domingo, 29 de dezembro de 2013

" A DEPRESSÃO DAS FESTAS "



Cada vez se ouve dizer mais : "se me apanho em Janeiro, nem acredito" ! ou "estou morta que passe esta época " !... ou ainda, em jeito de alívio : "este, já passou" !...
Normalmente são mais mulheres que homens, que o dizem.
Chama-se a isto, a "Depressão das Festas", e é um fenómeno que se tem acentuado de ano para ano, particularmente nos últimos tempos.

Quando eu era criança, não lembrava "ao careca", que houvesse alguém a "rejeitar" o Natal ou a Passagem de Ano.  Ao contrário, o Natal que era sempre uma festa simples e despretensiosa, pelo menos no meu estrato social ( a dita e desaparecida "classe média" ), era uma festa de Amor.
Amor real, verdadeiro, privilegiado.  Sentia-se a alegria da reunião, sentia-se a partilha do afecto, no seio da família.
Havia poucos presentes, é verdade, havia uma roupita que se estreava, ou uns sapatos que se ganhavam, alguns chocolates para as crianças.  Os adultos não tinham presentes, tanto quanto me lembro.
Mas a noite era feliz, plena de momentos inesquecíveis ...

Era a Missa do Galo, pela mão da avó de xaile e lenço, no gelo da noite alentejana, era a lareira, acesa sempre com o maior madeiro que o meu avô reservava todo o ano, para o efeito, eram as iguarias que nos esperavam ( e que eram feitas pelos que ficavam em casa, a minha mãe e as tias, velhas ou novas ), o lombo, os enchidos e o entrecosto, fritos no lume do chão, as filhós, as fatias douradas, as azevias, os sonhos, os mexericos, a pinhoada, o arroz doce ... tudo acompanhado pelo bom tinto da região, e os cânticos ao Menino Jesus, entoados em uníssono, por todos ...

"Oh meu Menino Jesus, da lapa do coração, dai-me da Vossa merendinha, que a minha mãe não tem pão ..."
"O Menino chora chora, porque anda descalcinho, dá-lhe tu as meiazinhas, que eu Lhe dou os sapatinhos..."
"Nossa Senhora lavava, e S. José estendia, e o Menino chorava com o frio que fazia ..."

Todos, seguramente terão lembrado, e lembram, enquanto viverem, essa festa inesquecível ... e ninguém se deprimia !
As pessoas não ambicionavam mais, não sonhavam mais alto, não tinham frivolidades, não desvirtuavam o espírito de união, partilha, dádiva e amor ...
As pessoas eram felizes !

A Passagem do Ano, também não apoquentava ninguém.
Quando eu era adolescente, a passagem do ano era sinónimo de um bailarico, na Sociedade Filarmónica Harmonia, a mais bem frequentada da terra.
As raparigas da minha família, tinham por companhia e como responsável, uma das tias, que por não ter tido filhos, tinha uma pachorra incrível para nos aturar.
A minha mãe nunca ia, mas não era preciso, obviamente.  Estávamos todas bem entregues !

Era uma emoção só, aquele baile, aguardado a semana inteira.
A sala tinha um palco, onde tocava um conjunto musical ao vivo, o conjunto "Planície", lembro bem !
As cadeiras distribuiam-se em cercadura em torno do salão.  As meninas "comprometidas", ou seja, as que tinham namorado oficial, nunca se sentavam na fila da frente, já que não seria de bom tom, dançar com mais ninguém, além do namorado.
As "disponíveis", aguardavam os acordes da música, sentadas nas cadeiras da frente, com o coração aos pulinhos.

Ao fundo do salão, existia uma sala mais pequena, onde os homens se juntavam.  A chamada "sala de fumo", exactamente porque aí podiam fumar.
As mulheres e as raparigas, não !  Não se fumava na altura, ainda ...
Não esqueçamos que estávamos no Alentejo interior, conservador e castrador ...

Quando a música começava, como numa montra, as meninas eram escolhidas para dançarem, pelos rapazes, que se aprestavam a avançar pela sala, na sua direcção, "catrapiscadas" que o haviam sido já, do fundo da sala de fumo.
Proferia-se a célebre frase : " A  menina dança ??? "
E se a rapariga declinava o convite, ou seja, dava uma "tampa", o que não era de bom tom, tal, era vexatório para o "macho" interessado !

Dançava-se em pares, classicamente.  Não havia os ritmos actuais das discotecas, em que ninguém dança com ninguém ; é tudo  "à molhada" e fé em Deus !
E dançava-se com os corpos algo afastados,  e com rostos que por vezes, tentavam "colar-se", só tentavam ... porque se o "entusiasmo" os aproximava ( e acontecia muitas vezes ), lá estava o olhar fiscalizador da tia responsável, a chamar a jovem a entrar na linha ...

Eram bailes, sem dúvida, potenciadores de uma iniciação sexual.
A liberdade dos jovens então, coibia-os de experienciarem qualquer outro tipo de aproximação.
Os namoros eram controlados pela família, sair-se só com o namorado, não acontecia ...
Existia sempre alguém, que era obrigado a fazer o frete de ser o famigerado "pau de cabeleira", ou seja, uma presença incómoda, para os que ansiavam estar sozinhos.
Normalmente uma irmã mais nova, que o namorado convencia, com um qualquer regalo, a ir dar uma voltinha, regressando ao ponto de encontro, passado determinado tempo, e dando assim, alguma liberdade e privacidade ao par romântico ...
Mas nada de mais acontecia, além de um beijo mais caloroso, de um estreitar e de uma fugidia troca de calor dos corpos, ou de uma comprometedora percepção das respostas dos mesmos, à excitação do momento ...

Tempos aqueles !!!...

Não havia portanto,  também angústias, insatisfações, traumas, balanços ( os benditos balanços traumatizantes da vida, porque nos projectam sempre  a  magoadas recordações do passado, e ansiedades do futuro ) , atribulações existenciais, com dúvidas, medos, inseguranças e incertezas, que nos "matam", na actualidade !

A vida, parece-me, corria mansa.
Não se tinha muito.  Tinha-se o necessário, que era por isso, o suficiente !!!...

O ser humano era mais feliz, tenho a certeza !  Tal como em quase tudo, é o ser humano que cria as suas próprias condições adversas de vida, e a sua própria infelicidade.
É  ele  que  estraga, que  destrói, que  mata ... e  "morre"  às  suas  mãos !!!

Saudades ... saudades, tenho  sim, da simplicidade de então, do tempo em que esta quadra nos fazia rir, afastava a solidão e a tristeza, se teimassem instalar-se, e era desejada ansiosamente ao longo  de  todo  o ano !

Em suma, a doença moderna que mina mais e mais a espécie humana, a depressão, e que é consequência da vida e dos valores que o próprio Homem escolhe para si, não existia, menos ainda a aparente aberração dos tempos que correm :  a "Depressão das Festas" !!!...

Anamar

sábado, 28 de dezembro de 2013

" BATEM LEVE, LEVEMENTE ... "



Os dias parecem túneis mal iluminados.
O cinzento uniforme e tempestuoso, abate-se sobre tudo e sobre nós também.  Chove, há vento desabrido, neva nos locais habituais do país, deixando por todo o lado uma paisagem única ...
O desconforto chega-nos cá dentro.

As gaivotas recolheram ao interior, porque há tempestade no mar.  Fui acordada pelos grasnidos, das que pousam perto da minha janela.
Alguma delas será a "minha gaivota" ?
Sim, porque houve tempo em que eu tive uma gaivota ( que perambulava aqui por cima, e pousava junto de mim, mirando-me com aquele jeitinho de cabeça inclinada e olhinhos perspicazes ), e um farrusco que parava lá em baixo, no abandono dos terraços, e de que, do meu sétimo andar, eu só distinguia os olhões amendoados, na pelagem totalmente negra.

Eram companheiros meus, sem o saberem !
E era reconfortante, por estranho que pareça, quando chegava à janela, e procurava com os olhos, os encontrava, um em cima, outro em baixo a olharem-me também ...  Sempre  me  aflorava  um sorriso  ao rosto !
Era no tempo em que a Rita já estava no fim da linha, velhinha e doente, e havia demasiado silêncio na minha casa.
O silêncio persiste, e tem dias em que eu diria, que um frio de neve, penetra no meu espaço, intencionalmente restringido ao quarto e à cozinha, e a sua brancura, que estranhamente acho aconchegante, deixa-me nostálgica, entristece-me  a alma, emudece-me o coração .

Nunca vivi em locais de tradicionais nevões.
Contactei  com a neve, ao vivo, por escassas ocasiões ;  não aprecio mexer-lhe, sofrer-lhe o frio, brincar com ela.  Mas extasia-me e emociona-me olhá-la, simplesmente, por detrás de uma vidraça, através da lente duma câmara, ou no registo de uma fotografia.
Acho que essas imagens têm muito a ver comigo, com o meu "eu" interior, o meu estado de espírito, transmitem-me uma doce solidão, que afinal já existe dentro de mim, faz parte da minha forma de sentir e estar.
E uma paz, que eu gostaria também de vivenciar, e que a vida não me traz ...

As imagens apenas corporizam os sentimentos, e descrevem-nos,  mudos, com palavras não ditas, mas eloquentes !
As imagens têm pulsão cardíaca, têm cheiro, têm som, ou melhor, têm silêncio audível ...
As imagens envolvem ...  Aquele cobertor branco e macio, acaricia e aninha ...

Será  mesmo  assim, ou  eu, que  não sou  lá  muito  certa, sinto-o  assim ??!!
Será normal sentir isto, ou não passo de um ser estranho, no isolamento em que me posiciono, por dentro e por fora, no mundo que me rodeia ??!!
Não sei !...
Reconheço-me "sui generis", bicho raro, meio adoidada, e percebo também, que não me percebam, porque eu própria me sei desenraizada, não enquadrada, não muito ligada a esta terra, por aqui !
Ainda não descobri a que mundo deveria pertencer, mas sei que neste, me sinto incómoda, defraudada, desconfortável, desinserida ... não "pertença" !...

