terça-feira, 19 de novembro de 2013

" DEIXANDO VOAR O PENSAMENTO ... "



O tempo virou de vez.  O sol  faz negaças  no meio de nuvens persistentes, e não consegue ser convincente, até porque a temperatura baixou drasticamente.  Afinal, já neva na Estrela ...

As castanhas já se assam nas esquinas das ruas, e o seu calorzinho, nos cartuchos de jornal, não só nos aquece as mãos, como também nos aquece a alma, já que aqui na cidade, não temos o privilégio de sentir o aconchegante cheirinho das lareiras acesas, que os meios rurais nos oferecem, e que tão gratificante é ao coração.

Adoro uma lareira.
Adoro passar tempos perdidos, olhando apenas o bruxulear das chamas, cutucando as brasas, até que a última se extinga.
E não deixa de ser engraçado, que essa seja a recordação mais grata, que tenho da Beira, de há muitos anos atrás, na casa que então era de família.

O frio gélido desta época do ano, beirando o Natal, cá fora, o calor confortante do lume, aceso desde manhã, e que ardia até toda a gente se recolher, uma sala de pedra e madeira, na meia obscuridade de um só candeeiro de mesa, aceso, e um silêncio e um recolhimento tão intimistas, tão doces, tão pacificadores !...
E ali ficava eu ... Eu e eu, que foi a pessoa com quem sempre tive encontro marcado, já então ...

E punha mais um tronco, e revirava os que já ardiam, e por fim, espalhava a cinza, para que as últimas brasas acesas, dessem o derradeiro calor da noite.
Às vezes só isso.  Nada mais ...
Às vezes não lia, não via televisão, não ouvia música, que não a do crepitar da lenha na fogueira ... às vezes, muitas vezes, apenas pensava, pensava muito, sentindo claramente uma incompletude de vida, de sonhos cortados  a  meio, um  vazio de  alma, uma  ausência  de  direcção, de  rumo, como  barco  de  leme quebrado, e  velas  sem  vento ...

Não sei se ali delineei conscientemente, o que viria a ser a minha vida anos mais tarde.
Não sei se ali percebi, que um dia diria adeus àquela sala de madeira e pedra, de móveis antigos, de louça de outras gerações, de relógio de pé alto e pêndulo, que nunca deu horas, de peças escolhidas por mim, uma a uma, ao longo dos tempos.
Não sei sequer se sonhei todo o percurso que viria a ser a minha vida, as curvas e contracurvas, os caminhos de saídas estreitas e difíceis de encontrar, os becos, as veredas que pareciam não ter horizonte lá ao fundo, ou também os momentos de paz junto ao mar, de  descanso  junto  de uma fonte, de sombra sob uma copa frondosa.
Não sonhei ... seguramente.  Não poderia !...

Aquela sala era o coração daquela casa, e aquela lareira, o pulsar desse coração.
Era uma réplica muito longínqua, da que existira em casa dos meus avós, na minha meninice.
Essa, então, como todas as lareiras a sério no Alentejo, era no chão, mesmo, na tijoleira de barro cozido, e ocupava o fundo da enorme cozinha, de parede a parede.
Lembro-me que os madeiros com que o meu avô a acendia, vinham a rebolar pelo quintal fora, porque ninguém podia com eles.

A casa de pedra e madeira já não é minha, mas lá, ficou enterrado para sempre, um pedaço do meu coração.
Ele está em cada peça sobre os móveis, em cada braçada de flores do campo, secas, nos jarros de loiça gatados, em cada fotografia das minhas filhas, quando crianças, nas molduras espalhadas ... em cada silêncio, em cada sombra, ou até em cada rajada do vento cá fora, soprando desabrido, do lado do rio.

Nada  disso  me  pode ser sonegado, mesmo  que  nada  já exista como eu  deixei  naquele  dia, em  que não  sabia  sequer,  que  estava  a deixar ...
Porque tudo isso eu amei e tactuei na minha mente, porque tudo isso eu sonhei, e o sonho é propriedade do Homem.  Nele, ninguém interfere, ele, ninguém apaga, ninguém destrói ... porque é seu, só seu !!!...

Suponho que não gostaria de lá voltar, porque ninguém, afinal, faz voltar o tempo !
Há filmes que vemos uma só vez na vida, e que vamos recordar sempre, longinquamente, como algo doce que nos marcou, de que não esqueceremos sequer, pormenores.
Apenas, são imagens a esbaterem-se, a fugirem-nos da mente, à medida que a Vida flui, à medida que o tempo vai passando a borracha sobre elas, e depois fica assim ... uma sala obscurecida, uma luz difusa, uma lareira a extinguir-se, e um silêncio quente a embalar a última cena ...

Anamar



 A vida é um incêndio, nela dançamos salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam, cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida, na própria luz consumida...
Mario Quintana

sábado, 16 de novembro de 2013

" SAUDADE "



Ando a escrever pouco, ando a sonhar pouco, ando a viver pouco demais ... ando a sentir a saudade que me atormenta ...

Saudade do sonho, saudade do amor, saudade até da dor que o amor deixa cá dentro ...

Ando a sorrir pouco, a acreditar  pouco, a não olhar o sol a pôr-se, com aquela saudade doce que ele nos traz, de outros pôres-de-sol ...

Não contemplo mais a lua, lugar de encontro de todos os olhos, de todos os amantes do Mundo ...

Não danço mais na chuva, a aspergir-me com a sua carícia ... Não escuto mais o mar, que levou para longe a minha canção ...

O vento que passa, não me acaricia como outrora ... Também ele não me reconhece mais ...

Deixei de saber cheirar o aroma das flores, o cheiro da terra molhada, depois de uma chuva abençoada ...

Não me enterneço mais, com os caracóis louros de uma cabeça de criança ...

... perdi-me de mim, e sofro já com a  saudade de não me encontrar por aí, pelas esquinas da Vida !...



Deixo-vos um dos "magos" da sensibilidade e da escrita ... o sempre imortal  Pablo Neruda.

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,

é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
 
(Pablo Neruda)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

" ONTEM FIZ ANOS ... "



Ontem  fiz  anos, que  é  uma  coisa  que eu já  não  fazia  p'ra  lá  de  tempo ...
Mas ontem rendi-me, que remédio !  E pensei que tenho que os apagar, não no Bilhete de Identidade, mas aqui dentro dos miolos, e ponto final !

Saí para a rua.
Estava um sol espectacular, envolventemente quente.  E fui-o aproveitando, enquanto caminhava.
Passei por debaixo de um jacarandá ( onde passo todos os dias ), neste momento sem floração, mas com uma copa farfalhuda, de um verde intenso e luminoso.
Até  fiz  uma  pausa  para olhar a cabeleira  frondosa, por cima de mim, como se fosse  a  primeira  vez  que o via ...
Que raio tinha o jacarandá ontem ?!...
E pensei, que apesar dos pesares, sempre é melhor estar cá deste lado, onde o sol me aquece e um jacarandá me deslumbra ...

Depois, tinha a minha mãe à minha espera para o almoço.  Com quase 93 anos, havia-se levantado às quatro da manhã, para, no seu ritmo, conseguir ter prontos a horas, uma assadeira de carne com batatinhas no forno, salada, fruta, e uma taça de farófias, que ela sabe ser um dos meus doces preferidos.
Mesa posta, com toalha bordada, e uma alegria que a transcendia.
Pedira-me muito, na véspera, que viesse almoçar com ela ( a velha história de poder ser a última vez ... ) ;  a neta mais velha, em quarenta minutos que tinha para almoço conseguiu por-se cá, a mais nova, que trabalhava até mais tarde, veio depois, para um cafezinho que fomos tomar as três.
Enfim, tive ali, junto de mim, os meus esteios na vida, neste momento : a minha mãe e as minhas filhas ... os afectos reais mais próximos, que me sobram ... e senti-me sortuda por isso, muito sortuda e agradecida à Vida, sem dúvida ...

O dia correu no ritmo de sempre, apenas perturbado por alguns telefonemas ou mensagens de amigos, que nunca nos esquecem, mesmo de longe, e nos aquecem o coração.

Chegou a noite e deitei-me cedo. Li um pouco de um dos livros que me haviam oferecido, e apaguei a luz, porque o sono me pesava nas pálpebras.
Lá pelas 2 h da manhã, fui brindada com uma insónia de horas, daquelas que costumam deixar-nos de cabelos em pé, e uma irritação que nos faz acordar insuportáveis, na manhã seguinte.
Espantosamente, contudo, não me incomodei com as horas que passei, de olho fechado mas de alma arregalada, na escuridão do quarto, sem ousar mexer-me, porque o Chico e o Jonas dormiam a sono solto, e eu não queria perturbá-los.
Nem sequer "encroquetei" muito na cama, porque me sentia cómoda, repousada, e aninhada, e deixei fluir simplesmente o pensamento ...

