Será um blogue escrito com a aleatoriedade da aleatoriedade das emoções de cada momento... É de mim, para todos, mas também para ninguém... É feito de amor, com o amor que nutro pela escrita...
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
" ESTE BARRO DE QUE EU SOU IMPERFEITAMENTE FEITA ..."
O dia pôs-se, com o sol já depois de ter passado a linha do horizonte, a alaranjar ainda um céu escurecido, como ficam as salas, quando as chamas da lareira se abatem.
Tudo o resto passou a sombras, em negro esfíngico, contra esse fogo sem convicção.
"A viagem é o viajante, e vemos aquilo que somos" ... dizia sabiamente, Pessoa.
Tive um amigo que me dizia em tempos, eu ser severamente subjectiva naquilo que afirmo, a ponto de poder-se sempre duvidar do que "leio".
É verdade. Se calhar como muita gente, uns mais, outros menos, reconheço em mim as qualidades do mágico.
Saco do pincel e da caixa das tintas, e o quadro não é o que lá está, mas o que vejo. E o que vejo, é visto sempre com os olhos da alma e do coração, e os outros, pouco préstimo me têm.
Acho mesmo que se fosse cega, conseguiria inventar imagens e cenários inexistentes. Bastaria voltar-me para dentro, e espreitar pela fresta entreaberta.
Por isso é que normalmente sou outonal, sou castanha, ocre e vermelha, sem remédio ...
Por que será que tenho que falar recorrentemente do céu, do mar, dos bandos de pássaros, da chuva miudinha, ou do céu limpo ?
Por que preciso de sentir a terra entre os dedos, a brisa no cabelo, a maresia nas narinas ?
Por que falo só de sentir, de sentir, e morrer de sentir ?!...
Por que preciso viver embriagada por música, acalentada por sonhos, embalada por desejos ... empanturrar-me de emoções, de sentimentos, de quereres, tudo numa dimensão de valer a pena ... suicida, improvável, onírica ... e depois morrer na sarjeta do cansaço, da dor ( também ela doentiamente avassaladora e mortal ), de um sofrimento incontido, maior que eu, que ameaça rebentar-me o coração a qualquer instante, porque não cabe nele, e o dilacera ?!...
Tudo em mim é excessivo, tudo em mim é gigante, tudo em mim tem dimensões de eternidade, tudo em mim é incontido, extravasante ... e contudo, frágil !...
E como avalanche incontrolável, que rompe portas e comportas, salta muros e arranca árvores, eu transbordo-me a cada momento, eu mato-me e reconstruo-me, eu apago-me e redesenho-me ...
Tão depresa vislumbro a plenitude da perfeição e do êxtase, como o meu horizonte se esvazia, e o nada cava um buraco frio e negro no meu ser ...
Como o mar, rebentando na areia, faz e desfaz, rodeia e contorna, traz e arrasta ... eu morro e renasço, eu caio e escalo, eu destruo e reergo ... eu chego e parto de mim, dia e noite !...
E é um cansaço ... esta viagem alucinada e louca de turbulência ... sem destino ou nexo, sem conserto ou arranjo !!!...
Anamar
sábado, 12 de outubro de 2013
" ISTO SOU EU A PENSAR ... "
" Um Universo não é mais o mesmo, se lhe faltar uma só das suas partículas "
A morte liberta, tenho a certeza !
Ontem, quando entrei naquele espaço exíguo, escuro, sujo e malcheiroso, que a dona deixou há quinze dias, tive a certeza disso.
Uma penumbra pesada, um abandono do que ficou e permanece exactamente nos mesmos sítios, com os mesmos cheiros, como se tivesse sido dito : " Vou ali, já volto ... "
O frigorífico que não se esvaziou, a roupa que não se pendurou, a que ficou suja na cadeira, as flores que não se regaram ... as janelas que não se abriram, como se quisesse vedar-se ao sol, a entrada ...
Não se gastou o shampô até ao fim, o sal no saleiro também não, aposto que ficaram cabelos na banheira ... e o cheiro da morte pairava por lá.
Era um lugar pesado, silencioso, sozinho.
Tinha a cor de um fim de dia sem esperança, tal qual aquela escuridão que se abatia já, naquele meio de tarde de um Verão, esse sim, que parecia não querer partir.
Aquela casa não tinha horizonte, não tinha luz, não tinha perspectiva.
Não tinha histórias, nem gargalhadas, nem crianças, nem luas cheias, no céu.
Aquela casa só tinha silêncios, escuridão e peso ... Aquela casa pesava toneladas, que é uma medida dos Homens, pesava infinitos, que é uma medida dos deuses.
