Será um blogue escrito com a aleatoriedade da aleatoriedade das emoções de cada momento... É de mim, para todos, mas também para ninguém... É feito de amor, com o amor que nutro pela escrita...
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
" CONFLITO DE INTERESSES "
Fiz anos, e ofereceram-me dois livros que me despertaram o interesse por lê-los, de imediato ( o que nem sempre acontece ).
Quando estou em casa, não tenho por hábito ( e devia ), sentar-me num sofá, calmamente, e passar algumas horas placidamente, a ler, como faz o comum dos mortais, sobretudo quando a vida lhe é tão desocupada quanto a minha, se calhar.
Tenho até um confortável sofá no quarto, um candeeiro de leitura à maneira, e demasiadas horas vazias ...
Mas ... tenho um espírito inquieto demais, para conseguir parar, concentrar-me e ler durante algum tempo, sem que o meu espírito indisciplinado, não se solte de mim , à minha revelia, e vá por aí fora, sei lá para onde ...
Tenho aquela coisa a que chamamos meio humoristicamente, "bichos carpinteiros", que deduzo serem os bichinhos que incessantemente atacam a madeira, e não param.
Isto, sou eu a deduzir !
Pois eu, padeço do mesmo, e por isso, a leitura de qualquer coisa, livro, revista, jornal, seja o que for, no remanso da casa, faz-me voltar atrás dezenas de vezes, para reenquadrar a ideia, para repegar a história, faz-me ir contar quantas páginas faltam para uma hipotética paragem ... enfim, um cansaço !!!
Sofro de desconcentração, deve ser ...
Resolvi então passar a ler, durante a minha ociosa hora do pequeno almoço, no café do costume, no lugar do costume, com o barulho do costume.
Parece que aí, a coisa resulta ... vá-se lá saber porquê !!!
Apenas, temos aqui, um verdadeiro conflito de interesses. Isto porque, é também a esta hora, neste "intermezzo" temporal, que escrevo a maior parte dos meus posts, aqui deste espaço, e portanto é óbvio que, se leio, não escrevo, se escrevo não leio, e isso tem-se notoriamente reflectido na minha fraca produção literária, nos últimos tempos.
Depois, acho também que ando com uma escassez de assuntos, com uma irrelevância de narrativa, com um nada , sobre que nada a dizer ...
A minha criatividade, "puftt" !... Ou então, ao longo dos tempos, já falei de tudo por aqui, e, ou me repito com alguma genialidade, ou fico insuportavelmente maçante !...
A minha realidade diária, é despida de emoções, é repetitiva, e vítima de um entediante queimar de horas, mais ou menos iguais.
Sendo assim, imaginem o que eu não daria por uma boa história, uma boa ocorrência, um bom acontecimento, que colorisse o cinzento desta ausência de adrenalina !!!
Contudo, estamos noutro Natal .
E sobre o Natal, já se disse tudo, as pessoas já disseram tudo, eu já disse tudo.
Já falei sobre como abomino a época, como anseio, se calhar anormalmente, chegar a Janeiro, como odeio visceralmente ter que obedecer a "figurinos" hipócritas, em que, por mais planos que faça anualmente, de ser esse o ano em que furo o esquema e escapo ... ou sinto-me "vendida" ... nunca alcanço tal desiderato ...
E como nunca é de facto esse "o ano" ... sinto-me vendida mesmo, porque acabo por me embrenhar na roda dentada do presentinho a este, a esta e àquele, porque tem que ser, porque sim e porque sim !...
E lá estou eu, e lá estão os portugueses todos, espantosamente, a correrem em romaria ou procissão, para as lojas, numa espécie de loucura colectiva, de alucinação de massas, a gastar, a gastar, a gastar o que não têm !!!
" É só uma coisinha " ... "não tem importância" ... "o que conta é a intenção" ...
Porra, até parece que a Troika partiu definitivamente no trenó do Pai Natal, que a senhora Lagarde não dá mais bitates por aqui, que a senhora Merckel foi pregar p'ra outra freguesia, e que de repente, nos conciliámos todos numa boa, ou nos anestesiámos num rodopio insano, contrariando o que juraríamos implementar justo este ano : não dar nada a ninguém, e um só presente por criança !
Porque, caraças, afinal a crise é brava, cair "na real" vai doer muito em Janeiro, e fazer de conta que esquecemos os cortes dolorosos nas pensões e vencimentos, o ainda maior estrangulamento de cintos, que já não têm por onde apertar, é apenas isso mesmo ... fazer de conta !
E a última vez em que eu achei graça a fazer de conta, foi quando fazia de conta que acreditava nas historinhas infantis das fadas e das bruxas ... há um ror de tempo !
E aí, não fazia mal nenhum eu acreditar !...
Mas o fenómeno "Natal", mobiliza mesmo, temos que convir.
Com o mesmo esbanjamento ou talvez não, com as mesmas atitudes perdulariamente inconscientes ou não, mergulhamos, empurrados por uma qualquer força inexplicável e materialmente absurda, e nem com crises aterradoras no país e no mundo, nem com a devastação a alastrar na sociedade, nem com as pessoas a serem atiradas diariamente, mais e mais, para as ruas, nem com crianças que chegam aos hospitais, doentes ... por fome, nem com filhos a viverem à custa das pensões dos pais ( que apenas já só sobrevivem ), nem com os velhotes a racionarem os medicamentos nas farmácias, nem com o desemprego a afundar e a desestruturar lares e famílias ... nem com tudo isto, conseguimos esquecer o folclore, o supérfluo, o "plastificado", o desnecessário, o excesso insano, o exagero absurdo, o consumismo desembestado, e valorizar o que deveria ser o verdadeiro, o autêntico, o genuíno espírito de Natal, e a essência dos seus reais valores !!!...
Realmente, não temos emenda possível !!!
Ou então, gerámos uma qualquer alteração biológica, um qualquer antídoto milagroso, inexpicável, que nos retirou os sentimentos, e nos robotizou simplesmente, para a Vida à nossa volta !!!...
Anamar
sábado, 7 de dezembro de 2013
" AQUELA HISTÓRIA "
Há mil histórias iguais, mas aquela história, era "aquela" história !...
Do outro lado da rua, sentado na calçada, com as pernas cruzadas e a cabeça entre as mãos, estava aquele jovem.
Não olhava nada, nem ninguém, não erguia sequer a cabeça à passagem dos transeuntes, que o ignoravam e seguiam apressados.
Era magro, pobremente vestido, e tinha uma mochila nas costas.
A seu lado, sobre a calçada, estavam algumas moedas, ( poucas ), a maioria, de cêntimos, e pelo menos uma tablete de chocolate ( não sei se teria mais ... ), vi depois.
Eu passava em frente, do outro lado. Olhei, e pareceu-me alguém que estivesse a sentir-se mal, que não estivesse bem, e para não cair, talvez se tivesse sentado ali, naquele sítio.
À distância, só vi um jovem esquálido, com as mãos a cobrirem-lhe o rosto ... desalentado, talvez em todos os locais do mundo, menos naquele ... quem saberia ?...
Hesitei. Fazer o quê ? Continuar o meu caminho ?
Mas ... pode ser alguém a precisar de ajuda, de socorro, alguém subitamente doente ...
E resolvi atravessar a rua.
Ao chegar junto dele, percebi que afinal chorava.
E nem à minha aproximação, levantou a cabeça.
Quando lhe perguntei se estava a sentir-se bem, se não precisava de nada, ergueu os olhos para mim, e disse : " Não, minha senhora. Apenas estou humilhado, muito humilhado ... De vez em quando, tem que se chorar para aliviar a pressão, senão, sai-se por aí a cometer uma desgraça " !...
Era brasileiro, talvez vinte e poucos anos.
Disse-me que lhe custava muito, esmolar, porque não era dinheiro que queria, mas sim um trabalho que pedia. Ele queria um trabalho, porque o dinheiro, por muito que lhe dessem, gasta-se, e um trabalho garantir-lhe-ia a sobrevivência.
Estava há quatro meses em Portugal, onde demandara só com a mãe, em busca da "vida" que a sua terra lhes negara.
Era neto de portugueses, embora já não tivesse família por cá.
Viviam na rua, segundo ele, e era maltratado e humilhado frequentemente, por aqueles a quem pedia trabalho, ou a quem tentava vender as tabletes de chocolate.
E dizia-me : " Não é preciso isso, pois não ?... Uma pessoa tem que chorar, para aliviar a pressão interior "!...
Tentei dizer-lhe meia dúzia de "tretas" de circunstância, daquelas coisas que se dizem sem convicção, que não servem para nada, que nos constrangem, apertam o coração, e de que temos a perfeita noção da irrelevância.
De qualquer forma, o Douglas ( era o seu nome ), estava emocionado porque alguém parara perto, e se preocupara com ele.
Dizia que ninguém tinha um minuto sequer, para o ouvir ...
Olhou-me e perguntou : " Você é psicóloga "?
Sorri e retorqui-lhe : " Não ! Eu fui professora ... e sou mãe "!...
"Ah ... por isso você me "viu", e teve tempo para me escutar "!...