Foi então a vez de rever a minha vida, como se desfolhasse um livro.
Foi como se, numa sala, assistisse a uma película onde eu era a protagonista, e onde se narrava tudo, tudinho ...
O "tudo", que obviamente só eu conheço.
Assisti a cada período, a cada fase, a cada capítulo ... E as folhas iam sendo viradas ...

Percebi que em cada circustância, tudo foi assim, porque tinha que o ser.
Percebi que agi desta ou daquela forma, porque esse era o sentido em que acreditei, nesse instante.
Compreendi sem revolta ou raiva, que me cruzei com muita, muita gente que ficou para trás, e me deixou seguir, a quem agradeço em silêncio e sem que o suspeitem, porque ajudaram a dar significância, razão e cor, à minha história ...
Revi todos os que perdi, e por que os perdi.
Não me penalizei ou martirizei, por ter acontecido, e ter tido apenas o seu tempo.  Isso significa que eu não sabia fazer de outra forma, naquele momento ...
Percebi claramente o que procurava de cada vez, o que alcancei, e o que não.
Olhei de frente, a minha verdade em cada hora da vida, e corajosamente encarei o bom, o menos bom, e o mau ...

E senti-me em paz, felizmente.  Felizmente senti-me sem arrependimentos ou dúvidas, o que me tranquilizou e foi muito gratificante.
Desfilaram-me rostos, acontecimentos, frases largadas, palavras ditas, sonhos sonhados, a povoarem as nossas existências.  Risos, choros, mágoas, muitas mágoas, mas alegrias ... muitas alegrias também ...

Penso que fiz as pazes comigo mesma, pois assumi e percebi que a saudade e a nostalgia que sinto de pessoas, coisas ... de vida, que ficou para trás, é normal, faz parte de um processo de crescimento, e só pode fazer-me seguir em frente, liberta finalmente, para viver o que ainda me faltar e estiver destinado !...

O coração não se acelerou ... Batia no ritmo compassado de sempre, porque o que eu vivia naqueles momentos, era sobretudo uma quietude, uma satisfação interior, e a paz que habita os espíritos que têm a exacta percepção de que, por cada momento que se viveu, terão feito tudo o que era possível, e só o que lhes era devido e estava ao seu acance ...
E como diz um amigo meu, quando se vivencia essa sensação, e se afere esse balanço, o único sentimento que nos pode assaltar, é o de plenitude e tranquilidade ...
E então sim, podemos repousar a cabeça na almofada, sem sobressaltos ou angústias ... porque o merecemos !

Foi o que eu fiz, e dormi até que a madrugada já se acendia pelo quarto adentro, e eu já tinha completado mais um ano de vida !!!...

Anamar

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

" A MATEMÁTICA DA VIDA "



A alegria a dois, multiplica-se. A tristeza a dois, divide-se ...

Há frases e pensamentos que se esgotam em si mesmos.  Este é um deles. Não há nada que se acrescente, ou que se retire, a esta matemática da Vida !
É desnecessário, está tudo dito, todos sabemos que é assim !

O Homem é um animal gregário, e ninguém pode ser feliz sozinho.
As alegrias só são plenas se forem partilhadas com cumplicidade, e as tristezas só se nos tornam mais leves, se houver uns braços que nos aconcheguem, ao suportá-las .
Até os seres mais solitários, aqueles que endureceram, muitas vezes mercê dos atropelos da vida, se rendem, ultrapassadas que sejam as "firewalls" dos afectos, como diz um amigo meu.
E quantas vezes redescobrem capacidades afectivas em que não acreditavam, aptidão para o reviver de emoções, que por esquecidas já, julgavam inexistentes, e de que se julgavam imunizados.

 E a vida vai passando, e vamo-nos degladiando sem justificação frequentemente, vamo-nos desgastando por "nadas" que se tornam "tudos" determinantes e decisivos ... vamo-nos cansando, amargurando, esquecendo o sorriso, esquecendo o quão reconfortante é ao coração, um simples silêncio frente ao mar, enquanto o sol desce lá longe e nos abraça ... vamos esquecendo o sabor dos aromas da serra, o cheiro da lareira acesa, da terra molhada, ou a lenga-lenga do mar açoitando os rochedos ...
Vamos mesmo esquecendo, como hoje, S.Martinho, meia dúzia de castanhas e um copo de água-pé, poderiam constituir um magusto dos deuses, se o partilhássemos, se o saboreássemos juntos ...

Em suma ... vamos perdendo a vida, vamo-la deixando escoar por entre os dedos, vamos abafando as ilusões, até que um dia já não temos idade ou saúde para as construir, e até os sonhos há muito nos terão deixado ...
Vamos desperdiçando os tempos, e nunca  percebemos que " o mal de quem apaga as estrelas, é não lembrar de que não é com candeias que se ilumina a Vida " !!!...

Anamar

sábado, 9 de novembro de 2013

" A LARISSA "



Fui acordada às oito da manhã, neste sábado ensolarado, com os estendais da roupa da vizinha de baixo, emperrados a correr.
Olhei o relógio, e concluí que para sábado, isto era uma verdadeira madrugada, e constatei portanto também, que era sábado, porque me perco no tempo.
Perguntei-me que raio de felicidade terá alguém ( casal aposentado, até de filhos ), estendendo roupa às oito da manhã, num sábado ?!...

Não fui fadada p'ra prendas domésticas.  Aliás, para mim, são um verdadeiro tormento.
A minha mãe poupou-me de as fazer, porque afinal, "eu tinha que estudar" ...
Casei, e como trabalhava e economicamente era comportável, sempre tive empregada.  A chamada mulher a dias, como se lembram.
Passaram várias pela minha casa, porque também sabem por certo, que elas só são boas profissionais, nos primeiros tempos.
Depois, terreno conquistado, confiança ganha, começam a fazer-se de "mongas", a enredar para o tempo passar rápido, a passar ao lado, etc, etc ... todos esses artifícios, fingindo que limpam mas não limpam, partem coisas e não dizem, e por aí fora ...
Neste momento, porque as condições económicas não suportam mais, e porque estou só, tenho a Larissa, que já está comigo para mais de doze anos.

A Larissa é uma ucraniana, que com marido e filho se sediou em Portugal há já largos anos, onde reorganizou a sua vida de emigrante, muito sofrida, por sinal.
A Larissa é um doce de pessoa.  Licenciada em Química, o marido  Engenheiro Civil, trabalham respectiamente como empregada doméstica e na construção, em lugares  subalternos, obviamente.
O filho está a terminar uma licenciatura no Instituto Superior Técnico, e é um aluno brilhante e muito esforçado.

Humilde, dedicada, honestíssima, cumpridora, disponível, é uma pessoa de uma dedicação e de uma educação extremas.
Como foi criada sem mãe, por uma avó adoptiva, revê na minha mãe, a avó que já a deixou há muito, e que ela tratou até que partiu, e tem uma doçura particular e um desvelo enternecedores, por ela.
Neste momento, a Larissa trabalha também em casa da minha filha mais velha, e está totalmente assimilada pela nossa família.

Ela já não é a empregada doméstica, como tantas que por aqui passaram, mas é uma amiga, uma familiar minha.
Comigo conversa todos os problemas que a atormentam, no seu português atravessado, porque continua a sentir-se muito sozinha, num país estranho, longe da terra onde cresceu, e onde deixou o filho mais velho.
Comigo chora muitas vezes, comigo partilha as tradições e os costumes  do seu país, da terra onde viveu, da religião  ortodoxa em que foi criada.
A mim conta todo o seu passado difícil, na Ucrânia ... e fala do pai  muito idoso e doente, a quem não pode dar assistência ...

Claro que hoje, a Larissa, à semelhança de todas, deixou de ser a empregada de excelência que era, eu deixei de lhe chamar a atenção para omissões ou imperfeições no seu trabalho, porque a nossa relação atingiu um estatuto completamente diferente.
Hoje deixei de ter uma tão "boa" empregada, uma tão "boa" profissional, mas ganhei uma boa amiga, uma confidente muitas vezes, alguém totalmente integrado na minha família, alguém com quem posso contar em qualquer circunstância, porque sei que não me faltará ...
... e isso não se compra, não se paga, não tem preço ... isso, é um privilégio na Vida !!!

