quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

" A FRONTEIRA DIFUSA "




O ser humano é um ser profundamente complexo.  Da vertente física à vertente emocional e psicológica, o emaranhado atinge tais dimensões, que nem o próprio indivíduo se pode vangloriar de se conhecer a si mesmo, quiçá gerir-se nas mais diversas situações.
Os vectores confluentes atingem tais proporções de disparidade, que transformam essa complexidade inevitável, em algo ciclopicamente inalcançável.

Além da genética, que irremissivelmente  acompanha o ADN de cada um, os factores pessoais, sociais, familiares, morais e éticos, são responsáveis pelo puzzle que se cria drasticamente, maioritariamente à nossa revelia, .
Desde que nascemos e começámos a tomar consciência do nosso "eu" multifacetado e hermético, que o nosso trabalho de construção pessoal se inicia de uma forma mais ou menos agressiva e / ou harmoniosa, por forma a inserir o indivíduo na realidade que habita.  Inicia-se todo um ajuste de integração pessoal, mais ou menos fácil, mais ou menos doloroso, dependendo  do enquadramento no qual ele deve viver.
As exigências pessoais, familiares, sociais, profissionais, éticas, morais e todas as que tendem à assimilação pelos nossos pares, no mundo em que vivemos, com a menor turbulência possível, submetem-nos a um trabalho interior exaustivo, constante e desperto em permanência.

O Homem confronta-se com a necessidade de corresponder satisfatoriamente, nas relações pessoais e em toda a interacção com os grupos com que diariamente priva.
Deve responder perante si próprio, munindo-se de todas as ferramentas necessárias para os diversos desafios, sejam individuais, sejam com terceiros.  E não é absolutamente fácil, agilizar todos os recursos de que pode e deve dispor.
Vai enfrentar os factores endógenos, mas também todos os exógenos, canalizados pela realidade que o cerca.  E são das mais variadas origens.

Deve responder adequadamente na família, em todas as relações afectivas com parceiros, pais, irmãos, filhos ... gerindo-as, após gerir-se emocionalmente de forma sapiente e equilibrada.
Exigem-se-lhe por isso, padrões de equilíbrio, objectividade, determinação, afectividade, firmeza, diálogo e toda uma panóplia de outros valores expectáveis, e nos quais a família espera rever-se.

Deve responder a nível social com padrões de comportamento exemplares, determinados e enquadrados, de acordo com as regras instituídas pelas sociedades que habita.
São padrões inevitável e ancestralmente normalizados, quase sempre reféns de valores, de molduras éticas e morais, incontornáveis, e dos quais o Homem não pode abstrair ou distanciar-se.
A vertente profissional é também, e acentuadamente nos tempos actuais, determinante da conduta humana.  A competição a qualquer preço, o arrivismo, o oportunismo, as injustiças, a desonestidade e os processos menos transparentes, por um lado ... a desenfreada necessidade de obtenção de competências, como exigência de valorização, crescimento e progressão  ( como deverá ser ), por outro ... associadas às dificuldades objectivas de uma sociedade agressiva, desumanizada e gerida por valores de ter e não de ser ... empurram o ser humano para situações de stress, angústia, ansiedade, dúvidas e frustrações às quais nem sempre tem condições reais e emocionais de resposta.
Adoece-se o corpo e adoece-se a alma !

Deve responder à luz da ética que lhe impõe valores de justiça, igualdade e liberdade, respeitando-se e aos seus pares.  Estes, são valores universais !  Evitam a discriminação e o preconceito.
Aliás, falar de ética é falar de valores.  É sobretudo falar de valores colectivos. Valores sociais e culturais que foram construídos e sedimentados.
Os valores morais são, como sabemos, os conceitos, juízos e pensamentos tidos como certos ou errados, numa sociedade.  São-nos  transmitidos nos primeiros anos de vida, através do convívio familiar.
Com o passar do tempo, aperfeiçoamo-los, a partir das observações e experiências que a vida social nos impõe.
Divergem de sociedade para sociedade e de grupo social para grupo social, alicerçam-se na cultura, tradição, quotidiano e educação de um determinado povo.
Os valores éticos são mais abrangentes.  Focam-se nas características compreendidas como essenciais, para o melhor modo de viver ou agir socialmente, dum modo geral.

Há ainda valores religiosos condicionantes do ser e do estar.  Não vou, contudo, debruçar-me nesta vertente.

O ser humano é um ser profundamente complexo ... comecei por dizer.
A mente humana é um mecanismo inexpugnável !
Parece óbvio, à luz deste exaustivo e intrincado labirinto que expus.  Assim, difícil e quase impossível será, com a pressão que diariamente nos assalta,  com o bombardeamento a que somos sujeitos, o alcance e manutenção de uma sanidade mental satisfatória.
O Homem é extremamente frágil, e consequentemente, cada vez mais difusa parece ser a fronteira entre a dita "normalidade" e o "outro lado" !...

Anamar

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

" A PASSAR UMA CHUVA ... "




Os pássaros já gorgeiam lá fora.
O céu bem limpo, de um azul translúcido, reflecte um sol claro e luminoso, de beleza ímpar, como só o é, o sol de Inverno.
Os dias, reiteradamente secos, com uma ausência total de chuva, lembram o início de uma Primavera que ainda está longe de se anunciar.

Gosto destes dias mansos.
Um ano novo começou.  Mais uma maratona de trezentos e sessenta e cinco dias a reescreverem-se, se iniciou outra vez, com a normalidade de sempre, da mesma forma de sempre, com as expectativas de sempre.  A vida vai rolando, o paradigma vai-se repetindo, o tempo disponibiliza-se em cada vinte e quatro horas que sucessivamente se oferecem. Sem pressas.
As mesmas preocupações, problemas velhos tentando travestir-se de novos, sonhos antigos procurando  concretizações, esperanças mansamente adiadas.  Tudo calmo, tudo sem afobação, com a exacta noção de que, como se diz no Brasil, estamos aqui, simplesmente a "passar uma chuva "...

Talvez sejam os anos que já vivi, que me permitem olhar desta forma o que me rodeia. Com esta bonomia, sem exigência ou insatisfação.
Já não crio filhos, já não luto por emprego, já não tenho fasquias profissionais a alcançar, já não se me colocam desafios de afirmação social em nenhuma área ... porque neste momento bastam-me a "sombra e água fresca", no desenrolar dos meus dias.
Digamos que beneficio, sim, dos dividendos da plantação feita ao longo da vida.
As lutas pessoais, travadas inevitavelmente nos percursos de cada um, amainaram ou cessaram mesmo.  Somos o que somos, e nada mais temos que provar a ninguém !

Sinto-me como se caminhasse numa vereda serpenteante serra fora, no verde cálido da vegetação sonolenta.  Tudo amodorrado, meio entorpecido, silencioso ... Tão adormecido, que às vezes desconforta !
Sinto estes dias, estranhos.
Eu sei que vivemos a ressaca das festividades que terminaram ontem, no Dia de Reis.
Foi um tempo de emoções, foi um tempo de reflexões, foi um tempo de balanços, de deve e haver no trilho das existências, em que não conseguimos furtar-nos às avaliações, às recordações, às saudades.
Para mim, como já o referi vezes sem conta, foram particularmente dias difíceis.  Foi o primeiro ano em que a ausência física da minha mãe, se tornou real.  A sua cadeira à mesa, já estava vazia há alguns, poucos anos, mas a sua caminha quente, ainda lhe dava berço e conforto.  E estava ali, à distância de um beijo, de um carinho, de algumas palavras.
Este ano, o destino já lhe havia determinado outra morada, e o vazio cru e sentido, pairou.
Paira sempre, a cada momento, mas não me largou nestes inevitáveis dias.

Não sei se por isso, se também por isso, ando a pensar muito na morte.  Na morte e no sentido da vida.  Neste nosso estar aqui, a "passar uma chuva " ... algo sazonal, precário, efémero ...
Tal como a existência humana, tal como o lapso temporal que nos é destinado viver !
Rápido e curto como as chuvas que vêm e subitamente se vão, deixando a terra sumariamente molhada ... para secar logo depois, apagando os sinais da sua passagem ...

Não sei por que estes pensamentos me assaltam ... mas assaltam !
Até me assustam um pouco, pelo que sinto.  Parece que vivo como que a terminar tarefas.  Parece que não me vale a pena já, iniciar nada.  Só terminar o que comecei, para não deixar pendências.

"Deixar" ... repare-se ... "deixar" ...
Deixar, é pensamento de quem parte, de quem vai para algum lado.
Dou por mim a pensar que a colcha da cama já não vale a pena ser substituída, que já não vale a pena renovar decorações, por algumas se arrastarem pelas décadas, que depois do Chico e do Jonas, os meus gatos de seis anos, não haverá mais gatos novos a entrar em minha casa ... porque não haverá tempo para os proteger até ao fim ... E assim por diante ...
Vivo uma sensação de manutenção e só manutenção ... como se se tratasse apenas de pontas penduradas.  Aquelas pontas que só esperam remate, numa costura !

Olho a minha casa, divisão por divisão.  Sei-lhe as sombras e o sol que a penetra.  Escuto-lhe os silêncios, perscruto-lhe os ruídos familiares.  E vejo-me fora dela e dentro dela, quando for ... quando tiver que ser.  E vejo-me a perambular por ali e a vê-la, quando já não a puder ver.
Os gatos já não estarão, não haverá fruta nas fruteiras, nem roupa no estendal.  Tudo estará criteriosamente nos sítios do costume, os estores estarão na posição do costume, os raios de sol e as sombras serão as de sempre, nas horas de sempre.
Haverá apenas uma poalha ténue, dos tempos, sobre os móveis adormecidos.  A poalha que sempre é eterna e que sobrevive ... porque não é viva, simplesmente.
E eu gostaria que tudo assim fosse.  Embora  isso fosse absolutamente indiferente !

E lembro Pessoa.  E lembro a sua aceitação nunca interrogativa nem questionável ... Aprecio o seu pragmatismo, o seu desassombro e o seu desapego desprendido.  Real ... duramente real !