Era quase uma criança que eu tinha à minha frente. Uma criança sem sonhos, sem esperança, sem fé ...
Uma criança derrotada, a quem tinham roubado, cedo demais, a inocência !...
Dei-lhe algum dinheiro.
O ser humano sempre tenta resolver tudo com dinheiro, não é ?
Dar-lhe-ia muito mais, se pudesse ... dar-lhe-ia um trabalho, dar-lhe-ia esperança, devolver-lhe-ia um sorriso ao rosto macerado pelo desespero, dar-lhe-ia colo e embalo ...
Assim, disse-lhe apenas : "Não desista, lute, não chore perto da sua mãe, mas sobretudo, NUNCA se deixe humilhar ! NUNCA aceite da parte de ninguém, um mau trato gratuito ! Nenhum ser humano merece isso !
Posso dar-lhe um beijo" ?
Ele deixou-se beijar na testa.
Perguntou o meu nome, e sorriu, por ser o mesmo de uma sua bisavó.
Esboçou uma expressão triste e magoada, e disse-me : " Posso dar-lhe também um beijo na testa ?"
"Claro Douglas, claro que sim, e sobretudo não esqueça o que eu lhe disse hoje, aqui ! Boa sorte, e não desista nunca !
A juventude e o coração ninguém lhe pode roubar "!...
Acenei-lhe, e em jeito de agradecimento pelo que lhe dera, ainda me disse : " Fique com isto !" - e estendeu-me o chocolate, que tinha para vender...
"Não ... É seu "!...
Atravessei a rua de novo, agora em sentido contrário, sem olhar mais para trás.
Não consegui.
Fiquei esvaída de forças, senti-me a mais impotente das criaturas viventes, fiquei com o estômago embrulhado, fiquei com um aperto no peito, e uma escuridão atroz na alma ... que nem consigo descrever ...
Há mil histórias iguais, mas aquela história, foi "aquela" história !!!...
Anamar
" O TEMPO CERTO "
Não gosto de frases feitas, embora reconheça que frases feitas são feitas exactamente porque têm fundamentos às vezes ancestrais, que as sustentam.
Parecem óbvias e evidentes essas frases. Quando as lemos, sentimos que não nos acrescentam nada de novo.
Às vezes, apenas nos fazem reflectir em verdades tão óbvias, que já nem damos por elas ou as valorizamos, ou então, confirmam-nos que não estamos sozinhos, nesta postura ou maneira de pensar, na vida.
Uma das frases que por aí circulam, uma das tais frases que não nos subtraem nem adicionam nada, diz simplesmente que "cada coisa tem o seu tempo para acontecer " !
Esta afirmação parece deixar entregue a uma completa aleatoriedade temporal, qualquer acontecimento da nossa existência.
Esta afirmação, parece dizer-nos que podemos degladiar-nos aqui ou ali, insurgirmo-nos aqui ou ali, contra destinos, futuros indistintos ou vontades próprias. Parece desincentivar lutas titânicas para contrariar um determinado percurso, que nunca nada acontecerá, antes de chegar a sua altura própria, a sua maturidade de acontecer, a conjugação de factores, que só então, naquele preciso momento, convergiram, para que isto ou aquilo, ocorresse, sempre à nossa revelia, contudo !
Esta conclusão transmite-me uma sensação insegura e alarmante, de um determinismo na vida, incontornável pelo agente da mesma.
Parece que, que rememos nós para onde remarmos, tudo só acontece, se tiver e quando tiver que acontecer, independentemente das nossas urgências ou vontades, das nossas capacidades para alterar o rumo das águas ...
Obviamente, este pensamento contraria a convicção dos mais pragmáticos e racionais, que advogam que o Homem é, o que ele fizer da sua vida . É ele que delineia e decide o seu próprio "trilho", é ele que, com o seu livre arbítrio, sempre decide os rumos, faz as escolhas, marca o compasso.
É ele que decide para onde vai, por que vai e quando vai !...
Isto não deixa de ser engraçado, porque enquanto desenvolvo estes raciocínios, ou analiso estas reflexões, sinto não obstante, que nitidamente, na minha vida, tive, duma forma clara e sem erro, momentos em que, e só então, poderia ter ocorrido determinado acontecimento. Nem antes, nem depois !
Antes, porque não estava capacitada para o assumir. Depois, porque despropositadamente ele se transformaria em algo serôdio e "requentado", sem significado já de existir, sem eficácia ou gratificação !...
Há momentos claros e nítidos, em que largamos para trás, sem dor, ou com menos dor, isto ou aquilo, há momentos em que escolhemos caminhos diferentes, por esta ou aquela razão, às vezes sem divisarmos de imediato o porquê ... e não estaríamos preparados para o fazer, noutra qualquer outra ocasião.
Esses momentos advêm de um "clique" qualquer interior, não têm uma razão lógica, muitas vezes, para acontecerem, mas percebe-se que têm que ocorrer, justo naquele "timing", e não noutro !...
É quando percebemos, que embora queiramos muitas vezes dar um "jeitinho", ou um empurrãozinho no destino que trilhamos, fica imperioso e impõe-se-nos a tal aleatoriedade, o tal "tempo certo" de acontecer, o tal sinal dos tempos ... na vida, no "eu" interior de cada um de nós, e que não há quem os contenha ou altere !!!...
Anamar
domingo, 1 de dezembro de 2013
" O IMPROVÁVEL ... "
As gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado, a falésia desenha-se fantasmagórica na linha do horizonte, lá longe, no entremeio da ramagem. Está uma temperatura atmosférica demasiado baixa.
Contei-as ... uma, duas, três, em formação rectilínea, de asas esticadas frente à vidraça, que não convidava a que se entreabrisse.
Há de certeza tempestade no mar, porque elas voam determinadas, em busca de comida, e não em espreguiçamento lúdico, como gostam de fazer, aproveitando os golpes da aragem.
Chove, chove aquela chuva miudinha, que por indefinição, se torna irritante.
Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...
É Outono, mas lá fora, apenas algumas das árvores circundantes daquela casinha, com uma porta e duas janelas, de bordadura azul e cortinas de renda no postigo, começavam a amarelecer.
O verde ainda predominava por ali. Afinal, o terreno não regateava a água que escorria das encostas.
Da escrivaninha envelhecida e bichada, da casa dos avós, encostada ao parapeito da janela ( para que o jarro antigo mantivesse bem vivas as flores frescas, que sempre fazia questão em colocar-lhe, mercê da luz que por ali penetrava ), e onde o candeeiro aceso, sempre dava um ar acolhedor e intimista àquela sala, vista de fora ...
da escrivaninha envelhecida, dizia, podia ver a cancela atamancada de velha, com uma aldraba a pedir conserto, que rangia nas dobradiças, aos abanões implacáveis do vento, podia ver o caminho que se desenhava adiante, e lá longe, como disse, a falésia rochosa sobranceira às águas zangadas do Atlântico ... e não mais ...
Aquela casa fora a concretização dum sonho muito recuado, quando o cabelo ainda não lhe embranquecera, o xailinho de lã pelas costas ainda era dispensável, e os óculos de leitura, ainda não precisavam de andar ao peito.
Fora a busca de uma felicidade e de uma paz, que acreditara encontrar na simplicidade dum lugar de verduras não presumidas, de árvores espontâneas, de algumas flores ( não muitas ), com que resolvera brincar de jardim inventado, e de meia dúzia de gatos seus, meio a meio com a natureza.
Todos amigos, todos matreiros, todos espevitados, ronronantes e preguiçosos à lareira.
Um preto, dois amarelos, um "querubim" de olhos invejavelmente azuis ... e mais uns malhados, que surgiam do nada, na hora da janta, e que nos frios e intempéries de Inverno, como hoje, apareciam como pedintes, a fazer-se ao resguardo do conforto do lar ...
À volta daquela casa de brincar, havia o silêncio, aquela angústia doce de recordações nunca arquivadas, o chilreio franco das aves veranis, ou o piado das corujas lá longe, na serra.
No seu interior, havia silêncios cúmplices, de serões frente a bons braseiros, com mantinhas de lã nas pernas, e boas leituras partilhadas, mantidos na certeza de que outro coração, outra mente, outro colo e outros braços, estavam de aconchego, sempre presentes ...
Havia a verdade que só as madeiras velhas garantem, as loiças gatadas comprovam, as braçadas de flores campestres e secas, espalhadas pelos jarros, em coroas dependuradas nas paredes, ou em cestas sobre os arcazes velhos, as fotografias a sépia, ou a preto e branco, despretensiosamente relembram ...
Havia a genuinidade do que é simples e autêntico ... afinal, como o amor que tão curto no tempo, ali foi vivido !...
Àquela casa, batiam-se palmas a anunciar a chegada, o carteiro trazia de quando em quando, notícias dos demasiado ausentes, porque as lembranças dos sempre presentes, já só existiam nos corações...
E já passara tanto tempo !...
Hoje, as gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado ... e nem a falésia se distingue lá longe.
Está frio, chove, há solidão, saudade, silêncio...demasiado silêncio ... a única herança sobrante !
Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...
