quarta-feira, 26 de agosto de 2009

"UMA FESTA NO CORAÇÃO"...


Sobre o Atlântico, tendo por rumo Londres...Sta Lucia ficou irremediavelmente para trás.

Dizem que o passado não conta, o futuro é desconhecido e o que faz história é o presente. Sta Lucia já faz parte de um passado, mas ficará certamente na história da minha vida.

Sta Lucia é lugar predestinado...o Vale das Pitons mais ainda.
Tendo como guardiãs as Pitons, inexpugnáveis e silenciosas através dos séculos, a pequena enseada é em si um reduto de uma energia inexplicável mas sensível...

As cores, os sons, os cheiros, a luz...as sensações...tudo queremos ansiosamente guardar na "caixinha", para que perdure; naquela que temos nas mãos e que regista, e na outra que está cá dentro, não se vê, mas regista ainda com maior nitidez...

São as aves, é o colorido multicor das buganvíleas, o coral do "coralillo mexicano", o amarelo intenso da "mantequilla", o vermelho sangue dos hibiscos, o laranja-fogo das acácias...

É o cheiro doce que resulta da terra permanentemente húmida, com a vegetação cerrada da "rain forest"...terra parida, onde tudo nasce e tudo cresce...

É o resfolegar da brisa nas folhas do coqueiral, é a melopeia lenta e embaladora do mar a espreguiçar-se no areal...
São os trinados, os silvos, o grasnido, o pipilar da orquestra de aves e insectos que povoam o espaço...

É a luz que incendeia o céu dos mais variados cambiantes, conforme o sol domina, ou faz negaças por detrás das nuvens...é uma luz que vai do laranja-fogo aos roxos dos pôres de sol; é uma luz que se ofusca, quando plúmbeo, o céu desmorona em chuva copiosa, ou se deixa rasgar pelos raios de trovoada súbita...
É uma luz que tanto torna esmeralda a água transparente, como a leva a cinza-prata ou a turquesa intenso...
É uma luz que acorda os fundos marinhos, desvendando os seus mistérios, com as mais estonteantes espécies em cor e formas...peixes, corais, esponjas, anémonas, ouriços...

Hoje assomei à praia pelas seis da manhã...
Queria esgotar todo o meu tempo, queria "guardar" tudo o que pudesse, queria esbaldar-me de tudo, e ficar "prenhe" pela última vez, desta natureza que sempre me deixa boquiaberta, incrédula, esmagada...

O hibisco, frente à portada do meu quarto, presenteou-me com uma flor linda, a única que deu enquanto aqui estive. Flor de um dia...tenho para mim que foi uma despedida...

A garça que "passarinha" pela beira-mar na mira de peixe distraído, olhou-me de soslaio com o seu olhinho miúdo no alto do pescoço esguio...
O gato dengoso, que pelas refeições se roça ronronante em busca de algum mimo, também apareceu...
Os "blackbirds", a rôla, os pardais, em grupos descarados e provocantes, saltavam desenfreados de mesa em mesa, depenicando migalhas esquecidas, ou restos nos pratos já abandonados...
Por fim, o Julius veio mimar-me com um "mango" da sua colheita, em pedacinhos...
Foi a vez de me despedir também, e de lhe dizer como foi gratificante que ele tivesse cruzado a sua vida com a minha, aqui, neste cantinho do Mundo.
Foi a vez de lhe dizer, que certamente, ao longo de muitos e muitos anos, ele continuará a ser o "cocconut man"...pois pessoas como ele, jamais morrerão!...

Ele não sabe nem sonha, como a sua lição de vida me mexeu, como eu lhe fiquei grata, como dificilmente esquecerei a sua figura, acocorado debaixo do primeiro coqueiro da praia...como, afinal tê-lo conhecido, foi "uma festa no meu coração"!!!...

Anamar

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

"JULIUS...THE COCCONUT MAN"



- "Hello my people...My name is Julius; I'm the cocconut man! If you give me one or two dollars, I'll give you a nice gelly-cocconut!!"

É assim que Julius aborda todos os turistas que se fazem à praia.

Julius é um homem de sessenta e cinco anos, segundo ele. Eu diria ao olhá-lo...um ancião.
Seco de carnes, uma pele escura de nativo, onde luzem uns olhos azuis sempre a sorrir.
Julius tem o cabelo e a barba esparsa, já grisalhos, e na boca, que conta prontas histórias, só dois dentes.

Nunca saíu de Sta. Lucia, não sabe o que é o Mundo, o que são viagens...sequer que há outra terra para lá desta. Vive por detrás da "Gros Piton", com um cão malhado branco e preto, o "Blacky"...
Julius come peixe acabado de apanhar e frutas que esta terra generosa dá...
Não tem dinheiro para mais.
Tem o seu "office" na praia, na base do primeiro coqueiro, provisionado com dois ou três "mangos", quatro ou cinco cocos, que apanha, como conta, subindo ao alto dos coqueiros, e com que percorre a pequena enseada de cá para lá, de lá para cá, as vezes que lhe apetece.
Na mão, sempre um coco...e a abordagem sempre a mesma: "Hello my people..."

 
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Tem um rosto de criança e um riso franco e ingénuo, curtido por este sol, este mar, esta natureza...

Vive só..."I live with myself"...e é um "happy man"...
Não busca, não lamenta, não anseia...; aceita cada dia com o que a vida lhe dá, sorri sempre, está em paz...
Julius é um pássaro livre nesta floresta das Pitons...não tem peias nem amarras; tem a sua pobreza ou riqueza, tem todo este céu, todo este mar, toda esta natureza excessiva...
Só queria ter dinheiro para extrair os últimos dois dentes, que o incomodam e o fazem sofrer...
Há-de ser quando for...quando conseguir vender na praia os cocos suficientes para ter quarenta dólares...

até lá...

Julius é sem dúvida a mais genuína, a mais autêntica e mais lógica "dádiva" deste canto ainda puro e virgem...virado ao Mar das Caraíbas...

Anamar

"AOS PÉS DE UM GIGANTE"



Meia noite dada...jantar findo.

Por aqui, a brisa abençoada desce sobre o coqueiral, apaziguando os corpos ainda quentes de um sol tropical abrasador, em mais um dia terminado.

Os cheiros são agora mais intensos.
O "doce" exalado da flora local, penetra-nos.
Gotas de chuva caem esparsas de quando em quando. É uma chuva envergonhada desta vez.
Ela vem para refrescar e para manter esta humidade natural impregnada na vegetação.