A neve é silenciosa, como eu o sou no meu âmago.
A neve é envolvente e aconchegante, é uma carícia da Natureza, por cada floco que tomba nas folhas que restam, das árvores despidas.
A neve é uma canção dolente, uma melopeia, talvez um mantra ...
É uma música de deuses, tem uma beleza etérea e diáfana, é uma tela que o Arquitecto pinta, com a mescla de todas as cores existentes no Universo : o branco !...

Branco de paz ...
Seguramente, esse é o sentimento real que ela me transmite ...  Mas também silêncio e solidão, como disse.
Três formas de sentir, que levam o Homem ao encontro de si próprio, conduzem-no ao seu equilíbrio pessoal, mergulham-no no seu espírito, sintonizam-no no reencontro da meditação, transportam-no a um patamar superior, de ascetismo transcendental e deificante, na busca imparável da perfeição, e no caminho da melhoria !!!...

Anamar

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

" NO RESCALDO ... "



Mais um Natal que já foi ... Metade da "odisseia" está resolvida !

Percebem ao que me refiro, com certeza...ou seja, à obrigatoriedade calendarizada, de se festejar algo a que chamam de Quadra Natalícia.
Abomino esta época, pelos seus rituais, pela imposição feita pela civilização judaico-cristã, em que quase todos fomos criados, e que estabelece um "figurino" a que até os mais resistentes se submetem.
Eu  entro  impositivamente  nos  moldes  tradicionais e convencionais, sempre  impositivamente,  como  digo, porque  tenho  uma  família ( pequena,  apesar  de  tudo ), conservadora, onde existem três crianças,  que vivenciam a época, através do que lhes é veiculado, quer em casa, quer no colégio que frequentam, de índole eminentemente católica.

Assim, este evento não é para mim, nem mais nem menos importante que qualquer outro, e tem o mérito, e é apenas  esse que lhe reconheço, de reunir quem se gosta e se quer bem.
Eu retirar-lhe-ia qualquer outra conotação, e reservar-me-ia o direito de o revivenciar, sempre, só  e quando, me desse na "bolha" .... não mais!
Escuso de dizer que toda a parafernália material alucinada, com ele relacionado, desde a loucura das doses industriais de comida, às doses loucas de presentes e mais presentes, indiscriminadamente reclamados por crianças que teriam já obrigação e alguma consciência, ( mercê da idade ), de não ignorarem a realidade que nos cerca ... eu enjeito, rejeito e contesto ...
Mas enfim !...

Este ano, a minha mãe, pela primeira vez na vida, não quis estar presente.
Com quase noventa e três anos, já lhe é penoso aguentar uma noite que se reclama de longa, aguentar a barulheira de três miúdos em completo desvario e ansiedade, pela chegada do presumível Pai Natal ( há um deles que ainda acredita ), aguentar a deslocação do conforto de casa, ainda para mais, neste ano, com a intempérie que se fez sentir ... enfim, aguentar o sair da sua rotina diária, de nove horas da noite em vale de lençóis, jantar bem leve, e sossego de cabeça.
Dizia-me ela : "Um dia vão mesmo passar sem mim ... ", e portanto, pragmaticamente, não achou nenhum despautério, não estar presente já este ano.
Eu entendo-a lindamente, e certamente um dia, quando ela tiver efectivamente partido, talvez nao sintamos tanto a sua ausência.
Afinal, verdadeiramente, e isto o que p'ra mim é o Natal, é a possibilidade de festejarmos a Vida, quer dos presentes, quer dos ausentes, porque eles nunca morrem nos nossos corações ...

A minha filha mais nova, numa das profissões de carácter humanitário, no ramo da saúde, esteve também de Banco, durante esta noite.
Orgulho-me muito disso, apesar de não a ter tido connosco, à mesa do jantar ... Não estava ... mas estava !
E deve ser muito gratificante, particularmente nessa noite, ajudar a chegar a este Mundo, um novo ser, que inicia, sem o saber, o seu percurso, por aqui !

Há pouco, contava-me a Larissa, que é ucraniana, que por tradição, na terra dela, na mesa da consoada, sempre é posto um prato, um talher, e um copo, a mais.
No prato, "esquecem" um pedaço dos bolos tradicionais, no copo, colocam um pouco do vinho que degustam, sendo que, tudo isto permanece na mesa ao longo das festas.
Sobre  as campas, deixam migalhinhas  do  pão  e dos bolos da ceia,  para  que  os  passarinhos  as encaminhem ...
"Corporizam" dessa forma, a memória dos que não estão mais entre nós !...

Enfim ... o que se sonha, o que se deseja, o que se concretiza, o que se recorda ... o que se espera ... ou o que já não !...
Tudo  isto  será  Natal !...
E  se  reduzirmos  o  seu  significado, ao  seu  REAL  significado ... tudo  isto  será AMOR !!!...


Reflectindo a propósito, remeto-me a um pequeno texto de Pessoa, que me chegou às mãos, como prefácio de um livro que me ofereceram :

"Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja ;
Nem sempre cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre "
                                                                                                             Fernando Pessoa

Anamar                                     

sábado, 21 de dezembro de 2013

A "TERRA"...



Costuma dizer-se, que quem nasceu em Lisboa, não tem terra .
Isto, porque a capital é um puzzle de peças, de todo o país.  Foi portanto trazida à cidade, uma multiculturalidade tão diversa, que penso que verdadeiramente sua, em tradições e costumes, é inexistente.

Estou a pensar na quadra que atravessamos, o Natal, que como exemplo, continua a levar as pessoas " à terra " para o passarem, porque lá encontram os seus, as suas raízes, tradições, as vivências que os terão acompanhado ao longo da vida.
A " terra" ... aquele torrão onde nasceram, que as viu crescer, onde se perceberam gente, um dia, e onde estão enterrados os que já partiram, onde as coisas e as memórias lhes fazem sentido.
Os cheiros são nossos, as cores são nossas, os sons também são nossos, e sempre se opera um milagre de uma tão grande fusão, que nos aquece por dentro !

Vêm os emigrantes, chegam os migrantes, busca-se um sentido de vida, apelativo a partilha, sobretudo, e muita cumplicidade ... porque há uma linguagem, uma qualquer corrente emocional e afectiva, comum a todos, que nunca nos deixam  indiferentes.
Essa, a razão de uma urgência na viagem, uma pressa de chegada, uma alegria interior que nos põe o coração aos pulinhos.
Há um entrosamento que não passa por religião, por evento social, pela exigência de calendário, pela hipocrisia que se vive na cidade grande, tão anónima, indiferente e "fria" !
A " terra ", a bendita terra, ainda guarda a ingenuidade, a pureza, e a autenticidade das coisas simples, para receber quem a busca.

Eu sou alentejana, logo, teoricamente, eu tenho " terra ".
Apenas, tristemente, nessa terra que agora me surge lá tão longe, resta-me um único familiar.
Todos os outros, são memórias, são fotografias, são vozes que ainda se escutam, são hábitos  que ainda se  recordam ... são  sítios,  apenas !
As casas estão lá, embora agora pareçam "fantasmas" nas nossas vidas.  Aquelas casas descaracterizadas, fecharam as portas que tantas vezes atravessámos, desde meninos, ao longo dos tempos;  imaginamo-las deserdadas de todo o recheio que tocávamos, inodoras dos petiscos da avó e das tias mais velhas ou mais novas, órfãs de todas as canções de Natal, partilhadas então à lareira, geladas, porque o calor dos corações já não pulsa naqueles espaços, e as alegrias já não têm veias para circularem ...

E sentimo-nos repentinamente espoliados, roubados injustamente.  Parece que o justo, seria que tudo aquilo continuasse a ser nosso, tivesse sido nosso "ad eternum" , fosse pertença intocável ... as coisas, os sentimentos, as vivências, mas sobretudo as pessoas ... E que tudo o mais, não faz sentido !...

Já não vou portanto, à "terra" ...

Agora, como filhós de contrafacção, como rabanadas atamancadas pelo fabrico em série, sonhos, que muitas vezes, de tão enzeitados, viram pesadelos, azevias a fingir que são as " nossas ", roubadas no recheio de grão, e que eram feitas por aquelas mãos sábias, que se foram .
E mesmo o bolo-rei, que ainda tinha prenda e fava, e que lá não existia, começa agora aqui, a ser já enteado na mesa da consoada ... Ninguém lhe pega !...

Aqui, é frequente o bacalhau comprar-se já empratado, porque não há tempo para confecções ( as pessoas trabalham no próprio dia da consoada ), e também já não é com as couves, as batatas e os ovos, regado com o bom azeite alentejano ( o  que  já  não  garante,  obviamente,  a  almejada  "roupa velha"  no  dia seguinte ) ... mas sim um "rafiné" bacalhau "à qualquer coisa" ... ;
o perú chega-nos feito também, e com um bocadinho de jeito, até fatiado mesmo, porque é muito mais prático ser só aquecê-lo no forno, em cima da hora ;
os doces, serão três ou quatro, e não a prodigalidade que decorava aquelas mesas gulosas, de antanho.
Não incluem seguramente o arroz doce, bordado desmesuradamente  com canela, pela avó, nem a aletria, nem o leite-creme, que serão substituídos por algo menos "prosaico", e consequentemente mais criativo e "requintado" ...

O cheiro da caruma a crepitar não se ouve já, os fumos a saírem das chaminés na noite gelada, também não se vêem mais ...
O aquecimento central, de muitos apartamentos de hoje em dia, pretendem substituir as "nossas" cúmplices lareiras, são confortáveis, impecavelmente "clean", e adequados ao requinte da casa ...
Por isso tudo,  fica aquela coisa "desasada", desenxabida, insossa, do Natal das pessoas sem "terra" !!!...

Bom, mas depois há ( e são cada vez mais ), os que têm por tecto, as estrelas quando brilham, qualquer portada mais resguardada ( onde os deixem ficar ) como cama, os cartões e alguns cobertores com que se cobrem, os andrajos que nunca despem, e o gelo da noite que nunca perdoa ...
E  ... que pelo menos o sono misericordioso os invada, e os proteja de pensarem ou recordarem, a " terra ", e o Natal que um dia tiveram, ou não !!!...