Era seguramente uma casa de passagem ... Claro que era !
Percebia-se perfeitamente que ali, fazia tempo que a vida se estava a ausentar devagarinho, pé ante pé, sem estardalhaço, p'ra não assustar ninguém.
Havia uma noite persistente, instalada, de fora para dentro, mas sobretudo dentro, que atacava a alma mal se transpunha a soleira, ( como a humidade sobe aos ossos, no Inverno, e os musgos cobrem os troncos ), que oprimia o peito e amedrontava a voz, que sufocava e atormentava o coração.
Havia uma espécie de susto, mal disfarçado, que se sentia, e o recolhimento estranho das capelas, que nos faz caminhar levezinho, roçagantemente, como os gatos ... exactamente como os gatos, que se insinuam sem se anunciarem ...
A ida àquela casa foi demasiado perturbadora !
E se, claramente já o percebia antes, deixei-me tomar por duas reflexões inequívocas.
Claramente vi, como a ausência de "janelas" na existência, como a incapacidade de adaptabilidade e aceitação da mesma, como a ânsia de busca de paz ... empurra as almas exaustas, a procurar em desespero, além das paredes do sofrimento, além dos muros da solidão, além dos portões da tristeza, além das algemas da indiferença ... uma hipotética saída, uma qualquer aparente escapatória, uma solução ... algures, onde haja uma cancela que pareça abrir-se, e as convide a passar ...
E ao decidir-se atravessá-la, nada, absolutamente nada nos detém já, do lado de cá ...
Nada mesmo, tenho a certeza !...
Por outro lado, aquele espaço conscientizou-me duramente, para a pequenez da realidade humana, na dimensão e na importância, e a sua irrelevância, face à continuidade, quando afinal, sempre nos julgamos sumamente especiais e únicos, quando temos a prosápia de nos sentirmos centros de universos, pedras insubstituíveis, entidades determinantes, quando nos "vemos" pequenos deuses na nossa ínfima realidade ... e nisso acreditamos, e isso defendemos acerrimamente, como se fosse importante e verdadeiro !...
Pobres de nós !!!
Como qualquer grão da poeira que cobria tudo naquela casa, temos a insignificância do nada, a dimensão do mais absoluto nada ...
E cá fora, tudo coexiste com a indiferença que já existia, anonimamente, insensivelmente ... como sempre o foi, afinal !
De facto, somos todos, demasiado NADA, para que o Universo pare, se perturbe, se abale no seu equilíbrio precário, ou sequer, para que uma nuvem passante, deite uma lágima cá para baixo ... de compreensão ... pelo menos, de compreensão !...
Ao chegar à rua, só tive uma urgência, absoluta e imperativa : olhar o sol, que ainda não se havia posto !!!...
Anamar
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
" DIA MUNDIAL DOS CORREIOS "
" Sempre que me perco de ti nas palavras, procuro encontrar-te nos sonhos e nas ideias "...
" Um dia, as cartas serão História, lidas, contadas e relembradas ... ainda que quem as escreveu, não esteja mais aqui "
Olhei a preceito aquela arquinha de folha, encarrapitada no armário da estante, de portas fechadas, com cadernos e mais cadernos em cima.
Uma espécie de baú do tesouro, de tesouros esquecidos, e amarelados pelo transcurso dos dias ...
Esquecera há muito o seu conteúdo.
Um pouco de tudo, um pouco de nada real, muito de Vida ... poeira dos tempos, acumulada em estratos, na memória, como as camadas rochosas lá das falésias se acumulam nos milénios !
E do pouco do tudo real da vida vivida, os maços de cartas trocadas, enlaçadas por fitas de seda, ou por cordéis de ocasião, dormiam há muito, embalando num sono de gerações, palavras ditas, juras seladas, sonhos revelados, ideias acalentadas, emoções divididas, afectos partilhados ... segredos escondidos ...
Pessoas que foram ...
As que já partiram, e aquelas que foram e já não são, embora parem por aqui.
As fotos a sépia, desfocadas, apagadas, esbatidas, de destrocas de amores terminados ... de novo, nas minhas mãos ...
Os dias revisitados, quando se percebe pela letra miudinha da tinta permanente, que aquele dia de Março, fora chuvoso, cinzento e triste ...
A devassa aos corações, quando estes se escancaram ( de novo por entre a caligrafia quase infantil ), e jorram despudoradamente amores incontidos, ingénuos, esperançosos, com a força e a pujança de uma vida não conhecida, só sonhada, só adivinhada ... talvez desejada ... no nosso então, futuro ...
Saudades a escorrerem pelos cantos da arca, violando os envelopes cuidadosamente abertos ...
