Ontem mais um jantar da "Begónia"...
O tal jantar anual, onde se voltam a cruzar os afectos, mesmo aqueles que, por força das circunstâncias, já só se partilham pela mente e pelo coração.
Como é bom ver rostos que foram "nossos", abraçar gente que foi "nossa", dividir histórias e problemas que por isso passaram a ser de todos!
Falar de filhos, de pais, de netos...
Rir, rir muito, e ali naquela mesa, esquecer o pesado da vida, as preocupações, as inseguranças, e soltar o melhor de nós...o menino que temos cá dentro e voltarmos a ser crianças outra vez... poder degustar sem pressas, de novo, as "cerejas" !...
A animação "cultural" da festa, como os meus amigos sempre chamam às brincadeiras, rábulas ou apontamentos mais sérios para reflexão... (normalmente tocantes ), herdei-a "vitaliciamente", e como tal, esperam até ao lavar dos cestos, que sempre eu leve qualquer coisa para lhes dar...
E dou de coração...uma "fatiazinha" de mim... depois da sobremesa!
Este ano em particular, sem grande disponibilidade mental para "criar" algo mais leve e brincalhão, levei comigo um texto que considerei muito oportuno e absolutamente magistral, de Mário de Andrade, em que nas suas entrelinhas tem, penso, a tradução dos sentires de todos os que ali estavam em torno do café!
Mário de Andrade, um paulista notável ( 1893 - !945 ), foi um renomado poeta, romancista, musicólogo, historiador, crítico de arte e fotógrafo, da nossa terra-irmã.
Este seu extraordinário "BALANÇO", será certamente o balanço de nós todos, particularmente numa faixa etária, em que a vida já nos colocou alguns / muitos cabelos brancos, rugas nos rostos, cicatrizes nos corações, e nos obrigou a destrinçar mais e mais profundamente entre os nossos ainda actuais e futuros objectivos de existência, sobre o que nos vale realmente a pena, numa fase da vida em que, penso, já contemporizamos pouco, pactuamos menos ainda, fazemos poucas ou nenhumas cedências abusivas...
Numa fase em que já não nos violentamos por nada, em que já não "vendemos" a alma, por lugares, sorrisos, salamaleques, "passadeiras vermelhas", podiuns...
É a fase de total verdade e autenticidade de nós mesmos enquanto seres humanos, e sobre ela só posso dizer, que à semelhança de Mário de Andrade... para mim..... "basta o ESSENCIAL"!!...
"BALANÇO"
"Contei meus anos
e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente
do que já vivi até agora
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto como aquele menino que recebeu
uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas
percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis,
para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias
que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas,
que apesar da idade cronológica, são imaturas.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo
majestoso cargo de secretário geral do coral.
As pessoas não debatem conteúdos, apenas rótulos.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa...
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana ; que sabe rir de seus tropeços,
não se encanta com triunfos,
não se considera eleita antes da hora,
não foge de sua mortalidade.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o ESSENCIAL ! (...)"
Mário de Andrade
Anamar