado a fazer uma prelecção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.
Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski.
E logo me assustei.
Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.
Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.
Mas será que tinham saúde mental? 
Saúde mental, essa condição em que as ideias se comportam bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, bastar fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou.


Pensar é uma coisa muito perigosa...
Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata. 
Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi falar de político que tivesse stress ou depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas. 
Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos. 

Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interacção de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio".
O hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O software é constituído por entidades " espirituais"-símbolos que formam os programas e são gravados nas disquetes.
Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os neurónios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória.
Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software.
Nós também.
Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou.
Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fendas. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele.
Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas. 

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo,é sensível às coisas que o seu software produz.


Pois não é isso que acontece connosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o gira-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. 
Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção!
Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio: a música que saia de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou.

Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental até o fim dos seus dias: Opte por um software modesto.
Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente contra-indicados. Já o rock pode ser tomado à vontade. Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento.
Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram...

Autor: Rubem Alves



"A GENTE É VELHO"
A gente é velho quando, para descer uma escada, segura firme no corrimão. E os olhos olham para baixo para medir o tamanho dos degraus e a posição dos pés.

Quando eu era moço, não era assim.
Não segurava no corrimão e não media degraus e pés. Descia os dois lances de escada do sobrado do meu avô com a mesma fúria com que um pianista toca o prelúdio 16, de Chopin. Ele, pianista, não pensa. Se pensasse, não conseguiria tocar, porque o pensamento não consegue seguir a velocidade das notas. Toca porque seus dedos sabem sem que a cabeça saiba. O pianista se abandona ao saber do corpo.

Assim descia eu as escadas do sobradão do meu avô. Mas no dia em que o pé começou a tropeçar, a cabeça compreendeu que eles, os pés, já não sabiam como sabiam antes. Agora é preciso o corrimão. Depois virão as bengalas, corrimãos portáteis que se leva por onde se vai.

A gente é velho quando, no restaurante, é preciso cuidado ao se levantar. Moço, as pernas sabem medir as distâncias que há debaixo da mesa. Mas, agora, é preciso olhar para medir a distância que há entre o pé da mesa e o bico do sapato. Há sempre o perigo de que o bico do sapato esbarre no pé da mesa e o pé da mesa lhe dê uma rasteira, você se estatelando no chão. 
Quando se é velho, até uma pequena queda pode se transformar em catástrofe. Há sempre o perigo de uma fractura.

A gente é velho quando é objecto de humilhações bondosas. Como aquela que aconteceu comigo 25 anos atrás. O metro estava cheio. Jovem, segurei-me num balaustre. Notei então que uma jovem de uns 25 anos me olhava com um olhar amoroso. Olhei para ela. E houve um momento de suspensão romântica. Minha cabeça e meu coração se alegraram. Até o momento em que ela se levantou com um sorriso e me ofereceu o seu lugar. Foi um gesto de bondade. Com o seu gesto ela me dizia: "O senhor me trás memórias ternas do meu avô..."

A gente é velho quando entra no polibain do chuveiro com passos medrosos e cuidadosos. Há sempre o perigo de um escorregão. Por via das dúvidas, mandei instalar no polibain da minha casa, uma daquelas barras metálicas horizontais que funcionam como corrimão.

A gente é velho quando começa a ter medo dos tapetes. Os tapetes são perigosos de duas maneiras. Há os pequenos tapetes de fundo liso, que escorregam. E há os grandes tapetes que ficam com as pontas levantadas e que fazem ondas. O pé dos velhos movimenta-se no arrasto e tropeça na ponta levantada do tapete ou na armadilha da onda.

A gente é velho quando começa a ter medo dos fotógrafos. Fugir das fotos de perfil porque nelas as barbelas de nelore aparecem. Nelore é um boi branco. Os pastos estão cheios deles, vivos, e as mesas também, sob o disfarce de bifes. E eles têm uma papada balançante, as barbelas, que vai da ponta do queixo (boi tem queixo?) até ao peito. 
Velhice é quando as barbelas de nelore começam a aparecer. Aí vem a humilhação conclusiva. Prontas as fotos, eles nos mostram e dizem: "Como você está bem!"

A gente é velho quando, tendo de subir ao palco para dar uma palestra, tem sempre uma jovem simpática que nos oferece a mão, temendo que a gente se desequilibre e caia. A gente aceita o oferecimento com um sorriso. Nunca se sabe...

A gente é velho quando perde a vergonha e se desnuda, fazendo as confissões que acabei de fazer...
Autor: Rubem Alves


Anamar


quinta-feira, 29 de outubro de 2009

"SEREI UM ET??..."

Tenho esta crónica escrita há dias...
Já a li vezes sem conta...Leio-a e enjoo-me. Leio-a e fico com ganas de a pôr directo no lixo. Só me apetece pô-la aqui, porque haverá olhos que me lêem que nunca me viram nem verão, e assim sempre tenho uma espécie de buraco na areia p'ra falar lá p'ra dentro...

Esta coisa dos blogues, da exposição pessoal e autêntica, a gentes que nos conhecem, falam connosco, convivem connosco, tem destas situações: ou não se é genuíno a escrever e mais vale estar quieto, eu acho, ou estamos a escrever, quantas vezes por necessidade, como única forma de extravasar o que pesa quilos em cima de nós...e aí parece que "ouvimos" vozes, que tantas vezes, sem entenderem nada, levianamente tecem juízos de valor, nem sempre certos ou sequer aproximados...
E fica assim aquela sensação desconfortante de estarmos nus no meio da rua...

Bem...lá vai...

Li há dias numa daquelas noticiazinhas da "home-page" no PC, a referência a um estranho medo ou fobia, de Angelina Jolie.
A actriz, catapultada com uma imagem social de mulher a quem facilmente não se atribuiria um medo ou uma inquietação, tal o seu percurso divulgado e acompanhado a par e passo pelos media, afinal padece de facto, de uma estranha e talvez inexplicável fobia.
É teoricamente uma mulher de sucesso pessoal (beneficiada até na beleza física, que lhe foi pródiga), na relação afectiva que conquistou aparentemente de uma forma vitoriosa (embora nestas coisas nunca se saiba muito bem), profissionalmente ( o seu trabalho é disputado e reconhecido sem margem de erro), social e humanamente, desde o seu empenhamento em causas de ordem humanitária, não só favorecendo com a sua presença e ajuda, eventos dessa índole (como embaixadora da boa vontade), como ainda pela adopção indiscriminada de crianças de países desfavorecidos, lado a lado com os seus filhos biológicos.

Pois é...Angelina Jolie não consegue abraçar ou ser abraçada estreitamente por ninguém que não lhe seja bem próximo, e não atina com a razão para esta atitude comportamental que a acompanha de longa data.

