quinta-feira, 21 de julho de 2011

"A CALHA"

Contei-vos ontem... a minha mãe está na fase da negação.
Nega o restinho de bem estar e "felicidade" que a vida lhe poderia ainda propor nesta recta final.
Não se ajuda, não nos ajuda... não quer nada, não se sente bem com nada... simplesmente porque acho que já não quer viver muito mais.
Matamos a cabeça à procura de soluções que pudessem minorar este estado de coisas. Não podemos levá-la a sério, senão desgastamo-nos desnecessariamente...
Afinal, ao que parece, todos os velhos, à semelhança de todas as crianças, são mais ou menos iguais.

Devem sentir-se derrotados, profundamente infelizes, desconfortáveis, ultrapassados pela própria existência.
Tudo lhes fugiu por entre os dedos : a beleza, o sonho, a esperança, a capacidade decisória, a independência de timoneiro ao leme da própria "embarcação"... a liberdade de movimentos...

Isso, se apenas falarmos da vertente psicológica, porque a acompanhar tudo isso vêm depois as queixas físicas, de uma "fatiota" que carregaram a vida toda e que está exaurida, desajustada, velha, esfarrapada e que só arrastam porque têm mesmo que arrastar, e não podem largar como a cobra larga a pele velha para renascer, no meio da savana africana!...

Penso que é um "quadro" de profunda injustiça!
É um "quadro" de uma violência atroz para o ser humano, pelo menos se este estiver ainda de posse de alguma clarividência, de alguns fogachos de lucidez...

A minha mãe não quer cão, não quer gato... tem algumas plantas com que quase a obriguei a florir a sua cozinha, para "sonhar" que ainda tem o jardim, o sol e as sardinheiras para a acompanharem... Só que a minha mãe já não sonha... e eu esqueci-me!!!

Não quer sequer abrir as janelas, como se não quisesse deixar o sol penetrar aquele rés-do-chão já por si escuro... como se não quisesse permitir que o sol profanasse o seu mundo de sombras e memórias...

Pela casa toda, há fotografias e mais fotografias, compulsivamente... dos mortos, dos vivos, dos assim-assim...
Estampazinhas de alguns santos da devoção, e claro... fotos do Gaspar!
Televisão quase não vê, as suas rendas não faz... o brio sempre existente no primor da casa, mantém-se a custo... as dores nos ossos não lhe dão tréguas, é verdade!

Um destes dias um amigo meu teve uma ideia que me pareceu muito interessante, embora duvide que ela se motive : arranjar-lhe um gravador de voz e propor-lhe que falasse aleatoriamente para ele, quando lhe apetecesse . Que para ele contasse histórias de vida, canções da sua juventude, falasse das suas vivências, dos seus, que "já foram" (como diz...), enfim, relatasse tudo o que viesse àquela cabecita branca por fora e amargurada por dentro...
Seria seguramente uma herança inestimável, que deixaria aos bisnetos, seria a sua presença continuada no tempo...
Seria a sabedoria de uma vida longa... a sabedoria dos velhos, uma verdadeira arca de tesouros preciosos!

Provavelmente o meu post, meio amargo de hoje, dá tão simplesmente voz a outras vozes que sentem, passaram ou passam por situações muito idênticas.
Afinal nesta calha que trilhamos, vamos todos indo em sequência lógica, a menos que alguém "resolva" trocar de lugar (e isso é que não é o lógico...)!
Os que vão esvaziando lugares, vão-os abrindo para os que vêm atrás... e a calha vai progredindo, vai avançando inexorável e lentamente...

É isto a VIDA... ou melhor, é isto o fim da Vida!...

Por que terá o "Arquitecto" arquitectado tudo isto tão imperfeito no fim??!!...
Por que não, podermos simplesmente ao deitar, duma forma pacífica, "soft", aconchegante, se calhar feliz... tal como fazemos ao candeeiro da cabeceira, desligar o interruptor... e adormecer profundamente no sono dos plenos, dos que consideraram que já alcançaram as suas metas... e para quem isto por aqui, se tornou penoso e já não diz grande coisa??!!...

A minha mãe faria isso... acredito!...

Anamar

4 comentários:

Unknown disse...

Um beijinho e um abraço.
Exactamente Margarida, conversando (recordando vervalmente) as recordações que mais foram assinaladas anteriormente. Perpetua a satisfação dos momentos bonitos não facilitando as 'brancas' da retrospectiva pesoal e interior.

C. Filipe c/ amizade.

Anónimo disse...

Um beijinho e força para poderes "dar" força.
Merryl.

anamar disse...

Filipe

Como fiquei feliz por me ter dado sinal de vida!

Já o procurei por tantos sítios....

Apareça...sabe onde encontrar-me. Afinal, os caminhos são sempre os mesmos!

Um beijinho ao Gui

Anamar

anamar disse...

Merryl

Obrigada pela tua amizade e solidariedade sempre incondicionais, que eu sei.

É isso que nos aquece o coração.

Aparece para tomarmos um chá aqui em minha casa... Gostava tanto!

Um beijo grande

Anamar