domingo, 24 de março de 2013

" WHILE THE SAND WILL BECOME A STONE "



"Souvenir" já não me traz às lágrimas.
Milagre do Tempo.  O Tempo opera, até aquilo que nem suspeitaríamos.
Verdade ... "Souvenir" já não me lança em prantos ... e pensar que me derrubava forte e feio, há alguns, poucos anos ...

Na vida, temos a mania de associar inevitavelmente, de marcar, e referenciar pessoas, factos, momentos que nos disseram muito, a sons, cores,  ao calor, ao frio, ao sol ou à chuva que então faziam.
Sentidos visuais, auditivos e tácteis, primordialmente.
Pelo menos, comigo, é assim.
Por isso a música, é quase sempre, por isto ou por aquilo, um registo que me fica .

Mas tal como as feridas tendem a sarar, assim as outras, aquelas, as da alma e do coração, locais muito mais inacessíveis, também tentam curar-se.
Dificilmente, muito mais dificilmente !...
E como tempestades em picos recrudescentes, frequentemente têm recidivas, por isto ou por aquilo, ou por nada, ou por tudo.
Nem sabemos porquê, muitas vezes.

E é quando constatamos, que afinal já não choramos, já não nos descabelamos, já não vociferamos contra o que consideramos as injustiças da Vida ...
Mas é também quando constatamos que o nó, aquele nó que tem a mania de nos apertar a garganta, ainda lá  está,  e o   sufoco  do  peito  que  vem  lá do  fundo,  que  nos  sobe  e  nos acelera  as batidas,  também  ainda se sinaliza ...

Apenas ...

As emoções agora desencadeadas, têm um cariz totalmente diverso.
Já não são sangrantes, e como numa fogueira que se transformou já só em brasas, assim percebemos que afinal ainda  nos queimamos na mesma,  por dentro.
Contudo, sem a chama da fogueira enquanto desperta, enquanto em combustão viva, o ardor da lesão provocada é mais manso, mais difuso, mais ténue ... parece mais distante e menos agressivo ... mas apenas está mais adormecido, e mais cansado !

E  é  então que  a  mágoa  ocupa  o  lugar  da  dor  aguda, do  desespero,  da  frustração, do  desnorte, daquela  espécie  de  morte  que  se  instalara ...
É quando percebemos que a areia que éramos, demorou a transformar-se na rocha que ora somos !

Somos os mesmos, mas somos diferentes, muito diferentes.
Perdeu-se o melhor que tínhamos, porque perdemos os sonhos, frustrou-se aquilo em que apostáramos, ruíu a esperança em que acreditávamos , e a areia com que os meninos constroem os castelos do seu imaginário, à beira-mar, a areia que faz e desfaz, e se molda, e se adapta, e cria e recria, é agora um rochedo empedernido, duro e agreste.
Um rochedo de arestas vivas e cortantes, um rochedo indiferente, distante, insensível ... largado no meio do areal ...
Um rochedo que vai envelhecer a ver as estrelas pelas madrugadas, que vai perder o olhar na bola laranja dos pôres-de-sol afogueados, que vai deixar crescer as barbas de algas verdes, onde só os caramujos fazem cama ... um rochedo que vai ser o poleiro de pousio das gaivotas, nas pausas de lazer ...
Uma pedra açoitada pela ira das ondas, que não desistem, e implacavelmente a desconstroem, ao longo das eras, ao correr das vidas ... Nada mais !!!...

E não é só  " o cais que é uma saudade de pedra ",  como diz Álvaro de Campos ...

Esse rochedo, também ele, não é mais do que uma longa, longa saudade, uma profunda e longa recordação, uma insubstituível e indelével mágoa mansa, já há muito transformada em pedra ... sem volta, sem remédio, sem solução !!!..




Anamar

sábado, 23 de março de 2013

" SE EU FOSSE ... "



Hoje, se eu fosse pássaro, "desensarilhava" a cabeça de debaixo da asa, sacudia as penas, punha as duas patas naquele galho, inclinava a cabeça de lado ( sabem como os pássaros olham ? ) ... dava balanço, saltava no espaço, naquela mata verde, e perdia-me de ramo em ramo ...

Hoje, se eu fosse pássaro, decretava que já chega de Inverno lá fora  e cá dentro do meu coração, porque o céu estrebucha pelo meio dos farrapos das nuvens teimosas, para ostentar o seu azul, e o sol muito envergonhado ( por ter deixado a chuva tombar em hecatombe na noite passada ), esforça-se para nos convencer que é Primavera ...
E bolas, é Primavera  mesmo !!!...

Ela chegou este ano, muito nos bicos dos pés ... porque o Inverno bravo, não há meio de deixar o posto.
Tocou as campainhas das dedaleiras em flor, desceu as cortinas roxas das glicínias, em chuva perfumada, engalanou os ipês, com todas as cores que imaginamos e com aquelas que nem sequer sonhamos.
Deixou que as cerejeiras e as amendoeiras celebrassem o pecado da luxúria, porque efectivamente ninguém lhes resiste, quando todas "prosas", assomam pelos campos, a atrair descaradamente as abelhas ...
E nem as borboletas, que lhes competem nas cores, ficam indiferentes ...
Ordenou que os perfumes se misturassem, e criassem uma nova fragrância inebriante, que o nosso olfacto nunca experimentou, tocou os címbalos dos campanários, todos os sinos, sinetas e guizos dos pastoreios em eco na planície, e pintou e repintou com o vermelho-sangue das papoilas, com o branco e amarelo das macelas, com o roxo das lavandas, o azul do alecrim e o dourado das giestas, que não tarda nada, explodem  provocadoramente,  com  a  mania  que  são  as  rainhas  da  minha  charneca  toda  ela  em  flor, como  disse  Florbela ...

Hoje, se eu fosse um menino,  "desunhava-me" a dar força ao balancé da Vida, e ia fazê-lo subir tão alto no céu, que de lá, eu veria o Mundo, de certeza.
O Mundo todo, para cá e para lá.
E a Terra ia ficar pequenina, muito pequenina, por debaixo do meu "pássaro voador" ...
E ia balançar, balançar, porque o cansaço nunca iria chegar, já que o sol iria ficar preguiçoso para dormir, e não ia haver pai nem mãe, que me fizessem ir dormir também ...

Hoje, se eu fosse um floco de neve, das montanhas brancas, ia acordar, espreguiçar-me estonteado, com os olhos a piscar pela luz do sol a pino, despia rapidamente o casaco de arminho que me cobrira há tempo demais, e ia escorregar num escorrega de brincar, pelos troncos dos pinheiros, dos abetos, dos castanheiros, e ia olhar todas as bagas vermelhas, laranjas e indigo, que pendem dos ramitos ...

Hoje, se eu fosse jovem outra vez, pegava no chapéu de fita, colocava-o nos cabelos soltos, agarrava de braçada a  ceira  de vime pousada na entrada, e partia pelos campos, a catar os medronhos, os mirtilos, as amoras, as framboesas, e todos os frutos silvestres que nem sonhamos ... os ouriços dos castanheiros, as tâmaras  maduras das tamareiras , as boquinhas de lobo, as madressilvas que desperdiçam perfume a esmo, as "chagas de Cristo", os "copos de leite" bravios ... e claro ... ramos e ramos de mimosas ... até que não pudesse mais com o carrego ...

Hoje, se eu fosse Mulher, ia tirar a roupa que me prendeu demais, pelo longo tempo cinzento e frio, ia despir os pés para que eles pudessem sentir a dureza da areia molhada da beira-mar, ia soltar as madeixas ao vento, e ia correr na babugem das ondas .
Hoje, se eu fosse Mulher, ia rebolar-me no verde das algas que atapetam os rochedos da maré baixa, e no verde do musgo que forra o chão das matas, lá da serra.
Ia abrir-me na flor, que desabrocha e mostra as primeiras pétalas coradas, como o meu rosto afogueado.
Ia dar-me, como as corolas dão o seu suco doce e húmido, ao bico dos colibris, ou ao beijo atrevido dos abelharucos ...

Hoje, se eu fosse anjo, teria presumivelmente uma coroa de boninas nos caracóis dourados, duas asas pequeninas nas costas, umas bochechas rosadas, e o riso inconsequente de todos os querubins, empoleirados nas nuvens que ladeiam o Criador ...

E aí, se eu fosse anjo, ordenaria que mesmo sendo Primavera, e embora este Mundo tivesse que acordar ao som das minhas trombetas ... eu jamais acordaria deste delírio gostoso, que por instantes me transportou numa viagem de sonhos, sem pagar bilhete, sem sair do mesmo lugar, e sem sair do torpor embriagante, que me fez acreditar que a Primavera já tinha chegado, afinal !!!...


Anamar

sexta-feira, 22 de março de 2013

" SONHO "



Inventei-te ...

Inventei-te como quem inventa um menino no cólo de sua mãe ...
Como quem inventa um raio de sol no meio da tempestade,
como quem inventa um dia de chuva no Verão,
um campo de alfazemas rumo ao horizonte,
uma latada prenhe de uvas maduras ...

Inventei-te como uma pétala de rosa, que o vento deixasse no meu regaço,
num dia em que o meu coração não queria acordar ...

Tinha a certeza que te empoleiraras naquele arco-íris,
e que com as tuas travessuras, me arrancaras um sorriso ...
Um sorriso triste, porque eu sei que tu vais partir ...
tu vais sempre embora,
e levas as travessuras contigo !...

Inventei-te como se inventam todas as histórias felizes,
daquelas que se escrevem nos dias azuis ...

Inventei-te como a minha história, rescrita ...
Como o musgo do Inverno,
que adormece, quando os pássaros voltam, porque é Primavera,
e os lilaseiros florescem nos meus olhos ...

Onde estás ?  Por onde páras ?
Se me esperas, por que não chegas ?
Se sabes que eu existo, por que demoras ?

Aguardas que a Vida se faça assim ... em Mundos distantes ?
Ou esperas que seja Inverno outra vez,
e o cansaço invada para sempre o meu coração ??!!...

Anamar

quarta-feira, 20 de março de 2013

" A FOLHA "



A Páscoa está a chegar.
A pequenada já goza férias há uns dias ;  os pais também, do ritmo enlouquecido da vida de família, com crianças em idade escolar.
Os professores igualmente cortam por alguns dias, a realidade afobada que a profissão lhes exige.
Profissão sem horas, sem parança, sem pausas, se quiserem ...
Lembra a nossa profissão, enquanto mulheres domésticas.  Se quisermos, todas sabemos, não paramos um minuto, não logramos encaixar um espaço desocupado, na azáfama dos dias nas nossas casas ...
Se quisermos ...
É uma repetição sem fim à vista, porque abrange um tipo de trabalho, que nunca, nunca tem fim, porque ele próprio se faz e desfaz a cada instante.