Anamar

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

" CONFLITO DE INTERESSES "



Fiz anos, e ofereceram-me dois livros que me despertaram o interesse por lê-los, de imediato ( o que nem sempre acontece ).
Quando estou em casa, não tenho por hábito ( e devia ), sentar-me num sofá, calmamente, e passar algumas horas placidamente, a ler, como faz o comum dos mortais, sobretudo quando a vida lhe é tão desocupada quanto a minha, se calhar.
Tenho até um confortável sofá no quarto, um candeeiro de leitura à maneira, e demasiadas horas vazias ...
Mas ... tenho um espírito inquieto demais, para conseguir parar, concentrar-me e ler durante algum tempo, sem que o meu espírito indisciplinado, não se solte de mim , à minha revelia, e vá por aí fora, sei lá para onde ...
Tenho aquela coisa a que chamamos meio humoristicamente, "bichos carpinteiros", que deduzo serem os bichinhos que incessantemente atacam a madeira, e não param.
Isto, sou eu a deduzir !

Pois eu, padeço do mesmo, e por isso, a leitura de qualquer coisa, livro, revista, jornal, seja o que for, no remanso da casa, faz-me voltar atrás dezenas de vezes, para reenquadrar a ideia, para repegar a história, faz-me ir contar quantas páginas faltam para uma hipotética paragem ... enfim, um cansaço !!!
Sofro de desconcentração, deve ser ...

Resolvi então passar a ler, durante a minha ociosa hora do pequeno almoço, no café do costume, no lugar do costume, com o barulho do costume.
Parece que aí, a coisa resulta ... vá-se lá saber porquê !!!

Apenas, temos aqui, um verdadeiro conflito de interesses. Isto porque, é também a esta hora, neste "intermezzo" temporal, que escrevo a maior parte dos meus posts, aqui deste espaço, e portanto é óbvio que, se leio, não escrevo, se escrevo não leio, e isso tem-se notoriamente reflectido na minha fraca produção literária, nos últimos tempos.

Depois,  acho  também  que  ando  com  uma  escassez  de  assuntos,  com  uma  irrelevância   de  narrativa,  com  um  nada ,  sobre  que  nada  a  dizer ...
A minha criatividade, "puftt" !... Ou então, ao longo dos tempos, já falei de tudo por aqui, e, ou me repito com alguma genialidade, ou fico insuportavelmente maçante !...

A minha realidade diária, é despida de emoções, é repetitiva, e vítima de um entediante queimar de horas, mais ou menos iguais.
Sendo assim, imaginem o que eu não daria por uma boa história, uma boa ocorrência, um bom acontecimento, que colorisse o cinzento desta ausência de adrenalina !!!

Contudo, estamos noutro Natal .

E sobre o Natal, já se disse tudo, as pessoas já disseram tudo, eu já disse tudo.
Já falei sobre como abomino a época, como anseio, se calhar anormalmente, chegar a Janeiro, como odeio visceralmente ter que obedecer a "figurinos" hipócritas, em que, por mais planos que faça anualmente, de ser esse o ano em que furo o esquema e escapo ... ou sinto-me "vendida" ... nunca alcanço tal desiderato ...
E como nunca é de facto esse "o ano" ... sinto-me vendida mesmo, porque acabo por me embrenhar na roda  dentada  do  presentinho  a  este, a   esta  e àquele,  porque  tem  que   ser,  porque   sim  e   porque sim !...

E lá estou eu, e lá estão os portugueses todos, espantosamente, a correrem em romaria ou procissão, para as lojas, numa espécie de loucura colectiva, de alucinação de massas, a gastar, a gastar, a gastar o que não têm !!!
" É só uma coisinha " ... "não tem importância" ... "o que conta é a intenção" ...
Porra, até parece que a Troika partiu definitivamente no trenó do Pai Natal, que a senhora Lagarde não dá mais bitates por aqui, que a senhora Merckel foi pregar p'ra outra freguesia, e que de repente, nos conciliámos todos numa boa, ou nos anestesiámos num rodopio insano, contrariando o que juraríamos implementar justo este ano : não dar nada a ninguém, e um só presente por criança !
Porque, caraças, afinal a crise é brava, cair "na real" vai doer muito em Janeiro, e fazer de conta que esquecemos os cortes dolorosos nas pensões e vencimentos, o ainda maior estrangulamento de cintos, que já não têm por onde apertar, é apenas isso mesmo ... fazer de conta !

E a última vez em que eu achei graça a fazer de conta, foi quando fazia de conta que acreditava nas historinhas infantis das fadas e das bruxas ... há um ror de tempo !
E aí, não fazia mal nenhum eu acreditar !...

Mas o fenómeno "Natal", mobiliza mesmo, temos que convir.
Com o mesmo esbanjamento ou talvez não, com as mesmas atitudes perdulariamente inconscientes ou não, mergulhamos, empurrados por uma qualquer força inexplicável e materialmente absurda, e nem com crises aterradoras no país e no mundo, nem com a devastação a alastrar na sociedade, nem com as pessoas a serem atiradas diariamente, mais e mais, para as ruas, nem com crianças que chegam aos hospitais, doentes ... por fome, nem com filhos a viverem à custa das pensões dos pais ( que apenas já só sobrevivem ), nem com os velhotes a racionarem os medicamentos nas farmácias, nem com o desemprego a afundar e a desestruturar lares e famílias ... nem com tudo isto, conseguimos esquecer o folclore, o supérfluo, o "plastificado", o desnecessário, o excesso insano, o exagero absurdo, o consumismo desembestado, e valorizar o que deveria ser o verdadeiro, o autêntico, o genuíno espírito de Natal, e a essência dos seus reais valores !!!...

Realmente, não temos emenda possível !!!
Ou então, gerámos uma qualquer alteração biológica, um qualquer antídoto milagroso, inexpicável, que nos retirou os sentimentos, e nos robotizou simplesmente, para a Vida à nossa volta !!!...



Anamar

sábado, 7 de dezembro de 2013

" AQUELA HISTÓRIA "



Há mil histórias iguais, mas aquela história, era "aquela" história !...

Do outro lado da rua, sentado na calçada, com as pernas cruzadas e a cabeça entre as mãos, estava aquele jovem.
Não olhava nada, nem ninguém, não erguia sequer a cabeça à passagem dos transeuntes, que o ignoravam e seguiam apressados.
Era magro, pobremente vestido, e tinha uma mochila nas costas.
A seu lado, sobre a calçada, estavam algumas moedas, ( poucas ), a maioria, de cêntimos, e pelo menos uma tablete de chocolate ( não sei se teria mais ... ), vi depois.

Eu passava em frente, do outro lado.  Olhei, e pareceu-me alguém que estivesse a sentir-se mal, que não estivesse bem, e para não cair, talvez se tivesse sentado ali, naquele sítio.
À distância, só vi um jovem esquálido, com as mãos a cobrirem-lhe o rosto ... desalentado, talvez em todos os locais do mundo, menos naquele ... quem saberia ?...

Hesitei.  Fazer o quê ?  Continuar o meu caminho ?
Mas ... pode ser alguém a precisar de ajuda, de socorro, alguém subitamente doente ...
E resolvi atravessar a rua.

Ao chegar junto dele, percebi que afinal chorava.
E nem à minha aproximação, levantou a cabeça.
Quando lhe perguntei se estava a sentir-se bem, se não precisava de nada, ergueu os olhos para mim, e disse : " Não, minha senhora. Apenas estou humilhado, muito humilhado ...  De vez em quando, tem que se chorar para aliviar a pressão, senão, sai-se por aí a cometer uma desgraça " !...

Era brasileiro, talvez vinte e poucos anos.
Disse-me que lhe custava muito, esmolar, porque não era dinheiro que queria, mas sim um trabalho que pedia.  Ele queria um trabalho, porque o dinheiro, por muito que lhe dessem, gasta-se, e um trabalho garantir-lhe-ia a sobrevivência.
Estava há quatro meses em Portugal, onde demandara só com a mãe, em busca da "vida" que a sua terra lhes negara.
Era neto de portugueses, embora já não tivesse família por cá.
Viviam na rua, segundo ele, e era maltratado e humilhado frequentemente, por aqueles a quem pedia trabalho, ou a quem tentava vender as tabletes de chocolate.

E dizia-me : " Não é preciso isso, pois não ?...  Uma  pessoa  tem  que  chorar, para  aliviar  a  pressão interior "!...

Tentei dizer-lhe meia dúzia de "tretas" de circunstância, daquelas coisas que se dizem sem convicção, que não servem para nada, que nos constrangem, apertam o coração, e de que temos a perfeita noção da irrelevância.
De qualquer forma, o Douglas ( era o seu nome ), estava emocionado porque alguém parara perto, e se preocupara com ele.
Dizia que ninguém tinha um minuto sequer, para o ouvir ...
Olhou-me e perguntou : " Você é psicóloga "?
Sorri e retorqui-lhe : " Não ! Eu fui professora ... e sou mãe "!...
"Ah ... por isso você me "viu", e teve tempo para me escutar "!...

Era quase uma criança que eu tinha à minha frente.  Uma criança sem sonhos, sem esperança, sem fé ...
Uma criança derrotada, a quem tinham roubado, cedo demais, a inocência !...

Dei-lhe algum dinheiro.
O ser humano sempre tenta resolver tudo com dinheiro, não é ?
Dar-lhe-ia muito mais, se pudesse ... dar-lhe-ia um trabalho, dar-lhe-ia esperança, devolver-lhe-ia um sorriso ao rosto macerado pelo desespero, dar-lhe-ia colo e embalo ...

Assim, disse-lhe apenas : "Não desista, lute, não chore perto da sua mãe, mas sobretudo, NUNCA se deixe humilhar !  NUNCA aceite da parte de ninguém, um mau trato gratuito !  Nenhum ser humano merece isso !
Posso dar-lhe um beijo" ?