E uma lágrima rolou, quando olhei uma outra vez, aquele papel amarelecido e velho, que os anos adormeceram, que ficara religiosamente sobre a escrivaninha bichada, e onde se escrevera em letra miúda, o epílogo daquela frase iniciada por mim, há que anos ... e interrompida pelo destino ... " e no entanto eu amo-te perdidamente e tenho saudades loucas tuas, perco-me nos meus sonhos contigo ... sempre !..."
" Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto, é realidade ".
Curta, esta nossa realidade ... Nem sei se chegou a ser sonho !!!...
Anamar
terça-feira, 19 de novembro de 2013
" DEIXANDO VOAR O PENSAMENTO ... "
O tempo virou de vez. O sol faz negaças no meio de nuvens persistentes, e não consegue ser convincente, até porque a temperatura baixou drasticamente. Afinal, já neva na Estrela ...
As castanhas já se assam nas esquinas das ruas, e o seu calorzinho, nos cartuchos de jornal, não só nos aquece as mãos, como também nos aquece a alma, já que aqui na cidade, não temos o privilégio de sentir o aconchegante cheirinho das lareiras acesas, que os meios rurais nos oferecem, e que tão gratificante é ao coração.
Adoro uma lareira.
Adoro passar tempos perdidos, olhando apenas o bruxulear das chamas, cutucando as brasas, até que a última se extinga.
E não deixa de ser engraçado, que essa seja a recordação mais grata, que tenho da Beira, de há muitos anos atrás, na casa que então era de família.
O frio gélido desta época do ano, beirando o Natal, cá fora, o calor confortante do lume, aceso desde manhã, e que ardia até toda a gente se recolher, uma sala de pedra e madeira, na meia obscuridade de um só candeeiro de mesa, aceso, e um silêncio e um recolhimento tão intimistas, tão doces, tão pacificadores !...
E ali ficava eu ... Eu e eu, que foi a pessoa com quem sempre tive encontro marcado, já então ...
E punha mais um tronco, e revirava os que já ardiam, e por fim, espalhava a cinza, para que as últimas brasas acesas, dessem o derradeiro calor da noite.
Às vezes só isso. Nada mais ...
Às vezes não lia, não via televisão, não ouvia música, que não a do crepitar da lenha na fogueira ... às vezes, muitas vezes, apenas pensava, pensava muito, sentindo claramente uma incompletude de vida, de sonhos cortados a meio, um vazio de alma, uma ausência de direcção, de rumo, como barco de leme quebrado, e velas sem vento ...
Não sei se ali delineei conscientemente, o que viria a ser a minha vida anos mais tarde.
Não sei se ali percebi, que um dia diria adeus àquela sala de madeira e pedra, de móveis antigos, de louça de outras gerações, de relógio de pé alto e pêndulo, que nunca deu horas, de peças escolhidas por mim, uma a uma, ao longo dos tempos.
Não sei sequer se sonhei todo o percurso que viria a ser a minha vida, as curvas e contracurvas, os caminhos de saídas estreitas e difíceis de encontrar, os becos, as veredas que pareciam não ter horizonte lá ao fundo, ou também os momentos de paz junto ao mar, de descanso junto de uma fonte, de sombra sob uma copa frondosa.
Não sonhei ... seguramente. Não poderia !...
Aquela sala era o coração daquela casa, e aquela lareira, o pulsar desse coração.
Era uma réplica muito longínqua, da que existira em casa dos meus avós, na minha meninice.
Essa, então, como todas as lareiras a sério no Alentejo, era no chão, mesmo, na tijoleira de barro cozido, e ocupava o fundo da enorme cozinha, de parede a parede.
Lembro-me que os madeiros com que o meu avô a acendia, vinham a rebolar pelo quintal fora, porque ninguém podia com eles.
A casa de pedra e madeira já não é minha, mas lá, ficou enterrado para sempre, um pedaço do meu coração.
Ele está em cada peça sobre os móveis, em cada braçada de flores do campo, secas, nos jarros de loiça gatados, em cada fotografia das minhas filhas, quando crianças, nas molduras espalhadas ... em cada silêncio, em cada sombra, ou até em cada rajada do vento cá fora, soprando desabrido, do lado do rio.
Nada disso me pode ser sonegado, mesmo que nada já exista como eu deixei naquele dia, em que não sabia sequer, que estava a deixar ...
Porque tudo isso eu amei e tactuei na minha mente, porque tudo isso eu sonhei, e o sonho é propriedade do Homem. Nele, ninguém interfere, ele, ninguém apaga, ninguém destrói ... porque é seu, só seu !!!...
Suponho que não gostaria de lá voltar, porque ninguém, afinal, faz voltar o tempo !
Há filmes que vemos uma só vez na vida, e que vamos recordar sempre, longinquamente, como algo doce que nos marcou, de que não esqueceremos sequer, pormenores.
Apenas, são imagens a esbaterem-se, a fugirem-nos da mente, à medida que a Vida flui, à medida que o tempo vai passando a borracha sobre elas, e depois fica assim ... uma sala obscurecida, uma luz difusa, uma lareira a extinguir-se, e um silêncio quente a embalar a última cena ...
Anamar
A vida é um incêndio, nela dançamos salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam, cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida, na própria luz consumida...
sábado, 16 de novembro de 2013
" SAUDADE "
Ando a escrever pouco, ando a sonhar pouco, ando a viver pouco demais ... ando a sentir a saudade que me atormenta ...
Saudade do sonho, saudade do amor, saudade até da dor que o amor deixa cá dentro ...
Ando a sorrir pouco, a acreditar pouco, a não olhar o sol a pôr-se, com aquela saudade doce que ele nos traz, de outros pôres-de-sol ...
Não contemplo mais a lua, lugar de encontro de todos os olhos, de todos os amantes do Mundo ...
Não danço mais na chuva, a aspergir-me com a sua carícia ... Não escuto mais o mar, que levou para longe a minha canção ...
O vento que passa, não me acaricia como outrora ... Também ele não me reconhece mais ...
Deixei de saber cheirar o aroma das flores, o cheiro da terra molhada, depois de uma chuva abençoada ...
Não me enterneço mais, com os caracóis louros de uma cabeça de criança ...
... perdi-me de mim, e sofro já com a saudade de não me encontrar por aí, pelas esquinas da Vida !...
Deixo-vos um dos "magos" da sensibilidade e da escrita ... o sempre imortal Pablo Neruda.
Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
(Pablo Neruda)
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
" ONTEM FIZ ANOS ... "
Ontem fiz anos, que é uma coisa que eu já não fazia p'ra lá de tempo ...
Mas ontem rendi-me, que remédio ! E pensei que tenho que os apagar, não no Bilhete de Identidade, mas aqui dentro dos miolos, e ponto final !
Saí para a rua.
Estava um sol espectacular, envolventemente quente. E fui-o aproveitando, enquanto caminhava.
Passei por debaixo de um jacarandá ( onde passo todos os dias ), neste momento sem floração, mas com uma copa farfalhuda, de um verde intenso e luminoso.
Até fiz uma pausa para olhar a cabeleira frondosa, por cima de mim, como se fosse a primeira vez que o via ...
Que raio tinha o jacarandá ontem ?!...
E pensei, que apesar dos pesares, sempre é melhor estar cá deste lado, onde o sol me aquece e um jacarandá me deslumbra ...
Depois, tinha a minha mãe à minha espera para o almoço. Com quase 93 anos, havia-se levantado às quatro da manhã, para, no seu ritmo, conseguir ter prontos a horas, uma assadeira de carne com batatinhas no forno, salada, fruta, e uma taça de farófias, que ela sabe ser um dos meus doces preferidos.
Mesa posta, com toalha bordada, e uma alegria que a transcendia.
Pedira-me muito, na véspera, que viesse almoçar com ela ( a velha história de poder ser a última vez ... ) ; a neta mais velha, em quarenta minutos que tinha para almoço conseguiu por-se cá, a mais nova, que trabalhava até mais tarde, veio depois, para um cafezinho que fomos tomar as três.
Enfim, tive ali, junto de mim, os meus esteios na vida, neste momento : a minha mãe e as minhas filhas ... os afectos reais mais próximos, que me sobram ... e senti-me sortuda por isso, muito sortuda e agradecida à Vida, sem dúvida ...
O dia correu no ritmo de sempre, apenas perturbado por alguns telefonemas ou mensagens de amigos, que nunca nos esquecem, mesmo de longe, e nos aquecem o coração.
Chegou a noite e deitei-me cedo. Li um pouco de um dos livros que me haviam oferecido, e apaguei a luz, porque o sono me pesava nas pálpebras.
Lá pelas 2 h da manhã, fui brindada com uma insónia de horas, daquelas que costumam deixar-nos de cabelos em pé, e uma irritação que nos faz acordar insuportáveis, na manhã seguinte.
Espantosamente, contudo, não me incomodei com as horas que passei, de olho fechado mas de alma arregalada, na escuridão do quarto, sem ousar mexer-me, porque o Chico e o Jonas dormiam a sono solto, e eu não queria perturbá-los.