Agora, bom, agora a minha vida não é mais "fatiada", por acontecimentos calendarizados.  Não vivencio adrenalinas diferentes, ritmos diferentes.  Eles são fastidiosamente cinzentos e desinteressantes.
Incrível como já é meio-dia, incrível como o "recreio" do café diário está a terminar, e aquele "até amanhã" dito aos habituais, soa-me a tempo que passa, soa-me a mais um dia escoado, soa-me a despedida de mais vinte e quatro horas.
Por vezes, dou por mim a dizer aos empregados : "até amanhã" ou "até logo", como se me recusasse a encerrar liminarmente mais um episódio, e como se, abrindo a hipótese a um novo regresso, "encompridasse" esse dia, ou acrescentasse um pouco de recheio, a um bolo demasiado "seco" ... tornando-o mais "comestível".
Neste momento, apavoro-me com o filme desinteressante e entediante, que são os meus dias.  Daria e faria tudo, para os poder diversificar e colorir ...

Mentira !!!...

Não faria, não faço, não me obrigo a fazer.  Marco e desmarco.  Invento, e com isso me animo, parecendo que uma luz qualquer se acende não sei bem onde ...  Para desistir no momento seguinte, e com isso apagar, sadicamente, a dita claridade.
Sinto-me a embiocar-me, a remeter-me à concha ... que fecho.
Objectivamente não tenho força.  Não encontro uma justificação satisfatória, para me "mexer" donde tão mal estou, e mais e mais, espantosamente, busco silêncio, solidão, vazio, como terapêuticas para o silêncio, para a solidão e para o vazio ...

Acho que estou doente.  Acho que estou gravemente doente.
A sério ...
Ninguém vive assim, rodeado de um desinteresse e cansaço, que nos cortam à faca todos os dias, que nos estraçalham  por dentro, a ponto de desejarmos que por fora nos aconteça o mesmo, em sinónimo de paz ...
Ninguém pode viver por viver, ou seja, viver porque respira, come, dorme ... esvaziado de vida, simplesmente arrastando vida, ou melhor, arrastando tempo ... consumindo-o apenas, afinal !

E para quê ?  Com que objectivo ?
Apenas gastá-lo ... aquele de que dispomos, como se cumpríssemos somente mais uma tarefa das nossas vidas ?!...  Como quem diz :  já que tem que se fazer, se faça ?!  Em estando feita, estamos despachados ... É isso ??
Não pode ser isso !!!...
As pessoas não estão tão amarguradas ou tão enlouquecidas assim ; as pessoas não estão perdidas desta forma, as pessoas caminham,  e  dá ideia que sabem para, e por que caminham !

Eu não !

Pareço aquela folha, sem querer, largada à sua sorte, que  na alameda do jardim  rodopia ao sabor do vento,  indiferente à sua vontade,  e  dela escarnece, empurrando-a para a direita, para a esquerda, para a frente, para trás ... levemente ... violentamente no instante seguinte.
Atira-a num remoinho louco para um canto, para logo a seguir, a obrigar a sair de lá, e a paz que supostamente alcançara, se perturbar de novo ...
E tudo recomeçar, enquanto ele ... o vento, quiser, e a folha "durar" ... Porque "existir", ela já não existe ... há muito !... Desde que abandonou aquele galho, donde via o Mundo e experimentava o calor do sol ... que já não existe !!!

Isto hoje, mais parece o "Muro das Lamentações" ...

Se aqui estivesse a minha filha, no seu sábio pragmatismo, no seu realismo e determinação, iria perguntar-me se eu penso que a vida das outras pessoas é diferente ?
Se eu acho que resolvo alguma coisa a lamentar isto e aquilo, e a não fazer isto e aquilo ?
E desfiar-me-ia de imediato, um rol de atitudes que eu teria que tomar, um rol de mudanças de posturas que eu teria que operar, uma data de decisões, que eu deveria implementar,  para ...
E ia agitar-me o espírito, como num "shaker", ia martelar-me os miolos com uma persuasão terrífica, ia soprar-me uma lufada de ar fresco, enérgica,  no coração, de tal forma que eu até ia sorrir, e acreditar que era capaz, que afinal até tinha tudo p'ra dar certo na minha vida, que o futuro ou algum futuro, estava bem ali na minha frente sem que eu o quisesse ver, e que urgia agarrá-lo com as duas mãos, com convicção, e acreditar que não sou exactamente o monte de esterco, que até sou !!!

Enfim ... como é que eu fui capaz de parir uma filha assim tão "perfeitinha" ???... rsrsrs

Anamar

segunda-feira, 18 de março de 2013

" HOJE "



"Dar a outra face", dizem que foi o que Cristo fez.
Mas Esse, era filho do Outro, e o Outro era o Deus todo poderoso, dizem as Escrituras, o Evangelho, a Bíblia ... Tudo com que quiseram "encarneirar-me" ainda em pequena.
Mas eu sempre fui ovelha fora do redil, fora de todos os redis da Vida, e cada vez mais o sou, porque neste momento, estou absolutamente refinada !

Essa Vida, molda, forma ou deforma as pessoas, constrói-as e desconstrói-as, aleatória e indiferentemente, ao sabor da sua governação.
Os seres superiores, porque sei que os há, por terem uma resiliência invejável, por terem uma bonomia, uma capacidade de aceitação, de resignação e esperança, têm em si os mesmos desígnios de Cristo, e ferem-se, e sofrem, e doem-se e flagelam-se, mas reerguem-se, humilham-se, sacodem as penas, retomam o caminho, até parece que reforçados.

Deve ser óptimo ser assim.  Conseguir manter-se assim, independentemente das tempestades que as açoitam, em paz consigo mesmas, cordatas com o Mundo que as rodeia, sem ânsias de vinganças, sem ódios ou raivas.
Deve ser óptimo, porque apesar de tudo, será menos destrutivo, menos desgastante, menos amargo, menos doído para elas, e para quem as cerca, seguramente ...
É uma atitude inteligente, só pode ;  diria que é uma atitude racional e esclarecida, e efectivamente há momentos em que não adianta ser emocional.
É uma mais-valia que só atrapalha e complica !

De  que  adianta  a um náufrago, com as forças no limite, continuar  a esbracejar contra o sentido da corrente ??...
Os bichinhos da savana africana, sabem que para atravessarem um rio com correnteza forte, o trilho inteligente não é tentar cruzá-lo a direito, perpendicularmente às margens.
Não !
Embora sendo essa a menor distância, seria inglório o esforço, já que seriam sempre arrastados pelas águas, cansar-se-iam, e provavelmente morreriam, antes de alcançarem a almejada margem.
O instinto revela-lhes que o segredo está em deixar-se ir com a água, obliquamente às margens, que os arrastará até ao outro lado.
Mais longe, é verdade, mas já em terra firme.

É como aquela frase ouvida frequentemente : "Dar murro em ponta de faca " ...
Pois é !  Aí está outro esforço sem sucesso.
Então, para quê fazê-lo ?

A "sabedoria das águas", que não contundem, contornam ... mostra-nos que quando o obstáculo é intransponível, não gastemos energias a saltá-lo.  Ignoremo-lo e rodeemo-lo, e seguiremos o caminho em paz.
Talvez assim, com esta prática, nos desgastássemos menos ...

As ondas batem incessantemente nos rochedos, despejando-lhes toda a raiva que transportam, modelam-nos, erodem-nos, transformam-nos.
E ao longo dos tempos, lá ficam os sinais das eras, dos dias e das noites, das tempestades e dos ventos ... dos ciclos ... da Vida !!!

Eu sinto exactamente isso em mim.
E não o sinto pela positiva !
Sinto que, não sendo um "ser superior", sendo um ser eminentemente imperfeito, sendo alguém particularmente cansado, não sendo Cristo nem O seguindo, não tendo neste momento em especial, arcaboiço p'ra muito mais, percebendo-me na eminência de uma ruptura, observando os sinais nítidos de uma erosão profunda e de um desgaste abissal, provocados pela realidade que me envolve ... e não conseguindo usar da tal inteligência, racionalidade ou sequer resiliência, que por todas as razões, seriam de utilidade usar ... a dureza, o distanciamento, a insensibilidade, a rudeza e a indiferença, tomam-me conta.
O amargo, a revolta, a raiva, a desesperança e o cansaço, beirando a desistência, abafaram o que de melhor eu tinha, soterraram a pessoa bonita e doce que talvez eu fosse, retiraram a bonomia e a complacência, a disponibilidade e a entrega que eu possuía, destruíram a minha capacidade de me dar e de me transcender pelos outros ...
E instalaram-se !

Hoje, eu sou uma espécie de "serial killer" das emoções destrutivas.
Hoje, eu "disparo" em todas as direcções, eu esfrangalho, porque eu odeio.
Eu arraso, porque abomino o que ainda está em pé ...
Hoje, eu verto sangue por todas as ranhuras ... do coração à mente ... da alma às entranhas ...
E parece não haver garrote que possa estancar esta sangria.
Hoje, eu sou uma pessoa execrável, indesejável, abominável ...
Hoje, eu detesto-me e odeio este esqueleto e este invólucro que diariamente tenho que carregar, com que diariamente tenho que conviver !

E sinto-me injustiçada.
A sério ... sinto que esta coisa nojenta, defraudante e safada a que chamam Vida, e que tudo manda, contra a qual tenho pouca capacidade de defesa ( por inabilidade, seguramente ), não poderia funcionar assim comigo .
Hoje, como um animal acossado, aquele animal que na rua foi destratado, magoado, pontapeado, ferido e escorraçado, eu afasto de mim o ser humano ( de quem tenho uma imagem deformada e deformante ), afasto de mim qualquer capacidade de afecto, por desconfiança ... Fujo da mão que se estende, porque não acredito mais, que essa mão possa querer fazer-me um afago !!!

Em suma ... Como vêem, quem terá que fugir de mim, será o Mundo ... porque  vocês, certamente estarão a lamentar o que lêem, e a não quererem  acreditar que eu o escrevi !!!...

Anamar

domingo, 17 de março de 2013

" O MEU BRINDE " ( vinte mil acessos à página )



O meu post de hoje, é irrelevante.  Aliás, mais irrelevante.

Não quis contudo deixar de referenciar e partilhar convosco, a satisfação que experimento neste momento, em que este meu espaço completa vinte mil entradas de leitores.

Desde sempre me posicionei por aqui, como numa casa, que embora de portas abertas, não publicita o seu endereço.
E não publicita, porque tenho consciência plena do seu  interesse, muito particular e relativo.
Efectivamente,  não se trata de um blogue de cariz eminentemente objectivo, cujos temas abordados suscitem  motivação, análise ou até discussão, por parte de quem o lê.
Não tem enfoque político ou social, por excelência, não traz a lume, temas eminentemente contundentes, que desencadeiem  discussões ou divergências apaixonadas, ou mesmo envolvimentos acalorados.

Não sou, nunca fui, dona de verdades.
Tenho apenas as minhas ... reflectidas, sem dúvida, mas tão só "as minhas",  passíveis de serem  valorizadas  ou não, de terem concordância ou não, adesão ou não ...
Verdades que podem ou não, justificar perda de tempo por parte dos leitores !

É um espaço, aliás como o apresento, profundamente intimista, sem pretensões ambiciosas a que o apoiem ou derrubem, ou sequer o vejam.
Vale o que vale ...  Vale, como vale tudo quanto é subjectivo, pessoal, do domínio dos sentimentos, comandado por uma mente e um coração que são os meus, e não outros ...