Ele deixou-se beijar na testa.
Perguntou o meu nome, e sorriu, por ser o mesmo de uma sua bisavó.
Esboçou uma expressão triste e magoada, e disse-me : " Posso dar-lhe também um beijo na testa ?"
"Claro Douglas, claro que sim, e sobretudo não esqueça  o que eu lhe disse hoje, aqui !  Boa sorte, e não desista nunca !
A juventude e o coração ninguém lhe pode roubar "!...

Acenei-lhe, e em jeito de agradecimento pelo que lhe dera, ainda me disse : " Fique com isto !" - e estendeu-me o chocolate, que tinha para vender...
"Não ... É seu "!...

Atravessei a rua de novo, agora em sentido contrário, sem olhar mais para trás.
Não consegui.
Fiquei esvaída de forças, senti-me a mais impotente das criaturas viventes, fiquei com o estômago embrulhado, fiquei com um aperto no peito, e uma escuridão atroz na alma ... que nem consigo descrever ...

Há  mil  histórias  iguais,  mas  aquela  história,  foi  "aquela"  história !!!...

Anamar

" O TEMPO CERTO "



Não gosto de frases feitas, embora reconheça que frases feitas são  feitas exactamente porque têm  fundamentos às vezes ancestrais, que as sustentam.
Parecem óbvias e evidentes essas frases.  Quando as lemos, sentimos que não nos acrescentam nada de novo.
Às vezes, apenas nos fazem reflectir em verdades tão óbvias, que já nem damos por elas ou as valorizamos, ou então, confirmam-nos que não estamos sozinhos, nesta postura ou maneira de pensar, na vida.

Uma das frases que por aí circulam, uma das tais frases que não nos subtraem nem adicionam nada, diz simplesmente que "cada coisa tem o seu tempo para acontecer " !

Esta afirmação parece deixar entregue a uma completa aleatoriedade temporal, qualquer acontecimento da nossa existência.
Esta afirmação, parece dizer-nos que podemos degladiar-nos aqui ou ali, insurgirmo-nos aqui ou ali, contra destinos, futuros indistintos ou vontades próprias.  Parece  desincentivar  lutas titânicas para contrariar um determinado percurso, que nunca nada acontecerá, antes de chegar a sua altura própria, a sua maturidade de acontecer, a conjugação de factores, que só então, naquele preciso momento, convergiram, para que isto ou aquilo, ocorresse, sempre à nossa revelia, contudo !

Esta conclusão transmite-me uma sensação insegura e alarmante, de um determinismo na vida, incontornável pelo agente da mesma.
Parece que, que rememos nós para onde remarmos, tudo só acontece, se tiver e quando tiver que acontecer, independentemente das nossas urgências ou vontades, das nossas capacidades para alterar o rumo das águas ...

Obviamente, este pensamento contraria a convicção dos mais pragmáticos e racionais, que advogam que o Homem é, o que ele fizer da sua vida .  É ele que delineia e decide o seu próprio "trilho", é ele que, com o seu livre arbítrio, sempre decide os rumos, faz as escolhas, marca o compasso.
É ele que decide para onde vai, por que vai e quando vai !...

Isto não deixa de ser engraçado, porque enquanto desenvolvo estes raciocínios, ou analiso estas reflexões, sinto não obstante, que nitidamente, na minha vida, tive, duma forma clara e sem erro, momentos em que, e só então, poderia ter ocorrido determinado acontecimento.  Nem antes, nem depois !
Antes, porque não estava capacitada para o assumir.  Depois, porque despropositadamente ele se transformaria em algo serôdio e "requentado", sem significado já de existir, sem eficácia ou gratificação !...

Há momentos claros e nítidos, em que largamos para trás, sem dor, ou com menos dor, isto ou aquilo, há momentos em que escolhemos caminhos diferentes, por esta ou aquela razão, às vezes sem divisarmos de imediato o porquê ... e não estaríamos preparados para o fazer, noutra qualquer outra ocasião.
Esses momentos advêm de um "clique" qualquer interior, não têm uma razão lógica, muitas vezes, para acontecerem, mas percebe-se que têm que ocorrer, justo naquele "timing", e não noutro !...

É quando percebemos, que embora queiramos muitas vezes dar um "jeitinho", ou um empurrãozinho no destino que trilhamos, fica imperioso e impõe-se-nos a tal aleatoriedade, o tal "tempo certo" de acontecer, o tal sinal dos tempos ... na  vida, no "eu" interior de cada um de nós, e que não há quem os contenha ou altere !!!...

Anamar

domingo, 1 de dezembro de 2013

" O IMPROVÁVEL ... "



As gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado, a falésia desenha-se fantasmagórica na linha do horizonte, lá longe, no entremeio da ramagem.  Está uma temperatura atmosférica demasiado baixa.

Contei-as ... uma, duas, três, em formação rectilínea, de asas esticadas frente à vidraça, que não convidava a que se entreabrisse.
Há de certeza tempestade no mar, porque elas voam determinadas, em busca de comida, e não em espreguiçamento lúdico, como gostam de fazer, aproveitando os golpes da aragem.
Chove, chove aquela chuva miudinha, que por indefinição, se torna irritante.
Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...

É Outono, mas lá fora, apenas algumas das árvores circundantes daquela casinha, com uma porta e duas janelas, de bordadura azul e cortinas de renda no postigo, começavam a amarelecer.
O verde ainda predominava por ali. Afinal, o terreno não regateava a água que escorria das encostas.

Da escrivaninha envelhecida e bichada, da casa dos avós, encostada ao parapeito da janela  ( para que o jarro antigo mantivesse bem vivas as flores frescas, que sempre fazia questão em colocar-lhe, mercê da luz que por ali penetrava ), e onde o candeeiro aceso,  sempre  dava  um  ar  acolhedor  e  intimista  àquela sala,  vista  de  fora ...
da escrivaninha envelhecida, dizia, podia ver a cancela atamancada de velha, com uma aldraba a pedir conserto, que rangia nas dobradiças, aos abanões implacáveis do vento, podia ver o caminho que se desenhava adiante, e lá longe, como disse, a falésia rochosa sobranceira às águas zangadas do Atlântico ... e não mais ...

Aquela casa fora a concretização dum sonho muito recuado, quando o cabelo ainda não lhe embranquecera, o xailinho de lã pelas costas ainda era dispensável, e os óculos de leitura, ainda não precisavam de andar ao peito.
Fora a busca de uma felicidade e de uma paz, que acreditara encontrar na simplicidade dum lugar de verduras não presumidas, de árvores espontâneas, de algumas flores ( não muitas ), com que resolvera brincar de jardim inventado, e de meia dúzia de gatos seus, meio a meio com a natureza.
Todos amigos, todos matreiros, todos espevitados, ronronantes e preguiçosos à lareira.
Um preto, dois amarelos, um "querubim" de olhos invejavelmente azuis ... e mais uns malhados, que surgiam do nada, na hora da janta, e que nos frios e intempéries de Inverno, como  hoje, apareciam  como  pedintes, a  fazer-se  ao  resguardo  do  conforto  do  lar ...

À volta daquela casa de brincar, havia o silêncio, aquela angústia doce de recordações nunca arquivadas, o chilreio franco das aves veranis, ou o piado das corujas lá longe, na serra.
No seu interior, havia silêncios cúmplices, de serões frente a bons braseiros, com mantinhas de lã nas pernas, e boas leituras partilhadas, mantidos na certeza de que outro coração, outra  mente,  outro  colo  e outros  braços,  estavam  de  aconchego,  sempre  presentes ...
Havia a verdade que só as madeiras velhas garantem, as loiças gatadas comprovam, as braçadas de flores campestres e secas, espalhadas pelos jarros,  em coroas dependuradas nas paredes, ou em cestas sobre os arcazes velhos, as fotografias a sépia, ou a preto e branco, despretensiosamente relembram ...
Havia a genuinidade do que é simples e autêntico ... afinal, como o amor que tão curto no tempo, ali foi vivido !...
Àquela casa, batiam-se palmas a anunciar a chegada, o carteiro trazia de quando em quando, notícias dos demasiado ausentes, porque as lembranças dos sempre presentes, já só existiam nos corações...
E já passara tanto tempo !...

Hoje, as gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado ... e nem a falésia se distingue lá longe.
Está frio, chove, há solidão, saudade, silêncio...demasiado silêncio ... a única herança sobrante !

Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...
E uma lágrima rolou, quando olhei uma outra vez, aquele papel amarelecido e velho, que os anos adormeceram, que ficara religiosamente sobre a escrivaninha bichada, e onde se escrevera em letra miúda, o epílogo daquela frase iniciada por mim, há que anos ... e interrompida pelo destino  ... " e no entanto eu amo-te  perdidamente  e  tenho  saudades  loucas  tuas,  perco-me  nos  meus  sonhos  contigo ... sempre !..."

" Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto, é realidade ".
Curta, esta nossa realidade ...  Nem sei se chegou a ser sonho !!!...

Anamar

terça-feira, 19 de novembro de 2013

" DEIXANDO VOAR O PENSAMENTO ... "



O tempo virou de vez.  O sol  faz negaças  no meio de nuvens persistentes, e não consegue ser convincente, até porque a temperatura baixou drasticamente.  Afinal, já neva na Estrela ...

As castanhas já se assam nas esquinas das ruas, e o seu calorzinho, nos cartuchos de jornal, não só nos aquece as mãos, como também nos aquece a alma, já que aqui na cidade, não temos o privilégio de sentir o aconchegante cheirinho das lareiras acesas, que os meios rurais nos oferecem, e que tão gratificante é ao coração.

Adoro uma lareira.
Adoro passar tempos perdidos, olhando apenas o bruxulear das chamas, cutucando as brasas, até que a última se extinga.
E não deixa de ser engraçado, que essa seja a recordação mais grata, que tenho da Beira, de há muitos anos atrás, na casa que então era de família.

O frio gélido desta época do ano, beirando o Natal, cá fora, o calor confortante do lume, aceso desde manhã, e que ardia até toda a gente se recolher, uma sala de pedra e madeira, na meia obscuridade de um só candeeiro de mesa, aceso, e um silêncio e um recolhimento tão intimistas, tão doces, tão pacificadores !...
E ali ficava eu ... Eu e eu, que foi a pessoa com quem sempre tive encontro marcado, já então ...