Nem sequer "encroquetei" muito na cama, porque me sentia cómoda, repousada, e aninhada, e deixei fluir simplesmente o pensamento ...
Foi então a vez de rever a minha vida, como se desfolhasse um livro.
Foi como se, numa sala, assistisse a uma película onde eu era a protagonista, e onde se narrava tudo, tudinho ...
O "tudo", que obviamente só eu conheço.
Assisti a cada período, a cada fase, a cada capítulo ... E as folhas iam sendo viradas ...
Percebi que em cada circustância, tudo foi assim, porque tinha que o ser.
Percebi que agi desta ou daquela forma, porque esse era o sentido em que acreditei, nesse instante.
Compreendi sem revolta ou raiva, que me cruzei com muita, muita gente que ficou para trás, e me deixou seguir, a quem agradeço em silêncio e sem que o suspeitem, porque ajudaram a dar significância, razão e cor, à minha história ...
Revi todos os que perdi, e por que os perdi.
Não me penalizei ou martirizei, por ter acontecido, e ter tido apenas o seu tempo. Isso significa que eu não sabia fazer de outra forma, naquele momento ...
Percebi claramente o que procurava de cada vez, o que alcancei, e o que não.
Olhei de frente, a minha verdade em cada hora da vida, e corajosamente encarei o bom, o menos bom, e o mau ...
E senti-me em paz, felizmente. Felizmente senti-me sem arrependimentos ou dúvidas, o que me tranquilizou e foi muito gratificante.
Desfilaram-me rostos, acontecimentos, frases largadas, palavras ditas, sonhos sonhados, a povoarem as nossas existências. Risos, choros, mágoas, muitas mágoas, mas alegrias ... muitas alegrias também ...
Penso que fiz as pazes comigo mesma, pois assumi e percebi que a saudade e a nostalgia que sinto de pessoas, coisas ... de vida, que ficou para trás, é normal, faz parte de um processo de crescimento, e só pode fazer-me seguir em frente, liberta finalmente, para viver o que ainda me faltar e estiver destinado !...
O coração não se acelerou ... Batia no ritmo compassado de sempre, porque o que eu vivia naqueles momentos, era sobretudo uma quietude, uma satisfação interior, e a paz que habita os espíritos que têm a exacta percepção de que, por cada momento que se viveu, terão feito tudo o que era possível, e só o que lhes era devido e estava ao seu acance ...
E como diz um amigo meu, quando se vivencia essa sensação, e se afere esse balanço, o único sentimento que nos pode assaltar, é o de plenitude e tranquilidade ...
E então sim, podemos repousar a cabeça na almofada, sem sobressaltos ou angústias ... porque o merecemos !
Foi o que eu fiz, e dormi até que a madrugada já se acendia pelo quarto adentro, e eu já tinha completado mais um ano de vida !!!...
Anamar
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
" A MATEMÁTICA DA VIDA "
A alegria a dois, multiplica-se. A tristeza a dois, divide-se ...
Há frases e pensamentos que se esgotam em si mesmos. Este é um deles. Não há nada que se acrescente, ou que se retire, a esta matemática da Vida !
É desnecessário, está tudo dito, todos sabemos que é assim !
O Homem é um animal gregário, e ninguém pode ser feliz sozinho.
As alegrias só são plenas se forem partilhadas com cumplicidade, e as tristezas só se nos tornam mais leves, se houver uns braços que nos aconcheguem, ao suportá-las .
Até os seres mais solitários, aqueles que endureceram, muitas vezes mercê dos atropelos da vida, se rendem, ultrapassadas que sejam as "firewalls" dos afectos, como diz um amigo meu.
E quantas vezes redescobrem capacidades afectivas em que não acreditavam, aptidão para o reviver de emoções, que por esquecidas já, julgavam inexistentes, e de que se julgavam imunizados.
E a vida vai passando, e vamo-nos degladiando sem justificação frequentemente, vamo-nos desgastando por "nadas" que se tornam "tudos" determinantes e decisivos ... vamo-nos cansando, amargurando, esquecendo o sorriso, esquecendo o quão reconfortante é ao coração, um simples silêncio frente ao mar, enquanto o sol desce lá longe e nos abraça ... vamos esquecendo o sabor dos aromas da serra, o cheiro da lareira acesa, da terra molhada, ou a lenga-lenga do mar açoitando os rochedos ...
Vamos mesmo esquecendo, como hoje, S.Martinho, meia dúzia de castanhas e um copo de água-pé, poderiam constituir um magusto dos deuses, se o partilhássemos, se o saboreássemos juntos ...
Em suma ... vamos perdendo a vida, vamo-la deixando escoar por entre os dedos, vamos abafando as ilusões, até que um dia já não temos idade ou saúde para as construir, e até os sonhos há muito nos terão deixado ...
Vamos desperdiçando os tempos, e nunca percebemos que " o mal de quem apaga as estrelas, é não lembrar de que não é com candeias que se ilumina a Vida " !!!...
Anamar
sábado, 9 de novembro de 2013
" A LARISSA "
Olhei o relógio, e concluí que para sábado, isto era uma verdadeira madrugada, e constatei portanto também, que era sábado, porque me perco no tempo.
Perguntei-me que raio de felicidade terá alguém ( casal aposentado, até de filhos ), estendendo roupa às oito da manhã, num sábado ?!...
Não fui fadada p'ra prendas domésticas. Aliás, para mim, são um verdadeiro tormento.
A minha mãe poupou-me de as fazer, porque afinal, "eu tinha que estudar" ...
Casei, e como trabalhava e economicamente era comportável, sempre tive empregada. A chamada mulher a dias, como se lembram.
Passaram várias pela minha casa, porque também sabem por certo, que elas só são boas profissionais, nos primeiros tempos.
Depois, terreno conquistado, confiança ganha, começam a fazer-se de "mongas", a enredar para o tempo passar rápido, a passar ao lado, etc, etc ... todos esses artifícios, fingindo que limpam mas não limpam, partem coisas e não dizem, e por aí fora ...
Neste momento, porque as condições económicas não suportam mais, e porque estou só, tenho a Larissa, que já está comigo para mais de doze anos.
A Larissa é uma ucraniana, que com marido e filho se sediou em Portugal há já largos anos, onde reorganizou a sua vida de emigrante, muito sofrida, por sinal.
A Larissa é um doce de pessoa. Licenciada em Química, o marido Engenheiro Civil, trabalham respectiamente como empregada doméstica e na construção, em lugares subalternos, obviamente.
O filho está a terminar uma licenciatura no Instituto Superior Técnico, e é um aluno brilhante e muito esforçado.
Humilde, dedicada, honestíssima, cumpridora, disponível, é uma pessoa de uma dedicação e de uma educação extremas.
Como foi criada sem mãe, por uma avó adoptiva, revê na minha mãe, a avó que já a deixou há muito, e que ela tratou até que partiu, e tem uma doçura particular e um desvelo enternecedores, por ela.
Neste momento, a Larissa trabalha também em casa da minha filha mais velha, e está totalmente assimilada pela nossa família.
Ela já não é a empregada doméstica, como tantas que por aqui passaram, mas é uma amiga, uma familiar minha.
Comigo conversa todos os problemas que a atormentam, no seu português atravessado, porque continua a sentir-se muito sozinha, num país estranho, longe da terra onde cresceu, e onde deixou o filho mais velho.
Comigo chora muitas vezes, comigo partilha as tradições e os costumes do seu país, da terra onde viveu, da religião ortodoxa em que foi criada.
A mim conta todo o seu passado difícil, na Ucrânia ... e fala do pai muito idoso e doente, a quem não pode dar assistência ...
Claro que hoje, a Larissa, à semelhança de todas, deixou de ser a empregada de excelência que era, eu deixei de lhe chamar a atenção para omissões ou imperfeições no seu trabalho, porque a nossa relação atingiu um estatuto completamente diferente.
Hoje deixei de ter uma tão "boa" empregada, uma tão "boa" profissional, mas ganhei uma boa amiga, uma confidente muitas vezes, alguém totalmente integrado na minha família, alguém com quem posso contar em qualquer circunstância, porque sei que não me faltará ...
... e isso não se compra, não se paga, não tem preço ... isso, é um privilégio na Vida !!!
Anamar
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
" O FIM DA LINHA "
11,27 h da manhã ... quase da tarde, afinal.
Uma penumbra de madrugada, no quarto, com as persianas descidas, por forma a coar a luz do dia, que na realidade estava escuro, vi depois.
Aninhei o corpo despido, na carícia da roupa da cama, como se tivesse uma noite inteira ainda, para continuar a dormir, e senti-me violentada pelos números luminosos do relógio da cabeceira, que me arrancavam a um ninho protector, do qual não queria sair.
Ando a levantar-me cada vez mais tarde, como se procurasse adiar mais e mais, o confronto com o dia, o encarar da vida.
Ando a tornar cada vez mais curto o dia, e cada vez mais longa a noite, ou seja, ando a reduzir a existência a metade, num desapego e num desinteresse assustadores.