Começou meio a brincar, meio a experimentar e a tactear o que com ele faria, ou onde chegaria.
Contudo, nele me revejo, ele faz-me falta,  através  dele  respiro, nele me oiço, me contesto, me critico.
É um lugar de  análise de muita coisa, mas prioritariamente da minha pessoa, da personalidade estranha que também sou ;  é lugar de reflexão exaustiva ... por vezes demasiado exaustiva ;  é um quarto onde me desnudo, num "striptease" de alma, expondo-me sem pudores, como se esse exercício me ajudasse a expurgar tanto do que me atormenta ...

É um espaço livre, de amplos céus e sem horizontes que o limitem, senão aqueles que lhe imponha ... como se a cada momento, eu dançasse solta e menina , na charneca da minha terra ...

É uma tribuna sem grades que me tolham a vontade, sem grilhetas que me confinem o pensamento, sem amarras que me sufoquem a mente ... sem nada nem ninguém, que me cerceie a loucura ...

É um espaço, onde sempre tenho por companhia e por amparo, o meu coração, exposto, desarmado, desgovernado muitas vezes, raramente feliz, sangrando quase sempre, como o meu chão sangra, coberto das papoilas da Primavera ...

Ele  traz- me  muitas  e  gratas  recordações ...  Lê-lo  é  ler  a  minha  vida ...
E cada post é um episódio da mesma, que sempre me reconta com clareza, se o sol me iluminava, ou se as gotas da chuva me escureciam a alma, ou até se as lágrimas molhavam o papel, ao tombarem, naquele momento !...

Também é uma bancada eclética, nos temas que aborda, embora não seja essa, prioritariamente a sua vocação.
Sempre que oportuno, sempre que o reporto como importante, sempre que sou tocada por um ou outro acontecimento social, cultural, da actualidade nacional ou do Mundo, no domínio antropológico, no domínio científico, ou mesmo no meu restrito domínio familiar e pessoal, o abordo, do meu ponto de vista, e o deixo à consideração dos demais.
É também por isso, um espaço de divulgação de tudo o que considero merecedor ... por importante !

Em última análise, poderei dizer que ele é uma fiel fotografia minha ... escrita !

Também já referi, algures, creio, que mantenho comigo o suporte em papel de tudo o que tenho debitado por aqui, o que constitui um espólio que já vai em dez volumes.
Essas "Páginas no Vento" que vou largando, e que o vento vai transportando pelas falésias, pelos areais, pelas copas dos pinheiros das matas ... que se miscigenam com as gaivotas planadoras que invento, admiro e invejo, serão a  minha  única  herança,  realmente  com  valor, ( por  ser  "propriedade  intelectual"  exclusivamente  minha )  que tenciono deixar aos meus netos.
Nela me reconhecerão, seguramente ...

Resta-me deixar humildes agradecimentos, a todos quantos, visível ou invisivelmente me lêem, por todo o Mundo ( porque é espantosamente verdade ), e também as palavras que por vezes me deixam, nas pegadas que desenham aqui, nas minhas páginas, com as quais estabelecem  "pontes invisíveis" de afecto,  comigo ...

Com todos vocês, ergo por isso,  o meu brinde de gratidão !

Bem-hajam !!!


Anamar

sábado, 16 de março de 2013

" AMOR "



Fui ver um filme laureado com a Palma de Ouro 2012 no Festival de Cannes, e vencedor dos Prémios do Cinema Europeu.
Realizado pelo austríaco Michael Haneke , tem como actor principal, um intéprete que me transportou aos meus desassete, dezoito anos - Jean-Louis Trintignant, protagonista do velhinho "Un homme et une femme" dos anos 60, que foi uma referência na minha vida.
Sabem aqueles filmes românticos, que vemos de mãos dadas, quando se "curte" uma paixão, e portanto, o mesmo lhe fica associado ?
Pois é ... Então,  eu encontrava-me nesse estado !... (rsrsrs)

Não lembro rigorosamente nada, do enredo do bendito "Un homme et una femme".
Lembro o par romântico que lhe deu vida, como disse, Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée, e lembro a banda sonora da película, que dancei na altura, em uma ou duas matinés, ditas de "garagem", das poucas vezes em que consegui permissão da minha mãe, para um programa.  E vejam bem ... Que programa !!!...

Pois agora fui encontrar um Trintignant velho, obviamente, o que me fez percebê-lo também um comum mortal, mas com uma interpretação igualmente ao seu nível ... magistral, simplesmente !

O filme "AMOR", aborda comoventemente, com uma naturalidade, uma objectividade e um realismo espantosos, exactamente esse sentimento entre um casal de idosos, Georges e Anne.
Professores de música,  e com uma vida normal,  Anne é repentinamente surpreendida por um grave problema de saúde, um Acidente Vascular Cerebral que a incapacita, não só da sua profissão que ainda desempenhava gostosamente, como da sua vida diária.
Desde a rotina comum do dia a dia, alastrando progressivamente a tudo, a incapacidade e a dependência, acabam confinando-a a uma cama, onde mais vegeta que vive.

E somos portanto confrontados com uma situação tão espantosamente óbvia, da qual conhecemos  "n" casos - do vizinho, do amigo, do conhecido - e que normalmente não consciencializamos, que efectivamente um dia, pode ser nossa também.

Todo o filme se desenrola, pondo o espectador perante as dificuldades ( todas ... as pequenas e grandes dificuldades ), da realidade diária daquele casal, que tinha consigo, contudo, uma arma poderosa e indestrutível ... o amor partilhado, dividido, cumpliciado, dado naturalmente e sem limites, sempre ...
Um  amor-abnegação,  um  amor-rochedo,  um  amor-muralha ...

Sendo a mulher, a paciente nesta vissicitude, e tratando-se de pessoas da faixa etária que referi, inseridas numa sociedade, em que pelas suas idades,  terá sido seguramente conservadora, mais enternece ainda, que aquele homem leve até ao fim, com um amor, uma coragem e uma determinação, todas as tarefas, todas mesmo, visando a manutenção da sua mulher, no seu espaço de vida  e de conforto, por forma a minorar-lhe o sofrimento.

Transformando-se praticamente num vegetal, sem fim à vista, fácil seria para Georges, interná-la numa clínica, num hospital, num lar ...
Apenas, não é isto que acontece.
Desde cuidá-la nas necessidades básicas, a ler para ela, a passar-lhe música, a falar-lhe docemente a "contar-lhe" Vida, tentando dessa forma "puxá-la" ou  mantê-la ligada a ela ... tudo isso preenche os seus dias, enquanto se vai assistindo na tela, à degradação progressiva de Anne, e à devastação provocada pela doença, na vida daquele casal.

O filme termina, com o mais supremo e sublime acto de amor, de que um ser humano seria capaz.
De uma forma calma, serena, interiorizada e assumida, não querendo que alguém que ele amou acima de tudo, companheira de uma vida e já um farrapo da mesma, pateticamente continue num sofrimento sem retorno, Georges decide pelo fim daquele "inferno" para Anne, e posteriormente para si, porque a sua razão para viver se  esvaziou,  e  se  tornou  insuportável  prosseguir  o  caminho  sozinho ...

O filme é basicamente isto que narrei.
Não dispensará no entanto, que o vejam.
Aliás, o drama vivido por Anne e Georges, só consegue ser claramente percebido, sentido, valorizado, penetrando-se na permanente semi-obscuridade ( intencionalmente marcada ), daquela casa, entrando-se naquele quarto, olhando-se aqueles rostos angustiados, mergulhando-se no desnorte do olhar vazio e distante, de Anne,  na recta final ... assistindo-se à decisão doída e desesperada de Georges, como epílogo de tanta provação.

Emocionei-me, sem dúvida ... Como não ???

Quantos serão os mortais, que terão a felicidade de no fim das suas estradas, realmente, para o bem e para o mal, terem às suas cabeceiras um Georges ??
Quantas serão as Anne, assim tão privilegiadas e abençoadas ??

Creio que cada vez menos, muito menos ...
Terminaremos sozinhos.
A maior parte de  nós,  terminará  efectivamente sozinha ...
Essa, a triste realidade das vidas, talvez a sua maior certeza !!!...

Anamar

quinta-feira, 14 de março de 2013

" ANTES OU DEPOIS ... "


                                                             19-5-1890        26-4-1916
Estou no piso superior do Alegro.  No piso dos cinemas.
Decidi  vir  ver  um  filme  que me reportaram  como  muito  bom, e que deve estar a sair de exibição : "A vida de Pi".

À minha frente, os grandes painéis de vidro, são uma janela debruçada para o maciço de Monsanto.
O verde denso, circundado por vias rápidas e auto-estradas em rotundas, curvas e contra-curvas a vários níveis, lembra-me o corpo de um animal, constrito pelos anéis envolventes  de uma gibóia, em movimento permanente.
Apesar de estarmos no fim da tarde, há um sol envergonhado quase a sumir, num dia que tem estado de aguaceiros, alternando com céu pseudo-ensolarado.
Há gaivotas que voam por aqui, a espaços, certamente recuadas da orla marítima ...
Há ruído, um ruído uniforme indistinto.
É um ronco, do mundo que vai aqui dentro.  Nada nele se distingue ou sobressai ... Nem uma voz, uma gargalhada, um choro, um grito de criança, um berro ... Nada !
Apenas este coro em uníssono, como um "puré" de sons, em fundo, num tom alto e constante !

Ando a ler sobre Mário de Sá-Carneiro, um escritor e poeta dos fins do século XIX e princípios do século XX, porque direi, que nada além do nome, sei sobre ele.
Na próxima tertúlia literária que ocorrerá em Sintra, depois de Fernando Pessoa, tem tudo a ver, ser abordada a obra de Sá-Carneiro ... amigos íntimos que o foram .

Nos meus tempos de liceu, os alunos que seguiam para Ciências, ficavam com uma precária formação na área de Letras, a partir do antigo quinto ano do liceu, actual nono.
A sua cultura literária, enfermava de lacunas profundas.
Até ao 9º ano, os autores abordados não tinham nada a ver com a contemporaneidade da escrita.
Os assuntos eram tratados exaustivamente, numa abordagem maçante e desmotivadora.  A metodologia utilizada, parecia não contemplar a necessidade da motivação para a leitura e para a escrita.
Lembro a árdua tarefa de dividir as orações nos Lusíadas, verdadeiro quebra-cabeças para quem tinha mais dificuldades.
Lembro Fernão Lopes, Gil Vicente e os seus Autos, lembro as "cantigas de amor", "de amigo", de "escárnio e mal-dizer" ... D. Dinis e o trovadorismo medieval,  lembro o "Sermão de Sto. António aos Peixes" ( séc. XVII )  do Padre  António Vieira, ou  o  seu "Sermão  da  Montanha",  as  "Guerras   de  alecrim  e  manjerona"  ( séc XVIII ),  até   mesmo   o  bem  posterior  "  Frei  Luís  de  Sousa ",  de  Garrett  ( séc. XIX ) ... enfim, lembro uma escrita arrevezada, pouco interessante ou apelativa, fastidiosa, sobretudo para quem não cultivasse a  leitura .
Os autores contemporâneos não eram estudados ... Pessoa  nem sequer era referido, Eça, praticamente arredado dos bancos da escola ... Jorge Amado, por exemplo, uma eminência lá de longe ... não abordada !