Anamar

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

" O FIM DA LINHA "



11,27 h da manhã ... quase da tarde, afinal.
Uma penumbra de madrugada, no quarto, com as persianas descidas, por forma a coar a luz do dia, que na realidade estava escuro, vi depois.
Aninhei o corpo despido, na carícia da roupa da cama, como se tivesse uma noite inteira ainda, para continuar a dormir, e senti-me violentada pelos números luminosos do relógio da cabeceira, que me arrancavam a um ninho protector, do qual não queria sair.

Ando a levantar-me cada vez mais tarde, como se procurasse adiar mais e mais, o confronto com o dia, o encarar da vida.
Ando a tornar cada vez mais curto o dia, e cada vez mais longa a noite, ou seja, ando a reduzir a existência a metade, num desapego e num desinteresse assustadores.
Aliás, neste momento, o maior conforto e gratificação da minha vivência diária, uma espécie de presente que me concedo, experimento-os  quando a casa ja se aquietou, o computador já se desligou, os gatos já dormem, e já deitada, frente à televisão, assisto, de mente vazia, ao desfilar de imagens em programas da National Geographic, que me tranquilizam, fazem viajar e sonhar.
Transmitem-me libertação e paz, e alienam-me por tempos, da realidade tão insatisfatória, cansativa, desinteressante e castigadora, que vivemos nestes tempos de purgatório,  que é a nossa vida actualmente.
Porque o dia que começa na manhã seguinte, é de facto um castigo, uma espécie de pena que sou obrigada a encarar e a cumprir, sem interesse, objectivo ou meta.

Quem me conhece de perto, dirá que não tenho razões objectivas para me sentir neste martírio ...
Ainda não tenho !...
Isto, se pensarmos no contexto em que mergulhamos, e que neste momento, o cidadão comum vivencia, de uma forma geral.
Não referindo já, as classes mais desfavorecidas,  em  que  os  dramas  humanos  grassam  e  se  multiplicam  de  dia  para  dia, sem  fim  à  vista ...

É suposto neste momento, avaliar-se quem tem perfil de resistente e quem não.
É suposto e imperioso, as pessoas serem fortes, lutadoras, corajosas e heróicas.
É suposto estar a criar-se uma élite de seres que, ou se insensibilizam, endurecem, indiferentizam e criam carapaças de defesa, e sabe-se lá como, vão em frente, sobrevivem ... ou sucumbem, desistem, atolam-se e são trucidados !

Está a cumprir-se uma espécie de triagem ou depuração, na raça humana.
Como Hitler tentou fazer, na selecção dos seres superiores, no apuramento da raça, dos que "mereciam" viver e dos que não, assim neste momento, a sociedade atravessa um processo semelhante.
A realidade social, em fim de linha, actualmete está a deixar pelo caminho aqueles que ficam na berma da estrada e já não conseguem caminhar, os mais débeis psicologicamente, os mais idealistas, utópicos  e sonhadores ;  os que têm menos armas ou defesas :  os velhos, os socialmente excluídos  ( que cada dia são mais ),  os  que  não  têm  robustez  psicológica ... os  tais  que  não  são  heróis, de  todo !...

Eu sei que "dos fracos não reza a História".  Mas também sei que a resistência estrutural do Homem, em termos psicoógicos, é algo que o transcende.
Não se compra, não se cria, não é exercitável, independe da racionalidade e da vontade de cada um.
E também sei que os super-heróis só existem na ficção, e que o mais difícil mesmo, é acreditar, por cada manhã em que acordamos, que um dia de chuva pode afinal ser um dia de sol ...

E por tudo isso, ando a acordar cada vez mais tarde !!!...

Anamar

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

" ELE HÁ COISAS !... "



O sol resolveu aparecer.  Nunca o  S.Martinho nos falta ... e estamos quase lá.

Acordei, relancei os ohos pelo quarto.  Prateleiras plenas de livros, gavetas plenas de coisas.  As que prestam e as que já não.  As que ainda se justificam, e as que nem por isso.

Lembrei a arrecadação, transformada em depósito de antiguidades.  Antiguidades no mau sentido.
Desde uma arca cheia de papéis e cadernos, com os primeiros rabiscos das minhas filhas, os primeiros desenhos nos colégios, em classes infantis remotas, a livros escolares ultrapassados, a testes realizados  por elas  e  creio  mesmo  que  ainda  por  mim,  quando  aluna ( !!! ) ... tudo lá está com uma intenção meritória, em que acreditei piamente :  passar calmas tardes, a rever registo por registo, redacção por redacção, desenho por desenho ... ( dos tempos em que as pessoas eram maiores que as casas e as árvores, os sóis tinham olhos e boca, e junto às figuras se escrevia "mamã" e "papá", como legenda do desenhado ... )

As gaiolas ferrugentas, dos canários e periquitos, da época em que pretendi transformar uma varanda, em viveiro romântico de passarinhos, de todas as cores imaginárias, para que com os trinados e chilreios, me fizessem sonhar que o meu sétimo andar era um qualquer recanto de uma mata frondosa, onde talvez eu gostasse de viver ...  E para que as minhas filhas assistissem à nidificação, acasalamento e nascimento de mais canários e mais periquitos, e aprendessem a amar e a respeitar a Natureza, deslumbrando-se com os seus ciclos ... também lá estão ... sem préstimo !

A mala de porão, cheia até ao topo, de bonecos e peluches, que lhes atravessaram a infância, as loicinhas e os pin-pons, os legos, os alfabetos e os cubos com letras e números, motivadores das primeiras palavras e contas, que eu jurara abrir um dia, para os netos que viessem ...
E esses netos, já têm todos, de seis anos para cima, e o recheio da mala continua adormecido e inviolado ...

Também lá estão as colecções de borrachinhas, com as mais variadas e engraçadas formas, as cassetes de música dos doze, treze anos, cujos intérpretes já se perderam no tempo, não falando dos vinis de trinta e três rotações, com as canções de roda, da escolinha, que não voltaram a animar o gira-discos, também ele já ultrapassado ...

Os VHS de viagens, registando momentos felizes,  eventos familiares, do tempo em que ainda havia família no sentido estrito do termo, testemunhos de risos e gargalhadas, mas também de "àpartes", que hoje nos fazem sorrir ...
Rostos que ainda existem, bem diferentes, bem marcados pela vida, bem menos iluminados pela esperança ... e rostos que já partiram, já nos deixaram, e que só estão num lugarzinho dentro do peito de cada um de nós ... também repousam por aqui, através dos anos ...

Enfim, não pararia de lembrar, de revisionar todo o espólio insano acumulado, guardado religiosamente, por isto e por aquilo, de que não conseguimos separar-nos afectivamente, e cujo valor se prende quase só afinal, a um desejo louco e inconsciente, de não soltarmos o passado, de podermos lá regressar a qualquer preço, de fazermos rodar o tempo e rodarmos com ele ...
Prende-se quase só, ao saudosismo efémero da juventude que ficou ... não nos iludamos !!!...

Resolvi  levantar-me.

Arrepiei-me ao pensar, que quando um dia eu partir também, alguém terá mesmo de desprender tudo isto, soltar definitivamente todo este repositório de memórias.
Mas  talvez  seja  então mais fácil, porque já serão memórias mais distantes, com menor significância ou valor ...

Ele há coisas !...
Que raio de forma enviesada de começar o dia !!!...


Anamar

sábado, 19 de outubro de 2013

" RED OCTOBER "



Tenho um "parti pris" com as boninas.
Decidi para mim,  que as boninas são uma espécie de miosótis, tipo campainhas dependuradas em fileira pelos galhos.
Depois,  disseram-me  que  boninas  eram  uma  criação  poética,  simplesmente .
Garantiram-me  mais  tarde, que  no  pórtico  axial  dos  Jerónimos, existem  por  lá  umas  quantas, "plantadas"  no  calcário  de  lióz.
E a Wikipédia, afiança que elas são uma sorte de margaridas ...
Eu  sabia  que  era  tema  tão  polémico,  que  de  facto, eu  só  podia  mesmo  ter  um  "parti pris" em relação a elas ...

Entretanto, a tarde apagou a luz mais cedo, graças ao cinzento plúmbeo,  uniforme e respeitável que cobriu tudo, impedindo-nos de sequer termos horizonte.
Logo hoje, que é noite de lua cheia !...
Estou em crer que com a crise instalada, nem a lua resiste, e faz como nós quereríamos fazer : sumiu !...