Eu ... eu devo ser pretensiosa ... ou tonta, porque me confundo, porque me dou importância.  Uma importância que não tenho.  Que ninguém tem.
Porque ainda me interrogo e doo, me indigno e espanto, ao olhar a vida indiferente, encolhendo os ombros, ainda  que um só dos seus grãos se tenha perdido, ainda que uma só das suas folhas se tenha desprendido das hastes ...  ainda que o equilíbrio, de alguma forma, se tenha rompido ...
O sol continuará a nascer e a por-se todos os dias em todos os recantos do mundo. As luas cheias chegarão a cada quatro luas. Virá o frio do Inverno quando findarem os calores da estiagem, a Natureza renascerá, reinventar-se-à  ...  Os brotos das Primaveras irão continuar a engalanar as matas, onde os pássaros irão acasalar.  As marés subirão e descerão "ad eternum", e os rochedos que as sabem, vão continuar a escutá-las.  O vento soprará, a chuva tombará, mansa ou bravia ... e tudo, exactamente tudo continuará da mesma forma, com uma simplicidade absoluta ... como Pessoa diz ...

Mesmo que eu não entenda !...


"QUANDO VIER A PRIMAVERA "


Quando vier a Primavera,
se eu já estiver morto,
as flores florirão da mesma maneira
e as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme

ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria

e a Primavera era depois de amanhã,
morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo ?
Gosto que tudo seja real e que tudo seja certo ;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.

Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


                                                                Alberto Caeiro  in  "Poemas Inconjuntos "

Anamar

domingo, 30 de dezembro de 2018

" SAUDADES "



O ano que termina foi um ano com marcas inevitáveis na minha vida.

Mariza, no poema do seu fado  "A chuva", diz que "as coisas vulgares que há na vida não deixam saudades ... só as lembranças que doem ou fazem sorrir ..."
Hoje, para mim,  foi um dia mais, de lembranças que doem ou fazem sorrir ...  2018 esmerou-se até ao fim, recheado delas...

A minha tarde foi passada à cabeceira de uma cama de hospital, lá longe, no meu Alentejo, que guarda da nossa família quase  já só lembranças.  Das tais ...
O meu último familiar vivo, daquele clã  cujas raízes me prendiam à terra, sofreu um AVC em pleno dia de Natal. É uma prima direita ... é uma irmã para mim. Aquela que nunca tive.
É uma mulher razoavelmente mais velha que eu, é uma mulher só, a quem o destino sempre enteou.
Com uma história de vida muito sofrida, em que os escolhos e as dificuldades lhe atravancaram o caminho, foi uma lutadora, uma resiliente, uma mulher-coragem ... talhada lá, onde nascem os fortes ...
As vidas afastaram-nos fisicamente, pela geografia, pelas histórias, pelos percursos ... pelos destinos ...
Apenas fisicamente, porque a seiva circulante é a mesma, as memórias e as partilhas também.
Chorámos juntas, rimos juntas, lembrámos juntas tanto do tanto que ficou há muito, na curva da estrada !
E fizemo-lo enquanto deu.

Hoje, a minha prima desligou.  Rompeu com a realidade.  Assumiu o papel que acredito todo o ser humano assume, quando a recta é a final, e uma espécie de compaixão biológica nos toma.
Como que fechou cortinas, como que apagou luzes ... como que esticou o olhar para um indefinido ponto, de uma indefinida estrada !...
O quadro de Alzheimer, cuja patologia a vem progressivamente afectando, enfatiza ainda mais o desligamento de tudo o que a rodeia.
E a pessoa que hoje se encarquilhava naquela cama de hospital, só, rodeada dos fios, dos tubos, dos aparelhos que apitam, que piscam, que desenham as linhas de um coração que vai batendo ainda, sem que se saiba  porquê, não era já a minha "irmã" ...
Em tom sumido, balbuciando as palavras por entre o ofegar da respiração, sorrindo esmaecidamente, falou-me naturalmente da minha mãe, da própria mãe, de nós, quando crianças em casa dos avós, como se por ali estivéssemos todos, como se o ontem fosse o hoje, como se aquela árvore ancestral cujos ramos se estenderam, cuja folhagem foi esta que caducou aos poucos, ainda vicejasse e desse frutos ...
E eu, mantive como pude o ar de menina levada, igualzinho ao que fazia quando alguma diabrura me fazia acoitar no seu regaço ... Só uma que outra lágrima me atraiçoou ...

Voltei.  Voltei com o coração espremidinho e tão pequeno que caberia na cova da minha mão ...

E já sinto infinitas saudades.  Só as coisas que doem ou fazem sorrir, no-las plantam no coração ... tenho a certeza !

Anamar

sábado, 29 de dezembro de 2018

" INSTANTE ZERO ..."





Mais um ano a rondar o fim ...
Época chata, queiramos ou não.  Por mais que nos imunizemos ou que nos convençamos de imunidade face a isso, é inevitável e eu juraria ser transversal a todos, que a mente de todos nós sempre resvala para o bendito balanço do que foi, do que é e do que ansiamos que venha a ser.
Mesmo os mais "resistentes" e pragmáticos, mesmo os menos susceptíveis e os mais indiferentes, são levados a pelo menos não ignorar que a última folhinha do calendário vai virar e que mais uma fatia daquelas com que o Homem desenha as vidas, se esgotou e uma nova página em branco  a escrever-se, se abriu no bloquinho que nos coube !

E se o que passou, é sobejamente nosso conhecido, a incógnita do que virá, é algo que sempre nos deixa ansiosos, nostálgicos, sonhadores também, às vezes confiantes, outras assustados ... expectantes, indubitavelmente ...
Saúde e paz são então os votos que encabeçam mais alguns.... Quase sempre lugares comuns que bem sabemos serem utopias, ou nem sequer fazerem muito sentido.

Saúde e paz, eis os dois desejos que dificilmente estão na nossa dependência, tantos e tantos vectores, os reescrevem.  Mas pronto ... são desejos, e como desejos, legítimos !
Depois vem o amor, o dinheiro, os projectos, a felicidade ... em suma, uma qualquer sonhada realização que quase sempre achamos corolário da realização dos outros votos.
Depois vêm pequenas minudências que, cumprindo-se, nos levariam ao sétimo céu.  Mudanças de vida, intenções que se afiguram sérias, determinações do tipo "agora vai ser mesmo !"  ou "Ano Novo, vida nova !"
Tudo, pelo menos, válido para as badaladas da meia noite de 31 !

A roda do tempo continua a rodar.  Nós, grosso modo, humanos que somos, não nos reciclamos da noite para o dia.  As vontades fragilizam-se.  E a convicção de que num passe de mágica nos tornaremos diferentes, de que aqueles que nos rodeiam se tornarão diferentes também, de acordo com as expectativas por nós sonhadas ... a convicção de que o mundo se pintará com novas cores e roupagens, à medida do nosso sonho ... só porque vivenciamos um Ano Novo ... começam a desvanecer-se, à medida que o Janeiro vai cumprindo calendário, à medida que as rotinas ... sempre elas ... começam, ou melhor, recomeçam a tomar conta das nossas vidas.
E pronto ... nada de novo, afinal !  Como, aliás, se quisermos ser honestos para nós mesmos, sempre suspeitáramos que seria !...

Já não alimento ilusões desproporcionadas do possível.  Os anos que detenho, há muito me retiraram os sonhos da juventude, do coração.  Já me extirparam a fé de reviravoltas, novos caminhos, novas fasquias.  Já me acordaram sem panaceias ou panos quentes, perante as realidades.
Que são o que são.  E milagres, também só existem nas histórias.
Acho que há muito me anestesiei para encantamentos raramente surgidos.  Já há muito conheço o desencanto do "preço" das coisas.  O verdor de dias azuis, também já murchou no meu horizonte ... e apesar de saber exactamente que sempre ultrapassamos aquilo que nos foi caindo no regaço,  apesar de saber exactamente que sou resiliente ao ponto de me machucar cada vez menos com as vissicitudes do meu percurso ... sei claramente que os tempos vão sendo de penumbras que se cerram mais e mais, opacizando o meu coração, endurecendo a força da minha alma, sonegando-me a energia necessária a recomeços ... inevitavelmente !...

O ano findado, que tem agora os seus últimos estertores, mais não fez do que mostrar-me à distância, uma vez mais, a objectividade da vida, com autenticidade e sem auréolas douradas ou ilusões excessivas.
Levou-me sonhos, roubou-me afectos, maculou-me com a mágoa de saudades, polvilhou-me com dúvidas, ansiedades  e desencantos.
Termino-o mais triste do que quando o comecei, termino-o mais pobre, termino-o mais cansada !...

Bom ... não quero de nenhuma forma, amargar-vos com este sabor azedo que parece preencher - me.  Não quero contaminar-vos com estes laivos de deseperança.
Se puderem e forem capazes, deixem que os eflúvios do champanhe e a magia das passas vos tomem conta, no badalar da meia-noite.
Porque tenho a certeza ... mas tenho mesmo ... que nesses instantes, pelo menos nesses instantes, e também toldados pela euforia que se contagia, os votos que nos fazemos, os desejos que formulamos, as lágrimas teimosas de uma emoção incontida, que nos rolam nos rostos ... os abraços, os beijos e até os desejos que apenas só nós conhecemos ... são sinceros e absolutamente verdadeiros, enquanto a contagem decrescente se faz ... 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1 ............ 0 !!!!! 

O instante 1 de um ano novinho em folha, inicia-se então  !!!!...

Anamar

domingo, 23 de dezembro de 2018

" E ENTÃO ... ERA NATAL ! "






Lembrei hoje.  Hoje, porque chega uma altura da vida em que são as lembranças que comandam.
A balança desequilibra-se, é muito maior o caminho andado do que o que temos para andar e por isso, refugiamo-nos no que foi.  Essa, a sabedoria dos velhos.