E punha mais um tronco, e revirava os que já ardiam, e por fim, espalhava a cinza, para que as últimas brasas acesas, dessem o derradeiro calor da noite.
Às vezes só isso.  Nada mais ...
Às vezes não lia, não via televisão, não ouvia música, que não a do crepitar da lenha na fogueira ... às vezes, muitas vezes, apenas pensava, pensava muito, sentindo claramente uma incompletude de vida, de sonhos cortados  a  meio, um  vazio de  alma, uma  ausência  de  direcção, de  rumo, como  barco  de  leme quebrado, e  velas  sem  vento ...

Não sei se ali delineei conscientemente, o que viria a ser a minha vida anos mais tarde.
Não sei se ali percebi, que um dia diria adeus àquela sala de madeira e pedra, de móveis antigos, de louça de outras gerações, de relógio de pé alto e pêndulo, que nunca deu horas, de peças escolhidas por mim, uma a uma, ao longo dos tempos.
Não sei sequer se sonhei todo o percurso que viria a ser a minha vida, as curvas e contracurvas, os caminhos de saídas estreitas e difíceis de encontrar, os becos, as veredas que pareciam não ter horizonte lá ao fundo, ou também os momentos de paz junto ao mar, de  descanso  junto  de uma fonte, de sombra sob uma copa frondosa.
Não sonhei ... seguramente.  Não poderia !...

Aquela sala era o coração daquela casa, e aquela lareira, o pulsar desse coração.
Era uma réplica muito longínqua, da que existira em casa dos meus avós, na minha meninice.
Essa, então, como todas as lareiras a sério no Alentejo, era no chão, mesmo, na tijoleira de barro cozido, e ocupava o fundo da enorme cozinha, de parede a parede.
Lembro-me que os madeiros com que o meu avô a acendia, vinham a rebolar pelo quintal fora, porque ninguém podia com eles.

A casa de pedra e madeira já não é minha, mas lá, ficou enterrado para sempre, um pedaço do meu coração.
Ele está em cada peça sobre os móveis, em cada braçada de flores do campo, secas, nos jarros de loiça gatados, em cada fotografia das minhas filhas, quando crianças, nas molduras espalhadas ... em cada silêncio, em cada sombra, ou até em cada rajada do vento cá fora, soprando desabrido, do lado do rio.

Nada  disso  me  pode ser sonegado, mesmo  que  nada  já exista como eu  deixei  naquele  dia, em  que não  sabia  sequer,  que  estava  a deixar ...
Porque tudo isso eu amei e tactuei na minha mente, porque tudo isso eu sonhei, e o sonho é propriedade do Homem.  Nele, ninguém interfere, ele, ninguém apaga, ninguém destrói ... porque é seu, só seu !!!...

Suponho que não gostaria de lá voltar, porque ninguém, afinal, faz voltar o tempo !
Há filmes que vemos uma só vez na vida, e que vamos recordar sempre, longinquamente, como algo doce que nos marcou, de que não esqueceremos sequer, pormenores.
Apenas, são imagens a esbaterem-se, a fugirem-nos da mente, à medida que a Vida flui, à medida que o tempo vai passando a borracha sobre elas, e depois fica assim ... uma sala obscurecida, uma luz difusa, uma lareira a extinguir-se, e um silêncio quente a embalar a última cena ...

Anamar



 A vida é um incêndio, nela dançamos salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam, cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida, na própria luz consumida...
Mario Quintana

sábado, 16 de novembro de 2013

" SAUDADE "



Ando a escrever pouco, ando a sonhar pouco, ando a viver pouco demais ... ando a sentir a saudade que me atormenta ...

Saudade do sonho, saudade do amor, saudade até da dor que o amor deixa cá dentro ...

Ando a sorrir pouco, a acreditar  pouco, a não olhar o sol a pôr-se, com aquela saudade doce que ele nos traz, de outros pôres-de-sol ...

Não contemplo mais a lua, lugar de encontro de todos os olhos, de todos os amantes do Mundo ...

Não danço mais na chuva, a aspergir-me com a sua carícia ... Não escuto mais o mar, que levou para longe a minha canção ...

O vento que passa, não me acaricia como outrora ... Também ele não me reconhece mais ...

Deixei de saber cheirar o aroma das flores, o cheiro da terra molhada, depois de uma chuva abençoada ...

Não me enterneço mais, com os caracóis louros de uma cabeça de criança ...

... perdi-me de mim, e sofro já com a  saudade de não me encontrar por aí, pelas esquinas da Vida !...



Deixo-vos um dos "magos" da sensibilidade e da escrita ... o sempre imortal  Pablo Neruda.

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,

é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
 
(Pablo Neruda)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

" ONTEM FIZ ANOS ... "



Ontem  fiz  anos, que  é  uma  coisa  que eu já  não  fazia  p'ra  lá  de  tempo ...
Mas ontem rendi-me, que remédio !  E pensei que tenho que os apagar, não no Bilhete de Identidade, mas aqui dentro dos miolos, e ponto final !

Saí para a rua.
Estava um sol espectacular, envolventemente quente.  E fui-o aproveitando, enquanto caminhava.
Passei por debaixo de um jacarandá ( onde passo todos os dias ), neste momento sem floração, mas com uma copa farfalhuda, de um verde intenso e luminoso.
Até  fiz  uma  pausa  para olhar a cabeleira  frondosa, por cima de mim, como se fosse  a  primeira  vez  que o via ...
Que raio tinha o jacarandá ontem ?!...
E pensei, que apesar dos pesares, sempre é melhor estar cá deste lado, onde o sol me aquece e um jacarandá me deslumbra ...

Depois, tinha a minha mãe à minha espera para o almoço.  Com quase 93 anos, havia-se levantado às quatro da manhã, para, no seu ritmo, conseguir ter prontos a horas, uma assadeira de carne com batatinhas no forno, salada, fruta, e uma taça de farófias, que ela sabe ser um dos meus doces preferidos.
Mesa posta, com toalha bordada, e uma alegria que a transcendia.
Pedira-me muito, na véspera, que viesse almoçar com ela ( a velha história de poder ser a última vez ... ) ;  a neta mais velha, em quarenta minutos que tinha para almoço conseguiu por-se cá, a mais nova, que trabalhava até mais tarde, veio depois, para um cafezinho que fomos tomar as três.
Enfim, tive ali, junto de mim, os meus esteios na vida, neste momento : a minha mãe e as minhas filhas ... os afectos reais mais próximos, que me sobram ... e senti-me sortuda por isso, muito sortuda e agradecida à Vida, sem dúvida ...

O dia correu no ritmo de sempre, apenas perturbado por alguns telefonemas ou mensagens de amigos, que nunca nos esquecem, mesmo de longe, e nos aquecem o coração.

Chegou a noite e deitei-me cedo. Li um pouco de um dos livros que me haviam oferecido, e apaguei a luz, porque o sono me pesava nas pálpebras.
Lá pelas 2 h da manhã, fui brindada com uma insónia de horas, daquelas que costumam deixar-nos de cabelos em pé, e uma irritação que nos faz acordar insuportáveis, na manhã seguinte.
Espantosamente, contudo, não me incomodei com as horas que passei, de olho fechado mas de alma arregalada, na escuridão do quarto, sem ousar mexer-me, porque o Chico e o Jonas dormiam a sono solto, e eu não queria perturbá-los.
Nem sequer "encroquetei" muito na cama, porque me sentia cómoda, repousada, e aninhada, e deixei fluir simplesmente o pensamento ...

Foi então a vez de rever a minha vida, como se desfolhasse um livro.
Foi como se, numa sala, assistisse a uma película onde eu era a protagonista, e onde se narrava tudo, tudinho ...
O "tudo", que obviamente só eu conheço.
Assisti a cada período, a cada fase, a cada capítulo ... E as folhas iam sendo viradas ...

Percebi que em cada circustância, tudo foi assim, porque tinha que o ser.
Percebi que agi desta ou daquela forma, porque esse era o sentido em que acreditei, nesse instante.
Compreendi sem revolta ou raiva, que me cruzei com muita, muita gente que ficou para trás, e me deixou seguir, a quem agradeço em silêncio e sem que o suspeitem, porque ajudaram a dar significância, razão e cor, à minha história ...
Revi todos os que perdi, e por que os perdi.
Não me penalizei ou martirizei, por ter acontecido, e ter tido apenas o seu tempo.  Isso significa que eu não sabia fazer de outra forma, naquele momento ...
Percebi claramente o que procurava de cada vez, o que alcancei, e o que não.
Olhei de frente, a minha verdade em cada hora da vida, e corajosamente encarei o bom, o menos bom, e o mau ...

E senti-me em paz, felizmente.  Felizmente senti-me sem arrependimentos ou dúvidas, o que me tranquilizou e foi muito gratificante.
Desfilaram-me rostos, acontecimentos, frases largadas, palavras ditas, sonhos sonhados, a povoarem as nossas existências.  Risos, choros, mágoas, muitas mágoas, mas alegrias ... muitas alegrias também ...

Penso que fiz as pazes comigo mesma, pois assumi e percebi que a saudade e a nostalgia que sinto de pessoas, coisas ... de vida, que ficou para trás, é normal, faz parte de um processo de crescimento, e só pode fazer-me seguir em frente, liberta finalmente, para viver o que ainda me faltar e estiver destinado !...

O coração não se acelerou ... Batia no ritmo compassado de sempre, porque o que eu vivia naqueles momentos, era sobretudo uma quietude, uma satisfação interior, e a paz que habita os espíritos que têm a exacta percepção de que, por cada momento que se viveu, terão feito tudo o que era possível, e só o que lhes era devido e estava ao seu acance ...
E como diz um amigo meu, quando se vivencia essa sensação, e se afere esse balanço, o único sentimento que nos pode assaltar, é o de plenitude e tranquilidade ...
E então sim, podemos repousar a cabeça na almofada, sem sobressaltos ou angústias ... porque o merecemos !