Pelos nossos olhos, a borrasca social desfila, amedrontadora, à semelhança da borrasca que brame lá fora, duma Natureza incomplacente, que despeja rios de água dos céus, e ventos tão desgovernados e destruidores, como os tempos que vivemos.

A incidência de situações dramáticas de vidas, a incidência de denúncias públicas de fraudes e corrupção, o desvendar de injustiças sociais na distribuição de bens e regalias, no igual acesso a oportunidades, a ausência de escrúpulos na prestação cívica e de cidadania, os privilégios gritantes de alguns ... a exclusão social de tantos ... avolumam-se ...
Avolumam-se a ponto de nos retirarem até, a pouca saúde de que se vai dispondo.  Mesmo a saúde do corpo, porque a da mente, menos obediente a vontades, prudências e lógicas, sempre nos desautoriza, e claudica inapelavelmente.
A tristeza sente-se no ar que se respira, e nos rostos carregados que olhamos ;  o desnorte desorienta-nos as vidas, por cada dia ;  o medo, ou melhor, o pavor de animal acossado, atormenta-nos o espírito ...
Os que ainda esperam, fazem ouvir os seus gritos da revolta, da raiva, e da fome, por este Portugal fora, em eco de desespero, em estertor de moribundo ...
Neste Outubro vermelho, ainda há quem acredite !...

Mas o cansaço toma-nos conta, e gera a indiferença álgida, de quem luta com forças desproporcionadas, a forças titânicas que nos transmitem a impotência do não valer a pena, da desistência e da desesperança ...
E é um lusco-fusco na alma, de candeias apagadas, é um anoitecer de corações que não encontram mais alegria ... sequer justificação de vida !

E vai-se andando, em filas de penitência não devida, cumprindo penas não merecidas, arrastando grilhetas nos pés, com o peso do imobilismo da alma que sangra, e com a insensibilidade duma pústula que gangrenou de tal forma, que já quase nem dói ...

E a alvorada que nunca mais chega !!!

E o frio do Inverno a aquietar-nos os últimos lampejos da energia que se nos escoa, nas madrugadas sem fim ...
E o mar, e o temporal incessantes, a açoitarem o Mundo lá fora ...
E a lua que se esconde, no nosso céu negro, que não abre  ...

E até as boninas, que sejam lá o que forem, não florescem mais aos meus olhos, apesar do "parti pris" que tenho com elas !!!...



Anamar

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

" ESTE BARRO DE QUE EU SOU IMPERFEITAMENTE FEITA ..."



O dia pôs-se, com o sol  já depois de ter passado a linha do horizonte, a alaranjar ainda um céu escurecido, como ficam as salas, quando as chamas da lareira se abatem.
Tudo o resto passou a sombras, em negro esfíngico, contra esse fogo sem convicção.

"A viagem é o viajante, e vemos aquilo que somos" ... dizia sabiamente, Pessoa.

Tive um amigo que me dizia em tempos, eu ser severamente subjectiva naquilo que afirmo, a ponto de poder-se sempre duvidar do que "leio".
É verdade.  Se calhar como muita gente, uns mais, outros menos, reconheço em mim as qualidades do mágico.
Saco do pincel e da caixa das tintas, e o quadro não é o que lá está, mas o que vejo.  E o que vejo, é visto sempre com os olhos da alma e do coração, e os outros, pouco préstimo me têm.
Acho mesmo que se fosse cega, conseguiria inventar imagens e cenários inexistentes.  Bastaria voltar-me para dentro,  e espreitar pela fresta entreaberta.

Por isso é que normalmente sou outonal, sou castanha, ocre e vermelha, sem remédio ...

Por que será que tenho que falar recorrentemente do céu, do mar, dos bandos de pássaros, da chuva miudinha, ou do céu limpo ?
Por que preciso de sentir a terra entre os dedos, a brisa no cabelo, a maresia nas narinas ?
Por que falo só de sentir, de sentir, e morrer de sentir ?!...
Por que preciso viver embriagada por música, acalentada por sonhos, embalada por desejos ... empanturrar-me de emoções, de sentimentos, de quereres, tudo numa dimensão  de valer a pena ... suicida, improvável, onírica ... e depois morrer na sarjeta do cansaço, da dor ( também ela doentiamente avassaladora e mortal ),  de  um  sofrimento  incontido,  maior  que  eu,  que  ameaça  rebentar-me  o coração  a  qualquer  instante,  porque  não  cabe  nele,  e  o  dilacera ?!...

Tudo em mim é  excessivo, tudo em mim é gigante, tudo em mim tem dimensões de eternidade, tudo em mim é incontido, extravasante ... e contudo, frágil !...
E como avalanche incontrolável, que rompe portas e comportas, salta muros e arranca árvores, eu transbordo-me a cada momento, eu mato-me e reconstruo-me, eu apago-me e redesenho-me ...

Tão depresa vislumbro a plenitude da perfeição e do êxtase, como o meu horizonte se esvazia, e o nada cava um buraco frio e negro no meu ser ...

Como o mar, rebentando na areia, faz e desfaz, rodeia e contorna, traz e arrasta ... eu morro e renasço, eu caio e escalo, eu destruo e reergo ... eu chego e parto de mim, dia e noite !...

E é um cansaço ... esta viagem alucinada e louca de turbulência ... sem destino ou nexo, sem conserto ou arranjo !!!...

Anamar

sábado, 12 de outubro de 2013

" ISTO SOU EU A PENSAR ... "



" Um Universo não é mais o mesmo, se lhe faltar uma só das suas partículas "


A morte liberta, tenho a certeza !

Ontem, quando entrei naquele espaço exíguo, escuro, sujo e malcheiroso, que a dona deixou há quinze dias, tive a certeza disso.
Uma penumbra pesada, um abandono do que ficou e permanece exactamente nos mesmos sítios, com os mesmos cheiros, como se tivesse sido dito : " Vou ali, já volto ... "

O frigorífico que não se esvaziou, a roupa que não se pendurou, a que ficou suja na cadeira, as flores que não se regaram ... as janelas que não se abriram, como se quisesse vedar-se ao sol, a entrada ...
Não se gastou o shampô até ao fim, o sal no saleiro também não, aposto que ficaram cabelos na banheira ... e o cheiro da morte pairava por lá.
Era um lugar pesado, silencioso, sozinho.
Tinha a cor de um fim de dia sem esperança, tal qual aquela escuridão que se abatia já, naquele meio de tarde de um Verão, esse sim, que parecia não querer partir.

Aquela casa não tinha horizonte, não tinha luz, não tinha perspectiva.
Não tinha histórias, nem gargalhadas, nem crianças, nem luas cheias, no céu.
Aquela casa só tinha silêncios, escuridão e peso ...  Aquela casa pesava toneladas, que é uma medida dos Homens, pesava infinitos, que é uma medida dos deuses.

Era seguramente uma casa de passagem ... Claro que era !
Percebia-se perfeitamente que ali, fazia tempo que a vida se estava a ausentar devagarinho, pé ante pé, sem estardalhaço, p'ra não assustar ninguém.
Havia  uma  noite  persistente,  instalada, de  fora  para  dentro,  mas  sobretudo  dentro,  que  atacava  a alma  mal  se  transpunha  a  soleira, ( como a humidade sobe aos ossos, no Inverno, e os musgos cobrem os troncos ), que oprimia o peito e amedrontava a voz, que sufocava e atormentava o coração.
Havia uma espécie de susto, mal disfarçado, que se sentia, e o recolhimento estranho das capelas, que nos faz caminhar levezinho, roçagantemente, como os gatos ... exactamente como os gatos, que se insinuam sem se anunciarem ...

A ida àquela casa foi demasiado perturbadora !
E se, claramente já o percebia antes, deixei-me tomar por duas reflexões inequívocas.
Claramente vi, como a ausência de "janelas" na existência, como a incapacidade de adaptabilidade e aceitação da mesma, como a ânsia de busca de paz ... empurra as almas exaustas, a procurar em desespero,  além das paredes do sofrimento, além dos muros da solidão, além dos portões da tristeza, além das algemas da indiferença ... uma hipotética saída, uma qualquer aparente escapatória, uma solução ... algures, onde haja uma cancela que pareça abrir-se, e as convide a passar ...
E ao decidir-se atravessá-la, nada, absolutamente nada nos detém já, do lado de cá ...
Nada mesmo, tenho a certeza !...