Promessas que voejam, como traças dos tempos, por entre as folhas envelhecidas, soltando aqui e ali, pétalas secas, ou poemas largados ... ou manchas de uma ou outra lágrima traidora ...
Emoções desbragadas, com o ímpeto e o impulso, que só a juventude lhes confere ...
Sonhos sonhados, cobrando juros muito baixos, porque éramos então, fortalezas inexpugnáveis, e inabaláveis, sequer ...
Soltei três ou quatro, aleatórias, como aleatória foi a existência ...
E antes de relê-las, cheirei-as. Uma e outra vez, profundamente, exaustivamente, muito lentamente ... como que à procura ...
E deixei-me embriagar pelo eflúvio que delas emanava, e que, como um elixir ou poção mágica, teve o poder de comigo seguir, numa viagem alada ... embora eu continuasse ali, estática, sentada no chão da sala, com a arquinha entre as pernas.
E viajei, viajei aos tempos em que o carteiro premia a campainha, aos tempos em que o peito sufocava, as batidas do coração aceleravam, a alma de menina se desgovernava pela fantasia ...
Aos tempos da ansiedade e da urgência da leitura das letras, do soletrar das frases, depositadas naquelas folhas de papel, dias atrás, contudo ainda quentes, fogosas e promissoras ...
E revi-me. E revi todos, comigo !
Olhei o meu sorriso de então, olhei o meu ar doce e ruborescido, ainda não maculado pelos destinos, senti a minha bonomia, transbordando de um coração ainda não machucado pela sina ... percebi como eu era credora, no viver ...
E estava tudo ali ...
Naquelas folhas, dentro daqueles envelopes selados a um escudo, gravados pelos tempos, contando histórias e mais histórias, que faziam a minha História ... naquela arquinha de folha, na doçura do silêncio e da paz, mergulhadas no pó dos tempos, preparadas para atravessarem gerações, rumo à eternidade, envoltas em laços de fita de seda, ou cordéis de ocasião !!!...
Anamar
sábado, 5 de outubro de 2013
" NÃO ADIANTA ... "
De novo hoje percebi, que não adianta ter o mais belo pôr-de-sol frente aos meus olhos ...
Não adianta ter o azul do mar zangado ou sereno,
O riacho de água fresca, gorgolejante, a sepentear-me aos pés,
A brisa mais acariciadora no meu rosto,
Um céu de veludo, pintado de estrelas ...
A chuva abençoada, a inundar-me o corpo exausto da caminhada,
A maior e mais gloriosa lua cheia, iluminando o firmamento,
O recanto mais íntimo, prometedor e romântico, ao meu dispor ...
A obra de arte mais perfeita e conseguida, do artista
A mais bela casa para viver, seja palácio ou choupana,
A viagem mais desejada e sonhada, à face da Terra,
A música mais embaladora, mais doce e mais envolvente,
O espectáculo mais sumptuoso, preenchedor e gratificante,
O repasto mais cobiçado e invejável,
ou o mais simples prato de caracóis com uma cerveja geladinha ...
Hoje eu percebi, que não adianta ver aquele portentoso filme, de que todos falam ...
Procurar o miradouro empoleirado na colina, donde se desfruta "aquela vista" ...
Visitar aquela exposição que está na ribalta, de todos os roteiros culturais,
Dar aquele passeio de carro, espreguiçado e sem horas ...
Olhar a cascata, a serra, ou a planície sem limites ...
Ler o livro da actualidade,
Pensar muito, e criar teses, opiniões e conceitos ... defender pontos de vista ...
Colher as flores dos campos, os ramos das mimosas engrinaldadas, quando florescem ...
Cheirar as rosas dos roseirais, as lavandas dos canteiros, e ouvir os pássaros na ramaria ...
Prender entre os dedos as uvas maduras,
Saborear aquele bolo de laranja, acabadinho de sair do forno ...
Sorver as coisas simples da Vida ...
Não adianta rir ou chorar,
Não adianta fingir,
Enganar-me,
Esperar ...
Fazer de conta que respiro, e dormir acreditando que amanhã será um "novo dia" !...
Hoje eu percebi, que não adianta obrigar-me a gostar do que não gosto,
Fingir-me interessada no que não me interessa,
Substituir a dor, com gargalhadas de alegria postiça, para apaziguar corações ...
Mascarar o desespero, com uma falsa vontade de viver,
Fazer de conta que acredito ainda,
no que na verdade não me faz nenhum sentido !...
Não adianta julgar-me no meio de gente,
quando estou afinal, na mais absoluta solidão e silêncio ...