Obviamente que à boa maneira destes "círculos", logo o psicoterapeuta Jenn Berman, a pedido ou não, opinou à revista britânica Stylist, que "pessoas que não gostam de abraços, habitualmente cresceram sem os afectos e o aconchego de um lar"...
Sobre isto não me pronuncio, apesar de adorar enfiar-me pelos meandros do ser humano, e de ter uma costela de psicóloga de trazer por casa, tipo detective Colombo, com aquele seu ar "negligé" de "quem não quer nada"...até porque não conheço efectivamente o que está para trás na vida de Angelina, e depois, mesmo que algo me fizesse sentido..."não deve ir o sapateiro além da chinela"...

Bom, é claro que não foi a Angelina, os seus medos ou sucessos, que me fizeram abordar este tema.

O ser humano é o vector resultante de muitos vectores que começam bem lá atrás a produzir os seus efeitos, eu diria que muitos têm mesmo a  sua matriz na ordem genética, e quanto a isso nada há a fazer.
Depois temos toda a súmula objectiva de "informação", códigos bons e maus, espécie de "chips" que vão chegando, sinalizando, gravando...e também quanto a isso, aquilo que ficamos a saber, é o resultado prático consequente disso mesmo, posteriormente...às vezes muito posteriormente...

Eu tive uma infância de filha única, rodeada de afectos, os mais variados, numa família, pelo menos teoricamente estruturada, em que eu sempre constituí o seu centro, e em que em torno de mim gravitava o Mundo...aquele Mundo que me quiseram mostrar, aquele atapetado de relva verde e fofa, malmequeres amarelos, um sol aconchegante sempre por cima, ou uma lua cheia, cúmplice, ali ao meu lado, a dividir comigo segredos de pseudo-mulher...
E esse mundo foi um "aquário" claustrofóbico e enganador, onde só passavam filmes de "happy-ends" em que acreditei, e para os quais fui programada; um aquário habitado por uma vida que não era nada disso, onde eu não tinha asas, não tinha vontades, não tinha quereres, em nome de uma protecção, de um afecto, de um amor sufocante e desmedido, donde nunca me disseram que um dia eu tinha que sair e encontrar-me só, absolutamente só, como uma criança de cinco anos, largada no meio da multidão, numa grande cidade...

Não me disseram que os pedregulhos que eu pisaria, não tinham nada a ver com relva verde, que os escolhos iriam ferir-me os pés, as mágoas dilacerar-me o coração, a incapacidade de ser gente, tornar-me-ia isso mesmo, "não gente", um espécime que se mexe muito mal, no meio de parâmetros que nunca lhe foram ensinados, que se defende muito mal, por excesso ou por defeito, às surpresas do virar de cada esquina; alguém que paga até hoje uma factura excessiva, alguém que não gosta de si, cuja auto-estima não pratica nem estima, que se sente muitas e muitas vezes tremendamente infeliz, desinserida, carregando sempre o peso de um Mundo ignóbil...enfim, um verdadeiro caso patológico...

E assim, sem ter a fobia do abraço da Angelina, tenho ao contrário, um "saco roto de afecto", como alguém sabedor já me disse; tenho uma inépcia e uma ânsia de ser aceite, entendida; lido mal com o fracasso e a rejeição, sofro por a insegurança me dominar, e guardo bem dentro de mim, sem volta a dar, uma raiva e um ódio, porque considero que a vida jamais saldará a tal dívida, e que o máximo que levarei daqui, um dia, será um monte de erros, mágoas, tristezas...e ver-me-ei só, porque ninguém "curte", ou tem pachorra para estar perto de quem só carrega fardos excessivos nas costas, amargo na boca e desilusão na alma...

O facto é que não consigo reverter um milímetro na resultante de tantos vectores "marados", que me reduziram à pessoa que eu sou hoje, sentindo todos os dias a inglória de nem ao menos poder ser compreendida...

Moral desta história de "terror" : uma fulana "chatérrima", uma fulana que se acoita no isolamento, uma fulana  egoísta, que se cansa cada vez mais de si própria....enfim...um ET com carinha de gente,  que perdeu o caminho de volta para o lugar que certamente lhe pertence de direito : o espaço dos "homenzinhos verdes", olhos esbugalhados, dedinho de pisca-pisca....
Lembrei-me agora: conhecem alguma nave que faça o transbordo, só com bilhete de ida, entre a Terra e um lugar melhorzinho para mim???!!!....

Anamar

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"PARTIR É MORRER UM POUCO..."



Não gosto de fado.
Tirando uma ou outra excepção, nenhum fadista me conseguiu arregimentar para as suas hostes. De Amália a Mísia, Mafalda Arnault , Camané ou Mariza são intépretes que não valorizo, porque fundamentalmente o que não valorizo é a música...

De fado, já temos que chegue;  fado é tristemente uma das nossas imagens de marca, e aquele fatalismo a ele associado, lembra-me uma espécie de condenação que carregamos "sine die" tal como a esperança na chegada de D.Sebastião.
Bem aqui ao lado, dividindo uma fatia bem "piquinininha" de uma meseta que mal dá para um, quanto mais para dois, temos os "nuestros hermanos", que se recusam a ficar lânguida e perdidamente a olhar o mar, sabem lá o que é Fátima, fado... e futebol, agora bem se põem nos bicos dos pés à custa de um CR7, que afinal até foi parido por aqui...

Em adolescente, estudante, tempos de capa e batina, com todo o romantismo das tertúlias académicas coimbrãs, sempre narradas por quem as vivenciava, com o todo o mistério e aura adequados aos anos verdes, ingénuos e saudosos, aderi aos acordes das guitarras do Mondego, como se religiosamente, de sangue e alma,  estivesse lá, a partilhar o espírito, a tradição, a vida boémia do genuíno boémio estudante coimbrão.
E emocionava-me se assistia na noite escura, na escadaria da Sé Velha às serenatas, aos silêncios, à magia nostálgica, que era pertencer àquele todo único e irrepetível que passava pelos rostos apenas incendiados pela chama dos isqueiros que se acendiam.
A lua, num céu escuro, testemunhava a religiosidade daquele respeitoso silêncio, embuçado nas capas negras que uniam corações, esperanças e desígnios...

Cantava ao tempo em Lisboa, num recantinho de Alfama, um fadista  absolutamente particular e único, nos temas e interpretações. António dos Santos, nascido em 1913, tendo morrido em 94, gravou muito pouco, praticou aquilo que por direito se chama o "fado vadio", cantava e acompanhava-se, e fazia do seu espaço, mais um local de convívio, amizade e tertúlia, do que um local comercial.
A sua guitarra tinha uma sonoridade muito próxima da guitarra de Coimbra, e a dolência e nostalgia que imprimia a todas as interpretações, tornou-o único e ímpar através dos tempos...