Por outro lado,  aquele espaço conscientizou-me duramente,  para a pequenez da realidade humana, na dimensão e na importância, e a sua irrelevância, face à continuidade, quando afinal, sempre  nos  julgamos sumamente especiais e únicos, quando temos a prosápia de nos sentirmos centros de universos, pedras insubstituíveis, entidades determinantes, quando nos "vemos" pequenos deuses na nossa ínfima realidade ... e nisso acreditamos, e isso defendemos acerrimamente, como se fosse importante e verdadeiro !...

Pobres de nós !!!

Como  qualquer  grão da poeira que cobria tudo naquela casa, temos a insignificância do nada, a dimensão do mais absoluto nada ...
E cá fora, tudo coexiste com a indiferença que já existia, anonimamente, insensivelmente ... como sempre o foi, afinal !
De facto, somos todos, demasiado NADA, para que o Universo pare, se perturbe, se abale no seu equilíbrio precário, ou sequer, para que uma nuvem passante, deite uma lágima cá para baixo ... de compreensão ... pelo menos, de compreensão !...

Ao chegar à rua, só tive uma urgência, absoluta e imperativa :  olhar o sol, que ainda não se havia posto !!!...

Anamar

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

" DIA MUNDIAL DOS CORREIOS "

 

" Sempre que me perco de ti nas palavras, procuro encontrar-te nos sonhos e nas ideias "...

" Um dia, as cartas serão História, lidas, contadas e relembradas ... ainda que quem as escreveu, não esteja mais aqui "


Olhei a preceito aquela arquinha de folha, encarrapitada no armário da estante, de portas fechadas, com cadernos e mais cadernos em cima.
Uma espécie de baú do tesouro, de tesouros esquecidos, e amarelados pelo transcurso dos dias ...

Esquecera há muito o seu conteúdo.

Um pouco de tudo, um pouco de nada real, muito de Vida ... poeira dos tempos, acumulada em estratos, na memória, como as camadas rochosas lá das falésias se acumulam nos milénios !
E do pouco do tudo real da vida vivida, os maços de cartas trocadas, enlaçadas por fitas de seda, ou por cordéis de ocasião, dormiam há muito, embalando num sono de gerações, palavras ditas, juras seladas, sonhos revelados, ideias  acalentadas, emoções divididas, afectos partilhados ... segredos escondidos ...

Pessoas que foram ...
As que já partiram, e aquelas que foram e já não são, embora parem por aqui.

As fotos a sépia, desfocadas, apagadas, esbatidas, de  destrocas de amores terminados ... de novo, nas minhas mãos ...
Os dias revisitados, quando se percebe pela letra miudinha da tinta permanente, que aquele dia de Março, fora chuvoso, cinzento e triste ...
A devassa aos corações, quando estes se escancaram ( de novo por entre a caligrafia quase infantil ), e jorram despudoradamente amores incontidos, ingénuos, esperançosos, com a força e a pujança de uma vida não conhecida, só sonhada, só adivinhada ... talvez desejada ... no nosso então, futuro ...
Saudades a escorrerem pelos cantos da arca, violando os envelopes cuidadosamente abertos ...
Promessas que voejam, como traças dos tempos, por entre as folhas envelhecidas, soltando aqui e ali, pétalas secas, ou poemas largados ... ou manchas de uma ou outra lágrima traidora ...
Emoções desbragadas, com o ímpeto e o impulso, que só a juventude lhes confere ...
Sonhos sonhados, cobrando juros muito baixos, porque éramos então, fortalezas inexpugnáveis, e inabaláveis, sequer ...

Soltei três ou quatro, aleatórias, como aleatória  foi a existência ...

E  antes de relê-las, cheirei-as.  Uma e outra vez, profundamente, exaustivamente, muito lentamente ... como que à procura ...
E deixei-me embriagar pelo eflúvio que delas emanava, e que, como um elixir ou poção mágica, teve o poder de comigo seguir, numa viagem alada ... embora eu continuasse ali, estática, sentada no chão da sala, com a arquinha entre as pernas.

E viajei, viajei aos tempos em que o carteiro premia a campainha, aos tempos em que o peito sufocava, as batidas do coração aceleravam, a alma de menina se desgovernava pela fantasia ...
Aos tempos da ansiedade e da urgência da leitura das letras, do soletrar das frases, depositadas naquelas folhas de papel, dias atrás, contudo ainda quentes, fogosas e promissoras ...

E revi-me.  E revi todos, comigo !

Olhei o meu sorriso de então, olhei o meu ar doce e ruborescido, ainda não maculado pelos destinos, senti a minha bonomia,  transbordando de um coração ainda não machucado pela sina ... percebi como eu era credora, no viver ...

E estava tudo ali ...

Naquelas folhas, dentro daqueles envelopes selados a um escudo, gravados pelos tempos, contando histórias e mais histórias, que faziam a minha História ... naquela arquinha de folha, na doçura do silêncio e da paz, mergulhadas no pó dos tempos, preparadas para atravessarem gerações, rumo à eternidade, envoltas em laços de fita de seda, ou cordéis de ocasião !!!...





Anamar

sábado, 5 de outubro de 2013

" NÃO ADIANTA ... "



De novo hoje percebi, que não adianta ter o mais belo pôr-de-sol frente aos meus olhos ...
Não adianta ter o azul do mar zangado ou sereno,
O riacho de água fresca, gorgolejante, a sepentear-me aos pés,
A brisa mais acariciadora no meu rosto,
Um céu de veludo,  pintado de estrelas ...
A chuva abençoada, a inundar-me o corpo exausto da caminhada,
A maior e mais gloriosa lua cheia, iluminando o firmamento,
O recanto mais íntimo, prometedor e romântico, ao meu dispor ...
A obra de arte mais perfeita e conseguida, do artista
A mais bela casa para viver, seja palácio ou choupana,
A viagem mais desejada e sonhada, à face da Terra,
A música mais embaladora, mais doce e mais envolvente,
O espectáculo mais sumptuoso, preenchedor e gratificante,
O repasto mais cobiçado e invejável,
ou o mais simples prato de caracóis com uma cerveja geladinha ...

Hoje eu percebi, que não adianta ver aquele portentoso filme, de que todos falam ...
Procurar o miradouro empoleirado na colina, donde se desfruta "aquela vista" ...
Visitar aquela exposição que está na ribalta, de todos os roteiros culturais,
Dar aquele passeio de carro, espreguiçado e sem horas ...
Olhar a cascata, a serra, ou a planície sem limites ...
Ler o livro da actualidade,
Pensar muito, e criar teses, opiniões e conceitos ... defender pontos de vista ...
Colher as flores dos campos, os ramos das mimosas engrinaldadas, quando florescem ...
Cheirar as rosas dos roseirais, as lavandas dos canteiros, e ouvir os pássaros na ramaria ...
Prender entre os dedos as uvas maduras,
Saborear aquele bolo de laranja, acabadinho de sair do forno ...
Sorver as coisas simples da Vida ...

Não adianta rir ou chorar,
Não adianta fingir,
Enganar-me,
Esperar ...
Fazer de conta que respiro, e dormir acreditando que amanhã será um  "novo dia" !...

Hoje eu percebi, que não adianta obrigar-me a gostar do que não gosto,
Fingir-me interessada no que não me interessa,
Substituir a dor, com gargalhadas de alegria postiça, para apaziguar corações ...
Mascarar o desespero,  com uma falsa vontade de viver,
Fazer de conta que acredito ainda,
no que na verdade não me faz nenhum sentido !...

Não adianta julgar-me no meio de gente,
quando estou afinal, na mais absoluta solidão e silêncio ...

Sem partilha,
Sem amor,
Sem cumplicidade,
Sem entrega ...
Hoje eu percebi, que não faz sentido ...
Não adianta  ...
Terei morrido há muito, e não deram por isso !...

Anamar

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

" SINTO-ME GRATA "



Tem dias  assim : está tudo cinzento lá fora, o sol ouviu o Passos  e foi embora, há muito, antes que lhe cortassem a luz, por falta de pagamento.
Aqui dentro, não está muito melhor.
Não sei o que aconteceu, mas as paredes deste quarto afastaram-se umas das outras, e o espaço ficou gigantescamente maior.
Ficou uma divisão fantasmagórica , e eu fiquei pequenininha, meio  perdida, sem encontrar aquela, que mais ou menos costuma parar por aqui.
A única luz eléctrica que acendi ( não tenho santos a alumiar, e há que poupar na factura ), projecta sombras chinesas à minha volta.

Se as Finanças sabem, que a área deste apartamento está a aumentar, na razão directa do meu vazio e da minha solidão, carrega-me no IMI !!!.... Trigo limpo !...