A noite é de breu. O céu absolutamente escuro em fundo de estrelas coalhadas, como raramente se vê.
Dou por mim em busca da estrela polar, da ursa maior, da ursa menor...como nos meus tempos de menina.
Formulo um desejo por cada estrela cadente que rabisca o céu...

As sombras projectam-se por todo o lado. Os arruamentos do resort, despovoados, são mais adivinhados do que enxergados.
Vou caminhando, solta, sorvendo a fresca, deixando os cabelos em desalinho, o rosto a ser aspergido pelos borrifos lá do alto, a mente leve e rebelde, como um cavalo no prado...
Os ouvidos retêm os sons da noite...uma melopeia intensa e indefinida, numa orquestra consonante de todos os insectos e aves nocturnas, por certo aos milhares, que desde que o sol adormece, se anunciam.

O mar quebra manso nas rochas ou na areia da praia, agora silenciosa e escura, onde os perfis dos coqueiros e dos chapéus desgrenhados, de palma-cana, se recortam, quais esfinges sonolentas.

E sobre toda esta paz e esta calma idílica, a pique, vigilante, adormecida até que o sol nascente a desperte, a sombra do "gigante"... imponente e grandiosa, a "Petit Piton" (o gigante de dois mil e quatrocentos metros), estática, atravessa imemorialmente os tempos, imperturbável e majestosa!...

Anamar

sábado, 22 de agosto de 2009

"ENTRE O MICRO E O MACRO..."





Uma das magias que as Caraíbas têm, é a capacidade de num piscar de olhos, nos oferecerem um sol que impiedosamente nos fustiga até à alma, seguido de uma chuva tropical abençoada e envolvente.

Foi assim hoje.

Um céu com nuvens encasteladas, o calor do sol a atravessá-las forte, as cores das Pitons de um verde menos contrastante por isso mesmo, abraçados os seus cumes pelo "algodão" que plana mais abaixo...até o vermelho das acácias, provocador, não tão flamejante como antes...e repentinamente, como em surpresa, as bagas grossas de chuva tropical, aquela chuva que não deixa dúvidas de que o é, "despencam" fortes e ininterruptas, de um céu que se tornou uniformemente plúmbeo.

A praia, subitamente deserta...

Por que será que as pessoas sempre fogem da chuva?
Aqui, não consigo entender. Dou por mim a pensar que danos me fará esta água purificada, solta do céu, sem obstáculos que a detenham a não ser as ramagens dos coqueiros ou os chapéus de sol, sabiamente "tecidos" em palma-cana seca para o efeito??!!...

Deixei-me ficar, encarando o céu, bem de baixo, olhando uma Piton, que vista assim, se agiganta mais e mais, ouvindo a voz dos pássaros na mata, inquietos com o ribombar profundo e estrondoso de um trovão de quando em vez, nesta baía desenhada, escutando o silêncio que se instalou nas gentes, oferecendo cada centímetro da minha pele, provocadoramente desnuda, a esta chuva generosa e quente, pedindo que ela pudesse inundar-me de paz até à alma...

É mágica mesmo, quase mística, inalcançável como num santuário, a espécie de vida "suspensa" que por aqui se definiu...momentos de evasão, de interioridade, de simbiose com a Natureza, em que nos sentimos apenas e só, mais um insignificante grão da areia desta praia...

Anamar

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

"O PARAÍSO AFINAL EXISTE !..."

 
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Vale das Pitons...

Um vale perdido entre dois imponentes rochedos, de dois mil e seiscentos e dois mil e quatrocentos metros, "plantados" no Mar das Caraíbas...

Estou a falar de Sta.Lucia...Vale das Pitons...lá, onde o paraíso marcou encontro com a Terra.
Não tem descrição este lugar.
Aliás, não haveria palavras no dicionário dos Homens, que descrevessem as cores, os sons, os cheiros, as sensações que aqui se experimentam.

Só me ocorre dizer, que Deus realmente aqui "entornou a sua caixa das tintas"...
 
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A generosidade da natureza exuberante, prodigaliza um contexto de paz, de intimismo, de sonho, absolutamente indescritível!
A cor esmeralda de uma água rasteira, a morrer docemente na areia, a transparência que nos deixa mergulhar em si os olhos até ao fundo, a chuva apaziguadora que alterna sabiamente com um sol abrasador...
o adocicado dos cheiros tropicais da floresta luxuriante, em mistura com o pipilar, os trinados, o grasnar das mais variadas aves que convivem bem de perto com os humanos...
o sol, feito um borrão aceso de luz meio difusa, a pôr-se...
fazem-me crer que sou uma privilegiada, porque não morrerei, sem ter visto este "milagre"!!...

Anamar
 
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terça-feira, 4 de agosto de 2009

"QUANTO MAIS CONHEÇO...OS ANIMAIS..."



Estranha época do ano esta!...
Sente-se tudo a meio gás, uma "desactivação" nos hábitos, nas gentes, no "ar".

As minhas amigas estão todas fora. Meia família também. A outra meia, em "eclipse" quase total...
O meu "sítio" despovoado, o Escudeiro, com pequenos-almoços incaracterísticos, e estampado nos rostos dos "resistentes", um cansaço, uma desmotivação acrescida, uma clara imagem de alheamento e desgaste, semelhante ao "cinzentismo" que nos rodeia.

De repente parece que o país fechou para obras...( e bem precisas elas eram!!!)

Eu também estou a bater a porta.
Vou rumar a outros "sítios", a outros "Escudeiros" ...a um horizonte mais alargado do que o imposto pela casa do vizinho da frente, em busca de outro ar, outros verdes, outro céu e mar.
Vou tentar sublimar longe daqui, todo o desgaste, mágoa e cansaço que me encheram os últimos dias destes Julho/Agosto, para esquecer...
Mas não vou feliz.
Como se por aqui deixasse um filho desprotegido, assim parte o meu coração, apertadinho e doído, ao deixar por cá a Rita, que divide comigo e dividia com o Óscar, a vida de todos os dias.

Certamente não será fácil para ela, ser a guardiã, pela primeira vez, de uma casa deserta, ocupar os pés de uma cama, por ora vazia, "pensar" (por cada vez que o elevador sobe ao sétimo) se não será a dona que vai meter a chave à porta...

Conto apenas com as três maiores virtudes que os animais (em perfeição, a anos-luz dos humanos), possuem : sempre nos esperam pacientemente... sempre são tolerantes...nunca nos negam (por nos julgarem), os seus afectos incondicionais...