Sem partilha,
Sem amor,
Sem cumplicidade,
Sem entrega ...
Hoje eu percebi, que não faz sentido ...
Não adianta ...
Terei morrido há muito, e não deram por isso !...
Anamar
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
" SINTO-ME GRATA "
Aqui dentro, não está muito melhor.
Não sei o que aconteceu, mas as paredes deste quarto afastaram-se umas das outras, e o espaço ficou gigantescamente maior.
Ficou uma divisão fantasmagórica , e eu fiquei pequenininha, meio perdida, sem encontrar aquela, que mais ou menos costuma parar por aqui.
A única luz eléctrica que acendi ( não tenho santos a alumiar, e há que poupar na factura ), projecta sombras chinesas à minha volta.
Se as Finanças sabem, que a área deste apartamento está a aumentar, na razão directa do meu vazio e da minha solidão, carrega-me no IMI !!!.... Trigo limpo !...
Bom, mas tem dias assim !
Há quem parta, e há quem tenha vontade de partir ...
Há quem vá até ali à esquina, há quem vá por esse mundo fora ... e há quem vá p'ra outra galáxia !...
Tem muito a ver, com o tamanho das divisões, com o cinzento lá fora, ou com o vazio aqui dentro ... garanto-vos !!!
No meio deste desconforto de alma, só os meus gatos me entendem, e por isso, eu entendo, quem entende de gatos !
Eles são os companheiros fiéis, mesmo que todas estas "anomalias" malucas, se verifiquem ...
Eles não arredam pé, mesmo que nós lhes pareçamos meio desconchavados de espírito, meio desmiolados de atitudes, meio pieguinhas de emoções ...
Eles nem refilam, se lhes esquivamos a "bucha", se um berro se nos escapa, se uma sapatada pretende corrigir-lhes os desvarios e os abusos ...
Eles sempre estão por perto ... "malgré" ...
Eles sempre são compinchas, mesmo quando um pouco desparafusados !
O máximo que fazem, digo eu, é encolher os ombros, olhar-nos com a comiseração, de quem assiste a uma dona a "passar-se", premiarem-nos com marradinhas e lambidelas, como quem diz : " Deixa lá ... eu entendo-te ! Este mundo dos humanos é mesmo muito louco !..."
Neste momento, tenho dois, como sabem.
Um, tem a inconsciência do puto desalvorado e reguila, absolutamente impertinente e desafiador.
Corre por cima de tudo, sempre acelerado, num desvario total.
Não tem limites de velocidade. A sua auto-estrada tem percursos voadores, não conhece sentidos proibidos, não tem escapatórias para derrapagens que levam tudo adiante, enfim, são emoções e adrenalina, absolutamente demolidoras !
Por essa razão, madrugada adiante, quando se testa ao sprint, verdadeiros terramotos me chegam da cozinha e da entrada ( zonas francas ) ... ao quarto !
Mas não consigo impor-lhe hierarquia ou estatuto de dona. Não consigo meter-lhe naqueles neurónios-ventoinha ... quem na verdade, manda aqui.
Simplesmente, porque tem os olhos da inocência e da ternura de um garotão, que olha p'ra mim com uma meiguice que me desarma !
Assim, resta-me erguer uma voz tonitruante, exibir o ar mais convincente possível, e dizer-lhe em tom ameaçador : " Jonas, Jonas ... mau mau ! Estamos aqui, estamos a zangar-nos " !....
O outro.... bom, o outro, são p'raí seis ou sete quilos de gato, num tamanho XL, envolvidos num "cobertor" farfalhudo e fofinho de pelo, e outros tantos quilos de ronceirice e doçura.
Saudavelmente insano, também ... como convém.
O Chico tem um pacto com o "além", tenho a certeza.
Esse, é o que rodopia em torno de um rabo que desgraçadamente sempre se lhe escapa, à semelhança dos fantasminhas de todas as sombras que se projectam no chão ... Inclusive, a própria, que ele garante ser de outro gato-fantasma, aqui infiltrado, p'ra lhe atazanar o sistema !
O Chico só tem um "senão". Adora o meu sofá do quarto ... para afiar as unhas !!!
E não lhe interessam raspadores, de vários formatos. É para o lado que dorme melhor !
Olha-me com ar de complacência, superioridade e pouco caso. Como quem diz : "Perdoai-lhe senhor, porque esta fulana, coitada....parece não perceber quem tem à frente ! "..... ( rsrsrs )
Há dias assim ...
São os tais dias em que eu sei que estou viva, porque afinal, na verdade, não estou só.