Foi o que eu fiz, e dormi até que a madrugada já se acendia pelo quarto adentro, e eu já tinha completado mais um ano de vida !!!...

Anamar

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

" A MATEMÁTICA DA VIDA "



A alegria a dois, multiplica-se. A tristeza a dois, divide-se ...

Há frases e pensamentos que se esgotam em si mesmos.  Este é um deles. Não há nada que se acrescente, ou que se retire, a esta matemática da Vida !
É desnecessário, está tudo dito, todos sabemos que é assim !

O Homem é um animal gregário, e ninguém pode ser feliz sozinho.
As alegrias só são plenas se forem partilhadas com cumplicidade, e as tristezas só se nos tornam mais leves, se houver uns braços que nos aconcheguem, ao suportá-las .
Até os seres mais solitários, aqueles que endureceram, muitas vezes mercê dos atropelos da vida, se rendem, ultrapassadas que sejam as "firewalls" dos afectos, como diz um amigo meu.
E quantas vezes redescobrem capacidades afectivas em que não acreditavam, aptidão para o reviver de emoções, que por esquecidas já, julgavam inexistentes, e de que se julgavam imunizados.

 E a vida vai passando, e vamo-nos degladiando sem justificação frequentemente, vamo-nos desgastando por "nadas" que se tornam "tudos" determinantes e decisivos ... vamo-nos cansando, amargurando, esquecendo o sorriso, esquecendo o quão reconfortante é ao coração, um simples silêncio frente ao mar, enquanto o sol desce lá longe e nos abraça ... vamos esquecendo o sabor dos aromas da serra, o cheiro da lareira acesa, da terra molhada, ou a lenga-lenga do mar açoitando os rochedos ...
Vamos mesmo esquecendo, como hoje, S.Martinho, meia dúzia de castanhas e um copo de água-pé, poderiam constituir um magusto dos deuses, se o partilhássemos, se o saboreássemos juntos ...

Em suma ... vamos perdendo a vida, vamo-la deixando escoar por entre os dedos, vamos abafando as ilusões, até que um dia já não temos idade ou saúde para as construir, e até os sonhos há muito nos terão deixado ...
Vamos desperdiçando os tempos, e nunca  percebemos que " o mal de quem apaga as estrelas, é não lembrar de que não é com candeias que se ilumina a Vida " !!!...

Anamar

sábado, 9 de novembro de 2013

" A LARISSA "



Fui acordada às oito da manhã, neste sábado ensolarado, com os estendais da roupa da vizinha de baixo, emperrados a correr.
Olhei o relógio, e concluí que para sábado, isto era uma verdadeira madrugada, e constatei portanto também, que era sábado, porque me perco no tempo.
Perguntei-me que raio de felicidade terá alguém ( casal aposentado, até de filhos ), estendendo roupa às oito da manhã, num sábado ?!...

Não fui fadada p'ra prendas domésticas.  Aliás, para mim, são um verdadeiro tormento.
A minha mãe poupou-me de as fazer, porque afinal, "eu tinha que estudar" ...
Casei, e como trabalhava e economicamente era comportável, sempre tive empregada.  A chamada mulher a dias, como se lembram.
Passaram várias pela minha casa, porque também sabem por certo, que elas só são boas profissionais, nos primeiros tempos.
Depois, terreno conquistado, confiança ganha, começam a fazer-se de "mongas", a enredar para o tempo passar rápido, a passar ao lado, etc, etc ... todos esses artifícios, fingindo que limpam mas não limpam, partem coisas e não dizem, e por aí fora ...
Neste momento, porque as condições económicas não suportam mais, e porque estou só, tenho a Larissa, que já está comigo para mais de doze anos.

A Larissa é uma ucraniana, que com marido e filho se sediou em Portugal há já largos anos, onde reorganizou a sua vida de emigrante, muito sofrida, por sinal.
A Larissa é um doce de pessoa.  Licenciada em Química, o marido  Engenheiro Civil, trabalham respectiamente como empregada doméstica e na construção, em lugares  subalternos, obviamente.
O filho está a terminar uma licenciatura no Instituto Superior Técnico, e é um aluno brilhante e muito esforçado.

Humilde, dedicada, honestíssima, cumpridora, disponível, é uma pessoa de uma dedicação e de uma educação extremas.
Como foi criada sem mãe, por uma avó adoptiva, revê na minha mãe, a avó que já a deixou há muito, e que ela tratou até que partiu, e tem uma doçura particular e um desvelo enternecedores, por ela.
Neste momento, a Larissa trabalha também em casa da minha filha mais velha, e está totalmente assimilada pela nossa família.

Ela já não é a empregada doméstica, como tantas que por aqui passaram, mas é uma amiga, uma familiar minha.
Comigo conversa todos os problemas que a atormentam, no seu português atravessado, porque continua a sentir-se muito sozinha, num país estranho, longe da terra onde cresceu, e onde deixou o filho mais velho.
Comigo chora muitas vezes, comigo partilha as tradições e os costumes  do seu país, da terra onde viveu, da religião  ortodoxa em que foi criada.
A mim conta todo o seu passado difícil, na Ucrânia ... e fala do pai  muito idoso e doente, a quem não pode dar assistência ...

Claro que hoje, a Larissa, à semelhança de todas, deixou de ser a empregada de excelência que era, eu deixei de lhe chamar a atenção para omissões ou imperfeições no seu trabalho, porque a nossa relação atingiu um estatuto completamente diferente.
Hoje deixei de ter uma tão "boa" empregada, uma tão "boa" profissional, mas ganhei uma boa amiga, uma confidente muitas vezes, alguém totalmente integrado na minha família, alguém com quem posso contar em qualquer circunstância, porque sei que não me faltará ...
... e isso não se compra, não se paga, não tem preço ... isso, é um privilégio na Vida !!!

Anamar

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

" O FIM DA LINHA "



11,27 h da manhã ... quase da tarde, afinal.
Uma penumbra de madrugada, no quarto, com as persianas descidas, por forma a coar a luz do dia, que na realidade estava escuro, vi depois.
Aninhei o corpo despido, na carícia da roupa da cama, como se tivesse uma noite inteira ainda, para continuar a dormir, e senti-me violentada pelos números luminosos do relógio da cabeceira, que me arrancavam a um ninho protector, do qual não queria sair.

Ando a levantar-me cada vez mais tarde, como se procurasse adiar mais e mais, o confronto com o dia, o encarar da vida.
Ando a tornar cada vez mais curto o dia, e cada vez mais longa a noite, ou seja, ando a reduzir a existência a metade, num desapego e num desinteresse assustadores.
Aliás, neste momento, o maior conforto e gratificação da minha vivência diária, uma espécie de presente que me concedo, experimento-os  quando a casa ja se aquietou, o computador já se desligou, os gatos já dormem, e já deitada, frente à televisão, assisto, de mente vazia, ao desfilar de imagens em programas da National Geographic, que me tranquilizam, fazem viajar e sonhar.
Transmitem-me libertação e paz, e alienam-me por tempos, da realidade tão insatisfatória, cansativa, desinteressante e castigadora, que vivemos nestes tempos de purgatório,  que é a nossa vida actualmente.
Porque o dia que começa na manhã seguinte, é de facto um castigo, uma espécie de pena que sou obrigada a encarar e a cumprir, sem interesse, objectivo ou meta.

Quem me conhece de perto, dirá que não tenho razões objectivas para me sentir neste martírio ...
Ainda não tenho !...
Isto, se pensarmos no contexto em que mergulhamos, e que neste momento, o cidadão comum vivencia, de uma forma geral.
Não referindo já, as classes mais desfavorecidas,  em  que  os  dramas  humanos  grassam  e  se  multiplicam  de  dia  para  dia, sem  fim  à  vista ...

É suposto neste momento, avaliar-se quem tem perfil de resistente e quem não.
É suposto e imperioso, as pessoas serem fortes, lutadoras, corajosas e heróicas.
É suposto estar a criar-se uma élite de seres que, ou se insensibilizam, endurecem, indiferentizam e criam carapaças de defesa, e sabe-se lá como, vão em frente, sobrevivem ... ou sucumbem, desistem, atolam-se e são trucidados !

Está a cumprir-se uma espécie de triagem ou depuração, na raça humana.
Como Hitler tentou fazer, na selecção dos seres superiores, no apuramento da raça, dos que "mereciam" viver e dos que não, assim neste momento, a sociedade atravessa um processo semelhante.
A realidade social, em fim de linha, actualmete está a deixar pelo caminho aqueles que ficam na berma da estrada e já não conseguem caminhar, os mais débeis psicologicamente, os mais idealistas, utópicos  e sonhadores ;  os que têm menos armas ou defesas :  os velhos, os socialmente excluídos  ( que cada dia são mais ),  os  que  não  têm  robustez  psicológica ... os  tais  que  não  são  heróis, de  todo !...

Eu sei que "dos fracos não reza a História".  Mas também sei que a resistência estrutural do Homem, em termos psicoógicos, é algo que o transcende.
Não se compra, não se cria, não é exercitável, independe da racionalidade e da vontade de cada um.
E também sei que os super-heróis só existem na ficção, e que o mais difícil mesmo, é acreditar, por cada manhã em que acordamos, que um dia de chuva pode afinal ser um dia de sol ...

E por tudo isso, ando a acordar cada vez mais tarde !!!...

Anamar

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

" ELE HÁ COISAS !... "



O sol resolveu aparecer.  Nunca o  S.Martinho nos falta ... e estamos quase lá.

Acordei, relancei os ohos pelo quarto.  Prateleiras plenas de livros, gavetas plenas de coisas.  As que prestam e as que já não.  As que ainda se justificam, e as que nem por isso.