Mesmo muito longe, seguramente estarei por perto do meu companheiro de jornada...a Rita!...

Anamar

quinta-feira, 30 de julho de 2009

"REQUIESCAT IN PACE..."



E de repente, às quatro da manhã dei em ter medo da morte...
Ela já rondava por ali.
Sentia o roçagar das suas asas pela penumbra da casa;
não eram bem asas...lembravam-me mais as alares dos morcegos nas grutas da Regaleira.

Era medo real que me tolhia, uma estranha sensação de desconhecer o tão naturalmente conhecido, a inabilidade de lidar com ela...

Estranho...absolutamente estranho...

Não queria fazer barulho, não queria acordar nada que me chamasse do quarto para fora.
No corredor persistia o escuro da noite. Um peso oprimia-me a respiração e um nó apertava-me mais e mais a garganta...
Uma entidade estranha pairava por ali...anunciava-se já, com horas de antecipação...

Lembro bem, com clareza...era um medo real!

O tique-taque do relógio, nítido no silêncio absoluto, fazia compasso com as minhas pulsações...
Tomara que fosse manhã, tomara que a madrugada chegasse depressa, que depressa eu tomasse de uma vez, aquele cálice venenoso de fel puro, acre e corrosivo que me esperava, à medida que a areia se extinguia na ampulheta do destino...
30 de Julho...hoje, como há dezassete anos...tal e qual...

Por cada vez que "ela" passava, o calafrio do seu toque deixava-me um arrepio no corpo todo, como se a sua capa negra me envolvesse também...

E ainda não eram cinco da madrugada...

Anamar

terça-feira, 28 de julho de 2009

"TALVEZ VER !... "



Hora da almoço, Avenida de Roma, "Sul-América"...na esplanada.

Aqui perto, o D.Leonor, onde, há eternidades, dei aulas.
Nas mesas, por aqui, almoça-se.
O calor aperta, os chapéus de sol mal mantêm alguma frescura.

Vim até Lisboa tratar de um assunto, aproveitando para ver uma amiga... sem pressas...ao sabor da brisa que corre e hoje é abençoada.
Vim olhando e "vendo" as lojas abertas, as fechadas, as actuais, as "demodées"...porque também as há na Av.de Roma...

Atraquei agora aqui, quase a "cair" na esparguete com frango da mesa ao lado, ou na alheira, vinho e café da mesa de trás.

Os diálogos das empregadas de loja, ou funcionárias de serviços aqui da zona(que parecem ter como ponto de encontro diário esta esplanada), são interessantes...
Dos cozinhados às crianças, às madeixas ou extensões recentes, às férias inevitáveis entre o Algarve e a Costa Alentejana... a conversa de circunstância flui por aqui.

Tudo a um ritmo de modorra, bem mais lento que o fluxo de trânsito circulante dez passos à frente.

Topam-se as relações entre as pessoas...
O parzinho do secundário com as férias grandes acabadas de iniciar, de olhos embevecidos e em bico, num amor de Verão, a entornar ternura, ou se calhar desejo, pelos cantos...

O casal oscilante entre os sessenta dele e os vinte e tais dela, com sotaque a Brasil, toda fresca, desempoeirada, bem "sacudida"...estilo "Cheguei"!!...
Ele com ar entontecido, atoleimado...noutra galáxia!...
Não percebe a "generosidade" da pequena (esbanjadora, de olhos de bolo em balcão de pastelaria), por tudo quanto a rodeia e mexe...
nem percebe que o mancebo solitário que "lê" distraidamente um livro na mesa ao lado, a "come" por entre as folhas...

Há também os autóctones, que vê-se bem que o são...senhoras gordinhas, sem malas nem carteiras na mão, ou sequer ar cuidado. Vêm por aqui, a pequenas necessidades, ou passear o cão em hora de aperto.

E há os casais idosos, que passeiam de braços dados, como manda o "figurino", ao ritmo dos anos, e se calhar ainda, ao ritmo das "avenidas novas" dos anos 50...

E há também o mendigo que mendiga, tentando manter o ar da Av.de Roma (porque até para isso o "status" importa...)
Exibe um ar ainda distinto, traído pela biqueira dos sapatos, que escancara um "sorriso" lixado...
Vendo bem, não sei se será mesmo mendigo, ou já um "filho da crise", que atira as classes sociais de degrau em degrau para baixo...

"Penhalta Novias" na minha frente...
Mas quem quer ser "novia" hoje em dia?? Será que ainda querem??...
Lembro dez anos atrás, quando por aqui me esfalfei com a minha filha, também ela na convicção de que com um lindo vestido, o pacote da felicidade viria completo!...
Todos temos direito às nossas ilusões...

E depois, há os pombos, sempre presentes nesta Lisboa, e os pardalitos que não se ouvem por entre a folhagem, mas que continuam atrevidos e descarados...

E tudo isto foi Lisboa, numa tarde de Julho, em que não me apetece ir para casa, em que não me apetece pensar na vida, não me apetece "sentir" o destino...apenas me apetece olhar...e talvez "ver"!...

Anamar

"AO SOM DE STRAUSS..."



Este fim de tarde hoje, não passa de uma agonia em laranja...

Lá ao fundo o sol já se pôs, e apenas uma poalha entre um azul desmaiado e uma faixa ainda acesa, de ocre pálido, desenha esfingicamente os contornos do casario.

Não há pássaros no céu, os sons começam a esbater-se e o silêncio a imperar por aqui...
Vozes distantes, um cão que ladra...tudo indiviso, tudo aparentemente inerte...

A agonia do sol no horizonte, foi uma agonia também dentro de mim.
O sol amanhã levanta-se, e no outro dia, e no outro...e assim, dia após dia, vida após vida, gentes depois de gentes...

Estive a ouvir música com o Óscar.
Coloquei num gira-discos de prato, um vinil que já não ouvia talvez para mais de cinco anos...Valsas Vienenses...
Eu acho que o Óscar "curte" valsas vienenses...e eu também...

Transportei-me com elas para todos aqueles sítios para onde a memória, sempre à nossa revelia, nos transporta.
Deixei-me ir, simplesmente, impelida por uma indiferença adormentada, como quem se balança num barco parado, pela brisa da tarde.
Quis parar a mente, mas não fui capaz. "Rodei" para trás, "rodei" para a frente, revi e antecipei...

Daqui a dois pores-de-sol o Óscar já cá não está...

Talvez eu oiça Strauss de novo, talvez eu me passeie pelo Danúbio, talvez eu o veja ali aos meus pés, com os ouvidos atentos e os olhos amendoados fixos em mim...