Aliás, neste momento, o maior conforto e gratificação da minha vivência diária, uma espécie de presente que me concedo, experimento-os quando a casa ja se aquietou, o computador já se desligou, os gatos já dormem, e já deitada, frente à televisão, assisto, de mente vazia, ao desfilar de imagens em programas da National Geographic, que me tranquilizam, fazem viajar e sonhar.
Transmitem-me libertação e paz, e alienam-me por tempos, da realidade tão insatisfatória, cansativa, desinteressante e castigadora, que vivemos nestes tempos de purgatório, que é a nossa vida actualmente.
Porque o dia que começa na manhã seguinte, é de facto um castigo, uma espécie de pena que sou obrigada a encarar e a cumprir, sem interesse, objectivo ou meta.
Quem me conhece de perto, dirá que não tenho razões objectivas para me sentir neste martírio ...
Ainda não tenho !...
Isto, se pensarmos no contexto em que mergulhamos, e que neste momento, o cidadão comum vivencia, de uma forma geral.
Não referindo já, as classes mais desfavorecidas, em que os dramas humanos grassam e se multiplicam de dia para dia, sem fim à vista ...
É suposto neste momento, avaliar-se quem tem perfil de resistente e quem não.
É suposto e imperioso, as pessoas serem fortes, lutadoras, corajosas e heróicas.
É suposto estar a criar-se uma élite de seres que, ou se insensibilizam, endurecem, indiferentizam e criam carapaças de defesa, e sabe-se lá como, vão em frente, sobrevivem ... ou sucumbem, desistem, atolam-se e são trucidados !
Está a cumprir-se uma espécie de triagem ou depuração, na raça humana.
Como Hitler tentou fazer, na selecção dos seres superiores, no apuramento da raça, dos que "mereciam" viver e dos que não, assim neste momento, a sociedade atravessa um processo semelhante.
A realidade social, em fim de linha, actualmete está a deixar pelo caminho aqueles que ficam na berma da estrada e já não conseguem caminhar, os mais débeis psicologicamente, os mais idealistas, utópicos e sonhadores ; os que têm menos armas ou defesas : os velhos, os socialmente excluídos ( que cada dia são mais ), os que não têm robustez psicológica ... os tais que não são heróis, de todo !...
Eu sei que "dos fracos não reza a História". Mas também sei que a resistência estrutural do Homem, em termos psicoógicos, é algo que o transcende.
Não se compra, não se cria, não é exercitável, independe da racionalidade e da vontade de cada um.
E também sei que os super-heróis só existem na ficção, e que o mais difícil mesmo, é acreditar, por cada manhã em que acordamos, que um dia de chuva pode afinal ser um dia de sol ...
E por tudo isso, ando a acordar cada vez mais tarde !!!...
Anamar
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
" ELE HÁ COISAS !... "
O sol resolveu aparecer. Nunca o S.Martinho nos falta ... e estamos quase lá.
Acordei, relancei os ohos pelo quarto. Prateleiras plenas de livros, gavetas plenas de coisas. As que prestam e as que já não. As que ainda se justificam, e as que nem por isso.
Lembrei a arrecadação, transformada em depósito de antiguidades. Antiguidades no mau sentido.
Desde uma arca cheia de papéis e cadernos, com os primeiros rabiscos das minhas filhas, os primeiros desenhos nos colégios, em classes infantis remotas, a livros escolares ultrapassados, a testes realizados por elas e creio mesmo que ainda por mim, quando aluna ( !!! ) ... tudo lá está com uma intenção meritória, em que acreditei piamente : passar calmas tardes, a rever registo por registo, redacção por redacção, desenho por desenho ... ( dos tempos em que as pessoas eram maiores que as casas e as árvores, os sóis tinham olhos e boca, e junto às figuras se escrevia "mamã" e "papá", como legenda do desenhado ... )
As gaiolas ferrugentas, dos canários e periquitos, da época em que pretendi transformar uma varanda, em viveiro romântico de passarinhos, de todas as cores imaginárias, para que com os trinados e chilreios, me fizessem sonhar que o meu sétimo andar era um qualquer recanto de uma mata frondosa, onde talvez eu gostasse de viver ... E para que as minhas filhas assistissem à nidificação, acasalamento e nascimento de mais canários e mais periquitos, e aprendessem a amar e a respeitar a Natureza, deslumbrando-se com os seus ciclos ... também lá estão ... sem préstimo !
A mala de porão, cheia até ao topo, de bonecos e peluches, que lhes atravessaram a infância, as loicinhas e os pin-pons, os legos, os alfabetos e os cubos com letras e números, motivadores das primeiras palavras e contas, que eu jurara abrir um dia, para os netos que viessem ...
E esses netos, já têm todos, de seis anos para cima, e o recheio da mala continua adormecido e inviolado ...
Também lá estão as colecções de borrachinhas, com as mais variadas e engraçadas formas, as cassetes de música dos doze, treze anos, cujos intérpretes já se perderam no tempo, não falando dos vinis de trinta e três rotações, com as canções de roda, da escolinha, que não voltaram a animar o gira-discos, também ele já ultrapassado ...
Os VHS de viagens, registando momentos felizes, eventos familiares, do tempo em que ainda havia família no sentido estrito do termo, testemunhos de risos e gargalhadas, mas também de "àpartes", que hoje nos fazem sorrir ...
Rostos que ainda existem, bem diferentes, bem marcados pela vida, bem menos iluminados pela esperança ... e rostos que já partiram, já nos deixaram, e que só estão num lugarzinho dentro do peito de cada um de nós ... também repousam por aqui, através dos anos ...
Enfim, não pararia de lembrar, de revisionar todo o espólio insano acumulado, guardado religiosamente, por isto e por aquilo, de que não conseguimos separar-nos afectivamente, e cujo valor se prende quase só afinal, a um desejo louco e inconsciente, de não soltarmos o passado, de podermos lá regressar a qualquer preço, de fazermos rodar o tempo e rodarmos com ele ...
Prende-se quase só, ao saudosismo efémero da juventude que ficou ... não nos iludamos !!!...
Resolvi levantar-me.
Arrepiei-me ao pensar, que quando um dia eu partir também, alguém terá mesmo de desprender tudo isto, soltar definitivamente todo este repositório de memórias.
Mas talvez seja então mais fácil, porque já serão memórias mais distantes, com menor significância ou valor ...
Ele há coisas !...
Que raio de forma enviesada de começar o dia !!!...
Anamar
sábado, 19 de outubro de 2013
" RED OCTOBER "
Tenho um "parti pris" com as boninas.
Decidi para mim, que as boninas são uma espécie de miosótis, tipo campainhas dependuradas em fileira pelos galhos.
Depois, disseram-me que boninas eram uma criação poética, simplesmente .
Garantiram-me mais tarde, que no pórtico axial dos Jerónimos, existem por lá umas quantas, "plantadas" no calcário de lióz.
E a Wikipédia, afiança que elas são uma sorte de margaridas ...
Eu sabia que era tema tão polémico, que de facto, eu só podia mesmo ter um "parti pris" em relação a elas ...
Entretanto, a tarde apagou a luz mais cedo, graças ao cinzento plúmbeo, uniforme e respeitável que cobriu tudo, impedindo-nos de sequer termos horizonte.
Logo hoje, que é noite de lua cheia !...
Estou em crer que com a crise instalada, nem a lua resiste, e faz como nós quereríamos fazer : sumiu !...
Pelos nossos olhos, a borrasca social desfila, amedrontadora, à semelhança da borrasca que brame lá fora, duma Natureza incomplacente, que despeja rios de água dos céus, e ventos tão desgovernados e destruidores, como os tempos que vivemos.
A incidência de situações dramáticas de vidas, a incidência de denúncias públicas de fraudes e corrupção, o desvendar de injustiças sociais na distribuição de bens e regalias, no igual acesso a oportunidades, a ausência de escrúpulos na prestação cívica e de cidadania, os privilégios gritantes de alguns ... a exclusão social de tantos ... avolumam-se ...
Avolumam-se a ponto de nos retirarem até, a pouca saúde de que se vai dispondo. Mesmo a saúde do corpo, porque a da mente, menos obediente a vontades, prudências e lógicas, sempre nos desautoriza, e claudica inapelavelmente.
A tristeza sente-se no ar que se respira, e nos rostos carregados que olhamos ; o desnorte desorienta-nos as vidas, por cada dia ; o medo, ou melhor, o pavor de animal acossado, atormenta-nos o espírito ...
Os que ainda esperam, fazem ouvir os seus gritos da revolta, da raiva, e da fome, por este Portugal fora, em eco de desespero, em estertor de moribundo ...
Neste Outubro vermelho, ainda há quem acredite !...
Mas o cansaço toma-nos conta, e gera a indiferença álgida, de quem luta com forças desproporcionadas, a forças titânicas que nos transmitem a impotência do não valer a pena, da desistência e da desesperança ...
E é um lusco-fusco na alma, de candeias apagadas, é um anoitecer de corações que não encontram mais alegria ... sequer justificação de vida !
E vai-se andando, em filas de penitência não devida, cumprindo penas não merecidas, arrastando grilhetas nos pés, com o peso do imobilismo da alma que sangra, e com a insensibilidade duma pústula que gangrenou de tal forma, que já quase nem dói ...