Eu era boa aluna, quer na área de Letras, quer na de Ciências, mas nunca me senti "aproveitada" ou estimulada, para a literatura portuguesa ou internacional.
Os meus pais, como já referi, eram pessoas quase iletradas ;  eu, convivia pouco, e portanto o meu leque de conhecimentos também não era propiciador a colmatar-me essas lacunas.
Por isso, o contacto mais alargado com autores renomados, iniciou-se depois de ter casado.
Aí sim, começaram a comprar-se livros em casa, além dos existentes e a que eu poderia ter tido acesso, se motivada, na minha casa de solteira.
Aí existiam os tradicionais livros de Júlio Dinis, Guerra Junqueiro, Eça, Alexandre Herculano, Garrett, Fialho de Almeida, António Nobre, Augusto Gil, Ortigão, Ferreira de Castro ... entre outros, lembro.
Havia também obras de alguns autores estrangeiros de referência, que o meu pai comprara, creio, para rechear a estante da mobília de "torcidos" do seu escritório, com portas de vidros, a deixarem ver as lombadas  devidamente  encadernadas  e  bordadas  requintadamente a ouro.
Na altura era um pouco assim ...
Nada mais !

O  meu ex - marido era da área de Letras ;  licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, um meio privilegiado para o desenvolvimento de uma formação global mais alargada.
Coimbra era terra de estudantes, como se sabe, era rica em iniciativas culturais, em tertúlias, debates, conferências, ou simplesmente em alargados convívios de café, troca de experiências de vida, e de conhecimento, em que a dialéctica abria horizontes, suscitava a discussão, e o cotejo de opiniões, valores e princípios.
Não é à toa, que uma larga  elite intelectual  deste país, aí tenha então sido forjada .
Ele viveu a Coimbra dos anos 60, em plena crise académica, com o país e a Europa em convulsão, o que propiciou ainda mais, tomadas de consciência e desejo de informação sobre toda a revolução social e política que então se vivia, em Portugal e no Mundo.
Sendo um jovem ávido de conhecimentos, alicerçou-os exaustivamente, também pela leitura sistemática de jornais, revistas, publicações ( algumas censuradas e portanto clandestinas ), "bebendo" e dissecando tudo a que tinha acesso.

Tivemos portanto, também aqui, formações bem dispares !

Tudo isto a propósito de Sá-Carneiro ... Sá-Carneiro que se suicidou em Paris, com vinte e cinco anos, apenas.
Amigo íntimo de Pessoa, trocou com ele profusa e sistemática correspondência, até ao momento da sua morte.

Até aqui, tudo mais ou menos normal ...
Mais ou menos, porque não pode ser normal em época nenhuma, um jovem de 25 anos por fim à vida !
Mas o que me impressionou verdadeiramente em tudo isto, e o que me fez um sentido absoluto nesse acto, que seguramente classificamos de tresloucado, foram os motivos por que o fez.

Diz a sua biografia, que se tratava de uma personalidade totalmente desenquadrada socialmente, uma pessoa desajustada e em permanente sofrimento, por viver uma realidade que lhe era pesada, que não lhe era nem significativa nem consequentemente gratificante, que não lhe valia a pena, na qual não encontrava, não encontrou, razão suficiente para ter que a suportar.
Sá-Carneiro era um desencantado, um defraudado da existência, um remador cansado, contra marés de desespero ...
Cada dia,  representava uma pena a cumprir, cada momento era arrancado de uma realidade dura, desinteressante e insatisfatória.
Talvez levianamente o classificássemos de um "doente" !...

Protelou enquanto deu, a decisão final, e foi a impossibilidade de alcançar o equilíbrio emocional, foi o inconformismo experimentado, que a precipitaram.
A sua obra, contudo, ficou, frutificou e ainda vive, apesar de ter sido fugaz.
Deixou fortes marcas na literatura portuguesa.  Foi um dos expoentes do modernismo, um futurista, foi um dos  membros  fundadores  ( juntamente  com  Pessoa  e  Almada  Negreiros ), da  revista  literária  Orpheu (  verdadeiro escândalo literário, à altura, e por isso, censurada ;  apenas saíram do prelo, dois números ).  Em última análise, Sá-Carneiro foi uma alma inquieta, à procura de si próprio ...

"Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando ;  afinal tenho o que quero : o que tanto sempre quis - e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui " ... diria na carta de despedida, dirigida a Fernando Pessoa, o qual  afirmaria mais tarde : " Morre jovem o que os Deuses amam "

Como podem ser tão iguais, as formas de sentir, de viver, do encarar da existência, por parte dos  seres humanos, independentemente das épocas, das gerações e das realidades que se atravessam !!!...
Há  de  facto, ao  longo dos tempos  e  das  vidas, antes ou  depois, muitas almas inquietas em  busca  de si mesmas,  sem nunca se encontrarem !!!...

Anamar

terça-feira, 5 de março de 2013

" A MINHA COMPANHEIRA DE VIDA "



O dia não podia ter amanhecido mais adequado.
É meio dia, mas a escuridão da rua adivinharia umas seis ou sete da tarde.  Chove torrencialmente, ininterruptamente.
O céu está uniformemente plúmbeo, o que indicia uma continuidade atmosférica, sem alteração possível.

O dia não podia de facto ser mais adequado ...
É um dia de partida, um dia de despedida, como são todas as partidas, e ainda mais as partidas definitivas.

A Rita vai embora.
Marcou hoje, exactamente 4 de Março, ironicamente uma data que já me estava marcada no calendário do coração, para me deixar.
Deixar mais só, mais pobre, mais abandonada ...

A Rita viveu comigo, catorze anos da sua vida .
Foi o animal mais dócil, mais meigo e menos exigente, que alguma vez conheci.  A Rita era filha do medo, era marcada desde os seus primeiros tempos de vida, pelo susto e pelo sobressalto.
Talvez por isso, nunca exigiu, nunca reivindicou, nunca definiu território.
A Rita nunca soube que tinha armas de defesa, perante nada nem ninguém.  Assim foi com os humanos, assim foi com o Óscar, assim foi com o Jonas.
A Rita acomodava-se aos espaços, às situações, às limitações ... sempre cordatamente.
Enquanto o Óscar viveu, como líder que era, impôs-se na relação comigo, e a Rita aceitava os restos.
O Óscar partiu há três anos e meio, e só então a Rita consciencializou o seu espaço de direito, físico e afectivo.
Passou a dividir os longos serões de Inverno, na cama comigo, primeiramente aos meus pés, sobre o édredon, quando a televisão se fazia razão de vida ;  depois, aos poucos, arriscou entrar na roupa, arriscou deitar-se corpo com corpo, ao meu lado, e parecia responder à chamada, nas noites mais frias, quando eu lhe dizia : " Vá Rita, aquece a dona" !...
Adquiriu rituais próprios.
Logo que a luz se apagava, subia até ao meu rosto, e cheirava, tacteava com os bigodes que me faziam cócegas, por forma a perceber para que lado eu estava voltada, porque era sempre nesse, que ela pedia com a pata, para entrar.
Eu levantava a roupa, ela hesitava um pouco, e acabava aninhando-se junto de mim.
Saía e entrava ao longo da noite, mas não abandonava a minha companhia.

Quando o tempo aquecia, trazia a Rita para a sala principal, para uma cadeira junto à secretária, e aí passava as noites.
Havia demasiado calor, para dividir a cama comigo.

A Rita adorava o sol.
Nas manhãs em que este banhava a minha casa, percorria o chão da sala atrás dele.
Quando o Jonas entrou, a sala fechou-se, porque o Jonas é um bébé desatinado, à espera que a "maturidade" o impeça de fazer mais disparates além dos que já conseguiu fazer, desde que chegou.
Roubei então o sol à Rita, que ia até à porta de vidros, que lhe impedia o acesso, e olhava, saudosa dos dias, em que as manhãs eram calmamente relaxantes, no quentinho das carpetes.
Mas também aí ela não reclamava.
Voltava pacientemente, submissa, conformada ...

Posso dizer que os únicos tempos mais tranquilos e felizes, passaram a ser para ela, as noites que partilhava na minha cama, quando a porta do quarto se fechava, o Jonas ficava no exterior, e ela finalmente saía de debaixo da camilha, onde permanecia no escuro, por todo o dia, tentando furtar-se ao seu contacto.
Porque até dele, ela parecia ter medo !...

A Rita nunca teve um olhar alegre, sempre me olhou melancolicamente, contudo sempre pareceu entender-me.
Tenho a certeza, que seguramente "me" sentia.
Muitas vezes, em momentos mais difíceis da minha vida, os seus ouvidos foram os únicos que me ouviam dizer : " Rita, isto hoje está mau ... vês ?!..."  enquanto me olhava ... olhava apenas ... a forma mais eloquente que os animais têm de se mostrarem  presentes e nos dizerem : "Estou cá !..."  com toda a dedicação e amor que nos devotam ...

Hoje, que chove, que está frio e cinzento, a Rita vai embora ...
Desta vez, ela não pensou em mim.
Não pensou como vou ter frio sem ela na minha cama, como me vou sentir desamparada, sem ela me ouvir, como me vou sentir órfã, sem o verde dos seus olhos fixos em mim, a dizerem-me como sempre : " Deixa ... melhores dias virão !  Aguenta-te firme, porque estamos aqui as duas " !!!...

Porquê, Rita ... por que foste ??!!
Logo agora !!!... Também tu !!!...

Anamar

segunda-feira, 4 de março de 2013

" ONTEM " ( Este post tem o atraso de um dia )

Ontem coloquei um post contundente.
Um post lamentável, desnecessário, dispensável, um post em que abri os diques e deixei jorrar, simplesmente verter, numa espécie de catarse, tudo o que me vai na alma.
Coloquei-o assim, transparentemente, sem defesas, filtros ou maquilhagens, sem preocupações de preservação pessoal, defesa ou estudada  pré-concepção, sobre os juízos de valor que poderão ser feitos sobre mim, por quem nele topar.

Foi simplesmente um post, em que a raiva, a mágoa, o desencanto, a impotência e a minha inabilidade ou incompetência para fazer a Vida, estão bem patentes, com um indiferentismo frio, distante, sem cuidados ou calculismos.
Esse, foi talvez o post, nos quase setecentos que já escrevi, em que fiquei completamente nua, asquerosa, desinteressante, abominável, o post com menos "decoração" estudada, com menos faxina feita.
Nele joguei  o meu lixo, joguei a minha desistência, joguei a minha ausência total de auto-estima, aos quatro ventos, joguei o pior de mim, sem pudores, num palco aberto.
Abri afinal tudo o que o ser humano inteligente, prevenido, cuidadoso ou realista, e não insano, incontido e desarticulado, tenta prudentemente camuflar, tenta sempre camuflar.
Ontem tirei os "esqueletos dos armários", abri as comportas, e borrifei-me  para os estragos das inerentes inundações,  tirei a "burka", destapei o rosto sem retoques, ontem ( como dizem os brasileiros ), joguei a "merda toda no ventilador", e ignorei simplesmente, o que possam socialmente pensar sobre isso ...