A "casa dos passarinhos" com os pinhais em redor, a liberdade a um salto do muro, as sestas dormidas debaixo das hortenses pelas tardes de Verão...tudo isso pertence a outros pores-de-sol...tudo isso pertence a outra vida, que está quase a extinguir-se...

Anamar

"IRÓNICO...OU TALVEZ NÃO..."



Teoricamente a esta hora já estou de férias.
Efectivamente, amanhã é o primeiro dia das ditas, e como já é meia noite dada...tudo perfeito!

O meu quarto, por acaso excessivamente quente tendo como comparação a temperatura do exterior auscultada há pouco, ao ir fechar as janelas da sala maior, ainda me faz sentir mais sufocada, mais cansada, e com um profundo desânimo e vontade de dormir.
Junto de mim, uma chávena de leite e um pacote de biscoitos, que como compulsivamente.
Lá fora...o Óscar...ainda...

Tirando isso, apenas uma "irónica ou talvez não" sensação de fraude, de ludíbrio, de vontade de sumir, como alguém acabado de chegar de uma maratona e está esvaziado do objectivo que o levou a fazê-la, ou alguém que amarinhou uma montanha na esperança de uma paisagem apaziguadora, bela, calma do outro lado...e constata que não é nada disso...

Este ano de trabalho foi madrasto, absoluta e completamente madrasto em termos profissionais, familiares, pessoais...
Uma espécie de cocktail explosivo ou de jantar que esturrou na panela.

Neste momento, e porque os tempos que se me avizinham não são de mar "flat", são sim de grandes decisões, viragens de página, com as inerentes angústias, dúvidas e incertezas, sinto que não estou com "estaleca" para tudo o que por aí vem...
Dou por mim a antecipar angustiadamente situações que teriam o seu tempo, dou por mim a delapidar as "munições" que tão necessárias me virão a ser, a desgastar esforços que precisarei arregimentar... dou por mim sem grande capacidade de reacção positiva a tudo o que experimento, e que neste contexto, obviamente se reveste de tonalidades carregadas...

É como se de dia para dia estivesse a perder alguma da ingenuidade que ainda conservava face à vida, é como se estivesse a deixar fugir-me dos dedos o crer em muita coisa em que acreditei, é como se de repente tivesse sido obrigada a "crescer", e a deixar lá atrás a criança que eu era e que ansiava nunca molestar.

Hoje, sou uma pessoa pior, mais dura e inflexível, se calhar menos generosa e muito mais defendida, menos crédula (por não conseguir mesmo encontrar no que acreditar), mais amarga...talvez brusca e repentinamente envelhecida...

e pergunto-me que é feito da minha capacidade inesgotável de me extasiar perante as coisas, as pessoas, os sentimentos??!!

que é feito do meu poder incondicional de entrega??!!

que é feito do caudal de afecto, sem tamanho, contenção ou medida, que jorrava em torrente incontida se acreditasse que valia a pena??!!

que é feito daquela sensibilidade acutilante que me levava às lágrimas, na emoção duma canção escutada, ou face ao mergulho laranja do sol sobre o mar lá ao fundo, ou ao marulhar leve das águas de um córrego por entre as rochas??!!...

Não sei...de facto não sei!
Sinto-me exaurida e se calhar, aos poucos e poucos fui-me esquecendo de mim pelo caminho...

Irónico......ou talvez não!...

Anamar

sábado, 25 de julho de 2009

"POR QUE TEMOS QUE SOBREVIVER AOS NOSSOS BICHOS??..."


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Por que é que temos que sobreviver aos nossos animais???

Eu sei que muitas pessoas não vão entender nem ter sensibilidade para perceber do que falo.
Primeiro...se muitas pessoas lessem as merdas que eu escrevo...
Segundo...se muitas pessoas curtissem verdadeiramente animais de estimação. E eu sei que cada vez menos gente, por comodismo, desinteresse ou falta de gosto ou sensibilidade mesmo, o experienciam.

Pois é...hoje, eu estou particularmente vulnerável a este tema.
Primeiro...porque o Óscar, meu gato companheiro de quinze anos da minha atribulada vida, tem pela frente, a curto prazo, a decisão minha (imaginem), de ser abatido.
Logo o Óscar, o gato mais "humano" que conheci...

O Óscar veio p'rà minha mão ainda tinha os olhos azuis do leite da mãe, abandonado que fora, junto com ela e mais quatro irmãos, nos baixos de um prédio...à consideração dos transeuntes...

O Óscar sempre foi uma "peste", desde que se tomou como gente.
Infligiu uma mordidela com direito a pontos, na mão duma ajudante de veterinária incipiente...
"exigiu" a presença de um veterinário-homem, para levar as primeiras vacinas, quando não tinha mais do que quinze centímetros de estatura...
pôs o meu ex-marido a andar de casa para fora (porque detestava animais), até que ele capitulou, para regressar à casa mãe...visto que o Óscar veio p'ra ficar...
odiou a minha filha mais velha, com quem, ao tempo, disputava o mesmo lugar do sofá...e a mim, a quem elegeu como dona, exteriorizava as suas meiguices, muitas e muitas vezes, personalisticamente, com arranhadelas ou mordeduras...
Portanto, tudo como o ser humano mais genuíno...

Tantas vezes lhe lancei impropérios: "Irra, que até a fazeres festas és bruto!!!!"

O Óscar atravessou comigo quinze anos da minha vida, dividindo as alegrias, as ausências, as boas e más disposições, os choros, as angústias, as fraudes...
Dividia e entendia...

Tenho para mim, que quando me olhava e só não me lambia as lágrimas porque nunca se sabia o que "viria" dali...ele me percebia, e à sua moda tentava reconfortar-me.
O Óscar, adoptava miados adequados, num diálogo que os dois cumpliciávamos.
Nunca refilava das minhas "galderices" de fim de semana, nunca tinha ciúmes ou exigia.
Sempre me esperava à porta, quando eu metia a chave e corria a lingueta na fechadura...e logo se "ensarilhava" nas minhas pernas, quase me fazendo cair, numa procura de alguma compensação para tão parcos afectos, às vezes...

O Óscar está muito, muito doente...
e parecendo adivinhar que o tempo de que dispõe lhe está a fugir, reivindica, solicita, mendiga, muitos muitos carinhos... Logo ele, que sempre foi senhor do seu nariz e só "dava" quando muito bem entendia...(daí eu dizer que ele é o gato mais humano que eu conheci...)