Lembrei hoje António dos Santos, não sei bem porquê....
Lembrei um dos seus temas mais marcantes para mim...talvez porque o tenha sentido debaixo da pele e sobre ele tenha hoje reflectido ociosamente, com todo o vagar do Mundo, que alguns domingos nos concedem..."partir é morrer um pouco"...

Anamar

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"OS OLHOS QUE VÊEM AS COISAS..."


Sempre associei bancos de avenidas, alamedas, jardins...a uma palavra : "solidão"...
Olhando estas fotos, de facto elas passam-me isso : abandono, miséria, velhice, dias sem horas, intermináveis, sem objectivos...fim de linha...

Efectivamente na nossa cidade, é o que espelham, na grande generalidade, os bancos e os seus utentes.
Um lar ao ar livre...como alguém me dizia outro dia...

Hoje, no Escudeiro, no primeiro almoço, falando meio a brincar meio a sério com o sr. Alexandre, a propósito de um casal, bem para cima dos oitenta, que lá almoça todos os dias e que custa a ajustar entre si a ementa, o vinho, se é branco, se é tinto, se é fresco, se à temperatura normal...eu referia que o meu pai, que faleceu com noventa anos, tinha como gosto especial, passar longas tardadas nos sofás do Montepio Geral, então (não sei se ainda), situado na Rua do Ouro.
Chegava, acomodava-se confortavelmente, apreciava a circulação de quem ao banco se dirigia, dormitava, acordava...voltava a sentir-se muito integrado e confortável, como quem assiste a um grande espectáculo...

Nunca lhe perguntei, mas aquilo devia dar-lhe um imenso gozo...

E diz-me hoje o sr. Alexandre, quando eu lhe dizia sempre ter conotado os bancos, os mais variados, com "solidão"...sobretudo os dos jardins, no meio da sarabanda das folhas amarelecidas jogadas no chão pelo vento que sopra : "Já pensou o que sentirá um velhote, na tal rampa descendente da vida, sentado, sem pressas ou ânsias de ir para lado nenhum, com uma réstea de sol a inundar-lhe a má circulação das pernas, ao ver passar de cá para lá, uma mulher bonita, uma jovem atraente...uma criança saltitona, vendendo saúde??...
Talvez esteja a tirar um partido de tudo aquilo, que nós nem imaginamos!..."

Fiquei surpresa...nunca tinha pensado daquela forma...
Tinha a minha verdade, aquela que os meus olhos "pintam" ao olhar, e que de absoluto, de facto, nada tem...achei-me tremenda e estupidamente redutora nas análises que provavelmente faço, e pensei que de facto, serão sempre tantas as verdades, quantos os olhos que vêem as coisas...

Anamar

terça-feira, 20 de outubro de 2009

"TALVEZ LOUCURA !"





Um dia estúpido de cinzento indefinido, "nem carne nem peixe" como eu costumo dizer.
Dia pesado, cabeça pesada, coração pesado...em suma, estou numa fossa que só visto, numa neura de doer!...

Vesti-me de manga curta, acreditando que punha Verão pintado cá dentro.
Na rua está frio, está um Outono finalmente declarado, já de cara destapada.
Não tenho aulas hoje...isso seria suficiente para me dar uma alma nova. Não...Inventei de ir à escola a pretexto de...nada. Fui e vim, nem meia hora levei...moro perto do liceu.
Procuro não sei o quê...pareço um autómato no meio de todos e de ninguém. Queria ver, falar com gente...mas não estou com paciência para as pessoas.
Pareço o Variações..."só estou bem aonde não estou..."
Depressão...não gosto da palavra, banaliza o que a gente sente...é a doença dos que parece não terem mais que inventar...
Mas eu conheço-a de há muito, de sempre...deito-me com ela, levanto-me com ela...Insatisfeita, doentiamente insatisfeita, inquieta, muito cansada cá por dentro...não por fora...
Cansada de doer, de pesar mesmo...quilos nas costas...

"Falta do que fazer"...diz um amigo meu que não tem tempo para nada disto...tem que sobreviver...
Deve ter razão...seguramente tem razão, não tem tempo para pensar...bom para ele...
Eu??...Fazer o quê??!!...

Vou tomar café daqui a pouco com um amigo, conhecido, aluno de há anos, bastantes anos mesmo.
Na altura tinha-me sido diagnosticado um linfoma. Linfoma, de operação, de quimio, de radioterapia...linfoma de eu deitar contas aos dias e pensar como iria ocupar os que me coubessem ainda...
Ele soube sempre as palavras para me dizer, o sorriso para me dar, aquela força que certos seres têm, que a gente não sabe donde vem, mas jorra lá de dentro e transforma-se em luz.

É... ele teve sempre luz para me iluminar o caminho que parecia muito, muito escuro na altura.
Pois hoje, ele tem um cancro de pulmão, muito adiantado já, os dois pulmões afectados. E aquele homem saudável, super positivo, a ver na vida, que sempre lhe foi madrasta, um manancial de convicções positivas, para quem as não tinha e as não tem, continuando com o mesmo sorriso, as mesmas palavras, a mesma luz.

E eu sem saber o que dizer; totalmente inapta, incapaz, inerte, apagada de luz e de força, porque desacreditada em convicções e esperanças...

No sábado, outro amigo deu-me a mesma notícia em relação a si próprio...E eu, a única coisa que consegui fazer, foi deixar correr as lágrimas pela cara abaixo, de raiva, por injustiça, por ódio...
De resto, a mesma inabilidade...

O que se diz a alguém, em cima de quem, o Mundo acabou de ruir?
Onde se vende o dicionário das palavras certas para essas horas erradas??

Tenho de perguntar urgentemente à Catarina. Ela trabalha nos paleativos, vive com a vida ( a esfumar-se ) e a morte a achegar-se...todos os dias...para todas as pessoas, de todas as idades, fé e convicções.
O que será que ela diz...ou será que não diz...nada...porque eu, só sei fazer isso...dizer...nada!...

O dia com o cinzento das nuvens a adensar-se no céu, está perfeitamente angustiante.
Ontem eu dizia, ao deparar-me com gente que sacudia tapetes, que estendia roupa, que a passava a ferro junto às janelas, que deixava fugir para o exterior o cheiro da cebolada da janta...eu dizia : "Que raio de vida é isto? O que há para contar nestas vidinhas, mais cinzentas que o acastelado do céu neste momento?"...