Lembrei a arrecadação, transformada em depósito de antiguidades.  Antiguidades no mau sentido.
Desde uma arca cheia de papéis e cadernos, com os primeiros rabiscos das minhas filhas, os primeiros desenhos nos colégios, em classes infantis remotas, a livros escolares ultrapassados, a testes realizados  por elas  e  creio  mesmo  que  ainda  por  mim,  quando  aluna ( !!! ) ... tudo lá está com uma intenção meritória, em que acreditei piamente :  passar calmas tardes, a rever registo por registo, redacção por redacção, desenho por desenho ... ( dos tempos em que as pessoas eram maiores que as casas e as árvores, os sóis tinham olhos e boca, e junto às figuras se escrevia "mamã" e "papá", como legenda do desenhado ... )

As gaiolas ferrugentas, dos canários e periquitos, da época em que pretendi transformar uma varanda, em viveiro romântico de passarinhos, de todas as cores imaginárias, para que com os trinados e chilreios, me fizessem sonhar que o meu sétimo andar era um qualquer recanto de uma mata frondosa, onde talvez eu gostasse de viver ...  E para que as minhas filhas assistissem à nidificação, acasalamento e nascimento de mais canários e mais periquitos, e aprendessem a amar e a respeitar a Natureza, deslumbrando-se com os seus ciclos ... também lá estão ... sem préstimo !

A mala de porão, cheia até ao topo, de bonecos e peluches, que lhes atravessaram a infância, as loicinhas e os pin-pons, os legos, os alfabetos e os cubos com letras e números, motivadores das primeiras palavras e contas, que eu jurara abrir um dia, para os netos que viessem ...
E esses netos, já têm todos, de seis anos para cima, e o recheio da mala continua adormecido e inviolado ...

Também lá estão as colecções de borrachinhas, com as mais variadas e engraçadas formas, as cassetes de música dos doze, treze anos, cujos intérpretes já se perderam no tempo, não falando dos vinis de trinta e três rotações, com as canções de roda, da escolinha, que não voltaram a animar o gira-discos, também ele já ultrapassado ...

Os VHS de viagens, registando momentos felizes,  eventos familiares, do tempo em que ainda havia família no sentido estrito do termo, testemunhos de risos e gargalhadas, mas também de "àpartes", que hoje nos fazem sorrir ...
Rostos que ainda existem, bem diferentes, bem marcados pela vida, bem menos iluminados pela esperança ... e rostos que já partiram, já nos deixaram, e que só estão num lugarzinho dentro do peito de cada um de nós ... também repousam por aqui, através dos anos ...

Enfim, não pararia de lembrar, de revisionar todo o espólio insano acumulado, guardado religiosamente, por isto e por aquilo, de que não conseguimos separar-nos afectivamente, e cujo valor se prende quase só afinal, a um desejo louco e inconsciente, de não soltarmos o passado, de podermos lá regressar a qualquer preço, de fazermos rodar o tempo e rodarmos com ele ...
Prende-se quase só, ao saudosismo efémero da juventude que ficou ... não nos iludamos !!!...

Resolvi  levantar-me.

Arrepiei-me ao pensar, que quando um dia eu partir também, alguém terá mesmo de desprender tudo isto, soltar definitivamente todo este repositório de memórias.
Mas  talvez  seja  então mais fácil, porque já serão memórias mais distantes, com menor significância ou valor ...

Ele há coisas !...
Que raio de forma enviesada de começar o dia !!!...


Anamar

sábado, 19 de outubro de 2013

" RED OCTOBER "



Tenho um "parti pris" com as boninas.
Decidi para mim,  que as boninas são uma espécie de miosótis, tipo campainhas dependuradas em fileira pelos galhos.
Depois,  disseram-me  que  boninas  eram  uma  criação  poética,  simplesmente .
Garantiram-me  mais  tarde, que  no  pórtico  axial  dos  Jerónimos, existem  por  lá  umas  quantas, "plantadas"  no  calcário  de  lióz.
E a Wikipédia, afiança que elas são uma sorte de margaridas ...
Eu  sabia  que  era  tema  tão  polémico,  que  de  facto, eu  só  podia  mesmo  ter  um  "parti pris" em relação a elas ...

Entretanto, a tarde apagou a luz mais cedo, graças ao cinzento plúmbeo,  uniforme e respeitável que cobriu tudo, impedindo-nos de sequer termos horizonte.
Logo hoje, que é noite de lua cheia !...
Estou em crer que com a crise instalada, nem a lua resiste, e faz como nós quereríamos fazer : sumiu !...

Pelos nossos olhos, a borrasca social desfila, amedrontadora, à semelhança da borrasca que brame lá fora, duma Natureza incomplacente, que despeja rios de água dos céus, e ventos tão desgovernados e destruidores, como os tempos que vivemos.

A incidência de situações dramáticas de vidas, a incidência de denúncias públicas de fraudes e corrupção, o desvendar de injustiças sociais na distribuição de bens e regalias, no igual acesso a oportunidades, a ausência de escrúpulos na prestação cívica e de cidadania, os privilégios gritantes de alguns ... a exclusão social de tantos ... avolumam-se ...
Avolumam-se a ponto de nos retirarem até, a pouca saúde de que se vai dispondo.  Mesmo a saúde do corpo, porque a da mente, menos obediente a vontades, prudências e lógicas, sempre nos desautoriza, e claudica inapelavelmente.
A tristeza sente-se no ar que se respira, e nos rostos carregados que olhamos ;  o desnorte desorienta-nos as vidas, por cada dia ;  o medo, ou melhor, o pavor de animal acossado, atormenta-nos o espírito ...
Os que ainda esperam, fazem ouvir os seus gritos da revolta, da raiva, e da fome, por este Portugal fora, em eco de desespero, em estertor de moribundo ...
Neste Outubro vermelho, ainda há quem acredite !...

Mas o cansaço toma-nos conta, e gera a indiferença álgida, de quem luta com forças desproporcionadas, a forças titânicas que nos transmitem a impotência do não valer a pena, da desistência e da desesperança ...
E é um lusco-fusco na alma, de candeias apagadas, é um anoitecer de corações que não encontram mais alegria ... sequer justificação de vida !

E vai-se andando, em filas de penitência não devida, cumprindo penas não merecidas, arrastando grilhetas nos pés, com o peso do imobilismo da alma que sangra, e com a insensibilidade duma pústula que gangrenou de tal forma, que já quase nem dói ...

E a alvorada que nunca mais chega !!!

E o frio do Inverno a aquietar-nos os últimos lampejos da energia que se nos escoa, nas madrugadas sem fim ...
E o mar, e o temporal incessantes, a açoitarem o Mundo lá fora ...
E a lua que se esconde, no nosso céu negro, que não abre  ...

E até as boninas, que sejam lá o que forem, não florescem mais aos meus olhos, apesar do "parti pris" que tenho com elas !!!...



Anamar

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

" ESTE BARRO DE QUE EU SOU IMPERFEITAMENTE FEITA ..."



O dia pôs-se, com o sol  já depois de ter passado a linha do horizonte, a alaranjar ainda um céu escurecido, como ficam as salas, quando as chamas da lareira se abatem.
Tudo o resto passou a sombras, em negro esfíngico, contra esse fogo sem convicção.

"A viagem é o viajante, e vemos aquilo que somos" ... dizia sabiamente, Pessoa.

Tive um amigo que me dizia em tempos, eu ser severamente subjectiva naquilo que afirmo, a ponto de poder-se sempre duvidar do que "leio".
É verdade.  Se calhar como muita gente, uns mais, outros menos, reconheço em mim as qualidades do mágico.
Saco do pincel e da caixa das tintas, e o quadro não é o que lá está, mas o que vejo.  E o que vejo, é visto sempre com os olhos da alma e do coração, e os outros, pouco préstimo me têm.
Acho mesmo que se fosse cega, conseguiria inventar imagens e cenários inexistentes.  Bastaria voltar-me para dentro,  e espreitar pela fresta entreaberta.

Por isso é que normalmente sou outonal, sou castanha, ocre e vermelha, sem remédio ...

Por que será que tenho que falar recorrentemente do céu, do mar, dos bandos de pássaros, da chuva miudinha, ou do céu limpo ?
Por que preciso de sentir a terra entre os dedos, a brisa no cabelo, a maresia nas narinas ?
Por que falo só de sentir, de sentir, e morrer de sentir ?!...
Por que preciso viver embriagada por música, acalentada por sonhos, embalada por desejos ... empanturrar-me de emoções, de sentimentos, de quereres, tudo numa dimensão  de valer a pena ... suicida, improvável, onírica ... e depois morrer na sarjeta do cansaço, da dor ( também ela doentiamente avassaladora e mortal ),  de  um  sofrimento  incontido,  maior  que  eu,  que  ameaça  rebentar-me  o coração  a  qualquer  instante,  porque  não  cabe  nele,  e  o  dilacera ?!...

Tudo em mim é  excessivo, tudo em mim é gigante, tudo em mim tem dimensões de eternidade, tudo em mim é incontido, extravasante ... e contudo, frágil !...
E como avalanche incontrolável, que rompe portas e comportas, salta muros e arranca árvores, eu transbordo-me a cada momento, eu mato-me e reconstruo-me, eu apago-me e redesenho-me ...

Tão depresa vislumbro a plenitude da perfeição e do êxtase, como o meu horizonte se esvazia, e o nada cava um buraco frio e negro no meu ser ...

Como o mar, rebentando na areia, faz e desfaz, rodeia e contorna, traz e arrasta ... eu morro e renasço, eu caio e escalo, eu destruo e reergo ... eu chego e parto de mim, dia e noite !...

E é um cansaço ... esta viagem alucinada e louca de turbulência ... sem destino ou nexo, sem conserto ou arranjo !!!...

Anamar

sábado, 12 de outubro de 2013

" ISTO SOU EU A PENSAR ... "



" Um Universo não é mais o mesmo, se lhe faltar uma só das suas partículas "


A morte liberta, tenho a certeza !

Ontem, quando entrei naquele espaço exíguo, escuro, sujo e malcheiroso, que a dona deixou há quinze dias, tive a certeza disso.
Uma penumbra pesada, um abandono do que ficou e permanece exactamente nos mesmos sítios, com os mesmos cheiros, como se tivesse sido dito : " Vou ali, já volto ... "

O frigorífico que não se esvaziou, a roupa que não se pendurou, a que ficou suja na cadeira, as flores que não se regaram ... as janelas que não se abriram, como se quisesse vedar-se ao sol, a entrada ...
Não se gastou o shampô até ao fim, o sal no saleiro também não, aposto que ficaram cabelos na banheira ... e o cheiro da morte pairava por lá.
Era um lugar pesado, silencioso, sozinho.
Tinha a cor de um fim de dia sem esperança, tal qual aquela escuridão que se abatia já, naquele meio de tarde de um Verão, esse sim, que parecia não querer partir.