E vou ser eu, que terei que decidir dos seus destinos.
Vou ser eu que vou determinar, porquê e quando, o Óscar vai terminar os seus dias entre nós, ou melhor, perto de mim...

Vai haver um destes dias, em que eu vou acordar, e sei que nesse dia preciso, terei de pegar nele ao colo, metê-lo na transportadora (como num qualquer passeio à "casinha dos passarinhos", onde ele foi totalmente livre e feliz, há anos atrás), falar-lhe de mansinho...desta vez sem saber o que dizer-lhe...e sentindo que o estou a trair, levá-lo ao encontro da injecção da paz, levá-lo ao encontro definitivo da separação com a sua casa, o seu companheiro de todos os dias ( a Rita, que não vai perceber nada...), levá-lo até ao sono repousante, nas minhas mãos, dizendo-lhe baixinho, como sempre faço para o acalmar: "está aqui a doninha....já passou..."

Só que nesse dia, o Óscar não voltará para o que era seu, nem sequer para uma dona talvez relapsa e escassa na paciência, na partilha, nos afectos...

E quando penso em quanta generosidade tem a relação de um animal com um ser humano...
e quando a comparo inevitavelmente com a conturbação, a exigência, a insensibilidade, o egoísmo, a traição das relações inter-pares, no domínio dos ditos "racionais e sensíveis"...sinto uma revolta e quase um ódio, que não descrevo...

Desculpem o tema...Como habitualmente, não leiam.
Isto, também não interessa a ninguém! Interessou-me a mim pôr no papel, porque estou profundamente triste, profundamente defraudada...porque a vida me vai tirando tudo...e a relação com um animal nosso, é estritamente particular...muitos o sabem...

Não sei como vai ser...não sei onde vou arranjar coragem...
Uma coisa eu sei: na sua última viagem, eu não falharei ao Óscar.
E ainda que morra por dentro também, vou ter que arranjar as forças necessárias para lhe suster a cabeça, olhar os seus olhos, seguramente confiantes, e aguentar o peso do Mundo, que eu sei que nesse momento vai desabar sobre mim...uma vez mais!!!...

Anamar

sexta-feira, 24 de julho de 2009

" I DREAMED A DREAM..."

Não, não sou a Susan Boyle, embora viva com dois gatos e tenha quarenta e sete anos...

Sim, tenho quarenta e sete anos seguramente...isso afianço! Esses, e mais alguns!

A Susan Boyle é feia, gorda, mal jeitosa...pelo menos por fora. Tem duplo queixo, suponho que um buço que está mais p'ra bigode que p'ra buço, nunca foi beijada...mas "sonhou um sonho"...acalentou uma esperança...acreditou num desígnio qualquer, escrito num qualquer sítio.

Veio dum vilarejo, perdido em nenhures, despida das "armadilhas" da "civilização", inocente sobre a "selva" que a esperava animada de um sorriso sarcástico de comiseração...

Não vou abordar o "caso" que constitui Susan Boyle.
Ele já fez correr tinta que chegasse, já colocou caras de parvos em muitas caras que se julgavam espertas, já despertou muitos estudos psicológicos, sociológicos, antropológicos...
Ele, já abanou consciências e já trouxe ao cimo hipócritas "mea culpas"...
Ele, já fez o presidente Obama antecipar um discurso, para não colidir no horário, com Susan...
Portanto, de Susan, do seu "vozeirão" e do seu sonho, já se falou que baste.

Vou apenas referir o misto de admiração e "inveja", que eu que não sou tão feia assim, tão gorda assim, tão mal jeitosa assim...
eu, que não tenho ainda duplo queixo, nem buço ou bigode, que já fui beijada milhentas vezes, que vivo na "civilização" ...
a "inveja" que eu sinto, dizia, de não ter aquele crer interior, aquela esperança desusada, aquela vontade imperiosa, aquela ingenuidade desarmada, aquela pureza de alma, que (apesar da sua canção lhe dizer que "há sonhos que não podem ser"...) permitiram que ela sempre os tivesse sonhado!!...

Anamar

quinta-feira, 16 de julho de 2009

"OS CORDELINHOS INVISÍVEIS"



Teresa estava na porta daquela igreja.

Era uma noite de Junho, de um Junho quente como são os Junhos em Lisboa.
Lá dentro, na luz difusa duma capela, velava-se um corpo.
O cheiro misto da cera das velas e das flores, impregnava o ar até à entrada.
Deveria haver um silêncio profundo e pesado, mas havia um "brouhaha" de vozes que fingiam estar em surdina mas não estavam.

Teresa estava estática, gélida, hirta e morta também, só não estava a ser velada ainda...apesar do seu coração e da sua mente, estarem naquele esquife lá dentro, partilhando já aquela tumba, com quem fora o amor da sua vida.

Sempre o respeitara, o venerara quase, por isso jamais quebraria ali o juramento feito a um pedido seu.
Se algo lhe acontecesse, um dia, ela não deveria estar presente, apesar de a sua vontade a impelir para o interior daquela capela, apesar do seu sentir lhe dizer que deveria ser ela quem havia de estar à sua cabeceira, deveria ser ela a aconchegar-lhe o último leito, a por-lhe a última flor nas mãos, a dizer-lhe as últimas frases de amor ao ouvido (sabendo que ele a escutava, já do outro lado, que ele a via já do outro lado e que também já a amparava e aquecia num sopro de força e coragem).

Conheceram-se havia longos e longos anos.
Ela, quase uma menina ainda...ele, homem feito, com responsabilidades assumidas na vida.
Amaram-se, partilharam-se, entregaram-se...
Dos sonhos aos projectos, das vontades às esperanças, do possível ao impossível...tudo dividiram, em tudo acreditaram.
Viviam com sofreguidão cada minuto que usufruíam, cada tarde passada nos sítios que se tornaram por isso, "seus", cada pôr-de-sol que os extasiava, cada música que os inundava, cada gesto de afecto que os preenchia e lhes tornava plena a vida, quando se separavam e de novo sós, enfrentavam os respectivos caminhos.
Ambos sabiam pertencerem-se, ambos sabiam que "os cordelinhos invisíveis" do tudo que os ligava, falariam sempre do outro, mesmo na sua ausência física.

Fora um amor tão completo que bastava, tão bonito quanto generoso, tão forte e seguro que nunca fora exigente, de uma aceitação do possível, por saberem que a Vida lhes reservara um quinhão apenas...no entanto, com o tamanho do Mundo!

E decorrera uma vida...