Um domingo, seguido de uma segunda feira, porta aberta a mais uma semana, semana a demarcar o aproximar do fim de mais um mês, de mais um ano, tudo em papel químico...

Vontade de fugir deste betão que me sufoca, destas caras que enjoo, destes sítios que vomito!
Vontade de cortar com todos os grilhões e amarras, corrente ou algema...e ir por aí, não sei por onde, mas ter direito a conhecer todas as "divisões" deste sítio que habito, deste micro-planeta à dimensão do asteróide do Principezinho!...

Chamem-me infantil...imatura...tonta...parva...utópica...estou-me nas tintas!
Chamem-me "dondoca", inconsequente, a que não cresceu mentalmente ou a que não conseguiu crescer...a super-protegida, a oca ou a vazia...não quero saber!...

Eu devo ser, de facto, tudo isso, mas a verdade é que isto tudo é muito pequeno para ser chamado de VIDA, isto tudo é pouco demais para constituir a história da existência de alguém, isto é um nada perto de um tudo que eu ainda ambicionava viver.

Mas realmente, eu tenho vergonha ao descrever todas estas desconexas ideias e sentires; eu tenho vergonha por parecer achar-me mais que muitos, mais que todos, ao debitar esta sequência de enormidades, eu tenho pudor de me dar ares de privilegiada, a troco de nada, a "rainha da cocada preta" (como dizem os brasileiros), por parecer reconhecer-me direitos idiotas, ter sonhos incoerentes e vontades visionárias...

Podia ser...mas de facto, não é!
Acho mesmo que é loucura, ou tão só, uma incapacidade inultrapassável de me "instalar" por aqui....

Anamar

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

"QUE RAIVA QUE ME DÁ!!!!!!........"

Já ia dormir.
Vi o correio, abri, gravei, reencaminhei, excluí...sei lá! E pensei : "isto já deu o que tinha a dar...perdi a pica por hoje!"
Mas eis senão quando, recebo na mail-box um convite (é assim que se chama), para me registar no Facebook, de que estou careca de ouvir falar, sem sequer perceber muito bem do que se trata.
Lá segui as démarches indicadas pelo meu anfitrião...(tudo com sucesso ao que parece), e cai-me em cima um "chorrilho" de nomes, caras ou não, possíveis ou prováveis "meus amigos" numa cadeia social em árvore, obviamente.

"Vi" lá as minhas filhas, mais um monte de gente conhecida, tudo calado, outros a parabenizarem-me pela adesão ao esquema, mais uns links super esquisitos e complicados...e, uma vez fechada a "janela", com a minha singular esperteza e "inteligência" informática, já percebi que nem mais lá sei ir ter!....

Ele é mails, ele é messenger, ele é facebook, ele é hi5, ele é twitter.......e eu pergunto : "para onde nos leva a loucura de uma sociedade anónima, de faz de conta e desesperadamente só??

Por exemplo, pasmo como é que a minha filha, mãe de três crianças em escadinha de três anos e em que o mais velho tem oito apenas, pode estar, com mais um dia de trabalho louco (imagina-se), pela frente, entre o profissional, o doméstico (pouco...) e o materno (a duzentos por cento...), como é que pode, pergunto, estar a esta hora nesta palermada??!!

Andei por ali, meio barata tonta, encontrei, como disse, caras conhecidas, mas continuei sempre a sentir-me um ET de dedinho luminoso....e perdida, muito perdida, vazia, mas sobretudo muito só.
Ocorreu-me uma frase lida algures e devida não sei a quem e que de premonitória, já passou a absolutamente fiável : " A solidão humana aumentará  na proporção directa do avanço nas formas de comunicação."

Para mim, isto é absolutamente óbvio.
Se tão difícil é já comunicar-se "face to face", se tão complicado é o estabelecimento de laços reais de entendimento e afecto entre as pessoas que se olham, que se falam, que se tocam, que riem e choram juntas....como é que alguém pode pensar que através duma pantalha "opacizada" de uma máquina que só transmite o que nós inventamos lá pôr, se pode gerar amizade, afecto, cumplicidade, amparo, ajuda, até amor se busca nesta droga de "laços humanos" minados e "bichados"??!!

Como é que se pode sentir "gente", quem se basta com o "calor" que não passa de cá para lá ou de lá para cá...ou acredita piamente que são de carne e osso as "entidades plastificadas", etéreas e imaginadas por nossa conta e risco, com as caras, as mãos, os lábios que lhes inventamos à medida das nossas necessidades??!!

Como é que pode dormir feliz, quem, depois de desligar o PC, acredita que não brincou de faz de conta todo o tempo, acredita que o que disse e lhe disseram era exactamente assim, ao contrário de se sentir pobre e desesperadamente vazio, gélido e defraudado...com uma terrífica solidão a povoar-lhe um destino cada vez mais e mais desumano??!!...

Anamar

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

"A MONTANHA SEMPRE IRÁ PARIR UM RATO"





Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro...uma máxima para lá de gasta, que traduz as três realizações consentâneas com a nossa passagem pela Terra.

Acho que não fujo muito a este princípio.
Já fiz não um, mas três filhos, plantar uma árvore...digamos que talvez me tenha ficado por algum arbusto e muitas, muitas plantinhas ornamentais de que gosto...resta-me escrever um livro, portanto...

Interessante como o ser humano tem em si uma ânsia de perenidade, de perpetuação da sua pessoa, de "trabalho feito", de rasto deixado...
Não sei se é narcisismo, não sei se é uma forma encapotada de agarrar o tempo e prendê-lo na lâmpada do Aladino, não sei se é vaidade mesmo, simplesmente, como se dissesse às gerações vindouras: "estive cá, existi, fui gente"...já que o vento que passa não transportará nunca as suas palavras adiante.

Eu gosto de escrever, eu alimento-me da escrita. Vivo dela em comunhão muito, muito estreita. Não a faço por obrigação, não a faço porque ache ou pense que talvez a faça razoavelmente.
Não, faço-a quando as "sinetas" interiores , me tocam, quando as ideias me jorram e me inundam, do nada, quando já me sinto desconfortável se a não consigo fazer.
Por isso acho que a respiro, acho que ela me completa como pessoa, e que a sua falta me amputa na alma...

Escrever, para mim, é reflectir, é comunicar com os outros, também é comunicar só comigo mesma, é sonhar, é transpor o meu próprio ser, sair de mim, transfigurar-me, encarnar personagens...outros "eus" de que se calhar me travisto ainda  que inconscientemente.
Escrever é encher-me até transbordar, de uma plenitude e de uma felicidade que não descrevo, é soltar sem espartilhos quem na verdade sou, no avesso, na ourela...é por-me nua, completamente nua numa praia deserta, onde só o mar e o sol me escutassem...