Até pode parecer que não, trazendo aqui hoje esta reflexão ...
A mesma parece reveladora de uma consciência intranquila, insegura, como o menino traquinas que abre a boca, solta o palavrão, e quando consciencializa ... já foi !
E a palavra dita, como a pedra jogada, não retorna, não volta nunca.

Algo me ficou a bater mal .
Não o juízo de valor que possam fazer sobre mim, não aquilo que perderei / ganharei em imagem, ao tê-lo escrito tão desarmadamente, não o "medo" de exibir o perfil do "monstrinho" à solta por aí, não o receio do peso da censura social ( já que o Homem, querendo ou não, está inserido em sociedade ), ou o que seria pior ... o  pavor de olhar o tal espelho  de que  falava, e  recuar assustada, siderada, perante o que visse ...

Também não é uma chamada de atenção sobre mim.
Lá vai haver quem o pense, e por vezes até será legítimo, já que os mecanismos mentais dos seres humanos, são tão intrincados e enviesados, que há muitas formas de enviar "mensagens", muitos meios de atirar foguetes de sinalização, muitas maneiras de fazer sinais de comunicação, e lançar SOSs.

Não !
O meu post também não tem esse intuito, até porque já ultrapassei o limiar da vontade de ser "salva", já passei  a  "red line", a partir da qual se desacreditou de tudo, mas de tudo mesmo, e do "valer a pena" também ...
Estou como a Rita, no fundo da jaula, amarfanhada, sem fazer pela vida, sem que lhe valha a pena reconhecer a mão que a acaricia, pouco abrindo os olhos para o perfil que dela se aproxima, limitando-se a cheirar, talvez a identificar pelo cheiro, um amor que lhe fica cada vez mais longe e ausente.
Estou exausta, num limite de ruptura !

Costuma dizer-se, que quando se bate no fundo, depois é sempre a subir ...

Ontem decorreu uma manifestação social em Portugal, de indignação contra a política desenvolvida pelos órgãos governativos, e pela forma criminosa, como têm conduzido e afundado o país, inevitavelmente para o beco sem luz em que vivemos.
Foi uma marcha calma, convicta, assumida, de muitos milhares e milhares de  portugueses, de todas as gerações, de todos os estratos sociais, de todos os credos, de todas as cores políticas, seguramente.
Tive muita pena de não ter podido estar presente.
Por todas as razões, e sobretudo, porque pertencendo à geração de 60, atravessei, neste país, ao longo da minha vida, conturbações demais, a todos os níveis, assisti a convulsões esperáveis e não, sofri angústias, incertezas e dificuldades, minhas e dos meus concidadãos, faço parte da geração "charneira", a geração que esteve, está e estará entalada, entre princípios, valores, conhecimentos, exigências, caminhos diversos, opostos, em que numa viragem de século, repentinamente, o que era não é mais, tudo foi posto em causa, as linhas norteadoras viraram de 180º, fomos educados e tivemos que educar de formas antagónicas, fomos confrontados com alterações a mutações de estilos de vida, em que as "ferramentas" adquiridas, repentinamente ficaram obsoletas, inapropriadas e inoperacionais ...
É portanto, uma geração sofrida, uma geração de sacrifício, uma geração com história de resistência, de coragem e de fé !

E novamente, sem que o pudéssemos sequer imaginar, atravessamos montanhas ciclópicas de dificuldades, dores e privações ... atravessamos túneis de desespero, de incertezas, impotência e de cansaço, sem luz em lugar nenhum ...

E ontem quando, pela televisão, ouvi depoimentos de muitos dos manifestantes, e ouvi das razões que ali os levaram, senti o poder da solidariedade, a força de ideais e sofrimentos comuns, o amparo que as dificuldades colectivas trazem aos nossos corações .
Senti que de facto, o ser humano não está ilhado, não existe "barricado" em sentimentos, não pode nem deve constituir-se célula individual, e percebi a força e o poder que se tem, quando muitos percebem o mesmo grito interior, que é de todos ...

E essa sensação de não estar sozinha, deu-me alguma resistência psicológica, porque ao contrário de "com o mal dos outros posso eu bem " ... com o mal dos outros,  percebemos  que a carga fica, de facto, dividida, porque mesmo ali do nosso lado, está alguém a vivenciar realidades iguais, aflições iguais, desilusões iguais, falta de esperança, cansaço de vida, prestes a desistir muitas vezes, a depor as armas, outras tantas ... exactamente como nós !!!

Perante a realidade colectiva, na verdade, a minha, pessoal, é de um egocentrismo quase provocador e ofensivo, porque efectivamente, eu não sou ninguém ... ninguém é nada, e a vida corre indiferente, todos os dias !...

Anamar

sexta-feira, 1 de março de 2013

" NÃO ME DÊS FLORES "



Não me dês flores !

Não me dês flores porque aqui, morre tudo.
Nesta casa, junto de mim, tudo parte.
A orquídea, o antúrio, a begónia e todas as begónias da vida que já me ofereceram, e todas as outras ... morrem, vão morrendo !
E dá-me uma raiva ... porque morrem em silêncio, não gritam, não esbracejam, não se rebelam, quando eu acho que a morte é demasiado importante p'ra não se fazer estardalhaço !

Por que é que não me querem incomodar, se o deveriam ?
Se eu não converso com elas como tinha que ser, se não lhes dou atenção, como a Catarina faz, que lhes fala, ou como a minha mãe faz às dela, dando-lhes ternura ?!
Por  isso,  elas  ganharam  vida, quando  regressou, e  transformaram  de  novo  a  cozinha,  num  jardim verdejante ...
Eu acho que consigo amaldiçoar o que me cerca, o meu mundo.
Eu acho que sequei por dentro, que me tornei um ser ignóbil, quase monstruoso.  Acho que não consigo ter lampejos de afecto, de dedicação, de generosidade.
Tornei-me uma egoísta extrema, endureci, fechei.  Parece que na verdade nada me toca, e no entanto tudo me mata !

E não sou tolerante, não consigo ter doçura, refinei a agressividade, a incompreensão, e não conheço a complacência, a paixão.
Olho o Mundo, e brigo com ele continuamente.  Faço gosto em reduzi-lo a nada, em desvirtuá-lo, em desvalorizá-lo.
Sou ressabiada, sou invejosa, e desdenho do que não alcanço.
Pareço saborear a raiva de magoar, quase de ofender.  Isolo-me e afasto-me, e no entanto ...
Bom, "no entanto" ... é tudo o que vai aqui dentro e de que não vale a pena falar ... "No entanto", é o que me aperta o peito e me derrama lágrimas pela cara abaixo ... " No entanto", é o que me desperta vontade de morrer ... "No entanto", é o que me faz sentir reles, pequena, esterco humano.

E por isso, tudo parte, numa espécie de maldição previsível talvez, lógica talvez, justa talvez ...
"Ninguém se abraça com cardos "... diria a minha mãe, nos seus sapientes pensamentos.
É isso. Ninguém toca um ouriço com os espinhos espetados ... e se calhar, o ouriço gostaria de um carinho ... ou não ??
Tudo e todos gostam de um carinho ... dizem !

O Óscar já partiu há mais de três anos.  Agora a Rita vai embora. Já me avisou.  Diz que não fica mais.
Olhou para mim, ontem, amarfanhada no fundo da jaula do hospital onde está internada, ouviu-me e cheirou-me de longe ... porque não se mexeu.  Mas acho que me conheceu.  Tenho quase a certeza.
E nada posso fazer.  Não posso impedi-la de seguir o seu trilho.
Grito com o Jonas, um bébé de sete meses, que a jogar à bola me inunda a cozinha com a água do bebedouro, que salta e deita tudo abaixo ... E  fico mal, muito mal, quando ele olha surpreso p'ra mim sem perceber bem, e quando sempre me responde com meiguices.  Porque o Jonas derrete-se em carinho ...

Respondo mal à minha mãe, com um cansaço acumulado, porque a sua saúde debilitada, implicou uma logística que me virou a vida ao contrário.
Era óbvio, era espectável.  Sou filha única, ela tem 92 anos, eu deveria ter, para lá da inerente e devida compaixão, amor e dedicação ... a real obrigação de tudo fazer.
É assim, certo ?
O meu egoísmo torna-me monstruosa, horrenda, má.
Não há nada pior, que um ser desapaixonado.  E é o que eu sou.
Pareço não conseguir nutrir sentimentos de compaixão, que é uma forma de paixão para com os outros.
E depois, quando ela partir, verei o efémero de tudo, bem ali na minha frente, terei a real dimensão da injustiça do meu egoísmo, e da minha ingratidão.
E ficarei mais vazia ainda ...

Consegui afastar-me doídamente dos meus.
Adoro os meus pequeninos, mas não me transcendo por eles.
Pareço conseguir viver bem, sem ninguém.  Pareço independer da preocupação, do afecto e do amor que me dedicam ... Porque o fazem, de facto !
E senti-lo, ainda me deixa mais mal, porque me coloca frente a um espelho, de cuja imagem preferia fugir a sete pés ...

O meu ex-marido dizia : "Vai p'ro deserto ... vive lá " ! ...  Creio que dizia ... já não lembro bem, mas acho que sim.
Pelo menos isto ecoa-me nalgum lugar.
Como  quem  diz : "És tão execrável, que "marra" contigo própria, não massacres os outros ... Não sou Cristo " !
De facto, os seres de exclusão devem na verdade ser excluídos da sociedade.  Assim são os malfeitores, os criminosos, os imerecedores ...

Hoje a minha filha mais nova, aniversaria.  Trinta e cinco anos também muito sofridos já.
Também dela estou afastada, e no entanto ela faz-se presente quando pode ou quer.  E queixa-se.  Queixa-se  que  cortei  o "cordão"  radicalmente,  cedo  demais.  Ou  talvez  apenas,  o  seu  "cedo  demais" ...
Porque provavelmente precisava de o ter ainda amarrado a mim, e eu fui impiedosa, não quis saber ...

Dos amigos também recebo muito mais do que dou.  Aliás, creio que não dou nada, estou convicta que darei muito pouco.
E pergunto-me que estranho fenómeno é este, que "bonomiza" tanto as pessoas com quem tive o privilégio de me cruzar, que ainda assim, sempre me estendem uma mão para não me deixarem ir para o fundo ...
Que  raio !  Por  que  são  as  pessoas  tão  humanas,  e  eu  sou  um  estupor ??!!...

E depois, dou comigo a tentar lançar culpas de toda esta anormalidade, irreversibilidade e determinismo ... sobre a Vida ... sobre o Destino ... sobre o Azar que tive, ao atravessar "desertos" emocionais que me destruiram ... sobre a infelicidade de não me ter dividido com pessoas capazes de terem tocado o melhor de mim, ou antes, que não tivessem sabido aproveitar o melhor de mim ... ou antes ainda ... que tivessem destruído o melhor de mim !!!...

Uma merda !