E a alvorada que nunca mais chega !!!
E o frio do Inverno a aquietar-nos os últimos lampejos da energia que se nos escoa, nas madrugadas sem fim ...
E o mar, e o temporal incessantes, a açoitarem o Mundo lá fora ...
E a lua que se esconde, no nosso céu negro, que não abre ...
E até as boninas, que sejam lá o que forem, não florescem mais aos meus olhos, apesar do "parti pris" que tenho com elas !!!...
Anamar
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
" ESTE BARRO DE QUE EU SOU IMPERFEITAMENTE FEITA ..."
O dia pôs-se, com o sol já depois de ter passado a linha do horizonte, a alaranjar ainda um céu escurecido, como ficam as salas, quando as chamas da lareira se abatem.
Tudo o resto passou a sombras, em negro esfíngico, contra esse fogo sem convicção.
"A viagem é o viajante, e vemos aquilo que somos" ... dizia sabiamente, Pessoa.
Tive um amigo que me dizia em tempos, eu ser severamente subjectiva naquilo que afirmo, a ponto de poder-se sempre duvidar do que "leio".
É verdade. Se calhar como muita gente, uns mais, outros menos, reconheço em mim as qualidades do mágico.
Saco do pincel e da caixa das tintas, e o quadro não é o que lá está, mas o que vejo. E o que vejo, é visto sempre com os olhos da alma e do coração, e os outros, pouco préstimo me têm.
Acho mesmo que se fosse cega, conseguiria inventar imagens e cenários inexistentes. Bastaria voltar-me para dentro, e espreitar pela fresta entreaberta.
Por isso é que normalmente sou outonal, sou castanha, ocre e vermelha, sem remédio ...
Por que será que tenho que falar recorrentemente do céu, do mar, dos bandos de pássaros, da chuva miudinha, ou do céu limpo ?
Por que preciso de sentir a terra entre os dedos, a brisa no cabelo, a maresia nas narinas ?
Por que falo só de sentir, de sentir, e morrer de sentir ?!...
Por que preciso viver embriagada por música, acalentada por sonhos, embalada por desejos ... empanturrar-me de emoções, de sentimentos, de quereres, tudo numa dimensão de valer a pena ... suicida, improvável, onírica ... e depois morrer na sarjeta do cansaço, da dor ( também ela doentiamente avassaladora e mortal ), de um sofrimento incontido, maior que eu, que ameaça rebentar-me o coração a qualquer instante, porque não cabe nele, e o dilacera ?!...
Tudo em mim é excessivo, tudo em mim é gigante, tudo em mim tem dimensões de eternidade, tudo em mim é incontido, extravasante ... e contudo, frágil !...
E como avalanche incontrolável, que rompe portas e comportas, salta muros e arranca árvores, eu transbordo-me a cada momento, eu mato-me e reconstruo-me, eu apago-me e redesenho-me ...
Tão depresa vislumbro a plenitude da perfeição e do êxtase, como o meu horizonte se esvazia, e o nada cava um buraco frio e negro no meu ser ...
Como o mar, rebentando na areia, faz e desfaz, rodeia e contorna, traz e arrasta ... eu morro e renasço, eu caio e escalo, eu destruo e reergo ... eu chego e parto de mim, dia e noite !...
E é um cansaço ... esta viagem alucinada e louca de turbulência ... sem destino ou nexo, sem conserto ou arranjo !!!...
Anamar
sábado, 12 de outubro de 2013
" ISTO SOU EU A PENSAR ... "
" Um Universo não é mais o mesmo, se lhe faltar uma só das suas partículas "
A morte liberta, tenho a certeza !
Ontem, quando entrei naquele espaço exíguo, escuro, sujo e malcheiroso, que a dona deixou há quinze dias, tive a certeza disso.
Uma penumbra pesada, um abandono do que ficou e permanece exactamente nos mesmos sítios, com os mesmos cheiros, como se tivesse sido dito : " Vou ali, já volto ... "
O frigorífico que não se esvaziou, a roupa que não se pendurou, a que ficou suja na cadeira, as flores que não se regaram ... as janelas que não se abriram, como se quisesse vedar-se ao sol, a entrada ...
Não se gastou o shampô até ao fim, o sal no saleiro também não, aposto que ficaram cabelos na banheira ... e o cheiro da morte pairava por lá.
Era um lugar pesado, silencioso, sozinho.
Tinha a cor de um fim de dia sem esperança, tal qual aquela escuridão que se abatia já, naquele meio de tarde de um Verão, esse sim, que parecia não querer partir.
Aquela casa não tinha horizonte, não tinha luz, não tinha perspectiva.
Não tinha histórias, nem gargalhadas, nem crianças, nem luas cheias, no céu.
Aquela casa só tinha silêncios, escuridão e peso ... Aquela casa pesava toneladas, que é uma medida dos Homens, pesava infinitos, que é uma medida dos deuses.
Era seguramente uma casa de passagem ... Claro que era !
Percebia-se perfeitamente que ali, fazia tempo que a vida se estava a ausentar devagarinho, pé ante pé, sem estardalhaço, p'ra não assustar ninguém.
Havia uma noite persistente, instalada, de fora para dentro, mas sobretudo dentro, que atacava a alma mal se transpunha a soleira, ( como a humidade sobe aos ossos, no Inverno, e os musgos cobrem os troncos ), que oprimia o peito e amedrontava a voz, que sufocava e atormentava o coração.
Havia uma espécie de susto, mal disfarçado, que se sentia, e o recolhimento estranho das capelas, que nos faz caminhar levezinho, roçagantemente, como os gatos ... exactamente como os gatos, que se insinuam sem se anunciarem ...
A ida àquela casa foi demasiado perturbadora !
E se, claramente já o percebia antes, deixei-me tomar por duas reflexões inequívocas.
Claramente vi, como a ausência de "janelas" na existência, como a incapacidade de adaptabilidade e aceitação da mesma, como a ânsia de busca de paz ... empurra as almas exaustas, a procurar em desespero, além das paredes do sofrimento, além dos muros da solidão, além dos portões da tristeza, além das algemas da indiferença ... uma hipotética saída, uma qualquer aparente escapatória, uma solução ... algures, onde haja uma cancela que pareça abrir-se, e as convide a passar ...
E ao decidir-se atravessá-la, nada, absolutamente nada nos detém já, do lado de cá ...
Nada mesmo, tenho a certeza !...
Por outro lado, aquele espaço conscientizou-me duramente, para a pequenez da realidade humana, na dimensão e na importância, e a sua irrelevância, face à continuidade, quando afinal, sempre nos julgamos sumamente especiais e únicos, quando temos a prosápia de nos sentirmos centros de universos, pedras insubstituíveis, entidades determinantes, quando nos "vemos" pequenos deuses na nossa ínfima realidade ... e nisso acreditamos, e isso defendemos acerrimamente, como se fosse importante e verdadeiro !...
Pobres de nós !!!
Como qualquer grão da poeira que cobria tudo naquela casa, temos a insignificância do nada, a dimensão do mais absoluto nada ...
E cá fora, tudo coexiste com a indiferença que já existia, anonimamente, insensivelmente ... como sempre o foi, afinal !
De facto, somos todos, demasiado NADA, para que o Universo pare, se perturbe, se abale no seu equilíbrio precário, ou sequer, para que uma nuvem passante, deite uma lágima cá para baixo ... de compreensão ... pelo menos, de compreensão !...
Ao chegar à rua, só tive uma urgência, absoluta e imperativa : olhar o sol, que ainda não se havia posto !!!...
Anamar
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
" DIA MUNDIAL DOS CORREIOS "
" Sempre que me perco de ti nas palavras, procuro encontrar-te nos sonhos e nas ideias "...
" Um dia, as cartas serão História, lidas, contadas e relembradas ... ainda que quem as escreveu, não esteja mais aqui "
Olhei a preceito aquela arquinha de folha, encarrapitada no armário da estante, de portas fechadas, com cadernos e mais cadernos em cima.
Uma espécie de baú do tesouro, de tesouros esquecidos, e amarelados pelo transcurso dos dias ...
Esquecera há muito o seu conteúdo.
Um pouco de tudo, um pouco de nada real, muito de Vida ... poeira dos tempos, acumulada em estratos, na memória, como as camadas rochosas lá das falésias se acumulam nos milénios !
E do pouco do tudo real da vida vivida, os maços de cartas trocadas, enlaçadas por fitas de seda, ou por cordéis de ocasião, dormiam há muito, embalando num sono de gerações, palavras ditas, juras seladas, sonhos revelados, ideias acalentadas, emoções divididas, afectos partilhados ... segredos escondidos ...
Pessoas que foram ...
As que já partiram, e aquelas que foram e já não são, embora parem por aqui.
As fotos a sépia, desfocadas, apagadas, esbatidas, de destrocas de amores terminados ... de novo, nas minhas mãos ...
Os dias revisitados, quando se percebe pela letra miudinha da tinta permanente, que aquele dia de Março, fora chuvoso, cinzento e triste ...