Às vezes estou seca, nas ideias, nas emoções, na verborreia...
Aí, não coloco uma só letra no papel; noutras, o meu cérebro pulula, torna-se inquieto, fervilha...faz-me saltar da cama a desoras, só porque a boca não sustém mais palavras lá dentro. É como se uma espécie de transfiguração ocorresse e não fosse mais eu, mas alguém dentro de mim que me comanda, me sussurra, me apazigua...e aí, escrevo, escrevo...loucamente escrevo...

Comecei um ensaio autobiográfico, que acredito, dada a "riqueza" incomensurável da minha vida, poderia vir a ser qualquer coisa interessante, ou pelo menos, curiosa...
Escrevo aleatoriamente pequenos apontamentos ou crónicas, aqui por estas "veredas"...com interesse, sem interesse...subjectivo...

Estou bem perto de passar por alterações significativas na minha vida profissional. Penso frequentemente como será o "depois"...
Não tenho maneira de ser para "crochetar", ler livros infantis, ver muita televisão, ou propor-me actividades impostas, só porque não posso ficar parada...
Gosto de me sentir livre, sem demais satisfações a terceiros, gosto de fazer o que me dá na bolha, sem hora nem dia, mesmo que possam conotar-me como um pouco irreverente demais, radical, vivendo num limbo provavelmente menos recomendável para o estatuto, faixa etária, conveniências sociais...gosto de ser um pouco louca mesmo, desafiando desassombrada e sem demais sobressaltos, tudo o que ainda tiver à frente, se calhar excentricamente, desajustadamente...
Atingi um estatuto que me dá algum "conforto" de vida, um estatuto que me permite ser isto tudo e não ter que explicar por que o sou...(que o diga a minha filha mais velha, que arvorada em minha mãe, reclama da "trabalheira" que lhe vou dando...)

E é nessa base, que por vezes penso que talvez chegue aí a oportunidade de, na encruzilhada de vida, escolher o meu caminho alternativo, e esse passaria seguramente pela escrita.
Mas também é nessa base que penso igualmente, que apesar de constatar a parafrenália de autores, editores e obras a sairem todos os dias das "fornadas" sucessivas e parece às vezes, que sem qualquer critério, aquilo que eu escrevo tem o valor que eu lhe dou e não mais.
Não é relevante, é banal, não acrescenta nada, não é notório, não vale a pena...não terá visibilidade...não se justificaria no nosso, ou em qualquer outro cenário literário...

É quando entristeço e desacredito, me acho imatura e tonta, utópica, fora do real...sonhadora...

Sempre ouvi  à minha mãe dizer ao longo da vida, que para se cantar, era preciso saber-se cantar, "ter voz", nascer-se com ela, à séria.
Pois bem, hoje em dia todos cantam, todos são modelos, todos são estrelas, todos são comentadores, jornalistas, opinadores, muitos "parem"  textos com pompa e circunstância, crivados de erros ortográficos e calinadas que levantariam das tumbas, tantos e tantos...e nada é requisito para nada...

Só que a "gaita" de tudo isto, é que o eco das palavras da minha mãe sempre se me impõe, como a sensatez que de onde em onde me falta...e tudo isto bem espremido, bem espremido...faz-me achar sem requisitos, necessários ou suficientes para coisa nenhuma, faz-me achar um "bluff", faz-me achar que comigo, "a montanha  sempre irá parir um rato"...

Anamar

terça-feira, 13 de outubro de 2009

"ANDANDO"


O dia anoiteceu com um céu pegando fogo.

Desta minha incaracterística janela, sobre o não menos incaracterístico casario duma descaracterizada terra que só me faz sentir em Alcatraz (versão portuguesa), em que até a imaginação - que é do pouco que temos que não paga imposto e de que não temos que dar "pevas" de satisfação a ninguém - foi ficando pálida como quem já padece da gripe A.
E olhando o "fogo" que se abatia para lá do horizonte, entrei na crise existencial de conceptualizar o que serão fins de tarde como este, sem história,assunto ou preocupação.

Fui ontem ver um filme de um realizador japonês, que me fez reflectir sobre algumas realidades, para as quais, por aí andamos adormecidos.
A primeira questão que me fez arrebitar a orelha e me pôs o neurónio de serviço ao serviço mesmo, foi o nome aposto à película.
Chama-se o filme, "Andando"...

Já me tenho questionado muitas e muitas vezes e até comentado com terceiros, que o português, por hábito, determinismo ou incapacidade interiorizada, quando confrontado sobre como está ou se sente, sempre responde: "vai-se andando..."
Aquele "vai-se andando" é uma inevitabilidade assumida, um indiferentismo acomodado...uma desistência de vida, uma espécie de pena ou karma imutável, predestinado, tanto quanto o fado, Fátima ou saudade..."cargas" que só nós conhecemos bem e nos torna esta gente misógina, misantropa, triste e desgraçada...

Pois aquele filme narra exactamente o "ir andando" de uma família, disfuncional segundo a crítica, que em vinte e quatro horas conseguiu expor amores, sentimentos, segredos, que unem e desunem aquelas personagens.
Foi também por aí (que através do tocante, inteligente e nostálgico que Kore-Eda Hirokazu nos vai desvendando, na aparente normalidade e trivialidade do convívio de um único fim de semana), que me questionei como provavelmente todas as famílias são de facto disfuncionais, sem que sequer o percebam, o analisem e o confrontem...

E o que será então uma família "funcional"...se existir??
É aquela que vive e cumpre à regra o "socialmente" previsto que uma família cumpra?
É aquela que parametriza comportamentos, afectos, trilhos, valores?
E se sim, à luz de que valores esses parâmetros são aferidos e por quem são aferidos??

Serão valores éticos, morais, sociais, religiosos?!
As células familiares, ramos da célula-mãe (a "matrix" dessa família), devem sujeitar-se a ela, independentemente de faixas etárias, culturais, personalísticas, com convicções alicerçadas...ou terão direito às suas próprias escolhas, determinações, livre-arbítrio, opções, direito ao erro e ao acerto e não simplesmente serem absorvidas e diluídas no próprio clã??!!...

Bom filme, sem dúvida, pelo qual ainda perpassa a característica mágica e um pouco etérea, de bandas sonoras que são isso mesmo...etéreas, sempre tendo a capacidade para nos transportar a um mundo menos materializado e com valores díspares dos da velha e enferma civilização ocidental...