Era Natal, as férias haviam começado e eu, menina, com pai e mãe ... os dois, vivos.
Sempre, o Natal que aí vinha era passado no Alentejo, em casa-mãe.  Os meus avós albergavam em torno da mesma mesa, várias gerações.  Desde a minha bisavó de que ainda lembro, tios-avós que também por ali andavam, até à geração dos meus pais com os irmãos e os respectivos filhos.
Lá nos esperava o presépio com as figurinhas de barro, todos os anos renovado e acrescentado por conta das que se iam entretanto, partindo.  Eram sempre compradas no mercado, em Évora, que nesta época tinha de tudo.
A azáfama sentia-se naquela casa.  Cheirava ao musgo do presépio, que era obviamente legítimo, cheirava às iguarias que os mais velhos iam confeccionando, aos temperos das carnes, ao frito dos doces, à canela do arroz-doce ... aos bolos a saírem do forno ...
A avó, roliça, avental à cintura sobre a saia rodada e comprida, cabelo apanhado em coque na nuca, era a abelha-mestra daquele clã.  Orientava, supervisionava, fazia, com uma maestria que ninguém igualava, com as mãos de fada que só as avós têm ...
Algumas ... ( rsrsrs )

Para a miudagem, aquilo tudo era uma festa.  O clima de alegria, união fraterna, paz e partilha ... o clima de amor ... o clima de família, pairavam. E família era sinónimo de segurança, de ninho, de pertença !
Grande era a ansiedade que trazia aos rostos, a expectativa da noite que se aproximava.  A bota na chaminé, deixada na noite da consoada, prometia pela madrugada, alguns poucos, presentinhos, trazidos pelas mãos do Menino Jesus, se nos tivéssemos portado bem no ano que findava.
Não existia Pai Natal, nem renas, nem Lapónia, nem trenó.  E os presentes sempre eram aqueles ... nem mais nem menos.  Os suficientes, porque desperdícios não eram contemplados. Excessos não existiam.
Lápis em chocolate, da Regina, sombrinhas envolvidas em papel prateado colorido, um macinho de cigarros também em chocolate, uma rima de 5 ou 6 pequenas tabletes atadas com uma fitinha de seda, a juntar a umas peúgas,  um gorro de lã ou um cachecol quentinho ... já estava de bom tamanho.
E que felicidade era, na manhã seguinte, ser acordada pela mãe que dizia : "Vai ver, vai, o que o Menino Jesus te deixou !... "

A noite da consoada, culminava com a Missa do Galo, em que era a avó que levava a criançada.
Em casa ficavam os outros adultos, na afobação do por da mesa, na preparação do que haveria de ir para o braseiro na chaminé imensa, que ocupava de parede a parede, o fundo da cozinha.
Por cima, os estendais dos chouriços, das morcelas, dos paios, das farinheiras, no fumeiro feito de varas colocadas pelo avô, exalavam em permanência um cheiro convidativo.
As tias, das solteironas que adoptavam a casa como sua, às mais novas, acabavam de confeccionar os fritos.  E havia de tudo ... as azevias de grão, as filhós, as rabanadas ou fatias paridas, os sonhos, os mexericos, a pinhoada.

A avó vestia a sua melhor roupa, envolvia-se num xaile bem quente, colocava um lenço na cabeça ( o lenço das festas, que detenho até hoje ), dava as mãos à miudagem e lá seguíamos para a Igreja de Nossa Senhora da Saúde.
O frio da noite, normalmente estrelada em céu limpo e escuro, não chegava para nos arrefecer o entusiasmo.  Afinal, a igreja sempre estava engalanada, o presépio singelo mas lindo, junto ao altar, as luzes das velas e os cânticos que já se ouviam, lembravam a todos que a união e a humildade haviam descido sobre a Terra, pelo coração daquele Menino, tão risonho e bochechudo, deitado nas palhinhas.  No final da missa, todos Lhe beijaríamos o pezinho ou a perna pequenina e nua, que o prior segurava entre as mãos, no meio de uma toalha de linho.

Depois, era o regresso a casa e a alegria que nos aquecia a alma.
O madeiro de azinho, o maior que o avô guardara ao longo do ano e que só chegara à lareira rebolando desde o quintal, já que ninguém tinha força para o pegar, ardia com chamas que aqueciam e iluminavam toda a cozinha.  As cadeiras de buinho e os "mochos" para os mais pequenos, faziam círculo a distância bem razoável, porque o calor era muito e não permitia aproximação.
Mais atrás, a mesa com a alvura do linho, recheava-se de tudo quanto a tradição sempre mandou.
E comia-se e cantava-se ao Menino Jesus, puxando cada um, o cântico que lembrava.

Oh meu Menino Jesus
Da lapa do coração
Dai-me da Vossa merendinha
Que a minha mãe não tem pão

O Menino chora chora
Porque anda descalcinho
Dá-Lhe tu as meiazinhas
Que eu Lhe dou, os sapatinhos

Nossa Senhora lavava
E S. José estendia
E o Menino chorava
Com o frio que fazia

Não chore meu Menino
Não chore, meu amor
Porque são navalhinhas
Que cortam sem dor

Entrai, pastores entrai
Por este portal sagrado
Vinde adorar o Menino
Numas palhinhas, deitado


E todos ... éramos então "todos"  ainda, por ali ficávamos, rindo, conversando, cantando ... varando a noite, madrugada adiante, até que o João Pestana levava as crianças para a cama, sonhando talvez que o Mundo tinha o tamanho da cozinha da avó e que a felicidade e a paz que sentiam, seria para toda a vida !

Anamar

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

" A MORTE VERSUS A VIDA "



Nada para dar mais significado à VIDA, do que a MORTE !

Como seres vivos, cumprimos à letra os desígnios da espécie ... nascemos, crescemos, provavelmente reproduzimo-nos e morremos.
Não há como fugir.  No interregno entre o princípio e o fim, vivemos ...

A VIDA... essa complicação instituída que levamos adiante, sem recuos possíveis, com maior ou menor maestria !  Essa prova de fundo que nos desafia, nos experimenta, nos questiona dia após dia, umas vezes mais leve, outras mais dura e arrastada !
E vamo-la cumprindo, sem preparação prévia, sem livro de instruções, sem sebentas ou apontamentos.  Sem ensinamentos particulares, cursos de reciclagem, aulas de apoio ... sem direito a reescrita ... sem borracha, lápis ou  rascunho ... Sempre sem direito a rasura !
Espaldados na teoria da tentativa e erro, com mera sustentação no tacto, no bom senso, no equilíbrio de cada um ... esfolando continuamente os joelhos, ferindo-nos  para aprender, experimentando o amargo para valorizar o doce ... vamos seguindo como alguém que calcorreia, titubeante, um caminho tortuoso e desconhecido, em noite de nevoeiro ...

Há os que, alunos mais hábeis, sabedores, se calhar inteligentes ... se calhar atentos ... se calhar persistentes, não sei, a vão cumprindo com mais desembaraço, sapiência, êxito.  Para esses vai havendo uma quota de sucesso invejável.  Até parece não ser tão difícil assim, a superação de cada desafio .
Depois há os outros, aparentemente alunos relapsos, se calhar cábulas ... se calhar mandriões ... se calhar superficiais e desatentos, ou simplesmente imperfeitos ... para quem  cada etapa é uma prova de resistência, um esforço titânico.
Parece que sempre erram no desespero do acerto, parece que as intenções sempre ficam aquém dos resultados, como  "soi dizer-se" ... "parece que se benzem, mas partem o nariz " ...
E tudo parece funcionar ao contrário. São sucessivos os tiros nos pés, o desgaste e o cansaço aniquilam e destroem.
Para esses, esse tal exercício que é viver, constitui uma epopeia quase inatingível, um desiderato inalcançável, uma canseira sem tamanho !

E penosa, a vida vai-se fazendo com esforço acrescido, como alguma coisa que se vai levando aos tropeções, empurrando aos solavancos, arrastando como grilhões ou correntes.
Parece um remédio amargo que se toma às colheradas.  Perde o colorido, pesa arrobas ... Não tem graça !

Aí um dia, a morte, perto de nós, rondando e alvejando afectos imprescindíveis nas nossas vidas, chega e ceifa.  Leva-nos quem ocupou os nossos destinos, arrasta quem connosco caminhou pela estrada, atinge a nossa zona de conforto e vulnerabiliza-nos, pondo em causa convicções, certezas, pragmatismos, desvalorizando-nos verdades que eram absolutas, ridicularizando-nos bandeiras e armas de arremesso, ponto de honra nas nossas estratégias de vida .
Pomos então em causa a real importância das guerras de mágoas, ofensas, hostilidades, marginalizações e afastamentos que pautaram muitas das nossas posturas, fragilizando-nos os alicerces, abanando-nos às vezes irreversivelmente, o edifício emocional e afectivo que nos sustentava.
Pomos em causa verdades que eram defensáveis como pontos indiscutíveis, opiniões que se esgrimiam com unhas e dentes, como se não houvesse amanhã ... certezas inadmissivelmente duvidosas,  inquestionáveis, baluartes inexpugnáveis, estandartes intocáveis ...

E de repente, uma maturidade que não adveio obrigatoriamente dos anos mas sim do sofrimento, toma-nos, aclara-nos a vista, desarma-nos o coração e mostra-nos com uma transparência que até dói, como perdemos tempo demais.  Confronta-nos com a idiotia mantida por burrice ou teimosia, por prosápia ou inflexibilidade, desvenda-nos a fragilidade das trincheiras que caváramos, a inoperância das muralhas que erguêramos valorizando o acessório em detrimento do essencial, só que ... quase sempre tarde demais !
A cegueira que nos escureceu a vista tarda a dissipar-se.  Somos duros na queda, somos fundamentalistas nas atitudes e a nossa capacidade de tolerância, de humildade,  até de superação chega com atraso, irremediavelmente. A nossa capacidade de regeneração ou recriação esgotou-se.
O tempo possível escoou-se.  A ampulheta esvaziou.  A ferida necrosou e nunca mais os ponteiros acertarão a hora, nos rumos das vidas !

E foi pena.  Já não há remédio ou panaceia ...                   
A MORTE deu, tarde demais, significado à VIDA !...

Anamar

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

" RETALHOS "





Mais um Natal à porta.  Um, mais ...  Mais um ano a findar ... um, mais !
Inevitável tudo o que se sente, embora não queira sentir-se.  Inevitável a miscelânea de sentimentos teimosos e desorganizados, que em atropelo nos tomam.
Alegria, dizem as pessoas.  Sem dúvida, alegria pela reunião, pelo encontro, pela partilha e cumplicidade de sentimentos.  Pelo calor do sangue ... que se sente bem quando é do nosso, a correr  por outras veias.  Alegria, pelo calor no coração, na verdade da amizade semeada nos tempos, em cada abraço dos amigos ...
Consolo também.  Uma carícia na alma, quando estamos todos na mesma mesa e os afectos voejam, tanto quanto os sorrisos dos rostos.
E paz.  A paz que se sente por nos sabermos pertença e podermos acreditar que com sol ou tempestade nas vidas, sempre abriremos o mesmo chapéu protector, capaz de albergar todas as cabeças.
E sonho ... sonho de podermos sonhar que tudo é exactamente assim.  E sermos capazes de nunca abandonar esse sonho, embora utópico possa parecer, muitas vezes ...