A devassa aos corações, quando estes se escancaram ( de novo por entre a caligrafia quase infantil ), e jorram despudoradamente amores incontidos, ingénuos, esperançosos, com a força e a pujança de uma vida não conhecida, só sonhada, só adivinhada ... talvez desejada ... no nosso então, futuro ...
Saudades a escorrerem pelos cantos da arca, violando os envelopes cuidadosamente abertos ...
Promessas que voejam, como traças dos tempos, por entre as folhas envelhecidas, soltando aqui e ali, pétalas secas, ou poemas largados ... ou manchas de uma ou outra lágrima traidora ...
Emoções desbragadas, com o ímpeto e o impulso, que só a juventude lhes confere ...
Sonhos sonhados, cobrando juros muito baixos, porque éramos então, fortalezas inexpugnáveis, e inabaláveis, sequer ...
Soltei três ou quatro, aleatórias, como aleatória foi a existência ...
E antes de relê-las, cheirei-as. Uma e outra vez, profundamente, exaustivamente, muito lentamente ... como que à procura ...
E deixei-me embriagar pelo eflúvio que delas emanava, e que, como um elixir ou poção mágica, teve o poder de comigo seguir, numa viagem alada ... embora eu continuasse ali, estática, sentada no chão da sala, com a arquinha entre as pernas.
E viajei, viajei aos tempos em que o carteiro premia a campainha, aos tempos em que o peito sufocava, as batidas do coração aceleravam, a alma de menina se desgovernava pela fantasia ...
Aos tempos da ansiedade e da urgência da leitura das letras, do soletrar das frases, depositadas naquelas folhas de papel, dias atrás, contudo ainda quentes, fogosas e promissoras ...
E revi-me. E revi todos, comigo !
Olhei o meu sorriso de então, olhei o meu ar doce e ruborescido, ainda não maculado pelos destinos, senti a minha bonomia, transbordando de um coração ainda não machucado pela sina ... percebi como eu era credora, no viver ...
E estava tudo ali ...
Naquelas folhas, dentro daqueles envelopes selados a um escudo, gravados pelos tempos, contando histórias e mais histórias, que faziam a minha História ... naquela arquinha de folha, na doçura do silêncio e da paz, mergulhadas no pó dos tempos, preparadas para atravessarem gerações, rumo à eternidade, envoltas em laços de fita de seda, ou cordéis de ocasião !!!...
Anamar
sábado, 5 de outubro de 2013
" NÃO ADIANTA ... "
De novo hoje percebi, que não adianta ter o mais belo pôr-de-sol frente aos meus olhos ...
Não adianta ter o azul do mar zangado ou sereno,
O riacho de água fresca, gorgolejante, a sepentear-me aos pés,
A brisa mais acariciadora no meu rosto,
Um céu de veludo, pintado de estrelas ...
A chuva abençoada, a inundar-me o corpo exausto da caminhada,
A maior e mais gloriosa lua cheia, iluminando o firmamento,
O recanto mais íntimo, prometedor e romântico, ao meu dispor ...
A obra de arte mais perfeita e conseguida, do artista
A mais bela casa para viver, seja palácio ou choupana,
A viagem mais desejada e sonhada, à face da Terra,
A música mais embaladora, mais doce e mais envolvente,
O espectáculo mais sumptuoso, preenchedor e gratificante,
O repasto mais cobiçado e invejável,
ou o mais simples prato de caracóis com uma cerveja geladinha ...
Hoje eu percebi, que não adianta ver aquele portentoso filme, de que todos falam ...
Procurar o miradouro empoleirado na colina, donde se desfruta "aquela vista" ...
Visitar aquela exposição que está na ribalta, de todos os roteiros culturais,
Dar aquele passeio de carro, espreguiçado e sem horas ...
Olhar a cascata, a serra, ou a planície sem limites ...
Ler o livro da actualidade,
Pensar muito, e criar teses, opiniões e conceitos ... defender pontos de vista ...
Colher as flores dos campos, os ramos das mimosas engrinaldadas, quando florescem ...
Cheirar as rosas dos roseirais, as lavandas dos canteiros, e ouvir os pássaros na ramaria ...
Prender entre os dedos as uvas maduras,
Saborear aquele bolo de laranja, acabadinho de sair do forno ...
Sorver as coisas simples da Vida ...
Não adianta rir ou chorar,
Não adianta fingir,
Enganar-me,
Esperar ...
Fazer de conta que respiro, e dormir acreditando que amanhã será um "novo dia" !...
Hoje eu percebi, que não adianta obrigar-me a gostar do que não gosto,
Fingir-me interessada no que não me interessa,
Substituir a dor, com gargalhadas de alegria postiça, para apaziguar corações ...
Mascarar o desespero, com uma falsa vontade de viver,
Fazer de conta que acredito ainda,
no que na verdade não me faz nenhum sentido !...
Não adianta julgar-me no meio de gente,
quando estou afinal, na mais absoluta solidão e silêncio ...
Sem partilha,
Sem amor,
Sem cumplicidade,
Sem entrega ...
Hoje eu percebi, que não faz sentido ...
Não adianta ...
Terei morrido há muito, e não deram por isso !...
Anamar
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
" SINTO-ME GRATA "
Aqui dentro, não está muito melhor.
Não sei o que aconteceu, mas as paredes deste quarto afastaram-se umas das outras, e o espaço ficou gigantescamente maior.
Ficou uma divisão fantasmagórica , e eu fiquei pequenininha, meio perdida, sem encontrar aquela, que mais ou menos costuma parar por aqui.
A única luz eléctrica que acendi ( não tenho santos a alumiar, e há que poupar na factura ), projecta sombras chinesas à minha volta.
Se as Finanças sabem, que a área deste apartamento está a aumentar, na razão directa do meu vazio e da minha solidão, carrega-me no IMI !!!.... Trigo limpo !...
Bom, mas tem dias assim !
Há quem parta, e há quem tenha vontade de partir ...
Há quem vá até ali à esquina, há quem vá por esse mundo fora ... e há quem vá p'ra outra galáxia !...
Tem muito a ver, com o tamanho das divisões, com o cinzento lá fora, ou com o vazio aqui dentro ... garanto-vos !!!
No meio deste desconforto de alma, só os meus gatos me entendem, e por isso, eu entendo, quem entende de gatos !
Eles são os companheiros fiéis, mesmo que todas estas "anomalias" malucas, se verifiquem ...
Eles não arredam pé, mesmo que nós lhes pareçamos meio desconchavados de espírito, meio desmiolados de atitudes, meio pieguinhas de emoções ...
Eles nem refilam, se lhes esquivamos a "bucha", se um berro se nos escapa, se uma sapatada pretende corrigir-lhes os desvarios e os abusos ...
Eles sempre estão por perto ... "malgré" ...
Eles sempre são compinchas, mesmo quando um pouco desparafusados !
O máximo que fazem, digo eu, é encolher os ombros, olhar-nos com a comiseração, de quem assiste a uma dona a "passar-se", premiarem-nos com marradinhas e lambidelas, como quem diz : " Deixa lá ... eu entendo-te ! Este mundo dos humanos é mesmo muito louco !..."
Neste momento, tenho dois, como sabem.
Um, tem a inconsciência do puto desalvorado e reguila, absolutamente impertinente e desafiador.
Corre por cima de tudo, sempre acelerado, num desvario total.
Não tem limites de velocidade. A sua auto-estrada tem percursos voadores, não conhece sentidos proibidos, não tem escapatórias para derrapagens que levam tudo adiante, enfim, são emoções e adrenalina, absolutamente demolidoras !
Por essa razão, madrugada adiante, quando se testa ao sprint, verdadeiros terramotos me chegam da cozinha e da entrada ( zonas francas ) ... ao quarto !
Mas não consigo impor-lhe hierarquia ou estatuto de dona. Não consigo meter-lhe naqueles neurónios-ventoinha ... quem na verdade, manda aqui.
Simplesmente, porque tem os olhos da inocência e da ternura de um garotão, que olha p'ra mim com uma meiguice que me desarma !
Assim, resta-me erguer uma voz tonitruante, exibir o ar mais convincente possível, e dizer-lhe em tom ameaçador : " Jonas, Jonas ... mau mau ! Estamos aqui, estamos a zangar-nos " !....
O outro.... bom, o outro, são p'raí seis ou sete quilos de gato, num tamanho XL, envolvidos num "cobertor" farfalhudo e fofinho de pelo, e outros tantos quilos de ronceirice e doçura.
Saudavelmente insano, também ... como convém.
O Chico tem um pacto com o "além", tenho a certeza.
Esse, é o que rodopia em torno de um rabo que desgraçadamente sempre se lhe escapa, à semelhança dos fantasminhas de todas as sombras que se projectam no chão ... Inclusive, a própria, que ele garante ser de outro gato-fantasma, aqui infiltrado, p'ra lhe atazanar o sistema !
O Chico só tem um "senão". Adora o meu sofá do quarto ... para afiar as unhas !!!
E não lhe interessam raspadores, de vários formatos. É para o lado que dorme melhor !