Anamar

sábado, 10 de outubro de 2009

"OS RAPAZES DE LIVERPOOL - preito a John Lennon"


Já muito se falou sobre os Beatles...já se disse quase tudo...arriscar-me-ia a dizer "tudo mesmo". Já não há lacuna deixada lá atrás, sobre a sua mítica vida e percurso artístico.

Hoje, 9 de Outubro, Lennon, a ser vivo, completaria sessenta e nove anos de idade. Só que teve estupidamente a vida ceifada aos cinquenta .

Os Beatles são indissociáveis da minha geração, são indissociáveis das festas, dos bailes de garagem, das confraternizações universitárias, da ousadia rebelde da afirmação duma juventude cuja "linguagem" ficou indelevelmente "colada" à deles...

Foram a "cara" de multidões que lutavam corajosamente contra as discriminações, as injustiças, a violência, a guerra...
Foram pedrada no charco de uma sociedade estagnada, hipócrita, acomodada.
Foram os cabelos compridos, aberrantes para falsos conservadores;  foram calças à boca de sino e flores nos cabelos, contra um mundo desumanizado, esquecido dos verdadeiros valores sociais de igualdade, justiça, equilíbrio, paz e amor.

Foram apelo à unificação de uma "aldeia global", em que muros, ódios, fronteiras de amor fossem derrubados e o Homem finalmente soubesse falar linguagens comuns, soubesse tratar como igual o seu semelhante, tivesse coragem para denunciar e enfrentar as arbitrariedades e  atrocidades cometidas em nome de interesses e "lobbies" particulares...

Foram indubitavelmente e são-no até hoje, um ícone intocado, um símbolo muito para lá do seu legado artístico. Foram o corolário da década de sessenta, anos de ouro, de conturbações saudáveis, por tudo porem em causa,  por tudo ser questionado, valorizado e repensado...

Foi o tempo de uma pura ingenuidade, de um crer frenético e auspicioso, de uma fé no Homem, apesar de tanto sofrimento que se experimentava...do sonho sonhado num Mundo livre e igualitário...foi o tempo em que John Lennon, de novo ele, nos dizia..."Imagine..."

Anamar

terça-feira, 6 de outubro de 2009

"FINALMENTE OUTONO"

 Clique no pássaro

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Amanheceu finalmente um dia a fazer jus à interioridade de um Outono que tem andado travestido de Verão envergonhado e incaracterístico, "nem carne nem peixe"...
Amanheceu um dia cinzento por igual, sem pinceladas no céu, sequer farrapos escuros ou claros...tudo uniformemente igual, sem cambiantes ou cores. Temperatura a baixar acentuadamente e pelo meio da tarde, uma chuva inicialmente hesitante, que viria a "desbundar" em chuva desbragadamente forte.

Enfim, alguém que leia tudo isto até aqui, já me nomeou seguramente para metereologista de serviço!

Acontece apenas, que quer eu queira quer não, sempre existe uma interrrelação profunda entre o que vai lá "fora" e o que me vai aqui "por dentro". E experimentei uma espécie de alegria doce quando o dia me amanheceu exactamente assim...
Costumo viver do sol, da sua luz e calor como "doppings" de existência. Costumo inconscientemente determinar os meus humores, ânimo, garra de vida...pelo "presente", que cada dia me oferece...como dizia alguém noutro dia, aniquilando a objectividade do real, pela subjectividade da pessoa que "sou" nesse dia, momento ou circunstância.
As coisas são, não o que são, mas as que eu vejo, sinto ou perscruto...
Acho que isto é fuga ou um certo grau de loucura motivada por defesa ou sobrevivência, creio.

Pois bem, mas o apelo transmitido pela Natureza ao recolhimento, à paz doce e melancólica dos castanhos aos vermelhos das folhas jogadas no chão, o grito "uterino" de introversão de tudo quanto é vivente, o súbito debandar das espécies, encasuladas de todas as formas possíveis, aquele apelo da alma, ao aconchego, ao ninho, ao "enroscanço"...deixou-me feliz, aconchegada, como que a iniciar uma hibernação, sinónimo de "mar flat", sinónimo de silêncios reconfortantes, sinónimo de uma modorra preguiçosa que me agradou...

A aragem perpassava e empurrava ao acaso a minha gaivota, planando sem rumo que a preocupasse...pelo gozo de planar sem rumo mesmo...
A praceta começou a "maquilhar-se" para os desfavores do tempo, com ausências forçadas por bancos molhados. Os pombos, sem grande espírito de sacrifício, debandaram oportunistamente para debaixo de beirais que os protegessem. Até a Rita, cá por casa, já procurou o conforto das mantinhas que lhe marcam locais de sestas intermináveis...porque a lã, começa a convidar agradavelmente...

Enfim, os castanhos, os ocres, os vermelhos, os amarelos, as cores quentes com que a Natureza procura aquecer-se e aquecer-nos para os tempos vindouros, começam a dar os primeiros retoques no grande quadro que ora se começa a desenhar...
Breve, breve, o cheiro e o fumo das castanhas nos assadores de esquinas de rua, lembrarão que mais um ano passou e que o Outono já instalado, não vai demorar a implacavelmente dar lugar a mais um Inverno, neste ciclo ou roda dentada que nos vai levando, levando...nem sabemos bem para onde!...

Anamar

sábado, 3 de outubro de 2009

"MULHER-LUA"






Chegou à janela e levou aquele "soco no estômago" bem seu conhecido.
Inevitável, sempre assim sentia, e o que sentia sempre a fazia esboçar um sorriso.
Uma espécie de cumplicidade trocada...não sabia bem explicar...

Eram sete da tarde de um Outono em crescendo, o céu preparava-se para se recolher em mais uma noite, e ela, a lua cheia, quase completamente cheia, só, imponente, isolada, sem que nenhuma pontilha de luz mais, bordasse o firmamento já escurecido, estava ali, provocadora, bem defronte de si.
Extasiava-se sempre, sempre dizia a meia voz para si mesma:"Que espectáculo!"...Sempre se sentia "esmagada"...

E depois havia aquela coisa, aquela corrente de magia que passava...
Ela e a lua cheia tinham de facto um diálogo endiabrado de mulheres no cio...
Tantas luas cheias já na sua vida, tantas quantos os amores, tantas quantas os homens que atravessaram a sua existência...

Isabel olhava para trás e pensava: "Que coisa louca, a sua vida hoje!"
Muitos acham que os seus percursos dariam bons filmes. Isabel estava segura que o seu daria um, absolutamente inigualável.