Os anos acrescentaram a cada um, menos vigor, menos frescura, um cansaço acumulado de uma esperança que se ia desvanecendo aos poucos e poucos.
O futuro parecia começar a fechar-se, sobre algo que parecia não "querer" realizar-se nunca...
Contudo, Teresa sempre acreditara, que nem que fosse por um dia, havia de partilhar com aquele homem, por inteiro, a sua vida.
Nesse dia, deixaria para trás tudo e todos, dobraria aquela esquina sem nada nas mãos, carregando apenas consigo, todo o amor que lhe preenchera o coração...e não olharia para trás sequer...

E era Junho, um Junho quente como são os Junhos em Lisboa.
Na porta daquela igreja, naquela noite de um Verão que era um Inverno profundo dentro de si, Teresa estava morta...e ninguém ainda dera por isso!!...

Anamar

"TODO O TEMPO DO MUNDO..."



Tal como eu, o senhor abeirou-se das caixas da fruta.
Sorria, sorria muito, perguntava se eram docinhas...as ameixas...embora me pareça que ele as não definia muito bem, com um olhar que mais adivinhava do que divisava.

- "Boas p'ra comer já! Um torrão de açúcar!" - dizia a vendedora.
"Só é preciso ter cuidado não engula o caroço!"...

E ele ria, ria muito e agradecia.
- "Atenda esta senhora! Eu tenho todo o tempo!"

Olhei de soslaio para ele, para a bengala em que se apoiava para manquejar menos, para o riso rasgado no rosto...para os olhinhos "piscos" de criança-avelhentada.
Agradeci e detive-me naquela última frase: "Eu tenho todo o tempo!"...

Acedi à balança, eu e a vendedora.
Ele ficou mais atrás, com olhos gulosos para as "línguas de gato" ali à mão.

"Este senhor é muito engraçado...Tem noventa e quatro anos e diz que não quer viver mais...que está farto do corpo que carrega..."

Olhei-o de novo...agora com algum espanto e admiração. A cara pregueadinha continuava iluminada pelo sorriso.

Saí.
Nos meus ouvidos ficaram ainda palavras de apreço por me ter conhecido...
Afinal, pouco mais que dez minutos e três ou quatro frases trocadas!!...
Um provável lampejo de sol numa vida que está cansada de continuar a fazer-se, num corpo demasiado "pesado" para ser carregado já!

Mas ria, ria sempre, gratuitamente.

Nunca ele saberá que também iluminou a minha tarde, por entre os pêssegos e as ameixas!...

Anamar

terça-feira, 14 de julho de 2009

"A HORA DA BRECA..."



Estes fins de tarde matam-me!!...

Quando o laranja se vai apagando lá ao fundo, e o casario começa a piscar os "olhinhos", lembrando que a noite não demora em chegar...
Quando uma estranha quietude se abate sobre tudo e todos, os ruídos se atenuam, o chilrear dos pássaros cessou no arvoredo dois lanços abaixo da minha janela...
Quando um adormecimento parece invadir tudo quanto é vivo, uma letargia triste, recolhida e silenciosa invade a Terra, anunciando o fim de mais uma "etapa"...
Quando só os aviões, à razão de um por cada dois minutos, cruzam o espaço lá em cima, parecendo querer transportar para longe, com eles, o meu pensamento, as minhas divagações ou até o meu "desajuste" a esta hora do dia/noite...

é que eu me sinto absolutamente só...
só e órfã do Mundo, uma sensação de abandono doído, verdadeiramente estranha, como se, com o dia que finaliza, finalizasse também um pouco de mim.

As manhãs sempre são auspiciosas. Afinal, nunca se sabe o que nos reserva aquele dia que ora se inicia.
As tardes são plenas no que há para ser feito ou vivido.
As noites, noite dentro, mercê do sono que ainda que renitente sempre acaba cedendo, levam-nos a um descanso que tende a ser (às vezes nem por isso), apaziguador, retemperador.

Mas os pôres de sol, são mesmo sóis que se põem no nosso ocaso...
As sombras avolumam-se, as paredes agigantam-se, os "fantasmas" do nosso imaginário corporizam-se, e uma sufocação que sobe das entranhas, aperta a garganta e mareja os olhos de água...
É verdadeiramente uma hora "da breca"!!...

E então eu penso o que será de mim, quando esta ociosidade agora sentida (porque o período escolar terminou), passar a ser a nota dominante de um sempre, de todos os dias (com laranjas em fundo ou cinzentos a pincelar os céus, com recortes de casario lembrando cubismos de Picasso, ou neblinas instaladas e gotas gordas a despencar lá do alto)... o que será de mim, pergunto-me e apavoro-me, porque todos os dias haverá uma hora "da breca" e eu não tenho arte para sair dela!!...

Anamar

sábado, 11 de julho de 2009

"A BABILÓNIA É AQUI MESMO..."

O ser humano não se entende...

Decididamente, na sociedade actual, com os valores coexistentes, o ser humano está cada vez mais de costas voltadas entre si.
As linguagens são cada vez menos inteligíveis, os códigos de conduta, de comunicação imperceptíveis ou desvalorizados, os seres estratificados em opiniões, posturas de irredutibilidade ou fundamentalismos extremos.

As pessoas são detentoras das suas "razões", de que dificilmente abdicam, sequer discutem, são donas e senhoras de verdades absolutas de que não prescindem, arvoram-se insensivelmente conhecedoras de valores cujo conteúdo não é sequer passível de uma discussão académica...

As pessoas estão autistas, teimosas, fazem-se de "surdas-mudas" por comodismo.

Pais não entendem filhos e vice-versa, namorados toleram-se depois da "chama" extinta (a maior parte das vezes pela incapacidade de uma análise calma, objectiva e correcta das situações menos boas), casais constituídos defendem os seus "redutos", por falta de tolerância, maleabilidade, incapacidade dialéctica...até amizades se rompem por situações mal resolvidas, mal interpretadas, nunca esclarecidas...

Está-se a criar uma sociedade sem diálogo, espartilhada numa solidão e num individualismo atroz, em que o sofrimento cresce exponencialmente à falta de solução para estes "cancros" afectivos.

Sim, porque são "pechas" ou lacunas de afecto que estão na base desta construção excessivamente musculada do ser humano.
São convicções inabaláveis, raramente susceptíveis de alteração. Parece que o Homem sente, que fazer inversões nas suas posições é sinal de fragilidade.