O  Destino é vago ... a Vida, não existe ... o Azar, a gente cria-o !
Estas "entidades" são anónimas.  Têm a comodidade de terem as costas largas, serem ambíguas, abrangentes em excesso, poderem bem com as responsabilidades das  MINHAS  derrotas, auto-justificarem-me hipocritamente ... piedosamente ... dando-me o aconchego da auto-vitimização, cómoda e conveniente !
Derrotas "MINHAS", sim ... só minhas, porque eu é que não tive habilidade, capacidade, magnanimidade, altruísmo, inteligência, sabedoria ...
Eu é que não soube fazer a minha "Vida", eu é que não soube traçar o meu Destino, eu é que não descobri caminhos de sorte, eu é que esqueci de "regar" a minha existência ...

E por isso, como tudo na minha casa, eu também morro aos poucos, todos os dias mais um bocadinho ...

Não me dês flores !
Não mas dês, porque junto de mim, tudo parte, acredita !!!...

Anamar

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

" A ESCADA ROLANTE "



De repente tudo à sua volta deixou de fazer sentido.
O Mundo desarticulou-se, e como dizia a Hushpuppy do filme que via naquela sala escura, o Universo existe porque as peças se encaixam.  Basta que uma, mesmo pequena, saia do sítio, e tudo se destrói.

Exactamente isso.
Num suspiro, nada em torno de si, ficou reconhecível ...
Havia o dia e a noite, havia o sol, a chuva e o frio que se lhe entranhava nos ossos, era verdade, porém, na tela negra  não era aquele enredo que desfilava.

Todos os fantasmas da sua existência  ficaram endiabrados, e como num ataque de abelhas enfurecidas, desataram a passar, a passar, numa escada rolante de estação de combóios.
Ela subia lentamente, na cadência da escada íngreme, e eles desciam na escada paralela à sua, bem ali ao lado.
Frenéticos a desfilarem, olhavam-na em silêncio, com esgares cínicos e impiedosos, nos rostos.

Sim, porque estes fantasmas tinham rostos.  Rostos parados, como que fixados pelo flash de uma câmara, num momento qualquer, de um qualquer dia, de uma qualquer hora ...
Porquê exactamente aquela, ela não sabia ...
Mas com emoções "congeladas", todos eles, como os rostos dos manequins nas vitrines ...
De facto, eram expressões sem emoções vivas, porque eram rostos de fantasmas e não de gente vivente, mas uns riam com a imagem em pausa, outros tinham doçura no olhar, também em pausa ... Uns choravam convulsivamente, parecendo em contrição ... outros tinham olhos libidinosos e de cobiça espelhada ...
Havia aqueles que ao afastarem-se, lhe deixavam o olhar preso, e seguiam, inevitavelmente seguiam, porque as escadas rolantes são isso mesmo, rolantes ...
Rolantes como a Vida, como o Universo.

Ela  não  conseguia estender os braços para eles, porque também ela, parecia estar imaterializada, petrificada ...
Mas ainda que o pudesse, não conseguiria retê-los, porque eles eram fantasmas e desfilavam, incessantemente ... imparavelmente !...

Cada um contava-lhe pedaços de história.

Engraçado, que alguns vinham iluminados de muito sol e do verde do mar, e irradiavam calor, muito calor.
Já outros, desciam lentamente, envolvidos naquela penumbra de céu cinzento escuro, de tempestade instalada, aqueles céus que fecham e não abrem mais nesse dia.
E fica frio e desconforto ...
Uns eram rostos muito jovens, nos quais os olhos eram mares de baías mansas, e os cabelos, searas douradas no pino do Verão alentejano ... e carregavam nas mãos, as promessas das primeiras cerejas de cada ano ...
Havia os que apenas a olhavam com ar triste e magoado.  Indiferentes, já indiferentes.
Mas gargalhadas cristalinas embora sumidas, ecoavam enquanto desciam ...
Ela sabia porquê !!
Havia também uma corte de fantasmas sem rosto.
Interessante !...  Eram muitos, mas não tinham forma, perfil definido  ... eram vazios por dentro.
Não tinham o coração que se via a pulsar, nos outros.  Não, não tinham nada !
Só tinham olhos, braços, mãos e sexo.
Eram uma espécie de polvos gigantes.  Tinham olhos esbugalhados, e caía-lhes baba verde e pegajosa, do lugar onde deveria existir uma boca de sofreguidão denunciada.
Eram atordoantes esses fantasmas !  Eram perturbadores !
Esticavam os tentáculos informes para ela ... sobre ela !...
Mas ela continuava imóvel, altiva, espectadora apenas, a tentar encaixar todas aquelas peças, para reconstruir um Universo !...

E a escada rolava, e ela subia e eles desciam ...

Com eles desciam histórias bafientas, que teimavam em tornar presentes, halos há muito apagados, como velas em fim de festa.
Traziam filas de esperanças e sonhos enterrados, fazia mais de tempo !!!

E o coração dela sobressaltava-se.

Havia alguns que ela queria, porque queria, reter, ou mesmo recolocá-los no princípio da escada, para que de novo passassem e de novo lhe segredassem os dias de sol, de luas imensas nos céus de breu, os sussurros das noites de amor ... e as gargalhadas felizes também ...

E por isso, no seu rosto que existia e não existia, escorriam lágrimas, porque naquela sala escura, ela também ouvira Hushpuppy dizer que as pessoas só se comunicam por amor, pelo entendimento das batidas dos corações.
Nada mais importa !
E duas coisas ela conseguia perceber, porque não esquecera : as batidas de alguns corações e a saudade que sentia de os ter nas suas mãos, para aquecê-los ...
Estranho como os fantasmas podem experimentar amor e saudade ...
Ela nunca ouvira falar que isso fosse possível !!!...

Aquela escada rolante, estava a aproximá-la do topo.  Faltava já pouco.
Na escada ao seu lado, aqueles esgares de gente, também quase tinham terminado a procissão silenciosa ;  todos se remetiam ao afastamento do Tempo, todos desciam para os lugares donde não deveriam ter saído : a escuridão da ausência e do vazio !

Uma derradeira figura olhava-a intensamente.
Tinha olhos parados, doces e sofridos.  Exalava um perfume salgado a maresia e caruma fresca, como um ser do mar e do monte ...
Era um misto de criança e de velho.  Transportava um apelo na imobilidade indiferente do rosto.
Parecia querer parar ali, mesmo frente a ela, apenas, sem forças, inevitavelmente, deixou-se arrastar pela escada rolante, como todos os outros, ficando mais e mais distante, difuso, enevoado ...

Ela voltou-se para trás, e surpreendentemente soltou-se do seu torpor patético de vídeo em pausa, ganhou vida, ergueu um braço e acenou ... um longo adeus, um derradeiro adeus ...
E ficou a vê-lo afastar-se, como que empurrado por uma maré contra a qual não se luta, por um vento varredor de encostas e penedias, por uma desesperança de Inverno que veio para ficar ... enquanto Enya se ouvia lá longe ... cada vez mais longe ...

As luzes da sala acenderam-se.
Hushpuppy, com o seu narizinho empinado, de menina-mulher e a sua determinação de sofrimento aprendido, também já tinha ido ...
Fazia-se tarde !!!...

Anamar

sábado, 23 de fevereiro de 2013

" UM POUCO DE NADA ..."



Já há alguns dias que não escrevo.  Contudo, preciso fazê-lo.
Já comecei mais do que um post, que deito fora de seguida.
Não tenho assunto, não tenho arrumação de ideias, não tenho fluidez de escrita ...

Toda eu estou caótica, cansativamente caótica.  Toda eu estou um turbilhão de sentimentos, de estados de espírito, de maus-estares.  Toda eu sou um conflito interior, uma tempestade sem bonança a espreitar, uma dor sem entorpecente que ajude, uma sangria sem garrote ...
Sinto a minha cabeça num liquidificador, sinto a mente numa montanha russa ... e do coração, já nem sei !...

No cérebro, as ideias e os pensamentos, batem ao ritmo das batidas da bola nas raquetes de ténis.
Ecoam em pancadas secas, enérgicas, sincopadas, perfeitamente ritmadas e agressivas.
Pum, pum, pum ...
Não tenho linhas de raciocínio, nem conexão de ideias, como disse.
Parece que mentalmente estou a esfiapar, como um elástico velho ...

Entretanto, o tempo que sempre tanto me perturba, está agreste, carrasco, pouco misericordioso.
Estamos a um mês da Primavera, virá o Verão a seguir, depois da tempestade  vem a bonança, nem tudo é branco, nem tudo é preto, o copo não está sempre meio vazio, pode também estar meio cheio ... as coisas complicadas  são  feitas  de  coisas  simples ... e   mais  uma dúzia  de   máximas  pré-fabricadas  e  inconsequentes ...

As chuvas abundantes, fizeram florescer e maturar tudo mais cedo.
Calculo que as tamareiras devem estar com os cachos das bagas verdes, já alaranjadas ;
calculo só ... porque sei que as mimosas já se engalanaram com o ouro esperançoso, desbundando o perfume intenso pelas matas ;  sei que as flores amarelas sem nome, também já enfeitam as falésias, e por certo as margaridas silvestres, também por lá estarão, a formar os tufos rasteiros, de tapete gracioso ...
Sei isso tudo ... e o que não sei, imagino fácil.
"Vejo" o mar, entre aquele verde-azul-cinzento, cavado, a bater com a força toda, nos rochedos que tentam confiná-lo  a  espaços a que chamamos praias.
Espelha o céu, uniformemente cinzento . 
E branco mesmo, só temos as rendas esvoaçantes da espuma nas areias, e o peito das gaivotas, que se deixam ir numa dança aleatória, ao sabor da aragem gélida.
Ainda de longe, e já se ouve o grasnido do bando, em volteios lúdicos, ou na euforia do mergulho no dorso das ondas ... p'ra peixe !

Como é que se vive sem objectivos ?
Como é que se caminha, se não se tem itinerário, e se é indiferente voltar à esquerda, ou à direita ?
Quem tem por que lutar, pode dar-se por feliz, porque ainda que a tempestade desabe sobre a sua cabeça e seja destruidora, terá o desiderato de a vencer, terá o móbil de se agigantar peramte ela.
E chegando ao fim de cada dia, provavelmente esgotado, acredita que está a dar passos para atingir o desígnio que persegue ... mesmo que nunca o atinja, mesmo que não tenha já tempo útil de o alcançar ...
Essa será a sua razão de vida, será o motivo por que acorda, será a onda que o impulsiona, será o motor que o não deixa desistir ... e sobrevive ... na realidade só sobrevive.
Mas sempre espera, que com mais uns dias, com mais uns meses, com mais uns anos, a meta atinge-se.
Até lá, não olha para o lado, não desvia atenções, todo o esforço e ânimo se canalizam e se centralizam no objectivo.
E esse indivíduo, se alguma vez o atingisse, ficaria esvaziado, ficaria amputado da razão de viver.
Porque se alimenta dele, respira por ele, ele é a sua estrela guia.  Esse indivíduo depende desse objectivo .
E vive !...