Olha-me com ar de complacência, superioridade e pouco caso. Como quem diz : "Perdoai-lhe senhor, porque esta fulana, coitada....parece não perceber quem tem à frente ! "..... ( rsrsrs )
Há dias assim ...
São os tais dias em que eu sei que estou viva, porque afinal, na verdade, não estou só.
Comigo, tenho a melhor companhia que podia ter ... o amor infalível, incondicional e desinteressado, destes "esgroviados" de serviço, a bombeirarem as minhas mágoas, as minhas dores, as minhas tristezas, ou mesmo a lamberem as minhas lágrimas ...
...e por isso, a eles, num diálogo mudo, eu sinto que sou absolutamente GRATA !!!...
Anamar
terça-feira, 1 de outubro de 2013
" SERÁ QUE SOU ? "
Será que sou ? Será que não sou ?
A minha mãe garante que já nasci ... Tinha dois cabelos brancos !!! ( só mesmo mãe para ver estas coisas !... )
A Fatinha diz que é bom ... tem-se desconto nos bilhetes .
A minha mãe entende-o como uma maldição ... mas faz-lhe permanente elegia !
O meu pai não devia gostar. Quando lhe disponibilizavam um lugar no combóio, ou um braço para atravessar uma passadeira, enjeitava sempre ... quase agastado.
Eu ... bem ... eu tenho pavor de ter que assumir um dia destes ...
Olho de soslaio, faço-me desentendida, não dou confiança aos ameaços, tento não passar cartão aos indícios, e armo-me em forte !
Vejo mal e oiço pior, mas ... quem não ?!
Receio cair, mas ando empoleirada em saltos razoavelmente altos.
Cabelos brancos ... nem tenho ideia do que sejam :)
Colesterol, que é uma coisa que as pessoas adoram ter, ainda não nos compatibilizámos.
Dores nos ossos ? Nem sei que sou vertebrada !!!...
Insónias ... Quando me visitam, são meras visitas de cortesia. Uma coisa que os sonos inventam, para fazerem um "break" , simplesmente !
Adoro viajar sozinha, e quando o faço, desatino de vez.
Como o menino que espeta o dedo pelo creme do bolo adentro, para o provar ... com o gostinho da travessura, à surrelfa, desbundo para o radical, e garantem-me ... desaconselhável ...
Do "parasailing" ao "rafting", do mergulho ao "slide", aos "radical parks", passando por outras variadas "emoções" que não vêm ao caso, e me colocam, no momento, um friozinho na barriga ... lá vou eu !!!
O que desafio ? ... Não sei ... só desconfio !!!...
Reconheço ter às vezes, a inconsciência de um puto reguila e provocador, como se quisesse desafiar os meus limites.
Tenho a cabeça da adolescente, que se deixa possuir por sonhos e desejos, e segue na vida ao ritmo da montanha russa ...
As minhas emoções pincelam-me a existência, com todas as cores do arco-íris. E por isso, danço na chuva, num dia de sol ...
Sinais de proibição ou "limite de" ... não fazem parte do meu código de percurso ...
Se tem montanha. ... Bom, há que escalar ! Deve ter-se uma vista supimpa lá de cima !...
E cerca ... tem cerca ? Então pede que se pule, não ??!!...
Tento comandar um corcel sem freio ... um pouco desvairadamente ...
E receio abrandar ... não quero distrair-me em limite de velocidade, e que me apanhem na curva !...
Possam pensar que eu estou a habituar-me ...
Salas de espera ... não, obrigada! Tenho pressa de seguir !... Muita estrada a percorrer ainda !...
Muito brinde a fazer à Vida ... também !
Será que já sou ?... Será que não sou ?...
1 de Outubro - Dia Internacional do Idoso
Anamar
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
" NEVOEIRO "
A Sandra lançou-se do terceiro andar da escada do prédio onde vivia, p'ra morrer no patamar cá em baixo, às oito da noite ... noite escura já ...
Era jovem, sozinha, perdera pai e mãe. Não tinha ninguém. Vivia com quatro gatos e uma periquita branca.
Estudara, conhecera vida folgada. Licenciara-se em Direito.
Após o falecimento dos seus, entrara em depressão. Diagnosticaram-lhe bipolaridade, foi impedida, pela Ordem, de exercer actividade, e reformaram-na por invalidez, com uma pensão, de que metade ia para a renda do andar miserável, que habitava, aqui, na minha cidade ... paredes meias com o meu chão e o meu ar ...
A Sandra já não tinha água nem luz em casa, por incumprimento nos pagamentos. Não tinha dinheiro para alimentar os seus bichos, talvez os únicos companheiros até ao fim ...
Naquele dia, tentou uma vez mais que a ajudassem, na loja de animais. Recusaram, por falta de pagamento de dívida anterior.
Subiu ao seu terceiro andar, e jogou-se do alto, como um trapezista no circo ... só que sem rede ...
As suas últimas palavras, foram para o primeiro vizinho que dela se abeirou : "Trate dos meus gatos " !...
E partiu ...
A Madalena vive sozinha com oito gatos, um cão, e tenta ajudar outros animais em desgraça, nas ruas. .
É jovem também. Tem trabalho, modesto.
Foi fiadora de alguém que não pagou, numa dívida de cerca de dois mil euros. A Madalena tem o vencimento em parte, penhorado, e não tem cerca de dois mil euros.
Já teve que deixar a casa onde vivia, para outra mais modesta ainda. Deixará de ter frigorífico, e outros "necessários", de início ... mas "lá se arranjará", diz.
Deitou mão a alguns trabalhos de bricolage, que tenta vender pela Internet, porque "não irá desistir" ... também diz.
A Madalena tem mais de trinta anos, e uns olhos grandes, tristes, mas inocentes, das crianças que ainda acreditam ...
A Carla é mãe solteira, do Rodrigo, que tem três anos.
Tem uma doença óssea, incapacitante. Não trabalha, já faz tempo. Sobrevive, vá-se lá saber como ...
A Carla tem vergonha de pedir. Tem "muita vergonha" de expor a sua situação, mas o Rodrigo pede-lhe leite e bolachas ... e ela não tem ...
E chora. Chora muito, porque se perder o filho para uma instituição, então não lhe "valerá a pena, viver" !...
Enquanto isso, enquanto Portugal se nos desfila assim, à frente dos olhos, neste atoleiro de miséria e de infortúnio, nestas vidas gretadas de desertos silenciosos, o país foi a eleições, e eu, não sei se devo sequer festejar os resultados ...
Sinto que esta terra, morreu há muito ...
Sinto que as Sandras, as Madalenas e as Carlas, proliferam por aí, nos becos esconsos, nas casas de miséria, sujas e tristes, com prateleiras vazias, com bolsos vazios, com estômagos vazios, com gelo nas almas ...
Sei que são dedos apontados, silenciosamente, a todos nós, que ainda vamos estando deste lado, que ainda vamos tendo a água só pelo queixo ... mercê da sorte, dos desígnios dos destinos, das vidas ....
Até quando ??!!...
Sei tanta gente a viver no limite, a sobreviver no limiar da maior e sinistra angústia ... um só dia de cada vez, porque a força e a coragem não chegam para mais ...
Sei de humanos a apodrecerem diariamente, porque a esperança e a luz no olhar, se apagaram faz tempo ...
Sei de velhos que desejam partir o quanto antes, porque esgotaram a capacidade de resistência, as pensões de miséria não chegam para a farmácia, e não podem ser tropeços na vida dos seus ... quando os têm ...
Sei de crianças que comem diariamente o que lhes é dado nas escolas ... e pouco mais ...
E de mães, peritas em malabarismos culinários, para tornarem principescos, repastos de desgraça ...
Enfim, sei de tudo isto. Sabemos de tudo isto !!!...
E lá fora, o nevoeiro agiganta-se e fecha-nos a vista, limita o horizonte, entristece-nos o coração, ao sonegar-nos o azul do céu, que pelo menos é esperançoso ... e grátis ...
Igualzinho ao nevoeiro que temos aqui dentro, nesta impotência atroz, de continuarmos teimosamente a acreditar que vale a pena !!!...
Anamar
domingo, 29 de setembro de 2013
" DEMASIADO TARDE "
É tarde ...
Cada vez é mais tarde. O Outono já chegou, e não tarda que o tempo de partir, nos visite.
Os dias azuis já foram. O sol vem a correr, com pressa, e nem o pássaro já canta, no castanheiro junto à nossa janela
Sabes, custo a lembrar como era o tempo do riso ... o tempo em que eu colhia esperança nas ramadas das madressilvas, pelas veredas
Até a voz do mar, que deixava algodão doce no areal agora deserto, ficou severa e tenebrosa.
Açoita-me a alma, em vez de me acariciar o corpo
E tu, perdeste o caminho de casa, esqueceste as minhas estradas, os montes e os vales ... não bebes mais nas minhas fontes
A minha nudez oferecida pelas madrugadas, vive solteira na margem deste rio ... e queima ... ainda queima !
Mas fica cada vez mais tarde ...
Um destes dias, quando acordarmos, um de nós foi indo ... ao cantar do galo, no dealbar do novo dia ...
Ter-nos-emos perdido, meu amor !
Anamar
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