Depois, Natal traz-nos também à flor da pele, mágoa, saudade, falta, tristeza ... buracos no coração que não se preenchem, feridas na alma que não saram, incertezas de futuros sonhados inacabados, dúvidas de manhãs que estão por vir, medos por tempo que se escoa rápido demais, sem que talvez tenhamos tempo de escrever a nossa história até ao fim ...
Natal acorda-nos as dores da lembrança de todos os que já não podem sentar-se na nossa mesa, traz-nos a recordação de todos os que dividiram as vidas connosco, nos momentos tristes, mas também nos mais felizes.
E inevitavelmente todos "baixam" quando  as velas se acendem, quando os cânticos ecoam, quando o bacalhau é servido, quando os sonhos e as rabanadas se anunciam, quando o brinde se ergue e nos maravilhamos, percebendo como a vida se vai fazendo, os destinos se vão cumprindo, a roda continua sempre a rodar, as cadeiras sucessivamente a reocupar-se ... porque assim é e assim será, além dos tempos ...
Todos "baixam" quando a magia nos toca e um sopro de esperança e fé, nos impregna até à alma ...

Ponho-me a pensar : em quantos Natais mais ocuparei aquele lugar da mesa ?  Em quantos Natais mais, vou erguer a taça e formular os votos ... os tais, que se perdem no éter e brotam com a força toda do meu coração e o desejo incontornável do meu espírito ?
Quantos estaremos no ano que vem, no outro e no outro ?
E contemplo, já com a lágrima a embaciar-me o olhar e o nó a sufocar-me a garganta, o lugar do sofá vazio, o que foi dito, do que rimos e do que falámos ... porque sempre há o que lembrar, porque sempre o que lembra, se repetia ... e a gente ria então ... quase completamente felizes !
E tudo voltará à normalidade.  Este ano dói muito ... no próximo, talvez um pouco menos ... e assim por diante.
Haverá outros a preparar o peru, tão bem ou melhor.  Haverá quem lembre os que preferiam arroz doce,  os que escolhiam as rabanadas ... as filhós, as azevias ... as manias de uns, as rabugices de outros ...
Haverá quem lembre o Pai Natal fantasiado que enganava a criançada... quando a criançada ainda tinha idade e inocência para se deixar enganar ...

Porque tudo continua imparável e a vida se renova, até que um dia seremos apenas um lugar na mesa, que cada vez menos, lembrarão ...

Anamar

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

" OLHA, SABES QUE DIA É HOJE ?... "



Este mês de Dezembro era um mês movimentadíssimo na cabeça da minha mãe.

Chegava o dia um e assim que a visitava, logo pela manhã me dizia sabes que dia é hoje ? E eu, que já sabia o que vinha lá, dizia, sei mãe, é o dia do Ti Tiago Nobre ... e ela, feliz ... Pois era, à meia noite o Ti Tiago Nobre, pela calada do frio do Alentejo, com o seu carapuço de almocreve na cabeça, pequenino que ele era, abria o postigo da porta na casinha baixa em que vivia, empoleirava-se na cadeira de buinho, e com a espingarda caçadeira, disparava as salvas da comemoração histórica a viver-se nesse dia, a Restauração da Independência de Portugal do jugo dos espanhóis, como ele dizia. Não, sem simultaneamente insultar os "nuestros hermanos" com uns quantos impropérios a propósito.
Nunca, ano após ano, o Ti Tiago Nobre, um velho sem idade ou condição, se esquecia do evento.
Quantos seriam os tiros que cortavam o silêncio da noite ?  Verifico que não sei.  Esqueci de perguntar à minha mãe.  Ou então, se mo disse, já o não lembro.
Deixei-a ir, imperdoavelmente sem esclarecer este ponto.  Já não há remédio !

No dia oito, dia de Nossa Senhora da Conceição, lá vinha outra ... sabes que dia é hoje ?  E eu, que já sabia o que vinha lá, sorria e dizia-lhe, sei mãe, hoje é o dia da Menina Custódia ... e ela, feliz ... coitadinha, tão novinha que morreu.  A pneumónica matou famílias inteiras, chegavam a estar dois e três enterros na mesma casa, ao mesmo tempo.  Pais, não sabendo de filhos e filhos não sabendo de pais ... Muito triste !  Mas o enterro da Menina Custódia ... nunca se viu nada assim.  O Redondo todo se "despovoou" e a acompanhou ao cemitério.  Era muito nova e muito boazinha. Toda a gente gostava dela, prestativa com todos, no atendimento ao balcão do montepio.

E eu a perguntar-me por que raio, ano após ano, a minha mãe, caindo de velha e esquecendo quinhentas mil coisas úteis das nossas vidas, não esquecia estas figurinhas ?!...

Igual a este enterro, só mesmo o do Padre Serrão ...
E aí, saltávamos para a semana anterior ao Natal ...
Olha, sabes que dia é hoje ?  E eu, que já sabia o que vinha lá, voltava a sorrir e confirmava, sei mãe, foi o dia em que o senhor Padre Serrão entregou o corpo ao Criador.  Ah pois, nunca houve um padre como ele, lá na nossa terra.  O Padre Serrão rezava a missa de alva todos os dias, e todos os dias, de Verão ou de Inverno, antes dela, tomava um banho de banheira com água fria.  Depois, lá ia para os seus afazeres.  Até ao dia em que, estando as beatas à missa, o senhor prior não apareceu.  Quem lhe aconchegava as coisas, procurou-o em casa e o Padre Serrão por lá ficara ... na banheira !
Era muito boa pessoa. Condoía-se de toda a gente e ajudava os desvalidos.  Casou os teus avós, quando o avô chegou da Grande Guerra, onde não morreu por uma unha negra, apesar da condição imposta pelo teu avô, Senhor Padre, eu casar ainda posso casar, mas eu não me confesso antes. Está bem meu bom amigo sr. Barrancos, era assim que ele dizia. Não faz mal, o meu bom amigo leva a minha boa amiga sra. Brites à igreja e eu caso-os e pronto.  E assim foi.
Nunca houve um funeral tão grande na vila ...

Funerais por funerais, ainda neste agitado mês de Dezembro, rés-vés ao seu fim, finou-se o dr. Tavares, o João Semana lá do sítio. Era o médico para todas as horas, todas as doenças e todas as eventualidades.  Não se cobrava, atendia ricos e pobres. Pagavam-lhe pelas Páscoas em merendeiras, bolos de folha e queijadas. Pelos Carnavais em pinhoadas, filhós e azevias ... pela feira de Outubro, em maçãs, nozes e marmelada ... e o dr. Tavares nunca recusou um atendimento, mesmo no pico das madrugadas, se preciso fosse ...
Quando morreu, baixou à terra apenas embrulhado num lençol.  Assim o deixara escrito.
E eu a relembrar uma outra vez, mais um famigerado dia de Dezembro num ano em que ainda não nascera, nem estava para nascer ...

Olha, sabes que dia é hoje ? E eu já esgotada de tantas efemérides registadas naquela cabecinha branca de alva, olhava-a com um ar aparentemente desolado e dizia-lhe, credo, mãe, hoje não estou mesmo a lembrar-me de nada.  Mas é Dezembro, certamente mais alguma coisa terá acontecido, sorria, meio envergonhada pela falta imperdoável do esquecimento.  Como se fizesse pouco caso de tão importantes acontecimentos.  Como se fosse uma aluna relapsa não dando conta da lição.  Então, faz anos que morreu o Pêdorra ... já não te lembras ?  Era ele que nas esquinas das ruas apregoava e apregoou tudo quanto todos deveriam saber, o que se passara, quem nascera, quem morrera, quem se casava, por quem eram os "sinais" que o sino da Matriz dobrava, o que se perdera e as alvíssaras que se dariam a quem achasse ... e por aí fora ...
Um dia o pregoeiro também calou os seus pregões.  Inevitavelmente, num traiçoeiro dia de Dezembro.  A minha mãe soube-o. Soube-o e não mais o esqueceu.  E desta vez ninguém lho apregoou !...

Era assim... foi assim ...

Olha, sabes que dia é hoje ?...

Memórias ... só memórias, o que resta de tanta gente.  Breve se calarão.  Breve se esfumarão na bruma dos tempos !
A minha mãe também não mais mo lembrará.  E eu ... bom, eu acho que já não o conseguirei mais, passar adiante ... VIDA !...

Anamar

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

" UMA NESGA DE AZUL "



O sol sempre adocica o que vemos.  Pinta, acende as cores, salpica de esperança onde poisa.
Nos dias de sol tudo parece mais simples nas nossas vidas.  Passamos a "poder", e embrulhamos os desânimos em alegria, como em papel de rebuçado.
Hoje chove e chove muito.  O céu fechou totalmente, um cinzento  borrascoso  desceu sobre tudo, como se lá por cima tivessem desligado as luzes.
É meio do dia, mas parece roçarmos o lusco-fusco.

Apesar de eu ser uma mulher de sol, que o busca nas esquinas, nos areais, nos interstícios das ramagens e que o persegue da janela, enquanto se mostra,  até que deita, lá longe ... adoro estes dias de melancolia doce, que só o Outono nos sabe oferecer.
São dias de interioridade, de silêncio, de introspecção.
Adoro olhar a chuva a salpicar-me mansamente a vidraça bem na minha frente.  Adoro olhar esta semi-neblina que opaciza a paisagem a partir de uma certa linha do horizonte, não nos deixando ver mas só adivinhar.  Adoro olhar o chão lá em baixo, completamente atapetado com as folhas que a brisa vai despindo do arvoredo agora meio despenteado e em que a folhagem que ficou, se pinta do colorido quente da estação ... dormente, sonâmbula no balanço do vai-vem da ramagem ... Como se quisesse demorar-se no estar, como se não soubesse dizer adeus ...

São dias de muita paz.  Dias de memórias.  Dias de saudades.
São dias equilibrantes, de realojamento das emoções que me moram.  Dias de casulo, dias de útero, dias de colo  em que mergulho, como se de repente estivesse escudada dos males do mundo e das agruras da vida ... porque sempre as há, obviamente ...
São dias de memórias doces ... as mais diversas. Algumas, doces mas doídas, outras doces e aconchegantes.  Todas indeléveis, inapagáveis na minha existência !