Bom, mas tem dias assim !
Há quem parta, e há quem tenha vontade de partir ...
Há quem vá até ali à esquina, há quem vá por esse mundo fora ... e há quem vá p'ra outra galáxia !...
Tem muito a ver, com o tamanho das divisões, com o cinzento lá fora, ou com o vazio aqui dentro ... garanto-vos !!!

No meio deste desconforto de alma, só os meus gatos me entendem, e por isso, eu entendo, quem entende de gatos !

Eles são os companheiros  fiéis, mesmo que todas estas "anomalias" malucas, se verifiquem ...
Eles não arredam pé, mesmo que nós lhes pareçamos meio desconchavados de espírito, meio desmiolados de atitudes, meio pieguinhas de emoções ...
Eles nem refilam, se lhes esquivamos a "bucha", se um berro se nos escapa, se uma sapatada pretende corrigir-lhes os desvarios e os abusos ...
Eles sempre estão por perto ... "malgré" ...
Eles sempre  são compinchas, mesmo quando um pouco desparafusados !

O máximo que fazem, digo eu, é encolher os ombros, olhar-nos com a comiseração, de quem assiste a uma dona a "passar-se",  premiarem-nos com marradinhas e lambidelas, como quem diz : " Deixa lá ... eu entendo-te !  Este mundo dos humanos é mesmo muito louco !..."

Neste momento, tenho dois, como sabem.
Um, tem a inconsciência do puto desalvorado e reguila, absolutamente impertinente e desafiador.
Corre por cima de tudo, sempre acelerado, num  desvario total.
Não tem limites de velocidade.  A sua auto-estrada tem percursos voadores,  não conhece sentidos proibidos,  não tem escapatórias para derrapagens que levam tudo adiante,  enfim,  são emoções e adrenalina, absolutamente demolidoras !
Por essa razão, madrugada adiante, quando se testa ao sprint, verdadeiros terramotos me chegam da cozinha e da entrada ( zonas francas ) ... ao quarto !

Mas não consigo impor-lhe hierarquia ou estatuto de dona.  Não consigo meter-lhe naqueles neurónios-ventoinha ... quem na verdade, manda aqui.
Simplesmente, porque  tem os olhos da inocência e da ternura de um garotão, que olha p'ra mim com uma meiguice  que me desarma !
Assim, resta-me erguer uma voz tonitruante, exibir o ar mais convincente possível, e dizer-lhe em tom ameaçador : " Jonas, Jonas ... mau mau ! Estamos aqui, estamos a zangar-nos " !....

O outro.... bom, o outro, são p'raí seis ou sete quilos de gato, num tamanho  XL, envolvidos num "cobertor" farfalhudo e fofinho de pelo, e outros tantos quilos de ronceirice e doçura.
Saudavelmente insano, também ...  como convém.
O Chico tem um pacto com o "além", tenho a certeza. 
Esse, é o que rodopia em torno de um rabo que desgraçadamente sempre se lhe escapa,  à semelhança dos fantasminhas de  todas as sombras que se projectam no chão ...  Inclusive, a própria, que ele garante ser de outro gato-fantasma, aqui infiltrado, p'ra lhe atazanar o sistema !

O Chico só tem um "senão".   Adora o meu sofá do quarto ... para afiar as unhas !!!
E não lhe interessam raspadores, de vários formatos.  É para o lado que dorme melhor !
Olha-me com ar de complacência, superioridade e pouco caso.  Como quem diz : "Perdoai-lhe senhor, porque esta fulana, coitada....parece não perceber quem tem à frente ! "..... ( rsrsrs )

Há dias assim ...
São os tais dias em que eu sei que estou viva, porque afinal, na verdade, não estou só.
Comigo, tenho a melhor companhia que podia ter ... o amor infalível, incondicional e desinteressado, destes "esgroviados" de serviço, a bombeirarem as minhas mágoas, as minhas dores, as minhas tristezas, ou mesmo a lamberem as minhas lágrimas  ...

...e por isso, a eles, num diálogo mudo, eu sinto que sou absolutamente GRATA !!!...



Anamar

terça-feira, 1 de outubro de 2013

" SERÁ QUE SOU ? "



Será que sou ?  Será que não sou ?
A  minha  mãe  garante  que  já  nasci  ... Tinha   dois  cabelos  brancos !!!  ( só  mesmo  mãe  para  ver  estas coisas !... )
A Fatinha diz que é bom ... tem-se desconto nos bilhetes .
A minha mãe entende-o como uma maldição ... mas faz-lhe permanente elegia !
O meu pai não devia  gostar.  Quando lhe disponibilizavam um lugar no combóio, ou um braço para atravessar uma passadeira, enjeitava sempre ... quase agastado.
Eu ... bem ... eu tenho pavor de ter que assumir um dia destes ...

Olho de soslaio, faço-me desentendida, não dou confiança aos ameaços, tento não passar cartão aos indícios, e armo-me em forte !
Vejo mal e oiço pior, mas ... quem não ?!
Receio cair, mas ando empoleirada em saltos razoavelmente altos.
Cabelos brancos ... nem tenho ideia do que sejam  :)
Colesterol, que é uma coisa que as pessoas adoram ter, ainda não nos compatibilizámos.
Dores nos ossos ?  Nem sei que sou vertebrada !!!...
Insónias ... Quando me visitam, são meras visitas de cortesia.  Uma coisa que os sonos inventam, para fazerem um "break" , simplesmente !

Adoro viajar sozinha, e quando o  faço, desatino de vez.
Como o menino que espeta o dedo pelo creme do bolo adentro, para o provar ... com o gostinho da travessura, à surrelfa, desbundo para o radical, e garantem-me ... desaconselhável ...
Do "parasailing" ao "rafting", do mergulho ao "slide", aos "radical parks", passando por outras variadas "emoções" que não vêm ao caso, e me colocam, no momento, um friozinho na barriga ... lá vou eu !!!

O que desafio ? ... Não sei ... só desconfio !!!...

Reconheço ter às vezes, a inconsciência de um puto reguila e provocador, como se quisesse desafiar os meus limites.
Tenho  a  cabeça da  adolescente, que se deixa possuir por sonhos e desejos, e segue na vida ao ritmo da montanha russa ...
As minhas emoções pincelam-me a existência, com todas as cores do arco-íris.  E por isso, danço na chuva, num dia de sol ...
Sinais de proibição ou "limite de" ... não fazem parte do meu código de percurso ...
Se tem montanha. ... Bom, há que escalar ! Deve ter-se uma vista supimpa lá de cima !...
E cerca ... tem cerca ?  Então pede que se pule, não ??!!...
Tento  comandar  um  corcel  sem  freio  ...  um  pouco  desvairadamente ...
E receio abrandar ... não quero distrair-me em limite de velocidade, e que me apanhem na curva !...
Possam pensar que eu estou a habituar-me ...
Salas de espera ... não, obrigada! Tenho pressa de seguir !... Muita estrada a percorrer ainda !...
Muito brinde a fazer à Vida ... também !

Será que já sou ?...   Será que não sou ?...

1 de Outubro - Dia Internacional do Idoso

Anamar

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

" NEVOEIRO "



A Sandra lançou-se do terceiro andar da escada do prédio onde vivia, p'ra morrer no patamar cá em baixo, às oito da noite ... noite escura já ...
Era jovem, sozinha, perdera pai e mãe.  Não tinha ninguém.  Vivia com quatro gatos e uma periquita branca.
Estudara, conhecera  vida folgada.  Licenciara-se em Direito.
Após o falecimento dos seus, entrara em depressão.  Diagnosticaram-lhe bipolaridade, foi impedida, pela Ordem, de exercer actividade, e reformaram-na por invalidez, com uma pensão, de que metade ia para a renda  do  andar  miserável,  que  habitava, aqui,  na  minha  cidade ... paredes  meias  com  o  meu  chão e o meu ar ...

A  Sandra já não tinha água nem luz em casa, por incumprimento nos pagamentos.  Não tinha dinheiro para alimentar os  seus bichos, talvez os únicos companheiros até ao fim ...
Naquele dia,  tentou uma vez mais que a ajudassem, na loja de animais.  Recusaram, por falta de pagamento de dívida anterior.
Subiu ao seu terceiro andar, e jogou-se do alto, como um trapezista no circo ... só que sem rede ...
As suas últimas palavras, foram para o primeiro vizinho que dela se abeirou : "Trate dos meus gatos " !...
E  partiu ...