Aquela casa não tinha horizonte, não tinha luz, não tinha perspectiva.
Não tinha histórias, nem gargalhadas, nem crianças, nem luas cheias, no céu.
Aquela casa só tinha silêncios, escuridão e peso ...  Aquela casa pesava toneladas, que é uma medida dos Homens, pesava infinitos, que é uma medida dos deuses.

Era seguramente uma casa de passagem ... Claro que era !
Percebia-se perfeitamente que ali, fazia tempo que a vida se estava a ausentar devagarinho, pé ante pé, sem estardalhaço, p'ra não assustar ninguém.
Havia  uma  noite  persistente,  instalada, de  fora  para  dentro,  mas  sobretudo  dentro,  que  atacava  a alma  mal  se  transpunha  a  soleira, ( como a humidade sobe aos ossos, no Inverno, e os musgos cobrem os troncos ), que oprimia o peito e amedrontava a voz, que sufocava e atormentava o coração.
Havia uma espécie de susto, mal disfarçado, que se sentia, e o recolhimento estranho das capelas, que nos faz caminhar levezinho, roçagantemente, como os gatos ... exactamente como os gatos, que se insinuam sem se anunciarem ...

A ida àquela casa foi demasiado perturbadora !
E se, claramente já o percebia antes, deixei-me tomar por duas reflexões inequívocas.
Claramente vi, como a ausência de "janelas" na existência, como a incapacidade de adaptabilidade e aceitação da mesma, como a ânsia de busca de paz ... empurra as almas exaustas, a procurar em desespero,  além das paredes do sofrimento, além dos muros da solidão, além dos portões da tristeza, além das algemas da indiferença ... uma hipotética saída, uma qualquer aparente escapatória, uma solução ... algures, onde haja uma cancela que pareça abrir-se, e as convide a passar ...
E ao decidir-se atravessá-la, nada, absolutamente nada nos detém já, do lado de cá ...
Nada mesmo, tenho a certeza !...

Por outro lado,  aquele espaço conscientizou-me duramente,  para a pequenez da realidade humana, na dimensão e na importância, e a sua irrelevância, face à continuidade, quando afinal, sempre  nos  julgamos sumamente especiais e únicos, quando temos a prosápia de nos sentirmos centros de universos, pedras insubstituíveis, entidades determinantes, quando nos "vemos" pequenos deuses na nossa ínfima realidade ... e nisso acreditamos, e isso defendemos acerrimamente, como se fosse importante e verdadeiro !...

Pobres de nós !!!

Como  qualquer  grão da poeira que cobria tudo naquela casa, temos a insignificância do nada, a dimensão do mais absoluto nada ...
E cá fora, tudo coexiste com a indiferença que já existia, anonimamente, insensivelmente ... como sempre o foi, afinal !
De facto, somos todos, demasiado NADA, para que o Universo pare, se perturbe, se abale no seu equilíbrio precário, ou sequer, para que uma nuvem passante, deite uma lágima cá para baixo ... de compreensão ... pelo menos, de compreensão !...

Ao chegar à rua, só tive uma urgência, absoluta e imperativa :  olhar o sol, que ainda não se havia posto !!!...

Anamar

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

" DIA MUNDIAL DOS CORREIOS "

 

" Sempre que me perco de ti nas palavras, procuro encontrar-te nos sonhos e nas ideias "...

" Um dia, as cartas serão História, lidas, contadas e relembradas ... ainda que quem as escreveu, não esteja mais aqui "


Olhei a preceito aquela arquinha de folha, encarrapitada no armário da estante, de portas fechadas, com cadernos e mais cadernos em cima.
Uma espécie de baú do tesouro, de tesouros esquecidos, e amarelados pelo transcurso dos dias ...

Esquecera há muito o seu conteúdo.

Um pouco de tudo, um pouco de nada real, muito de Vida ... poeira dos tempos, acumulada em estratos, na memória, como as camadas rochosas lá das falésias se acumulam nos milénios !
E do pouco do tudo real da vida vivida, os maços de cartas trocadas, enlaçadas por fitas de seda, ou por cordéis de ocasião, dormiam há muito, embalando num sono de gerações, palavras ditas, juras seladas, sonhos revelados, ideias  acalentadas, emoções divididas, afectos partilhados ... segredos escondidos ...

Pessoas que foram ...
As que já partiram, e aquelas que foram e já não são, embora parem por aqui.

As fotos a sépia, desfocadas, apagadas, esbatidas, de  destrocas de amores terminados ... de novo, nas minhas mãos ...
Os dias revisitados, quando se percebe pela letra miudinha da tinta permanente, que aquele dia de Março, fora chuvoso, cinzento e triste ...
A devassa aos corações, quando estes se escancaram ( de novo por entre a caligrafia quase infantil ), e jorram despudoradamente amores incontidos, ingénuos, esperançosos, com a força e a pujança de uma vida não conhecida, só sonhada, só adivinhada ... talvez desejada ... no nosso então, futuro ...
Saudades a escorrerem pelos cantos da arca, violando os envelopes cuidadosamente abertos ...
Promessas que voejam, como traças dos tempos, por entre as folhas envelhecidas, soltando aqui e ali, pétalas secas, ou poemas largados ... ou manchas de uma ou outra lágrima traidora ...
Emoções desbragadas, com o ímpeto e o impulso, que só a juventude lhes confere ...
Sonhos sonhados, cobrando juros muito baixos, porque éramos então, fortalezas inexpugnáveis, e inabaláveis, sequer ...

Soltei três ou quatro, aleatórias, como aleatória  foi a existência ...

E  antes de relê-las, cheirei-as.  Uma e outra vez, profundamente, exaustivamente, muito lentamente ... como que à procura ...
E deixei-me embriagar pelo eflúvio que delas emanava, e que, como um elixir ou poção mágica, teve o poder de comigo seguir, numa viagem alada ... embora eu continuasse ali, estática, sentada no chão da sala, com a arquinha entre as pernas.

E viajei, viajei aos tempos em que o carteiro premia a campainha, aos tempos em que o peito sufocava, as batidas do coração aceleravam, a alma de menina se desgovernava pela fantasia ...
Aos tempos da ansiedade e da urgência da leitura das letras, do soletrar das frases, depositadas naquelas folhas de papel, dias atrás, contudo ainda quentes, fogosas e promissoras ...

E revi-me.  E revi todos, comigo !

Olhei o meu sorriso de então, olhei o meu ar doce e ruborescido, ainda não maculado pelos destinos, senti a minha bonomia,  transbordando de um coração ainda não machucado pela sina ... percebi como eu era credora, no viver ...

E estava tudo ali ...

Naquelas folhas, dentro daqueles envelopes selados a um escudo, gravados pelos tempos, contando histórias e mais histórias, que faziam a minha História ... naquela arquinha de folha, na doçura do silêncio e da paz, mergulhadas no pó dos tempos, preparadas para atravessarem gerações, rumo à eternidade, envoltas em laços de fita de seda, ou cordéis de ocasião !!!...





Anamar

sábado, 5 de outubro de 2013

" NÃO ADIANTA ... "



De novo hoje percebi, que não adianta ter o mais belo pôr-de-sol frente aos meus olhos ...
Não adianta ter o azul do mar zangado ou sereno,
O riacho de água fresca, gorgolejante, a sepentear-me aos pés,
A brisa mais acariciadora no meu rosto,
Um céu de veludo,  pintado de estrelas ...
A chuva abençoada, a inundar-me o corpo exausto da caminhada,
A maior e mais gloriosa lua cheia, iluminando o firmamento,
O recanto mais íntimo, prometedor e romântico, ao meu dispor ...
A obra de arte mais perfeita e conseguida, do artista
A mais bela casa para viver, seja palácio ou choupana,
A viagem mais desejada e sonhada, à face da Terra,
A música mais embaladora, mais doce e mais envolvente,
O espectáculo mais sumptuoso, preenchedor e gratificante,
O repasto mais cobiçado e invejável,
ou o mais simples prato de caracóis com uma cerveja geladinha ...

Hoje eu percebi, que não adianta ver aquele portentoso filme, de que todos falam ...
Procurar o miradouro empoleirado na colina, donde se desfruta "aquela vista" ...
Visitar aquela exposição que está na ribalta, de todos os roteiros culturais,
Dar aquele passeio de carro, espreguiçado e sem horas ...
Olhar a cascata, a serra, ou a planície sem limites ...
Ler o livro da actualidade,
Pensar muito, e criar teses, opiniões e conceitos ... defender pontos de vista ...
Colher as flores dos campos, os ramos das mimosas engrinaldadas, quando florescem ...
Cheirar as rosas dos roseirais, as lavandas dos canteiros, e ouvir os pássaros na ramaria ...
Prender entre os dedos as uvas maduras,
Saborear aquele bolo de laranja, acabadinho de sair do forno ...
Sorver as coisas simples da Vida ...

Não adianta rir ou chorar,
Não adianta fingir,
Enganar-me,
Esperar ...
Fazer de conta que respiro, e dormir acreditando que amanhã será um  "novo dia" !...

Hoje eu percebi, que não adianta obrigar-me a gostar do que não gosto,
Fingir-me interessada no que não me interessa,
Substituir a dor, com gargalhadas de alegria postiça, para apaziguar corações ...
Mascarar o desespero,  com uma falsa vontade de viver,
Fazer de conta que acredito ainda,
no que na verdade não me faz nenhum sentido !...

Não adianta julgar-me no meio de gente,
quando estou afinal, na mais absoluta solidão e silêncio ...

Sem partilha,
Sem amor,
Sem cumplicidade,
Sem entrega ...
Hoje eu percebi, que não faz sentido ...
Não adianta  ...
Terei morrido há muito, e não deram por isso !...

Anamar