Uma mulher madura, ou melhor, uma mulher cuja idade convencionalmente se desajustaria do seu "figurino" de vida actual.
Isabel procura paginar-se e não repaginar-se, inventar-se e não reinventar-se, construir-se e não reconstruir-se, apenas porque só agora "desencantou", ou seja, só agora saíu de um deserto que a manteve cativa e dormente, e pela primeira vez tomou consciência do que era a vida real, as dificuldades reais, os afectos reais.

"Olha que loucura..." sempre pensa, quando confronta as rugas, os fios brancos que tenta encobrir, algum cansaço que a todo o custo desvaloriza, com a adolescente que sente dentro de si, qual borboleta solta espreguiçando as asas ao deixar a crisálida que a albergou e protegeu.
Isabel tem uma ânsia de compensar todo o desperdício de vida, todos os sonhos que não passaram disso mesmo, tudo o que quereria ter sido e feito e não foi e não fez...
Sente que veste um "fato" que não é o seu, sente que não pode mais haver peias, amarras ou convenções que continuem a espartilhá-la, porque essa "factura" já pagou há muito e não tem já tempo útil a perder.
Sente direito à vida, como direito ao oxigénio que lhe cabe respirar, sente direito a uma liberdade desenfreada, como cavalo a quem foi tirada a sela e largado no prado.
Sente direito a concretizar todos os sonhos, por mais sonhos que sejam, só porque já os sonhou e então não eram adequados ao seu estatuto.
Quer dar-se ao luxo de saltar do rochedo ainda que se quebre na chegada; quer dar-se o privilégio de viver no fio da navalha porque isso fá-la sentir viva e não morta, como em três quartos da sua existência; quer permitir-se sorver até à exaustão o bom e o mau, as certezas ou as dúvidas, o sofrimento ou a alegria, as expectativas e as desilusões, a paixão ou a morte...porque tudo ISTO é que é a VIDA.
Precisa correr riscos...o desafio de viver, é em si o maior risco que pode experimentar. Não vira a cara para o lado, não quer mais isso.
Que lhe interessa que a achem louca?!...

A lua feiticeira, sua aliada, que a inunda quando lhe oferece nus, o corpo e a alma, fá-la sentir cada centímetro da sua pele na efeverscência e na sensualidade do sangue a correr e a pulsar...

Isabel sente-se plena, transbordante, prenha de um vulcão interior de emoções e sentires, cuja lava alastra à sua volta e envolve os que ousam "tocá-lo"...
Nesses, normalmente deixa a sua marca...
É uma mulher furacão dos zero ou dos cem, não pega nada pela metade; agarra a vida que detém, pelos cornos, e jura que nunca mais a deixará fugir; pela primeira vez ama-se um pouco e valoriza-se também.
Descobriu que, como a lua cheia que volta pujante todos os meses, altiva no céu escuro, com o mesmo brilho misterioso extasiando aqueles que a sabem olhar, também ela, como uma Fénix renascida, se ergue e erguerá todos os dias, doa o que doer...
em todos aqueles que ainda lhe couberem por destino...

Anamar

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

"A VELHICE É MESMO LIXADA !..."



A D.Madalena estava em prantos.
Na praceta, no lugar do costume. Pela trela, o seu novo companheiro de desdita, um cachorro que adoptou depois de todas as vissicitudes que lhe aconteceram.

Há tempos que não vos falo da D.Madalena.
Ela continua a pé firme pelos bancos ociosos das tardes longas e vazias de solidão.
Primeiro partiu o marido, depois a mãe, depois o caniche que honrava o pedigree e se comportava cavalheirescamente, no meio de quantos perambulam pela praceta, ou a cruzam, apressados.

A D.Madalena esvaziou-se de afectos. Os olhinhos em pinta de "i" no fundo das lentes de garrafa, sempre me lembram aquela garça de Sta.Lucia, na beira da rebentação.
O cabelito escorrido, sem corte nem jeito e a vozinha esganiçada em falsete, anuncia à distância, a sua chegada.
Bamboleia-se pé cá, pé lá, e vem vindo, rumando aos bancos, enquanto o tempo não for agreste e a não escorrace da praceta.

Por lá estão os outros, iguais a ela, os seus pares de dias vazios; os outros adormecidos da vida, aqueles a quem a indiferença descolorida dos anos, opacizou já a existência...

Sempre me angustia vê-la.
O seu sorriso atoleimado estampado no rosto, é um esgar de indiferentismo ao mundo que a rodeia.

Hoje, a D.Madalena lavava-se em prantos, com o vira-lata reguila, de posturas de cachorro inconsequente e sem modos, a amarinhar pelas pernas de quem a abeirava.

Não percebi bem porquê, mas parece que a D.Madalena terá de se separar do seu "companheiro". Não sei se por razões de saúde, se por dificuldades económicas ou outras, percebi que equacionava ir pô-lo no "canil".
Por canil, entenda-se o canil municipal, e por canil municipal, entenda-se o futuro traçado na porta de entrada...
Alguém a consolava e lhe dizia que talvez ela devesse tentar arranjar-lhe um dono, alguém que o tratasse e o "estimasse"...

E as lágrimas escorriam-lhe incontidas, dos olhinhos agora em til, de franzidos e doídos.
A voz emudecida, um nó na garganta, acredito...adormentada no destino...
A D.Madalena sentia por perto já, outra perda anunciada na vida.
O cachorro inconsciente, felizmente não entendia os humanos.

Eu passei, só olhei, ouvi pouco...o suficiente...e pensei: a velhice é mesmo lixada!...

Anamar

terça-feira, 29 de setembro de 2009

"SUN IN MY MORNING"



E de repente aquela particular "curtição" que foi aquela época...
Aqueles anos dourados, de dourados mesmo, e de uma dourada despreocupação de vida. Uma rebeldia natural, porque espontânea, não agressiva, contestatária mas não ofensiva, porque o acreditar era mesmo na paz e no amor, ainda que não tivéssemos vivido Woodstock.

Os Bee Gees revestiam o nosso imaginário de leveza, doce e calma expectativa num futuro que só poderia ser bom.
As mesas da faculdade, de ociosas tardes de tertúlias sem hora, o cigarro saboreado, soltando nos anéis de fumo aquele "frisson" de uma liberdade à revelia de pais, de pressões, de ansiedades...eram elos tecidos e criados ali mesmo, numa certeza que iria ser p'ra toda a vida.

Éramos amigos sem cores, sem slogans, sem rótulos. Éramos amigas, na partilha das confidências ingénuas, de quem pensa que já alcançou um grande lugar no mundo.
Era uma linguagem tão nossa, tão cúmplice, que piamente juraríamos nunca quebrar as teias.
Era aquela exaltação de quem partilha um trilho atapetado de flores amarelas. Era um céu por cima das nossas cabeças, sem borrasca que o atormentasse; eram corações magnânimos, porque não sabíamos ser de outra forma...eram os anos sessenta, eu era jovem, crédula, se calhar tontamente crédula...