Entretanto o ano está na recta final.  É época de balanços, outra vez.  Sempre é época de balanços, queiramos ou não.  À medida que as últimas páginas do calendário caem, não tem jeito ... com elas cai-nos na mente, inevitavelmente também, tudo quanto se viveu, todo o deve e haver entre as realizações e os sonhos, toda a avaliação entre o concretizado e o planificado, toda a análise da nossa prestação no empenho dessas concretizações.
Umas vezes conseguimos o ambicionado. Outras, por vezes à nossa revelia, a vida fez-se, a contento ou não.
Sempre a vida se vai fazendo, feito maré mansa ou borrasca tenebrosa ...

Foi um ano muito difícil para mim, este que agora caminha para o fim ...
A minha mãe partiu e deixou-me mais órfã do que nunca, depois de um sofrimento arrastado e vivido por todos nós, tempo demais.  Estou ainda num período de adaptação a essa realidade, se é que alguma vez a aceitarei sem turbulência no coração ...
Fiquei exausta, exaurida em todas as minhas forças, numa impotência e numa dor atrozes.  Fiquei com um buraco no peito e uma ferida sangrante, que jamais serão consertados.
Sei que tudo isto é a vida, e que tudo isto tem a "normalidade" e a inevitabilidade que essa vida lhe confere.
Eu sei ... apenas sei ... de pouco serve !...

Depois ainda, foi um ano de muitas reviravoltas e muitos reajustes no meu percurso.  Tudo o que nos desaloja da nossa zona de conforto, determina muito desgaste, muito cansaço, muito sobressalto e insegurança.
Por arrastamento ... dúvidas, medos, interrogações ... conflitos internos  também nos assaltam ...
Vencer a inércia, seja ela qual for, implica sempre, como se sabe, um acrescido dispêndio de energia.

As saudades revisitam-me, nesta época.  Em força.  Instalam-se, fazem-se presentes, não me deixam ...
São saudades de gente, de lugares, de momentos.  São saudades de palavras, de gestos, de afectos.  São saudades também de mim ...
São memórias que não desgrudam, sendo que agora dormem na minha cama, ocupam a minha mente, apertam-me o coração, desatam-me uma que outra lágrima ... lembrando-me que, mesmo quando eu pensava que elas dormiam, apenas dormitavam ... em sonolência de sesta.
São carícias na alma, apesar de tudo ... afagos no coração ...  São o que nos fica, de tudo o que partiu e nos deixou ...

Sou  uma  emotiva  irremediável.  Uma  saudosista  inveterada.  Uma  romântica  sem  emenda ...
Enfim ... sou. como toda a gente, o somatório de tudo ... bom e mau, gratificante ou nem tanto, feliz ou dolorido ... acertos e erros ...
Mas, no meio da escuridão que se abate, procuro quase sempre uma nesga de azul ... e aguardo que a vida sorria lá do alto, acreditando que amanhã possa ser um  "outro"  novo dia !...

Anamar

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

" SIMPLESMENTE ... "




" Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu p'ra sempre ... "
                                                       
                                                               Miguel Sousa Tavares

Esta reflexão é dum pragmatismo que subscrevo em pleno.

Ao longo da sua vida, o Homem digladia-se, exaspera-se, desespera-se ... mata e esfola, pela posse, pela jurisdição, pela disputa de tudo o que considera pertença sua. Dos bens materiais, aos valores emocionais e sentimentais, tudo lhe parece passível de controlar, gerir ... possuir !

A filosofia budista, da qual me sinto próxima em muitos aspectos, ou pela qual nutro pelo menos profunda simpatia, fala-nos de dois princípios básicos, absolutamente meritórios, defensáveis ... e até indiscutivelmente  lógicos, eu diria, que, assimilados e interiorizados, nos simplificariam muito a vida, enquanto seres mortais, em trânsito por aqui.
Um deles, subjaz à postura do desapego que todos nós deveríamos praticar.  O desapego ao que nos rodeia, o desapego ao que detemos, o desapego por expectativas, certezas imaginárias, convicções instaladas.  Em suma, desapego por tudo o que tomamos como certo, garantido e até devido ... já que normalmente nos "concedemos" direito a privilégios, a futurologias favoráveis, a certezas invariavelmente garantidas, só porque ... merecemos, "temos direito" ... exigimos ...

O outro princípio de que pouco nos lembramos ou consideramos, prende-se com a impermanência da realidade que vivenciamos.
Nada é de facto mais real, do que a impermanência efectiva de tudo.
Bem ao contrário, a cada dia, a cada momento, em cada segundo ... tudo muda, varia, altera ...
Nada nunca é absolutamente certo, garantido, exacto ... A  vida é de precariedades, incertezas, dúvidas.  E dúvidas, porque nada pode de facto, ser tomado como certo e seguro.
O que nos rodeia é efémero ... nós, somos seres efémeros !
Talvez esse seja mesmo, o real encantamento da existência !
Talvez essa seja mesmo, a mola impulsionadora das nossas vidas !

Desconhecendo o que podemos atingir, desafiando o que ansiamos alcançar, lutando e superando-nos para o atingirmos, podemos levar o sonho à realidade, sem obsessões doentias, sem truculências, sem atropelos ... com respeito pelo outro, com relativização da importância das coisas, com uma visão mais humanista, civilizada e de menor sofrimento.
Tenho para mim, e com isso procuro viver, que na verdade, nada possuímos.  Nada nos pertence.
Chegámos sem nada.  Dessa forma partiremos.
Tudo é transitório.  Somos meramente seres "em passagem" !

Ao longo dos já razoáveis anos em que ando por aqui, tenho procurado mentalizar-me dentro destes princípios de vida.  Tenho procurado minimizar as afobações, as competições, as disputas ... as angústias e as ansiedades, e com isso, valorizar apenas o que importa.  Com isso, procurar uma gestão inteligente, equilibrada e não desgastante, daquilo que vou vivendo.
E para mim, o que importa é tudo o que se vive e guarda, no domínio do coração.
Refiro-me a emoções experimentadas, a sentimentos partilhados, a momentos inesquecíveis, a memórias indeléveis ...
Património nosso... enriquecedor, imprescindível, inalienável ...

Já perdi muitas coisas.  Já deixei muitas pessoas "insubstituíveis", pelo caminho.  Já me desapontei, já chorei, já me senti sem norte.  Já me vi como criança abandonada no deserto.  Já me indignei por me achar injustiçada.  E já acreditei que não mais seria capaz de sonhar e ter fé, de novo.  Já me senti tão desesperançada, que o único trilho que enxergava, na neblina escura de breu, era a desistência de tudo e de todos ... a desistência até de mim própria !
Mas como o Mestre afirmou, pedras no caminho, são todas para reunir, construir, reabilitar ... reerguer !

Hoje, caminho com todo o meu espólio, bem dentro de mim.
Hoje, procuro em cada topada, perceber qual o obstáculo que me dificultou a marcha.  Para contorná-lo, com sabedoria, furtando-me ao doloroso e ineficaz confronto.
Hoje, resguardo com todo o carinho do mundo, a memória dos que amei muito ... vivos, ou mortos.
Procuro adocicar os azedumes do dia a dia.
Hoje, procuro um aperfeiçoamento gradual.  E acredito nele.
Hoje, não dispenso ninguém que me dê a mão, que me sussurre ao ouvido, que me faça rir ou mesmo gargalhar.
Procuro agarrar com todas as minhas forças, os que me cercam e me são importantes.  Os que compõem a minha história.  Os de perto e os de longe ... porque todos cabem na caixa que tenho no peito.

E todos, indistintamente, são a minha fortuna, a minha riqueza, a minha herança ... aquilo que me acrescentou e faz de mim, eventualmente, um  melhor ser humano, mais justo e complacente.

Nada detemos.  Nada nos pertence.  O nosso único património é o que somos, aquilo em que nos tornamos diariamente, numa luta pertinaz de aprendizagem e aperfeiçoamento constantes !

Anamar

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

" RETRATO "




E Sintra cheirava a terra molhada.
Não que chovesse, mas já chovera, seguramente.  Aquela humidade e aquele friozinho que emanam do chão, que amarinham da mata, que trepam as árvores, que cobrem os muros, são incomparáveis.  São marca, são imagem, são registo.
Sintra só é comparável a Sintra !...

Um sol fraquinho espreitava de quando em vez, através de nuvens encasteladas, umas vezes com ar ameaçador, outras com uma bonomia contemporizadora.  Frio a sério não se sentia.
Mas aquela doçura própria de um Outono já avançado, não deixava dúvidas ... a estação  vai  adiantada !
Os muros verdejavam com os musgos atrevidos, os troncos ajeitavam em si as heras trepadeiras, as hortênsias podadas na hora certa, jaziam junto aos jardins, aguardando a remoção.
As folhas tombadas, nos ocres, amarelos, castanhos ou vermelhos, atapetavam e afofavam as veredas.
Os passos ecoavam no estalido da gravilha ...
As casas exibiam a sua aristocracia própria.  A ancestralidade que lhes confere pose e dignidade, impõe-se.  E há silêncio.  Apesar de tudo, Sintra continua a ter remansos de silêncio.  Lugares de intimismo.  Espaços de interioridade ... Nichos de reencontro.  Reencontro com nós mesmos e reencontro com as nossas linguagens da alma e do coração ... Clareiras de conforto ...

Sempre a vejo com olhos de gratidão.  Sempre a sinto como ninho embalador.  Nela sempre busco o calor de uma história ... a minha, que se foi escrevendo episódio a episódio, por bocas e palavras diversas, ao longo dos tempos !

A Pena e o Castelo empoleiravam-se na mansidão do contra-luz que descia.
E havia uma aguarela pintada naquele caixilho de moldura.  E havia por ali, pairantes, lugares, emoções e sentidos.
Lugares etéreos, muito próximos da eternidade.  Sonhos sonhados, extintos ou não, dependurados dos castanheiros do caminho.  Desejos refreados que circulam nas veias, p'ra cima e p'ra baixo, sem contenção ou limite.  Memórias indeléveis desenhadas em cada esquina, impressas na pele e na alma ...

Sintra, para mim é tudo isto.
E juro que tudo isto, nela vi ...
Retrato de  mulher espreguiçada nos tempos, adormecida no alcandorado da serra, embalada no gorgolejar dos riachos, acariciada  pela brisa perpassante, envolvida na bruma sombria dos penhascos ... coroada por aquela lua cheia que espreita gloriosa, no breu da noite ...
Xentra, Cynthia ou Suntria ... lenda, mistério, silêncio e magia ...
Ou ... simplesmente SINTRA, mítica e mística ... numa tarde de Outono !...