A vida "corrida" e "anónima" da grande cidade e das "colmeias humanas", potencia de facto, o isolamento, o "salve-se quem puder", a falta de maleabilidade das mentes e dos corações...

Que é feito das tertúlias calmas e agradáveis entre conhecidos e amigos nos cafés, nos locais de encontro, nos serões junto às lareiras, sem horas, onde, saboreando um bom vinho, tudo é abordável, tudo se analisa, tudo se discute "na boa", sem hostilidades ou ofensas, porque sempre opiniões diferentes trouxeram luz à discussão??!!

Não há tempo, não há vagar, as pessoas estão escravizadas pelos relógios, pelas rotinas, pelas responsabilidades.
Ou então, não estão sensíveis à questão, porque...têm as suas opiniões formadas, estão fossilizadas em convicções, quantas vezes por teimosia nunca estremecidas, ou têm mais o que fazer no escasso tempo de que dispõem...

Se este é o panorama do nosso "quintal", das nossas relações, do nosso pequeno "mundo", como poderemos sonhar que no Mundo gigante que nos alberga, povos tão diferentes uns dos outros, com valores e interesses tão diversificados, se entrelacem, dêem as mãos, comummente se entendam??!!

Será isto sinal de avanço e civilização, ou de regressão e desrespeito instalado??!!...

Anamar

segunda-feira, 6 de julho de 2009

"DESCULPEM QUALQUER COISINHA"!...



Não ando com pedalada p'ra estas coisas...

Não ando nem com inspiração para escrever nada, porque, dá-me ideia, olho mas não vejo, ou seja, a bem dizer, ando um pouco "robotizada" no meio da multidão.
Não sei se é cansaço, desmotivação, descrer ou a remota sensação dentro de mim, que caracol, "eremita" ou avestruz, me serviriam na perfeição ser, para ficar "out" neste mundo de não valer a pena...

Talvez seja só cansaço mesmo, na recta final de mais um ano de trabalho a "esbaldar-se" em trabalhos em catadupa, cerca de um mês que me falta para as almejadas férias.

E por férias mesmo, me ocorreu escrever estas insípidas linhas que aqui deixo.
Podia chamar-lhes "as férias dos portugueses", "o sonho possível" ou "o pesadelo vivido"...qualquer coisa que há muito já não constatava ocorrer e que lembra o meu tempo de mocinha, nas primeiras idas à praia em autonomia paterna, inserida no grupo de amigos.

Ora bem...De que falo mesmo??

Neste sábado, ao regressar do pequeno almoço no Escudeiro, e porque a minha praceta é zona de interface de autocarros para os mais diversos destinos, deparei-me com um cenário que me é de facto familiar, mas de que já não dava conta há muitos anos.
Filas e filas de famílias inteiras, roupas reduzidas, chapéus ou bonés nas cabeças, sobretudo dos putos logo de manhã já ligados a "pilhas", chapéus de sol debaixo dos braços ou ao ombro do "chefe da orquestra", e geleiras nas mãos, certamente bem aviadas. Pelo menos, o ar derreado com que aqueles que as transportavam exibiam, assim o fazia supor...

Para além disso, o semblante afobado, a correria, a agitação e a "algarviada" que por ali se ouvia, deixavam adivinhar a ansiedade da chegada às areias, a pressa de mergulhar o pé na água fria ou o desespero da perda de mais uns raios de sol, até que os areais da Caparica, da Torre ou de Algés, fossem alcançados.

Os portugueses a fazerem as "férias da crise"...
Os portugueses a fazerem de conta que as Caraíbas, os Brasis ou as Maldivas estavam por ali, à mão de semear, no desenho que a imaginação lhes emprestava...
Os portugueses, sem "cheta" nos bolsos, depois de um ano de trabalho, a fazerem de conta que estão felizes com as férias de que os acharam merecedores...

Que importa que seja p'ra lá de tempo o itinerário de ida, e p'ra lá de tempo o itinerário de vinda (mais penoso ainda pelo esfalfanço, pelos escaldões na ânsia do "bronze", pelas criancinhas que já não regressam pelo seu pé e são jogadas nos ombros...)?!...
Que importa que o "bandulho" tenha sido cheio de sandwiches e mais sandwiches, croquetes, sumóis e trinaranjus, "bjecas" e uns iogurtezinhos...porque qualquer vitualha numa esplanada está p'las horas da morte?!...
Que importa que amanhã a odisseia recomece e que os dias se esvaiam rápido, anunciando o fim das "férias"...Que ao chegar a casa ainda se vá fazer a janta, mesmo que o corpo suplique cama?!...
...se este é o sonho que nos é permitido sonhar, se este é o luxo que nos é permitido usufruir, ou se este é o "pesadelo" que nos foi destinado, porque somos pobres, porque somos este povo acomodado e paciente, porque nascemos neste bairro económico, somos filhos desta turba que não sabe o que são remunerações milionárias, cúmulo de pensões chorudas, "offshores" ou coisas no género!!...

Menos mau que temos este sol, este céu azul, este marzão e esta costa pródiga...e deles ainda não nos cobram impostos!!...

Anamar

sábado, 20 de junho de 2009

"SÓ CONHECEMOS O QUE CATIVAMOS..." - Saint Exupéry


Hoje ofereci ao António "O principezinho"...

O António tem só sete anos, mas é escorreito na leitura, no vocabulário, na interpretação.
O António expressa-se com uma maturidade bem acima da sua idade cronológica, é rico nas palavras que utiliza, compreende sem dificuldade.
É vulgar, sempre que sente falta, ouvi-lo inquirir os pais ou quem tem por perto, sobre o significado de um vocábulo, ou o sentido duma frase.

Além disso, o António é puro de alma, como acredito, o serão todas as crianças.

Há dias, li com atenção e surpresa, frases soltas por ele escritas, sobre os amigos e sobre o que para ele faz sentido numa amizade.
Foram frases que me emocionaram, foram palavras soltas, que se percebia terem jorrado daquele coração e daquela cabecinha (agora já sem caracóis), do meu "cientista maluco"...como carinhosamente o chamava.

O António ainda não "experienciou" à séria, esse milagre na vida.
Talvez já saiba o que é trocar conversas, partilhar jogos e brinquedos, com o Diogo, que elegeu para o seu melhor amigo.
Talvez até já tenha consolado e sido consolado, numa aflição, num desaire, num desgosto, pequenino como ele.
Porque, felizmente, o António ainda não sabe o que são mágoas, desilusões, tristezas grandes...porque essas, estão justamente guardadas para gente grande...