A Madalena vive sozinha com oito gatos, um cão, e tenta ajudar outros animais em desgraça, nas ruas. .
É jovem também.  Tem trabalho, modesto.
Foi fiadora de alguém que não pagou, numa dívida de cerca de dois mil euros.  A Madalena tem o vencimento em parte, penhorado, e não tem cerca de dois mil euros.
Já teve que deixar a casa onde vivia, para outra  mais modesta ainda.  Deixará de ter frigorífico, e outros "necessários", de início ... mas "lá se arranjará", diz.
Deitou mão a alguns trabalhos de bricolage, que tenta vender pela Internet, porque "não irá desistir" ... também diz.
A Madalena tem mais de trinta anos, e uns olhos grandes, tristes, mas inocentes, das crianças que ainda acreditam ...

A Carla é mãe solteira, do Rodrigo, que tem três anos.
Tem uma doença óssea, incapacitante. Não trabalha, já faz tempo.  Sobrevive, vá-se lá saber como ...
A Carla tem vergonha de pedir.  Tem "muita vergonha" de expor a sua situação, mas o Rodrigo pede-lhe leite e bolachas ... e ela não tem ...
E chora.  Chora muito, porque se perder o filho para uma instituição, então não lhe "valerá a pena, viver" !...

Enquanto isso, enquanto Portugal se nos desfila assim, à frente dos olhos, neste atoleiro de miséria e de infortúnio, nestas vidas gretadas de desertos silenciosos, o país foi a eleições, e eu, não sei se devo sequer festejar os resultados ...
Sinto que esta terra, morreu há muito ...
Sinto que as Sandras, as Madalenas e as Carlas, proliferam por aí, nos becos esconsos, nas casas de miséria, sujas e tristes, com prateleiras vazias, com bolsos vazios, com estômagos vazios, com gelo nas almas ...
Sei que são dedos apontados, silenciosamente, a  todos  nós, que  ainda  vamos  estando  deste  lado, que ainda  vamos  tendo  a  água  só  pelo  queixo ... mercê  da sorte, dos desígnios dos destinos, das vidas ....
Até quando ??!!...

Sei tanta gente a viver no limite, a sobreviver no limiar da maior e sinistra angústia ... um só dia de cada vez, porque a força e a coragem não chegam para mais ...

Sei de humanos a apodrecerem diariamente, porque a esperança e a luz no olhar, se apagaram faz tempo ...

Sei de velhos que desejam partir o quanto antes, porque esgotaram a capacidade de resistência, as pensões de miséria não chegam para a farmácia, e não podem ser tropeços na vida dos seus ... quando os têm ...

Sei de crianças que comem diariamente o que lhes é dado nas escolas ... e pouco mais ...

E de mães, peritas em malabarismos culinários, para tornarem principescos, repastos de desgraça ...

Enfim, sei de tudo isto.   Sabemos de tudo isto !!!...

E lá fora, o nevoeiro  agiganta-se e fecha-nos  a vista, limita o horizonte, entristece-nos o coração, ao sonegar-nos o azul do céu, que pelo menos é esperançoso ... e grátis ...

Igualzinho  ao  nevoeiro  que  temos  aqui  dentro,  nesta  impotência  atroz,  de  continuarmos  teimosamente  a  acreditar  que  vale  a  pena !!!...


Anamar

domingo, 29 de setembro de 2013

" DEMASIADO TARDE "



É tarde ...

Cada vez é mais tarde.  O Outono já chegou, e não tarda que o tempo de partir, nos visite.
Os dias azuis já foram.  O sol vem a correr, com pressa, e nem o pássaro já canta, no castanheiro junto à nossa janela

Sabes, custo a lembrar como era o tempo do riso ... o tempo em que eu colhia esperança nas ramadas das madressilvas, pelas veredas

Até  a voz do mar, que deixava algodão doce no areal agora deserto, ficou severa e tenebrosa.
Açoita-me a alma, em vez de me acariciar o corpo

E tu, perdeste o caminho de casa, esqueceste as minhas estradas, os montes e os vales ... não bebes mais nas minhas fontes
A minha nudez oferecida pelas madrugadas, vive solteira na margem deste rio ... e queima ... ainda queima !

Mas fica cada vez mais tarde ...

Um destes dias, quando acordarmos, um de nós foi indo ... ao cantar do galo, no dealbar do novo dia ...

Ter-nos-emos perdido, meu amor !

Anamar

sábado, 28 de setembro de 2013

" NAVEGO À BOLINA "

 

Dia de Inverno , ou melhor, de um Outono zangado.
Sê-lo-ia integralmente, se esquecermos a temperatura, que continua para roupas leves, e a chuva que também não insiste, ainda.

Atravesso um dos períodos mais escurecidos da minha vida, da maior insatisfação que alguma vez já experimentei.  Insatisfação e indiferença, beirando a raia  de um amorfismo e cansaço, preocupantes.
Arrasto-me diariamente, acordando e dormindo, acordando e dormindo, sem uma só motivação que me faça abrir os olhos.
Plano por cima das coisas, que aliás não encontro, e por isso não agarro ;  vegeto numa dormência patológica, num arrastar de dias que me começam tarde, e que nesta altura do ano, acabam cedo.
Nada mos justifica, nada faz com que eles me valham a pena.
Sinto-me anestesiada perante a vida, que já não me entusiasma, encanta, deslumbra ou emociona.
Quase deixei de escrever.  Aliás, acho fazê-lo, irrelevante, desnecessário, entediante.
Passei a achar que na verdade, nada tenho a acrescentar a tanto de que já falei, e até para mim mesma, o que tenho a dizer, levo o dia a fazê-lo, numa dialéctica muda, em que o diapasão é o meu peito ... e nada mais.

"Seca", é o termo que me define !
O que seca não tem vida. Eu, não vivo, a bem dizer !...
Farta ...  estou farta !
Farta de romper dias iguais, de silêncios constantes, das solidões dos claustros das abadias.
No meu mundo, ouvem-se os meus passos, ouve-se a minha raiva, pressente-se o meu desespero, apalpa-se o meu cansaço ...
E depois, sou eu e eu ... quem mais ?...

Sonhos ?  Não, já os alienei faz tempo, ou melhor, fugiram de mim para paragens de Primaveras radiosas ...
As metas, as que existiram e as que eu inventei, já foram cortadas há muito, quase sempre longe dos melhores tempos, nos lugares de trás.  Ou simplesmente me deixei ficar a ver os outros ir ...
Foi assim !...

As velas do meu veleiro, recolhi-as.
Não há vento que o empurre.  Navego à bolina, no vaivém das ondas passantes.
Tenho comigo a incerteza do alto mar.
Perdi bússola, esqueci norte, e como estamos num Outono zangado, nem o sol nem as luas me visitam !
As estrelas também dormem, e só a cerração se baixa e me envolve, por pena ... p'ra me dar guarida e berço ...
O cais ... os cais da vida, ficaram tão longe, mas tão longe, que deles, a neblina não se compadece ... nem de mim, figura errante, recortada no nada .
Apenas a maresia se faz presente, cáustica, corrosiva ... ácida !
O gargalhar manso dos salpicos, nos cascos curtidos pelos tempos, é melopeia ... não é bem canção !
E uma gaivota, só uma - esculpida no indefinido, no abandono e no vazio -  não me deixou viajar sozinha ...
E comigo, tenho a ausência de esperança de um navegador à bolina, e a certeza de não chegar a lugar nenhum mais !...

Deve ser doce morrer no mar, assim, num dia de Outono zangado ...
Esfumar-se no cinzento fantasmagórico do desconhecido, como nos braços de um amante dedicado ...
Dissolver-se na lentidão dos silêncios das memórias, que ficaram ...
Adormecer  nos  esgares  de  todos  os  fantasmas,  das  histórias  vividas ...
Ou simplesmente errar, languidamente, vagueando pelas notas impressas pelo coração enquanto ainda bate, pelo sopro do vento enquanto ainda açoita as escarpas, pelos pingos da chuva a tamborilar, largados de infinitos ...

Deve ser doce ...

Anamar

terça-feira, 24 de setembro de 2013

" SONHO "



         " SONHO "


Quero partir contigo, amor,
Soltar âncora, abrir velas,
Pelas ruas e travessas,
pelas pracinhas ... sem pressas,
pelos becos e vielas

Quero olhar contigo, amor,
os craveiros pelas sacadas,
co'as sardinheiras floridas
e com os gatos ronceiros,
poetas das madrugadas ...
ver as roupas coloridas
largadas pelos estendais ...
Quero ouvir contigo, amor,
os canários das gaiolas,
desgarrando p'los quintais !...