Anamar

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

" JÁ LÁ VAI O TEMPO ... " ( escrito a 12 de Novembro )




Já lá vai o tempo em que eu ficava "jururu" no dia de hoje !
Sorumbática, nostálgica, apreensiva ... triste mesmo.  Triste, porque mais um ano se esgotara, mais uma esquina tinha sido virada, mais encurtado tinha sido o caminho ... E tudo isso me angustiava a ponto de querer apagar, se pudesse, este dia, do calendário.
Não apreciava felicitações a propósito,  fazia por esquecer a data, já que a achava uma pirraça da vida que põe o tempo a comandar os nossos destinos, num desafio perfeitamente desigual, injusto, e contra o qual não há armas que detenhamos.
Amanhecia desgostosa, parecia carregar um peso e um desânimo absurdos.
Repetia para mim mesma uma frase que sempre ouvi ao meu pai : " Os dias são todos iguais ... Nós é que temos a audácia de achar alguns diferentes dos outros !"
O meu pai chegou a esquecer a data do seu próprio aniversário, pela pouca importância que lhe atribuía...

Uma vez, na porta da escola, uma aluna ... já adulta ... a propósito de mais um dia que findava, disse-me, em jeito de despedida : " mais um dia !... "
Escutei esta doutoral afirmação, e retorqui-lhe : " ou menos um ... "
Olhou-me de alto a baixo e com um certo ar de comiseração, não desarmou e contra-argumentou de imediato : " p'ra si talvez menos um ... para mim, seguramente mais um !... "

Fiquei a pensar na coisa, e o espectro da inevitabilidade do transcurso demasiado rápido do tempo, caíu-me em cima.   Cá estava ... eu afinal, pensava bem ... Por cada ano que passa, é menos um que temos para viver, neste corredor sem marcha atrás ...  Que triste, isto !!!

E o meu aniversário, como outras datas igualmente marcantes do calendário, pesavam-me chumbo !  Como poderiam as pessoas ficar eufóricas, felizes, alegres ... só porque mais um ano havia passado ??!!

Mas isto, já lá vai o tempo !...

Hoje, olhando à minha volta, e com a inevitável maturidade que a vida nos confere, percebi que daqui em diante, prefiro fazer contas de somar e não de subtrair ...
Percebi que nada disto faz sentido, já que a "foice" poda a esmo, sem lógica ou determinação ... e não são os anos vividos que nos garantem o "bilhete" de ida  para já ou para mais tarde, antes ou depois de ... como se houvesse uma escala a ser respeitada ... uma seriação a cumprir-se ... um determinismo macabro a sentenciar-nos ...
Percebi que o que importa é que estou por aqui, é que acordo em cada manhã, olho o céu azul ou os castelos de nuvens, e espreito o sol descarado ou tímido, à minha espera ...
O que importa é poder andar se não der p'ra correr ... é poder sorrir se não der p'ra gargalhar ... é poder dormir no embalo dos meus lençóis ... e sentir o afago de uma noite em paz ...
O que importa é poder respirar e sorver toda a saúde de que disponho, mesmo que de quando em quando, uma dorzinha aqui ou ali, me lembre que estou viva !
Percebi como é delicioso abraçar todos os que amo.  Rir, mas também chorar ou emocionar-me com todos os amigos ... Perto ou longe ... sabê-los lá ... sempre !
Ter a bonomia da aceitação.  Ter a paz da compreensão.  Ter a generosidade da partilha.
Percebi que caminhar custa ... que a vida é um parto difícil, mas que nos deposita no colo a felicidade e a alegria  de um  renascimento diário !  E sem isso, não teria a menor graça ou sabor !...
Percebi que mesmo com desencontros, mágoas ou dissabores, nada chega à segurança e ao conforto daqueles em cujas veias corre o nosso sangue.  E que ainda que não no-lo digam ... sempre são e serão nosso porto de abrigo ... nosso farol no nevoeiro, nosso esteio no futuro !...
E que  há futuro ... enquanto  eu quiser !  E que  há  esperança  e sonho enquanto  eu  acreditar !
E que esse sonho tem a dimensão do aqui e agora.  Não importa que seja pequeno, próximo, modesto ...  É o sonho que HOJE eu sou capaz de sonhar !  É o MEU sonho, simplesmente !...

Já  lá  vai  o tempo  em  que  o 12  de  Novembro  tinha  a  cara  de um bicho- papão na minha vida ...

Hoje, estou grata a essa vida que me ensinou ( quero acreditar que não tardiamente ) o valor exacto da sua essência, o milagre  magnânimo de poder envelhecer saborosamente, sem sustos, exigências ou tormentos.  O privilégio de me sentir abençoada pelo que foi, pelo que é ... e sem ansiedade sobre o que será ...
Agradecer à vida a capacitação, a inteligência e a humildade de saber receber e acolher no coração, tudo o que ela me vai oferecendo ...

E que em vez de me sentir amarga e escurecida na alma, possa abrir todos os dias a janela de par em par, e maravilhar-me  com todas as cores, embriagar-me com todos  os cheiros, extasiar-me com todos os sons, como se fossem grinaldas de rosas, enfeitando o meu coração !...               
     ... porque eu fui, sim, muito abençoada !

Anamar

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

" UMA MULHER SEM IDADE "





Dentro de dias aniversario.
Não, ainda não sou septuagenária !  Falta algum, razoável tempo para que o calendário dos Homens o determine.
Isso não me representa uma preocupação relevante,  por eventualmente me poder atormentar a ideia remota, de que o "caminho" se faz  caminhando irreversivelmente em direcção àquele momento comum a todos, mais cedo ou mais tarde, pelo simples facto de estarmos vivos e termos a condição humana.
Não penso muito nisso, intencionalmente, pois não me permito deprimir-me com algo que foge ao meu controle.
Bem ao contrário ... e porque me sinto viva e bem viva, tenciono retirar dos meus dias, do meu caminho, dos meus sonhos ... toda a mais valia possível.

Diariamente aceito para mim, com ambas as mãos, as braçadas de flores silvestres que o destino me deposita no colo.

Diariamente me deixo impregnar dos aromas, das cores, dos sons da vida ... porque a mereço e acho que me são devidos.

Diariamente me deixo extasiar com as bênçãos derramadas, sem que o peça.  Sem que o mereça ... tantas vezes !

Diariamente procuro encantar-me com os milagres operados em meu redor :  o sorriso no rosto dos meus netos,  os seus sucessos, as suas dificuldades ... o que de bom lhes ocorre, e o que de menos bom os surpreende.  O despontar da Teresa, dia após dia, os primeiros passos, as primeiras palavras ...
As angústias e incoerências duma adolescência a instalar-se, da Vitória ...
A iniciação difícil no mundo adulto, do António e a ingenuidade,  a criancice, a brincadeira constante e a meiguice do Kiko ... Porque tudo isso é vida ... é destino.  Tudo isso é a história da minha continuidade ...

Diariamente, agradeço o milagre da amizade quente e generosa dos meus amigos.  Todos ... Os  que estão  perto  e  os  que  de  longe  continuam  a  "saber-me" .  E  são  felizmente,  muitos !

Diariamente agradeço todas as curvas e curvas da estrada, palmilhadas às vezes com neblina cerrada, outras, com sol claro e céu transparente ...
Toda a coragem, a firmeza e a determinação ... mesmo quando fica difícil e parece não haver já, horizonte !...
Porque seguramente esse é o caminho que me foi dado a percorrer.

Diariamente agradeço o milagre de todo o amor que generosamente me envolve.  Do possível, e do nem sempre possível.  E o poder bastar-me com ele, com gratidão na alma e esperança interminável no coração !...

Não, ainda não sou septuagenária !  Aliás, sou uma mulher sem idade!
Tenho a força de uma juventude que me anima e faz acreditar.
Tenho os sonhos de uma adolescente com as hormonas aos saltos ... ainda ... sempre !
Tenho a fé e a aposta dos meus trinta, quarenta ... talvez cinquenta anos.  E tenho a maturidade que as rugas e os cabelos que não deixo embranquecer, me conferem !  São sinais. São marcos ... são pedras do caminho, com que, como o Mestre, vou construindo os meus castelos !

Amo a vida.  Amo acordar incoerentemente, dia após dia.  Amo surpreender e surpreender-me.
Amo o desafio.  Derrubo o cinzentismo.  Enjeito o estabelecido ... se o não quiser.
Contrario o imposto ... só porque sendo, terá que ser ...
Não ... tenho em mim a força do "não", se o entender.   E cada vez mais, o livre arbítrio das minhas escolhas.   Não baixo a cabeça a convenções. Não me escravizo ao bem parecer.  Tenho em mim a irreverência, quase sempre gostosa e não arrependida ...
E  um  coração  pleno, quando revejo  os  meus  trilhos, no  colorido  da aguarela que  os pintou !...

Esta, sou eu !

E não, ainda não sou septuagenária !!!...

Anamar

terça-feira, 6 de novembro de 2018

" APONTAMENTO "



Faz hoje sessenta e nove anos que os meus pais casaram.
Acordei com o coração doído, os olhos marejados e um aperto no peito.  O pensamento foi indo, debaixo de um édredon que não me aquecia a alma, e o cinzento do exterior  penetrava pela vidraça franca do meu quarto.

Sei que era um Novembro talvez como o de hoje, no Alentejo interior, na aldeia onde eu viria a nascer um ano depois.  Os meus pais já não eram jovens. Ele com quarenta e oito anos, ela com vinte e nove.  Ele ia num segundo casamento.   Ela, não.
Um e outro tiveram-me como prenda de laço e fita, como bênção do destino ... como sonho  concretizado e corporizado numa menina trigueira  como a terra que lhe dava  berço, de cabelo escuro e olhos castanhos.  Era e viria a ser até ao fim dos seus dias, a razão das suas vidas.
Sendo pessoas humildes vivendo exclusivamente do trabalho do meu pai, nunca nada faltou contudo,  naquela casa, na minha educação, na minha formação como pessoa de bem, detentora dos valores e princípios que para sempre viriam a nortear o meu destino.

Já passou muito e muito tempo.
Nenhum dos dois cá está para lembrar.  O meu pai partiu há vinte e seis anos ... a minha mãe, há meses.