Chegará a altura em que vai perceber, como diz Saint Exupéry, que a linguagem da alma é a que vem do coração, que as coisas importantes da existência, os olhos não vêem, apenas o coração as sente...que para "conhecer" é preciso "saber cativar" e que essa verdade, passa despercebida a muitos e muitos...

Chegará a altura em que vai perceber que um Homem nunca será pobre se tiver amigos...
É uma frase feita, mas é uma verdade absoluta e magnânima.

E vai perceber ainda, que "guardar" esses amigos para a vida, é um acto de inteligência, de sabedoria, de generosidade.
Terá que saber perdoar para ser perdoado, entender sem julgar, dar, mesmo que não receba proporcionalmente, saber ouvir sem precisar de concordar, ser forte para poder levantar, mas também rir desbragadamente quando a alegria chega e não há barreiras para tamanha Felicidade!!!...

Qualquer dia, daqui a algum tempo, hei-de conversar calmamente com o António.
E ele há-de dizer-me se o "meu", agora também "dele", Principezinho, lhe tocou o coraçãozinho de criança, como me tocou o meu, há muitos e muitos anos atrás...
e qualquer dia, daqui a algum tempo, quando eu já não conversar com ele, gostaria que o menino do asteróide, pudesse ser uma referência, uma lembrança doce, na sua estante de livros...

Anamar

terça-feira, 16 de junho de 2009

"A PRINCESA FEZ ANOS..."



A "princesa" fez anos...

Nasceu ontem e já lá vão cinco anos.
Vejo-me na Cruz Vermelha, noite fechada, mais de dez horas.
Vejo-me e vejo todos quantos ali estávamos a aguardar a Vitória. A Vitória e a vitória de uma nova vida a chegar, uma vida a continuar a "corrente", um elo mais a levar em frente o pouco que por cá temos nas nossas existências...
Um nome, o sangue de uma família, os valores, o que, ainda que insignificante é nosso, e julgamos importante.

Era um ano particularmente difícil para mim...era um ano em que tudo tinha virado de ponta a cabeça na minha vida, e aquela princezinha, pela primeira vez vestida de rosa, a dormir indiferente a tudo e a todos, inconsciente de tudo o que representava para cada uma das gerações que a pé firme a haviam esperado, não sonhava como eu transferia logo ali para as suas mãos, o "facho".

Era um facho de uma esperança que não explico, era o facho de uma cumplicidade que não entendo...era um archote de luz que sem saber, acabara de herdar, como se nela a minha continuidade se fizesse, como se ela fosse a minha "justiceira" de vida, como se através dela os sonhos que já não tenho tempo de sonhar, se corporizassem...

A "princesa" já cresceu.
Tem uma doçura debaixo da pele que extravasa. Tem um sorriso que lhe ilumina o rosto que transborda claridade, tem uns braços que em torno do nosso pescoço, num afago espontâneo e nunca regateado, nos prendem até ao coração...

Já gosta de todas as cores, confessou-me. Porque já as conhece e as identifica.
A "cô rosa" que sempre escolhia para as toilettes, para os laços e sapatinhos, já se tornou uma entre outras, mas os cuidados com a franja, os ganchos e as "coqueteries" bem femininas, prometem nunca serem descuradas.

Gostaria que um dia, a minha "heroína" de hoje pudesse entender a minha linguagem.
Pudesse perceber sem julgar, as minhas incompletudes e imperfeições, as minhas falhas e omissões...e soubesse que tem nas mãos de facto, a responsabilidade de que a investi no preciso momento em que pela primeira vez a tomei nos meus braços...

Anamar

quarta-feira, 10 de junho de 2009

"UM ANO JÁ LÁ VAI..."


Há um ano, por estas horas, numa lenga-lenga de meninos, aportava eu aqui...

"Um dó li tá"...a frase que escolhi para iniciar este desatino que é a narração, de quando em quando, das minhas "coisas".
Coisas minhas só, coisas de todos ou para todos, rasgar de céus, desfolhar de páginas, sorrisos, inquietações, lágrimas, solidão, afectos e desafectos....VIDA!!...

Chegámos, eu e a minha gaivota.
Chegámos no sete-estrelo, nas asas de um pirilampo...
Vínhamos de longe, abrimos as portadas, regámos as sardinheiras, olhámos o infinito, aqui na janela sobranceira aos telhados, mansarda das estrelas, berço do sol poente...

Deixei que me visitassem muitos...todos quantos os meus olhos tocaram, todos quantos o meu coração albergou, todos quantos a minha mente alcançou nesta canseira de ampulheta a "pingar".

E trezentos e sessenta e cinco dias e trezentas e sessenta e cinco noites passaram, e madrugadas se multiplicaram, e insónias se instalaram, e ânsias de gritar se afogaram e partilhas se distribuíram...me moldaram, me aninharam...me "ninaram"...até que adormecesse...

E foi assim...
Não sei se valeu a pena. As minhas "estórias" insignificantes, falam numa linguagem muito mais a preto e branco que as cores do arco-íris.
São muito mais "estórias" de desesperança do que promessas de dias felizes e telas coloridas...

Mas são "estórias" minhas, com a cor da forma como as senti, as vivi, as vi...
São "estórias" doídas na primeira pessoa, são mais contos de bruxas e "capetas" do que de fadas e duendes.
Só porque a vida, tirando a cantiga de roda, não me deixa acreditar em muito mais...

Sou uma mulher de turbilhão...Sou feita de picos e depressões, de montanhas e vales profundos. Sou do sol ou da tormenta tenebrosa. Sou do mar bravio ou das ondas "flat"...sou da escuridão ou da lua cheia...Sou de uma felicidade sem medida, ou de uma mágoa sem tamanho...

Por tudo isto, esta minha mansarda, é lugar de paixão, é lugar vivido numa plenitude meio louca ao correr do teclado do computador.
Por aqui rio, por aqui choro, aqui se me embargam as palavras, aqui se me entorpece a mente, aqui se me toldam os olhos, daqui sou prisioneira ou sou livre...quantas e quantas vezes !...

A todos os que, visível ou invisivelmente, real ou virtualmente, comigo brincaram de "um dó li tá"...comigo rodopiaram na sorte de um "sorriso colorido"...o meu maior obrigada por simplesmente existirem e terem feito a mesma "agulha" que eu, neste carril que nos vai levando...

Com todos acendo UMA VELA de aniversário e ofereço simbolicamente esta flor branca...branca como a PAZ, de que um dia aqui disse, ser talvez o maior bem que o ser humano pode possuir...

Anamar