Quero dar-te a mão e seguir
junto ao rio, em passo lento ...
quero embarcar na canoa,
quero contigo ver Lisboa,
prender no cabelo, o vento !

Contigo andar pela serra,
quero beber o cheiro da terra,
embriagar-me de sol ...
Deitar-te amor, no meu leito,
beijar-te bem ao meu jeito ...
olhar a luz do farol
a varrer a penedia,
até que a noite seja dia
e desperte a claridade ...
P'ra enfim, dormires no meu peito,
num amor mais que perfeito,
sem ter pressa, nem idade !

Quero dar-te o meu corpo, amor ...
porque a alma já levaste ...
Já que são a minha sina,
que eles sejam mote e rima,
dos versos que semeaste !...

Quero dar-te o riso e o abraço,
o meu colo, o ombro e o passo
lado a lado com o teu ...
Quero andar contigo a estrada,
naufragar nesta enseada,
Quero ser "nós" ... e não ser "eu" !!!...

Anamar

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

" HISTÓRIAS DESTE MUNDO E DO OUTRO " ( a propósito da primeira cremação a que assisti )



Ali logo à passagem, estavam dois anjos.
Não daqueles anjos das igrejas. Esses,  tínhamos dispensado de virem !
Mas ainda assim, eram dois querubins de caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas.
Nisso,  eles  eram  anjos  normais, iguais  aos  outros  todos,  embora  se  pudesse pensar,  serem  de  contrafacção ...

Mas não !...

Um, estava ali para lhe dar a mão.  O outro, para lhe carregar a rima pesada dos livros.
Eram duas crianças, que vieram receber aquele menino que se vestia de ancião !
Mas eu sei que ele era um menino ...  Senão, por que leria ele tantas histórias ?  Senão, por que faria questão de se fazer acompanhar de uma pasta tão pesada de livros ?!...

Percebi que aquilo ali, era um palco, porque de repente, houve uma cortina pesada que tombou, à passagem do menino.
Obviamente estávamos numa peça teatral.  Do lado de cá, estavam os espectadores, que eram muitos e continuavam sem arredar pé.
Não percebi por que tinham rostos tão fechados, mesmo estando uma linda tarde de sol ...
Do outro lado, eram os bastidores.  Lá, ninguém podia aceder, depois do pano corrido, depois da peça terminada ...
E  na  verdade,  quando  o  menino  cruzou  aquela  passagem, a dramatização acabou,  porque  o  pano fechou-se !

Nós bem espreitávamos ...  Bem esgueirámos os pescoços, a tentar perceber, onde é que ficava a cancela do jardim.  Porque eu sei que para lá, ia haver relva, flores, aromas, montanhas, pássaros sem pressa, água corrente a cantar ...
E borboletas, muitas borboletas que eu sei ... andavam por lá, também ...
E havia de haver sol, outra vez ... por que não ??

E eu sei ainda, que o menino ia ser feliz de novo.
Com o vento que ele amava,  com todos os amiguinhos que o esperavam, e que já  brincavam no jardim, fazia tempo, a dançar de roda, e com as histórias sem fim, dos livros sem fim, que levou consigo ... aquele menino não precisava de nada mais ...

Era um sortudo !!!...

Apenas, aquele jardim, no alto daquela colina, deixava que ele olhasse, com a curiosidade da criança que espreita pelo buraco da fechadura. E essa era a única coisa triste, que amargurava o menino.
Na paz e na alegria das brincadeiras intermináveis e soltas, podia ver a angústia, o cansaço, o sonho perdido, e a escuridão, de tudo o que ficara antes da cortina que atravessara ... e tinha pena !...

E o tempo foi  passando, e não havia dias, nem horas, nem noites ... nem mesmo tempo, do lado de lá ...

Por isso, o menino-ancião, que agora também tinha caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas, carregado de livros e histórias no coração, passou a ter uma tarefa destinada :  ia sempre àquela passagem, buscar, também ele,  pela mão, todos os que iam chegando.
E para os tranquilizar, logo ali  lhes contava uma das suas lindas histórias de ninar !...

Daquelas  histórias  que contou e recontou, quando ainda não era um menino de caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas ... histórias essas, que já então, ele amava de paixão !!!...

Anamar

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

" REFLEXÕES EM DOURADO "



O sol já começou a pôr-se para a esquerda, lá ao fundo, no horizonte.
Significa que está mais baixo, e significa também, que vêm por aí os dias em que ele vai começar a hibernar, e a sombra a descer-me cedo, no quarto.
Daqui a dez dias, o Outono volta uma outra vez, para todos quantos, ao fim de um ano, por cá continuam para o recepcionarem, no ciclo repetido da Vida.

Para mim, o Outono é uma estação esmagadoramente bela e terrífica.

O ocre, o dourado, os vermelhos sanguíneos, ou os verdes fechados, aconchegantes e quentes com que se veste, criam um leito de paz, doçura e aconchego, no meu coração.
Inicia-se o tempo dos silêncios, o tempo da interioridade, o tempo da introversão, do adormecimento, da hibernação, da melancolia e de uma nostalgia profundas !
É  tempo de colheita, seguido de pousio.
Colher  o  que  se  semeou  e  estará  a  dar  frutos ... pousio,  de  descanso  e  reflexão,  para  o  eclodir estonteante  de  vida,  na  renovação  seguinte ...
Sempre assim, ano após ano, geração após geração ... vida após vida !...

A Natureza é perfeita.
Tem o ciclo de um ano para cumprir todas as metas e objectivos, do nascimento à morte.  E reinicia-se sempre, pujante, renovada, jovem !!!...

O Homem, não !
A sua vida equivale a um único, dos ciclos do Universo.
A Natureza sabe que depois da morte do Inverno, uma nova Primavera a espera.  Nada, para ela, finaliza !
Às lágrimas da estação fria, vão suceder-se sorrisos descarados, provocadores, confiantes, de uma outra Primavera.
Depois do luto que se abate, do desconforto e da escuridão, vai chegar outra vez o sol, a claridade, a alegria, o chilreio dos pássaros, o amor do ninho a reconstruir-se ...
O branco que tudo cobriu, abre cortinas, p'ra mostrar os verdes tenros e promissores, que já espreitam.
A vida pulula, inicialmente tímida, para se tornar exuberante, num passe de mágica.
O branco, o negro e o cinzento, completam-se generosamente, com toda a palete de cores. Os cheiros e os sons despertam, a energia renova-se ...
E tudo recomeça, de facto ... novinho em folha ... numa  festa sem restrições, numa orgia de sensações ... estonteante !!!...
E sempre assim será !!!...

O Outono que agora começa, acerta o passo com a minha vida.
É o terceiro estágio, entre o nascimento e a morte.   É exactamente esse, o estádio da vida, que atravesso.

Deveria ser um período de maturação, de calmaria, da paz que nos traz, a colheita do plantado ... sem demais sobressaltos, angústias ou incertezas.
Assim deveria ser, numa sequência normal de vivências.
Era justo que assim fosse ;  o ser humano merece usufruir essa fase da sua vida, saboreando o que realmente é de saborear, o que vale a pena degustar, com a sabedoria conferida pelo tempo, sem os arrobos e as inseguranças dos verdes anos, sem os percursos da maratona da média idade, em que os olhos estão no caminho e não nas margens do mesmo, sem a ansiedade da loucura do pico da montanha, a alcançar a qualquer custo, mas sim com a paz e a plenitude dos percursos longos e planos, de horizontes visíveis e abertos.

Seria  um caminhar à medida do seu passo, ao ritmo das suas pernas, com todo o tempo do mundo para olhar a paisagem, para desfrutar da cor e do cheiro, para parar na berma, numa pedra, sob a copa de uma árvore, e simplesmente deixar abrir o coração e a alma, ao aqui e agora ...
Seria escutar o canto das aves, ou o gorgolejar do ribeiro por entre as pedras ...
Seria estar desperto e bem acordado, para as emoções, os afectos e as partilhas ... por ser um tempo de disponibilidade, entrega e completude ...
Por ser na verdade, o ÚLTIMO tempo de qualidade de que dispomos ... porque o "Inverno" se avizinha rápido, e esse, já é o tempo do recolhimento total, do fechar de janelas, o tempo da imobilidade, do silêncio, da solidão e das perdas ...

Seria !!!...

 Porque esse é, afinal, o tempo da recordação de uma outra Primavera, que o ser humano, de facto, não voltará a ter !!!...

Anamar