Acordei com o coração doído, os olhos marejados e um aperto no peito. 
Acordei com os abraços que não lhes dei, espalhados na almofada.  Com as saudades que não partem e as memórias teimosas coladas no pensamento. 
Acordei estranhamente mais órfã, com o desconforto de roupa desaconchegada ao corpo, que nos deixa entrar o frio impiedoso.
Acordei com a nostalgia do irremediável.  Com a dor do que não é, porque não pode voltar a ser.  Com a ansiedade e o desejo do reencontro com a pessoa que eu fui, no tempo que já não me pertence ... porque o tempo não pertence a ninguém ...
Acordei com a estranheza de não mais me poder sentir a menina das tranças, a prenda de laço e fita, a bênção da vida dos meus pais ...

Lá fora chovia.  Uma gaivota planava, lançando o seu grasnido pelos ares.
Era Novembro outra vez ...

Há sessenta e nove anos, haveria sol ?...

Anamar

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

" DEIXANDO VOAR ... "



Olhei o plátano aqui das traseiras.  Quase todo ainda revestido de folhagem verde ... pasme-se !
Em anos transactos, nesta altura em que o Outono já se instalou, em que as alamedas das matas e dos jardins já se atapetam de folhas amarelas, castanhas e vermelhas, fazendo jus à típica coloração quente ... nesta altura em que o céu fecha de nuvens cinzentas escuras, carregadas e ameaçadoras ... nesta altura, dizia, o plátano já se havia despido.  Se não totalmente, pelo menos as folhas remanescentes, jamais eram verdes ainda !

Deve-se isto, à atipicidade climatérica vivida nas últimas semanas, em que o Verão parecia não desgrudar, com temperaturas elevadas, levando com toda a naturalidade, muita gente a pisar com satisfação ainda, a orla costeira da nossa terra.
Entretanto, anormalmente também, depois de uma tempestade estranha que nos atravessou ... um fenómeno climatérico meio inexplicável , pouco previsível e visto, o tempo virou da noite para o dia, as temperaturas desceram bruscamente, a chuva fez-se presente, o vento também, e pronto ... a estação outonal instalou-se a sério.
E ainda assim, com alguma benevolência connosco, aqui neste cantinho desapercebido, já que a Europa tem estado a ser fustigada por tempestades violentas com cheias gravíssimas, neve e ventos fortes , causando danos por aí fora !

Bom, mas quedei-me junto à vidraça, borrifada de gotas miudinhas, olhando o cinzento lá fora, perdendo-me pelos galhos sacudidos do plátano, e escutando o silêncio de interioridade aqui dentro.
E, porque o pensamento voa mais longe e depressa que as nuvens açoitadas pelo vento, fui-me deixando ir, sem explicação possível, aos tempos da minha infância.
Por essa altura, Évora era a minha cidade.
Morando um pouco afastada do Centro Histórico, vir até à Praça do Giraldo, exigia um motivo de razoável importância.
A minha mãe, pessoa com quem dividia as semanas, com o meu pai ausente em trabalho, não era dada a grandes passeios, a saídas de lazer, a convívios com quem quer que fosse.  Tanto quanto lembro, depois das aulas, era a casa que me esperava, invariavelmente.
Excluía-se alguma necessidade particular de uma compra, uma ida à modista ( porque por esses tempos o pronto a vestir era algo desconhecido ), uma deslocação esporádica ao dentista, o Dr. Pisco ( a criatura com a maior paciência que se possa imaginar ) ou, aí sim, por absoluto imperativo da existência, o abastecimento diário no mercado, pela carne, peixe, frutas e legumes, já que mesmo o leite nos chegava à porta, em vasilhas de zinco, aviado a contento, em medidas igualmente de zinco, e o pão se comprava na padaria, no início da minha avenida.
Outros artigos adquiriam-se  na loja do sr.Acácio, misto de mercearia e drogaria que ficava junto à padaria.

Quando pelas razões que apontei, eventualmente nos deslocávamos, eu e minha mãe, até às arcadas centenárias, era um acontecimento !
E como acontecimento que era, rodeava-se de alguns inesquecíveis rituais :  em primeiro lugar, nunca regressava a casa sem que tivesse adquirido mais alguns exemplares da minha primeira colecção de livros de histórias, na Papelaria e Livraria Nazareth, ex-libris da cidade, hoje com mais de um século de existência.
A coisa era negociada.  Eram mini-livrinhos.  Talvez cinco por cinco fosse a sua dimensão ... teriam meia dúzia de folhas ...
Havia-os a quatro tostões e havia-os a sete tostões.  Eu escolhia.  Se comprasse dos mais baratinhos, podia trazer mais um ou dois ...
Não sei qual o destino seguido por essas obras.  E tenho pena.  Penso que, de mim terão passado para uma prima um pouco mais nova, e depois ... por lá ficaram.
"Vejo-os" claramente na minha memória.  Não sei já  o nome da colecção. Lembro a "Princesa da Ervilha", o "Gato das Botas", o "Pedro e o Lobo", "Os três porquinhos " ... entre outros.
Todos os clássicos da literatura infantil a incorporavam, e imortalmente continuaram fazendo também as minhas delícias ...

Depois, era obrigatória a entrada na Alabaça, uma pastelaria fina da cidade, localizada igualmente "debaixo dos arcos", como se dizia.  O motivo era sempre o mesmo : a compra de um rim de chocolate que eu adorava, lambareira que sou até hoje.
No regresso, invariavelmente, a minha mãe contemporizava.  E porque o nosso caminho passaria pelo Jardim Público em direcção ao Rossio de S.Brás, faríamos uma pausa, num dos bancos, usufruindo de uma nesga do sol que se esgueirava através das ramagens.
Se fosse Verão, com um pedaço de sorte, teria direito a um Olá, do carrinho do vendedor que por ali parava. Os de fruta ... dez tostões.  Os de baunilha cobertos de chocolate ... vinte e cinco.
Se fosse Outono, beirando este S. Martinho que não demora, umas castanhas assadas também iam bem.  O  cheirinho  a  evolar-se  do  assador,  não  permitia  que  as  esquecêssemos ...

Cumprido o programa, impunha-se então o regresso.

E foi assim que neste dia cinzento e ocioso, em que o recolhimento me deixou por casa  juntinho à vidraça, deixei voar simplesmente o pensamento até lá bem atrás, ao túnel de um tempo que fui vislumbrando já só, por entre os farrapos do esquecimento.

E gostei da viagem !...

Anamar

terça-feira, 30 de outubro de 2018

" EM MODO SOPA DE LETRAS ... "




Não escrevo há meio mês.
Estou naquela onda de penumbra de alma, de torpor de vontade, de cansaço sem tom nem jeito.  Uma onda que me inunda e leva adiante toda a alegria de vida, que me deixa letárgica, melancólica, doce e silenciosamente sonhadora, como os gatos ao sol, nas soleiras.
E sol é o que não há.  Mudaram-me a hora e escureceram-me os meus ocasos lá longe, neste horizonte que agora some bem cedo. Arrefeceram-me repentinamente os dias e as noites também, remetendo-me ao "ninho" donde custo a sair, cada vez mais.  Estou a começar a ficar embiocada como as velhas se embiocam nos lenços negros, aos postigos, no meu Alentejo.

Encomprido o pensamento, remexo nas memórias, esquadrinho as vontades.  E concluo que precisava de entrar dentro de um "shaker" qualquer, para que, em ritmo de lambada, os miolos se agitassem, se agilizassem e saíssem deste torpor atontado em que mergulho.  Ou seja ... ficassem prestáveis.
Estou totalmente "outonada", entrando que estamos no famigerado mês de Novembro, mês carrasco e desanimador para mim.  No calendário está quase a cumprir-se mais uma data da minha chegada a este mundo, este ano mais pobre e mais triste ... sem a minha mãe comigo.
Neste momento o meu estado de amorfismo não enfileira ideias, não organiza sequer frases ou assuntos de que quisesse falar.
A mente divaga cá e lá, o pensamento voeja inquieto, como borboleta de flor em flor no auge da Primavera.
Há um atropelo de sensações, um engarrafamento de emoções e uma confusão de barata tonta em hora de ponta.
Sufoco-me com o que me atravessa, e se o quisesse ordenar, seriar, ou se calhar entender ... daria uma sopa de letras ininteligível ... até para mim mesma, creio.
Tantas perguntas que se fazem, com tantas respostas que não se dão.  Tantas dúvidas a serem clareadas, com uma manhã de nevoeiro teimosamente cerrado, em frente.

E o cansaço ... um cansaço desanimador remete-me a esta indiferença aparente, face à escorrência dos dias, face ao decurso das semanas, face ao desenrolar da vida ... que acontece, aqui mesmo, bem debaixo do meu nariz !
E experimento uma angústia existencial, p'ra variar,  que quereria verdadeiramente entender.
Experimento um desassossego, que umas vezes é angústia, outras ansiedade, outras insatisfação ... desconforto. Mas que me nauseia e mareia, como barquinho solto no mar alto, em meio de onda agitada e vento sem norte.

E os dias passam e balanço, balanço sem rumo, para cá, para lá ... como um passageiro numa gare, sem ainda ter definido o itinerário a fazer, a composição a tomar.  Desconfortavelmente indiferente, contudo.
Como se lhe fosse aleatório um destino, para norte ou para sul, pela simples razão de que em nenhuma das estações terminais existe quem o espere, ou um objectivo interessante a cumprir ...

Bom, este meu escrito de hoje, é de uma irrelevância atroz.
É imagem clara do meu estado de espírito, e uma tentativa de aliviar a pressão da válvula.
Argumento para mim mesma ter um passado recente, emocionalmente agressivo e excessivamente longo e desgastante, do qual talvez não tenha conseguido recuperar-me ainda.
A sua vivência pôs-me frente aos olhos, um sentido da existência, nu e cru, assustador.  Porém real, objectivo. Desencantatório. Precário.
Quando os pais nos partem, avançamos inevitavelmente um passo.  Sentimo-nos na "calha", ocupando o lugar que logicamente nos é destinável.  E talvez por isso, se questione com muito maior acuidade, o sentido de tudo,  o que foi e o que é.  Talvez por isso, se valore com maior realismo e desassombração, o sentido que demos / damos, ao percurso que palmilhamos dia após dia,  às lutas que travamos, ao peso do valer ou não a pena ... ao significado, afinal irrisório, de tanta coisa com que nos digladiámos ... com que nos exaurimos ...