A inexistência  de "leit motiv" para se derrubarem as barreiras do dia a dia, é que nos faz sentir vazios, ninguém, nada !
A ausência de um "ter por que", é que nos faz sentir nem mais nem menos, que aquele pedaço de madeira que anda há anos, talvez há décadas, no mar que o traz, que o leva, que o joga à praia, ao sabor do sobe e desce das marés.

Costumava com alguma fixação, curiosidade e quase obsessão, numa espécie de jogo, experimentar seguir com os olhos, os avanços e recuos desses desperdícios indefesos, que a água arrasta ao sabor do seu ímpeto, como quem brinca, insensível ...
Costumava às vezes, vê-los encalhar nos rochedos, parecerem fixar-se, e eu com eles, ficava feliz, como que aliviada, porque aquela madeira envelhecida, carcomida e macerada, parecia ter encontrado um porto seguro, um sítio, uma "amarra", um lugar ... e parecia finalmente poder descansar, parar da  luta  incessante do vai-vem das ondas, alcançar paz !
E eu alegrava-me ... Estranhamente, eu alegrava-me  !...

Só que o açoite do mar não tem parança ou compaixão, e uma maré mais agigantada e forte, indiferente ao "assossegamento"  daquele tronco, como numa partida de criança traquina, voltava a pegá-lo, a enrolá-lo no rendilhado branco da espuma, e no recuo, arrastava-o de novo para o turbilhão, e no recuo rolava-o mais e mais nas batidas insistentes, rumo a outras areias, a outras escarpas rochosas, a outros destinos, a outros sofreres ...

Que contaria aquele cavaco, sem vontade própria, sem capacidade de defesa, sem rumo definido, sujeito à aleatoriedade da braveza das águas ?
Que histórias de cansaços, de más memórias, de mágoas vividas, terá na sua  história ?
E onde estaria ele, antes de ser tronco à deriva, feito árvore frondosa, hirta, erguida aos céus, donde contemplaria o Mundo ?
Seria árvore de floresta ?  Seria árvore de mangue ?  Seria árvore sozinha, de força e coragem ?
E claudicara porquê ?  Pela doença, pela velhice, pela adversidade dos elementos que a não pouparam ... ou pela mão e pelo coração desumanizado do Homem, sempre ele ?? ...

Não importa ...

Ele teria uma narrativa a contar seguramente, se alguém a quisesse escutar !...

E dia após dia, e noite após noite, e maré após maré, e praia depois de praia, em Verões e em Invernos, num desgaste continuado, rumo a mundos inóspitos, pertença de ninguém, tendo como únicas certezas, o mar e o céu e o Tempo imparável ... o tronco flutuará, sossobrará, desfragmentar-se-á, mero joguete dos acasos, cumprirá a sua sorte, rumo à infinitésima partícula da sua existência ... rumo ao vazio ... rumo ao nada ...

... ele,  como  todos  os  "troncos"  humanos,  que  sem  saberem,  imparavelmente  oscilam  nas  marés  da  VIDA !!!...

Anamar

domingo, 17 de fevereiro de 2013

" FILOSOFANDO, DIATRIBANDO ... OU NADA, SIMPLESMENTE ? "



O tempo está como nós, ou pelo menos o tempo está como eu, numa indefinição inexplicável, mas se calhar espectável, entre  manter-se o Inverno que ainda é, ou amanhecer Primavera que ainda não é, mas que todos gostaríamos por aqui ...
Ontem, de facto, um dia primaveril de sol morno, de luminosidade branda ...
Hoje, um cinzento implacável, sem princípio e sem fim, e uma chuva persistente, convincente na permanência com que cai.

A minha gaivota sobrevoa sozinha, o meu céu, fugida do desabrigo do litoral, recortando-se neste chumbo uniforme aqui de cima.
Lá em baixo, o meu "Farrusco do fiambre", de olhos amendoados, olha-me quando assomo.
Encharcado até à alma ( se gato também tem alma ), à chuva, encolhido, por forma a  reduzir-se à bolinha preta mais pequenina que consegue.

Olho o horizonte, que não é horizonte, porque não se sabe onde começa, nem onde acaba ...
Lá longe, o casario  embrulha-se numa neblina parda.
Por detrás dela, algures no Mundo, um lindo sol laranja, brilhará, tenho a certeza !
Dói-me a alma, e olho a chuva, desalentada ...
Está a despachar as pessoas  para casa ... para onde mais ?

Neste momento, para mim, ir para casa é um tormento.
Encontro uma casa ainda mais vazia, apesar de ter lá mais uma pessoa, a minha mãe.
Encontro uma casa mais pesada e doentia, porque o seu estado de saúde me desgasta, me atormenta, me desespera, me tira as forças.
Encontro uma casa ainda mais silenciosa, porque há um silêncio de crepúsculo, permanentemente a pairar por ali ...

Na minha casa instalou-se a luz difusa das catedrais em fim de tarde, o frio das lajes do empedrado, a infinitude e a imensidão da nave central, a dormência do que parece ausência de vida.
E há um roçar esvoaçante de morte, por lá.
Há o bafio dos seres que foram e já não são, seres que estão na linha difusa entre o cá e o lá.
E a minha mãe, neste momento, não vive.  Isto que ela detem, na pessoa que ela foi, é simplesmente um simulacro de vida.  É uma maldade do destino, que "marina" os seres vivos, a seu belo prazer, indiferente à tortura que institui.

Tenho a sensação que já escrevi sobre tudo ;  tenho a sensação que repito títulos, e também temas ;  tenho a sensação de ser teimosamente recorrente, nas abordagens .
Sei que sou execravelmente "aborrecente" ( aborrecida + insistente ...  inventei agora ...  :) ),  nas dissertações.
Isso significa que longe de haver evoluções no meu estado de espírito e ânimo, há involuções,  e significa que eu continuo na linha de partida, sem ouvir o disparo, e sem arrancar nunca !

Mas o que é facto, é que o ser humano, para diariamente cumprir mais uma etapa da prova, tem que ter um objectivo ;  tem que ter uma linha de meta a ultrapassar ;  tem que sentir que esse dia é mais uma batalha, da guerra que acredita vencer ;  e que o seu percurso é feito de somas, parcela a parcela ;  e que a escada, degrau a degrau, permitir-lhe-á, espreitar lá no alto, para além do muro ...

E isso, eu não sinto ;  e nisso eu não acredito !
E isto, eu já disse miríades de vezes ... "aborrecentemente" !!!

Sinto que o meu Tempo, não é o Tempo de ninguém.
Sinto que a minha vida, se faz  ironicamente, em contra-ciclo com todas as vidas  que comigo se cruzam.
Sinto que as minhas cotas de sonho, de esperança e de crer, são meras utopias apalermadas, desajustadas às realidades, desajustadas aos tempos, e à pessoa que eu já tinha que ter aprendido a ser ... "crescida", adulta, madura, realista, "pé no chão", e não adolescentemente utópica, e tontamente sonhadora !
E não sinto em mim, ânimo, nem força, nem convicção, para reiniciar a marcha, dobrar as esquinas, olhar a várzea do alto da penedia, porque dificilmente acredito em recomeços !!!...

Anamar

sábado, 16 de fevereiro de 2013

" MÃE CORAGEM ... "



Isto afinal não está tão bem feito, quanto isso !...

Seja o Grande Arquitecto, Deus, Maomé, Buda, Jeová ou quem mais se candidate a conceptor desta  coisa em que vivemos, houve nitidamente aspectos brutalmente negligenciados.
Já não falo do "vale de lágrimas" em que estamos mergulhados ... injustamente mergulhados, uns mais que outros ...
Já não falo das atribulações infames, por que temos que passar neste circo de gladiadores, em que parece ter-se transformado o Mundo e a existência ...
Já não falo da brincadeirinha de "moleques", com que diariamente "mangam" connosco, numa desfaçatez assustadora ...
Já não basta, como já referi vezes sem conta, sentirmo-nos peças de xadrês, de um xadrês jogado aleatoriamente, porque o Criador se está borrifando p'rá obra feita, na qual, por certo não se revê ...
Já não basta tudo isto, e foram logo esquecer o botão "on - off", fundamental para que cada ser vivente, pudesse deixar de o ser, quando assim o entendesse ...

É que ... bolas ... teria sido um sinalzinho de respeito e consideração, por quem não foi sequer inquirido, sobre querer ou não, participar desta farsa !...

A minha mãe está no fim dos seus dias.  Sei-o.  Pressinto-o.
Todos os dias ponho os ouvitos alerta, antes de me dirigir ao quarto onde dorme, onde definha, e onde se afoga em lágrimas, em soluços desesperantes, dignos de uma compaixão atroz.
E perscruto os sons antes de entrar, porque não sei se algum destes dias, eu não encontrarei a minha mãe, adormecida ... adormecida para sempre ...
E seria justo !  Justo que ela dormisse confortável na sua caminha, quentinha, aconchegada ... e sem  que tivesse tempo de relembrar uma outra vez, a sua vida, e os seus, aqueles que lhe partem o coração, deixar ... deixasse ela, esta vida longa, neste momento penosa, violentamente penosa, que ela já enjeita, de que já se cansou, que pede para terminar, e de que quer ir embora ...

Acredito que a minha mãe, pede todas as noites à santa padroeira da sua terra, do Alentejo tão distante ( a quem tantas vezes suplicou  por si, mas sobretudo pelos seus ), que a deixe partir ... que lhe conceda essa última "graça".
Uma estampazinha de Nossa Senhora de ao Pé da Cruz, está na sua cabeceira de cama, e presa na sua roupa interior, bem junto ao coração, suspensa de um alfinete, está a medalha que o Gaspar usou na coleira, enquanto viveu.
O Gaspar, um companheiro, mais que um companheiro ... um outro amor da sua vida, que partiu há quatro anos ...

Por que raio, tem o ser humano que percorrer uma Via Sacra de degradação, de sofrimento, de incapacidade, de dependência  ??!!...
Por que raio, tem que suportar a provação de se ver reduzido a um farrapo, a uma sombra, a nada ??!!...
Por que tem um indivíduo, de prescindir da sua  autonomia, privacidade, intimidade ??!!...
Por que tem que ser subtraído ao seu espaço, ao seu mundo, à sua vontade, porque a vida o incapacitou como "gente", lhe retirou o direito a ser dono de si próprio, e o transformou em objecto dos desígnios dos outros, por muito bem que lhe queiram, e por melhores intenções que os movam ??!!...
Por  que  terá  que  experimentar  a  fragilidade  da  humilhação,  da  dúvida,  da  angústia,  do   medo ...  do   desconhecido ...  da  solidão ??!!...

Ao menos, que a mente e o raciocínio claudicassem ao ritmo a que claudica todo o restante invólucro físico, porque  com  eles  iria  a  consciência  do  estar e  do  ser, e  o  consequente  sofrimento  inerente ! ...

Mas também aqui, não podemos "encomendar" ... e resta-nos, impotentemente, manter alguma serenidade, algum pragmatismo na aceitação das coisas, uma transcendente e misericordiosa paciência, e uma generosidade e afecto, que por vezes, por cansaço parecem  faltar-nos ...