Hoje, o sol povoou a minha manhã.
Tenho dias assim. Por nada, de nada...
Dias em que as libélulas passarinham por entre os junquilhos ou os miosótis...por nada, de nada...

São dias em que ninguém me entende e devem achar que sou louca. Dias em que trauteio os Bee Gees, julgo que estou lá atrás, vou apanhando as braçadas de narcisos, só porque são amarelos e lembram o meu sol dos anos sessenta...mas ninguém fala mais a minha linguagem!...

Que coisa!
Onde estão todos? Onde ficaram?
Será que ainda estão no bar da faculdade a resolver aquele maldito integral que não encaixava nos nossos afectos?!
Será que o cinzeiro pejado de beatas, consumiu em si todos os nossos sonhos?!

A Teresa...o Bento...a Olívia...a Lina...o Américo...o Manel...
Todos pais, mães, avós, sozinhos alguns, soltos por aí...muitos!

Tantas cicatrizes a esmo...
Tantas feridas ainda escancaradas!
Os fios prateados traem os rostos que os espelhos já esqueceram de reflectir...
Afinal, os cordelinhos eram ténues e frágeis. Apenas povoavam os corações que eram tontos...como o meu...

Saudade...saudade adocicada, que dói devagarinho, existe mesmo... acabei de descobrir...

Anamar

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

"ESTA ESTRANHA FORMA DE VIDA - PARTE II"

Enormérrima ausência esta.
Ausência de disponibilidade para vir ao PC, mais ainda para tomar pulso a flashes emocionais que me atravessaram mas que ficaram sem oportunidade de serem passados à escrita.

Uma sensação de amputação real, uma falta sentida bem aqui dentro e transferida de dia para dia: "amanhã vou ter de escrever"...
E o amanhã foi ficando distante, distante e quase já nem sei se sei por no papel o que quer que seja, com fiabilidade, com objectividade, com interesse.
Problemas de saúde, obras em casa, início de ano escolar...condimentos mais que suficientes para este adiar quase "sine die" daquilo que mais gosto de fazer: escrever.

Na era da comunicação, mais ainda na era da comunicação virtual, quase em detrimento da real, pessoal, "face to face"...Na era das redes sociais de conhecimentos, tipo "encher chouriços", tipo à pressão, tipo disparar em todas as direcções, em que o isolamento do ser humano o impele a ir a todas, na tentativa de que entre "tantas" e tão variadas, quiçá haja alguma oportunidade aproveitável...Na era dos "facebooks", dos "Twitter", dos hi5, já não falando do messenger, bastante demodé, sobretudo se se tem à mão uma webcam e uns altifalantes...a essência do ser humano deixou de ser prioritária, a verdade ou a meia verdade contada a gosto nas entrelinhas, os delírios ou desejos mais ou menos inconfessáveis ou loucos, veiculados intencionalmente nos perfis, nos diálogos, ou simplesmente o que se sugere mas não se diz, parece não ter qualquer importância mais.
Dá ideia que o ser humano se basta e engole no faz de conta, no imediatismo inconsequente, no "o que é que isso importa?!..."
Francamente não consigo achar nada disto positivo, construtivo, gratificante. Acho sim (e a experiência tem-mo confirmado), que tudo não passa de uma fonte de artificialismo, decepção, surpresas, situações forjadas e forçadas, mágoas até, pela fraude a que a maioria destes caminhos ínvios nos conduzem.

Bom, mas não vim falar disso, ou melhor, não foi a ausência dessa comunicação que me deixou órfã e "desasada", até porque, como afirmei já sobejamente, escrevo prioritariamente para mim e para ninguém...
Como diria o Julius de Sta. Lucia - "I leave with myself" ou seja, no meu caso, "I write for myself"...

Entretanto começou mais um ano lectivo, e é interessante auscultar-me como o tenho feito por cada dia que tem passado.
Na perspectiva que não haverá para mim profissionalmente um novo Setembro, um novo reinício, uma nova vivência e desfrute desta "adrenalina" que sempre acompanha um recomeço, as sensações são como que "sorvidas", como se faz em relação ao último gole de uma bebida doce de que gostámos.
Há em mim uma leveza triste a invadir-me, como se a guilhotina estivesse a descer lentamente, e eu quisesse tirar a cabeça, mas já o não pudesse fazer.

Não sei se consigo explicar o que sinto: adoro rever-me na sala de aula, com alunos à frente, ainda sôfregos de saber, ainda com olhos esperançosos e confiantes, dos vinte aos cinquenta e tal anos, a dar-me (como sempre soube e pude fazer ao longo da minha vida), a fazer-lhes festas no coração sem eles saberem, quando lhes explico três ou quatro vezes as mesmas coisas, com toda a bonomia e até amor, a sentir o seu voto de confiança, de apreço, de compreensão e também de afecto para comigo, numa empatia estabelecida por um barco em que todos velejamos e de que apenas sou a timoneira...

Sinto como é injusto que me tenham querido retirar o sonho continuado, de poder fazer um resto de carreira em paz, assim, a entregar o meu melhor, sem nada em troca que não seja a realização pessoal e a felicidade interior de os ver singrar, realizarem os seus desígnios, cumprirem as suas esperanças e metas.
Sinto uma revolta e até um ódio, pelo que me fizeram, fechando-me as portas da alma e do coração, fazendo com que a escola onde sempre vivi, se tornasse um mundo fóbico, triste, irreconhecível, um mundo que me colocou nos ombros um cansaço, uma desmotivação, uma tristeza...

E eu sei que não vou ser feliz lá fora, porque isto é o que eu sei fazer, porque isto é o que eu gosto de fazer, porque deixar os "meus meninos" (dos que o são, aos pais de família quase da minha idade), é desumano, é violento, é arbitrário.

Enfim, como penso que entrei de facto, numa espiral sem volta, num caminho sem retorno, resta-me fechar os olhos e ver-me há trinta e tal anos nesta mesma escola, dentro destas mesmas salas, com a vontade e a fé de verdes anos esperançosos, com o crer e a convicção inabaláveis, de que tinha entre as mãos destinos cuja missão seria encaminhar, com o acreditar de que deveria fazer de tudo para nunca defraudar aqueles seres em formação, em início de jornada...

Restar-me-à o quê mais, agora??
Talvez uma consciência bem tranquila, na certeza de ter valido a pena, ou a loucura inconsciente, que apesar dos pesares me leva a crer, que se voltasse lá atrás, faria por certo, tudo de novo!!

Anamar