E "invernamos" por dentro ... sei-o bem !

Anamar

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

" TALVEZ VALHA A PENA ! "





Não gosto de me reler.  Não tenho paciência e quase sempre acabo não me encontrando muito, naquilo que nesta ou naquela ocasião, então escrevi.

Mas ... o dia subitamente ficou igual a mim própria.  Amanheceu azulado, com algumas nuvens esparsas  pouco preocupantes, e veio acinzentando gradualmente.  Agora fechou por completo e a chuva meio miúda começou a cair.
Honrou no seu melhor, um típico dia outonal.
Breve será Novembro, breve completarei mais um ano de vida, breve será Natal e o calendário dobrará de novo.  Enfim ... o ritmo imparável da vida !

Hoje caíu-me à frente um texto escrito há cerca de um ano e meio.  Por curiosidade reli-o.  "Deixa-me ver como iam as coisas então" ... pensei.
Pois bem, é impressionante como decorrido esse tempo, nada tenha acontecido nem dentro nem fora de mim, que inviabilizasse que aquelas linhas pudessem ter sido escritas hoje.  O mesmo cansaço, a mesma impotência, o mesmo imobilismo, o mesmo desconcerto atravessam cada frase, percorrem cada linha.  A mesma inexistência esperançosa em outros dias, em dias mais coloridos e auspiciosos, em novos projectos ou sonhos, percorre cada parágrafo, que transpira uma desaposta sensível, uma falta de "gás" ... um desânimo que dói.
Há um estar rançoso e uma falta de norte ou horizonte, uma solidão e um desconforto, como um fim de festa não vivida.
Sinto-me como barco largado ao sabor das marés, subindo ou descendo ondas, arrastado sem azimute, na ausência de leme, sem esperança de âncora ou porto de abrigo.
Sinto-me com a indiferença da folha que o Outono jogou no chão, levada pelo vento, sem lógica ou coordenada. Simplesmente arremessada ...
Sinto-me tão irremissivelmente perdida como se estivesse num deserto de areias sem princípio ou fim ... como se estivesse frente a um emaranhado de trilhos alucinados, sem destino ou rumo.

E parece ser recorrente esta leitura míope e deficitária da vida, que quase sempre me toma.
Serei incoerente, imatura, exigente ... ou simplesmente utópica, desadequadamente insatisfeita, tontamente sonhadora ... infantil, puerilmente desajustada ... ou simplesmente IDIOTA ?

Seja o que for ... Cá para mim, não sei se algum dia terá remédio ou solução ...

O dia de um claro Outono fechou de chuva, por aqui.  O silêncio embalado por Énya ao meu lado, aconchega as paredes deste quarto. Só ela me restitui o sonho.
Chegam-me notícias preocupantes da saúde de amigos.  A pequena capa de malha que a minha mãe colocava nas costas, aquece-me sobretudo o coração.
Transporta o seu afago. Desperta-me a saudade infinita.
Afinal, vou estando viva por aqui.  E talvez valha a pena viver.  Se hoje a chuva cai, amanhã o céu azul voltará ... as castanhas vão regressar ... o caminho dos castanheiros deixará os ouriços pendentes, soltarem os frutos maduros ...
E o Inverno levar-nos-à  a uma segura Primavera, que será verde ... outra vez ...
E continuaremos a "pintar o céu com estrelas" ...  E continuaremos a escutar o gorgolejo das águas lá na serra, e a batida do mar impiedoso, nas praias do silêncio, onde as gaivotas mandam ... Só elas mandam !
... Porque estamos vivos  ... E talvez, afinal, valha a pena viver !...

Anamar

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

" SAUDADES "




Hoje amanheci com saudades.
Deve ser este tempo amodorrado e insuportavelmente quente ainda.  Deve ser este silêncio que me navega do coração para os pulmões, dos pulmões para os olhos, passando pelo estrangulamento sufocante da garganta ... E desta para a alma ... que só sinto e não sei de que lado fica !...
Sei que sinto saudades, de tudo e de nada, de muita coisa e aparentemente de nada em especial.
Ou então sinto saudades do impossível, que é definição onde cabe tudo.

Ah ... percebo sim ... percebo sentir uma nostalgia mortal da minha juventude.  Do tempo em que parecia ter braços para envolver os sonhos ... mesmo que eles tivessem o tamanho do mundo.
Dos tempos em que eu podia, em que eu segurava a vida, em que eu desafiava petulantemente o futuro.  Porque ainda existia muito amanhã.  Porque eu ainda tinha força, e sabia lá eu da estrada que me esperava e que me seria dado percorrer !!!...
E por isso, sabia sorrir ...
E acreditava que ainda tinha muito, e doce caminho a palmilhar.  Com garra, com voluntarismo, com esperança ... com vontade !
O que é que me foi acontecendo ???  Será só a vida a passar por mim, ou será uma incapacidade nata de resistência, de arcaboiço, de resiliência ?!

Percebo saudades do colo da minha mãe ... Como se a minha mãe ainda me pudesse dar colo ...
Mesmo quando pouco já lhe podia dizer, a ternura da sua mão a passar no meu cabelo e a doçura do seu olhar, eram o colo que me bastava.
E sim ... era como se um embalo me tirasse as dores da alma.  Era como se as portas de um ninho se abrissem para me albergar ...
Acho que só colo de mãe nos transmite este sentir de segurança, esta reposição de ânimo, protecção e coragem ...

Bom ... hoje amanheci com saudades.
Acho que saudades de mim, apenas.  Quando não estava tão cansada como agora.  Quando  geria  a minha  história  com  determinação,  com  garra,  com  irreverência,  com  loucura ...
Porque esta sempre me fez falta para colorir os dias.  Porque sempre odiei as rotinas, o previsível, o igual ... o insossamente enquadrado ...
Mas isso era quando eu vivia, e sabia rir do meu viver.
Hoje arrotinei-me, acinzentei-me, tornei-me enjoativamente desinteressante, porque deixei de fazer a diferença.  E a diferença conferia-me exactamente a capacidade da extravagância, da originalidade, do incomum. A diferença era a minha graça.  A diferença tornava-me poderosa. Não para os outros, nem pelos outros. Mas por mim. Porque me fazia sentir viva ... simplesmente.

Hoje amanheci com este raio desta sensação de claustrofobia no peito. Não consigo definir concretamente o que me falta ou o que tenho a mais, nos dias da minha vida.
Sinto-me absurdamente exigente face a ela.  Sinto-me atontadamente impreparada para vivê-la.  Sinto-me angustiadamente trapaceada pelas voltas com que me surpreende.  E injustiçada ... de certa forma ...
E em suma, na verdade sinto-me envergonhada, talvez ... Talvez essa seja a definição mais correcta, pela desfaçatez com que simplesmente me sinto injuriada por experimentar estes sentimentos ...

Oiço a voz de uma das minhas filhas, no seu saudável e jovem pragmatismo ... que se afigura como uma espécie de eco de consciência : " Tu falas é de farta.  Tens sido uma "sortuda" na tua vida !  Falta-te é uma boa razão que te dê razão às queixas de que na verdade não padeces ...  Vê se acordas!"...

E  este  eco, vira  marteladas  na  minha  cabeça.  Detesto  dar-lhe  razão.  Mas  será  que  a  tem ???!!!

Hoje acordei com saudades.  Droga .... é quase noite, e elas ainda não partiram ...

Anamar

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

" AINDA ONTEM ÉRAMOS JOVENS ...... LA BOHÈME "




Quem melhor cantou Paris ?
Quem melhor cantou uma juventude descomprometida e feliz, vivida na cidade do amor ?

Aznavour deixou-nos.  Fisicamente ... porque imortal, ele é, desde sempre!
A sua voz inconfundível jamais se silenciará sob os céus da Cidade Luz.  Cidade também chamada dos "encontros e despedidas" encerra um romantismo próprio, que tão bem e incomparavelmente, ele soube transmitir-nos em cada estrofe, em cada melodia, em cada nota, de todas as suas canções ...

Ícone da música mundial, mestre da música francesa, figura incontornável no panorama internacional, foi presente na minha adolescência, nos anos soltos da minha juventude, e nunca deixou de, conjuntamente com outras figuras igualmente míticas desses tempos áureos, fazer parte do meu imaginário, povoar os meus sonhos, perpassar pelos desejos mais ou menos inconfessáveis, comuns a uma geração com ânsia de emancipação, autenticidade, e contestação aos valores instituídos e obsoletos.
Geração insatisfeita, desacomodada, rebelde e transgressora ... a que a música dava voz.  Porque a vida é de quem se atreve a vivê-la ... e provocá-la, apanágio de um tempo, que só os poucos anos que então detínhamos, o permitia.

Aznavour, o pequeno arménio, filho de imigrantes que chegou um dia a Paris, foi reconhecido como notável performer do século.
Cantor em múltiplos idiomas, foi compositor de mais de mil canções, escreveu musicais e entrou em mais de sessenta filmes.
Teve mais de cem milhões de discos vendidos.  Foi popstar ao longo de mais de oitenta anos.
Cantor nostálgico, denominado justamente, o Frank Sinatra de França.
Sempre o amor foi cantado por si.  E esse é o principal registo que de si ficou : um expoente inigualável do romantismo.

Marcou-me indelevelmente, desde jovem.  Desde os bancos do liceu.  Desde os bailes de garagem ... dos primeiros amores, dos primeiros desgostos ...
Dos anos dourados dos "sixties", ele representa até hoje, o rosto do sonho sonhado, do romance, do saudosismo dos tempos e dos locais ... em suma, da melancolia ... da vida!
"Que c' est triste Venise", "Non, je n'ai rien oublié", "Et pourtant", " Sur ma vie", o icónico "La Bohème", são só alguns dos temas que nunca esqueceremos.
A "mulher" obviamente preponderou nas suas letras.  "She", tema do filme Nothing Hill, é um hino e uma homenagem ...  Foi hit absoluto no mundo inteiro !

Aznavour deixou-nos inesperadamente aos 94 anos, pela madrugada, na sua casa do sul de França, na Serra de Alpilles, após uma tournée pelo Japão ...
... e afinal, "Hier encore il avait vingt ans "...

Ele, e todos nós ...
Não deixou a vida ... a vida, deixou-o !...

Montmartre seguramente entristeceu e os lilases terão morrido ... tenho a certeza.
Aznavour partiu ...



Anamar