Sei que a minha responsabilidade é imensa ...
Sei  que  não poderei  falhar  nesta recta final ...  por forma a dar-lhe a mão, ser-lhe até ao fim dos fins, um bordão de amparo, e ter uns braços tão fortes e resistentes, quanto os que ela teve um dia, lá muito atrás, para me pegar, envolver e proteger, quando iniciei, também eu, igualmente frágil, igualmente insegura, igualmente angustiada e com medo ... a minha caminhada por aqui !
Espero não a defraudar !
Espero estar à altura da Mulher de fibra que ela sempre foi !
Espero saber honrar a lutadora e a "Mãe Coragem", que ela, sim, verdadeiramente encarnou no seu percurso !...

Anamar

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

" SINAIS DOS TEMPOS, TAMBÉM ... "



Um  pôr-de-sol  lindo sobre o horizonte ...
Estamos naqueles dias "laranja", a que Fevereiro, eu diria, quase tradicionalmente  nos habituou.
Laranjas e luminosos, porque este sol de Inverno que irradia depois da tempestade, da escuridão e da tormenta do Inverno, tem a particularidade de ser assim ... claro, cintilante, resplandescente.
Os nossos olhos, também, sequiosos do seu retorno, são generosos na sua apreciação ... que eu sei !

Ontem abordei a impessoalidade crescente, que preside às relações humanas, nos tempos actuais.

O Homem, está efectivamente a ser dominado pela tecnologia e pela sofisticação das máquinas que  ele próprio criou.
Nitidamente, o "artista" a ser "trucidado" pela sua obra !...
Não sou exactmente  um  "Velho do Restelo", mas impressiona-me, incomoda-me e faz-me reflectir, a constatação de situações, em que a essência do ser humano é preterida, pelo menos dispensada, da sua função de interveniente das mesmas.
A vertente dita  "humana", em toda a sua globalidade, está na verdade, a ser marginalizada diariamente, desconsiderando-se aquilo que distingue o Homem, das máquinas ... a sua vertente emocional  e espiritual, que nunca poderiam ser subvalorizadas em situação alguma.
O Homem criou as máquinas, criou toda uma panóplia de instrumentos, com vista a facilitarem-lhe a vida, com vista a ajudarem-no, a servirem-no ... mas seguramente não com vista a ser ultrapassado por eles ... e é o que está a acontecer.

Ontem, como disse, falei-vos numa "agência matrimonial virtual", chamemos-lhe assim, em que por mera utilização de um banco de dados de perfis personalísticos,  são propostos pares para relações afectivas, com base nas compatibilidades desses perfis.
Dessa forma, privilegia-se a parte prática da coisa.

"Gastando" pouco tempo, qualquer homem ou mulher, encontra uma lista de indivíduos do sexo oposto, com fortes probabilidades, de, consigo formarem o par perfeito ...
Substitui-se assim, fácil, fácil, a primeira etapa de um relacionamento : a descoberta, o conhecimento sempre novo e gradual, as pequenas coisas encantatórias, que iniciam um romance, e em que, pelo menos acertando ou errando ... ( mais errando que acertando ), se inicia uma relação com "gente" !...
Gente de carne e osso, de sangue, lágrimas, calor, coração, mente e alma ...
Na situação em apreço, as pessoas  são simplesmente servidas numa bandeja, são simplesmente pratos de um cardápio, apresentado ao hóspede na mesa do restaurante, que este olha, aponta o dedo e escolhe ...
Tudo a frio, tudo impessoal, tudo com tecnologia de ponta !...

Estou aqui a imaginar o executivo, sentado na secretária da multinacional onde trabalha, rodeado de telefones, computadores e todos os "gadgets" imaginários .... mergulhado até ao pescoço nas tarefas profissionais ... óculos sem aros, com que se compõe habitualmente a figura, nó da gravata lasso, o casaco do fato, cuidadosamente colocado nas costas da cadeira ... a chamar a sua  assistente  e  a dizer-lhe :  "Por  favor .... mande  vir  a  "lista" ... Preciso  de  uma  companheira  na  minha vida !..."

Bom ... e que dizer da chamada e já tão tristemente vulgarizada, "produção independente" ?
O "projecto de mulher-mãe", que decide ter um filho por conta própria, e que não reunindo na sua vida, condições afectivas adequadas, olha ao seu redor, corre mentalmente a lista de amigos e /ou conhecidos ... estende igualmente o dedo, e diz para  os seus botões :  "Este  aqui,  até  nem  estava  mal  para  ser  o  pai do  meu  filho " !...
Convirá obviamente, que seja alguém que preste o "favor biologico", e que previamente tenha aceitado as condições de prescindir de qualquer exigência, obrigação ou laço, para com a criança  "em fabrico" ... já que essa criança será apenas "filha da mãe " !...

Estaremos  perante  seres humanos, ou bichos ? ( pergunto  eu  p'ra  avacalhar  a  coisa )
E os  laços parentais,  comprovadamente  necessários  ao  desenvolvimento  saudável  e  equilibrado  de uma  criança ?  Onde  ficam?  E a  figura  de  referência  paterna ... onde  está ?!...

E  há  também, os "bancos  de  esperma",  e  depois,  igualmente  as  "barrigas de aluguer" ... vertentes diferentes, da  tal  demissão  do  ser  humano,  como  interveniente  e  protagonista  de  papéis, dos quais jamais  poderia  prescindir ...

Estes, alguns exemplos preocupantes, que me ocorrem ...

A  dispensa,  a  omissão,  a  negligência, daquilo  que  apenas  o  Homem  pode  propiciar, a  "humanização" da sua própria história ... e  que  só  ele  pode  introduzir,  que  nenhuma  máquina  faz, que  nenhuma  revolução científica  ou  tecnológica  resolve ... constituem, do meu ponto de vista, aberrações gravíssimas, demonstram  a  sua demissão ( enquanto  detentor  exclusivo  de  mais-valias  intrínsecas,  que  nada  nem ninguém  conseguem  substituir ) ... e terão seguramente consequências altamente gravosas, nas gerações e nas sociedades do Futuro !

Gostaria muito, e desafio as pessoas que me lêem, a exporem os respectivos pontos de vista, sobre assuntos tão sensíveis quanto estes.
Cabeças diferentes, pensam de formas diferentes, e as verdades não são absolutas ... bem pelo contrário. Acresce ainda, que este tipo de preocupações actuais e pertinentes, creio,  por certo se terão já colocado a muitos de vós !  Obrigada.

Anamar

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

" ACABA POR SER DE PRAXE "

Mais um 14 de Fevereiro, sobre que não queria escrever.

Tão simplesmente porque é mais uma das tais datas do calendário, "metida a calçadeira" ( como diria o Carlos ), pelo Homem ( e que por isso mesmo, enjeito ), mas também porque não tenho nenhum motivo especial para festejar alguma coisa que está em vias de extinção, afinal ... o AMOR !

O amor que deveria ser natural, espontâneo, sentido, íntimo, simplesmente vivido sempre ... e não lembrado apenas hoje, "porque sim" ...
O amor que se prestigia neste 14 de Fevereiro, é uma "fatia" particular desse sentimento muito mais universal e abrangente, o amor entre os seres humanos  ( que não existe ), o amor do Homem para com os seres das outras espécies ( que não existe ), o amor do Homem pela Natureza ( que não existe ), o amor do Homem pelo Planeta que habita, a sua casa, o seu ar e o seu chão  ( que não existe ) ...

Hoje celebra-se o amor entre os géneros ... o amor homem - mulher, o amor entre casais, indistintamente ligados por qualquer laço.
Hoje vive-se, ou apela-se a viver-se o amor carnal, o amor dos sentimentos, o amor das cumplicidades, dos pequenos segredos, dos inconfessáveis mistérios ...
Hoje, doura-se a "pílula", compram-se as rosas vermelhas, programa-se ( cada vez menos, por razões óbvias ), um evento especial, alinda-se uma mesa com uma que outra vela, tudo muito vermelho, simbolizando uma paixão acesa, que por vezes nem pálida está, e finge-se ... muitas vezes também só se finge que se está feliz, enormemente feliz, exuberantemente feliz, irremediavelmente feliz !...

Daqui a uma semana as rosas já murcharam, e já estão sobre o "cadáver", como as montureiras das flores secas, dispensáveis e maçantes, sobre as campas, por alturas da missa de sétimo dia ...
O chamado "lixo", também sobre os afectos !...

Estou particularmente azeda ... Nada de novo, certo ??   Nada a que vocês não estejam já habituados ...
E já oiço vozes erguerem-se : " Irra, que esta fulana é intragável !...  Puxa, que osso duro de roer "!...
Pois é ... esqueci o que é o "encanto"  possível da Vida !
Esqueci como é ser agradavelmente vivente, por aqui !  Esqueci e desinteressei-me um pouco ...
O meu GPS avariou, e portanto estou há muito perdida no emaranhado dos destinos a trilhar ...
Mas isso agora não interessa nada !...

Ontem deram-me o endereço de um site da Net, que cada vez mais me fez repensar os valores que realmente norteiam o ser humano,  cada vez mais me mostra como tudo é plastificado nos dias que correm, cada vez mais me fez reflectir, como o ser humano está cada vez menos humano, mais robotizado, mais artificializado, menos "gente" ...

É um site criado, creio, por psicólogos, e que funciona como uma espécie de agência matrimonial dos tempos modernos.
Uma espécie de "rede social", com encadernação de luxo !
Alegando-se que nos tempos que correm, as exigências  profissionais e a vida corrida das pessoas, lhes indisponibiliza crescentemente a possibilidade de encontros, de conhecimentos e ainda mais de acertos nesses conhecimentos ... alegando-se que a praticidade da coisa e o facilitismo da mesma, seriam uma grande ajuda ( porque tempo também é dinheiro ) ... alegando-se que em milhares de perfis com que nos cruzamos, a estatística de sucesso é mínima, obviar-se-ia a tudo isso, criando uma espécie de base de dados com perfis psicológicos, que trabalhados, permitiriam descobrir compatibilidades entre indivíduos com fortes possibilidades de acerto, como par afectivo.

Muito interessante ! ...

Perfis psicológicos masculinos de um lado, feminimos de outros, e o computador a fazer o resto ...
Pessoas, cuja probabilidade de alguma vez se encontrarem, sequer se conhecerem nesta vida maluca, seria nula, ali, bem à mão, ou bem ao pé ... à distância de um "clique" do rato !...
Portanto, consultada esta lista telefónica informática, estas páginas amarelas de um hipotético "amor programado", não se perde tempo, desencanta-se o príncipe ou a princesa encantados, num piscar de olhos, como um coelho a sair de uma cartola !!!
Como se vê, tudo bem "cool", bem "clean", bem de acordo com os tempos de hoje, em que não há tempo, para se ter tempo, nem para amar !...

Por tudo isto,  o S. Valentim coitado, nem ele sabe nem sonha, como tem os dias contados !
Ele, e todo o "circo" à volta do seu "halo" mágico, de fazer reviver pelo menos anualmente, esse tal de AMOR com contornos cada vez mais "demodés", cada vez mais descartável, cada vez mais desvalorizado e esquecido,  e  que  afinal  se  tem   muito   mais  à  mão  de  semear,  do  que  seria  imaginável ... e  desejável  ( digo eu ) !!!...

Anamar