Comigo, tenho a melhor companhia que podia ter ... o amor infalível, incondicional e desinteressado, destes "esgroviados" de serviço, a bombeirarem as minhas mágoas, as minhas dores, as minhas tristezas, ou mesmo a lamberem as minhas lágrimas ...
...e por isso, a eles, num diálogo mudo, eu sinto que sou absolutamente GRATA !!!...
Anamar
terça-feira, 1 de outubro de 2013
" SERÁ QUE SOU ? "
Será que sou ? Será que não sou ?
A minha mãe garante que já nasci ... Tinha dois cabelos brancos !!! ( só mesmo mãe para ver estas coisas !... )
A Fatinha diz que é bom ... tem-se desconto nos bilhetes .
A minha mãe entende-o como uma maldição ... mas faz-lhe permanente elegia !
O meu pai não devia gostar. Quando lhe disponibilizavam um lugar no combóio, ou um braço para atravessar uma passadeira, enjeitava sempre ... quase agastado.
Eu ... bem ... eu tenho pavor de ter que assumir um dia destes ...
Olho de soslaio, faço-me desentendida, não dou confiança aos ameaços, tento não passar cartão aos indícios, e armo-me em forte !
Vejo mal e oiço pior, mas ... quem não ?!
Receio cair, mas ando empoleirada em saltos razoavelmente altos.
Cabelos brancos ... nem tenho ideia do que sejam :)
Colesterol, que é uma coisa que as pessoas adoram ter, ainda não nos compatibilizámos.
Dores nos ossos ? Nem sei que sou vertebrada !!!...
Insónias ... Quando me visitam, são meras visitas de cortesia. Uma coisa que os sonos inventam, para fazerem um "break" , simplesmente !
Adoro viajar sozinha, e quando o faço, desatino de vez.
Como o menino que espeta o dedo pelo creme do bolo adentro, para o provar ... com o gostinho da travessura, à surrelfa, desbundo para o radical, e garantem-me ... desaconselhável ...
Do "parasailing" ao "rafting", do mergulho ao "slide", aos "radical parks", passando por outras variadas "emoções" que não vêm ao caso, e me colocam, no momento, um friozinho na barriga ... lá vou eu !!!
O que desafio ? ... Não sei ... só desconfio !!!...
Reconheço ter às vezes, a inconsciência de um puto reguila e provocador, como se quisesse desafiar os meus limites.
Tenho a cabeça da adolescente, que se deixa possuir por sonhos e desejos, e segue na vida ao ritmo da montanha russa ...
As minhas emoções pincelam-me a existência, com todas as cores do arco-íris. E por isso, danço na chuva, num dia de sol ...
Sinais de proibição ou "limite de" ... não fazem parte do meu código de percurso ...
Se tem montanha. ... Bom, há que escalar ! Deve ter-se uma vista supimpa lá de cima !...
E cerca ... tem cerca ? Então pede que se pule, não ??!!...
Tento comandar um corcel sem freio ... um pouco desvairadamente ...
E receio abrandar ... não quero distrair-me em limite de velocidade, e que me apanhem na curva !...
Possam pensar que eu estou a habituar-me ...
Salas de espera ... não, obrigada! Tenho pressa de seguir !... Muita estrada a percorrer ainda !...
Muito brinde a fazer à Vida ... também !
Será que já sou ?... Será que não sou ?...
1 de Outubro - Dia Internacional do Idoso
Anamar
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
" NEVOEIRO "
A Sandra lançou-se do terceiro andar da escada do prédio onde vivia, p'ra morrer no patamar cá em baixo, às oito da noite ... noite escura já ...
Era jovem, sozinha, perdera pai e mãe. Não tinha ninguém. Vivia com quatro gatos e uma periquita branca.
Estudara, conhecera vida folgada. Licenciara-se em Direito.
Após o falecimento dos seus, entrara em depressão. Diagnosticaram-lhe bipolaridade, foi impedida, pela Ordem, de exercer actividade, e reformaram-na por invalidez, com uma pensão, de que metade ia para a renda do andar miserável, que habitava, aqui, na minha cidade ... paredes meias com o meu chão e o meu ar ...
A Sandra já não tinha água nem luz em casa, por incumprimento nos pagamentos. Não tinha dinheiro para alimentar os seus bichos, talvez os únicos companheiros até ao fim ...
Naquele dia, tentou uma vez mais que a ajudassem, na loja de animais. Recusaram, por falta de pagamento de dívida anterior.
Subiu ao seu terceiro andar, e jogou-se do alto, como um trapezista no circo ... só que sem rede ...
As suas últimas palavras, foram para o primeiro vizinho que dela se abeirou : "Trate dos meus gatos " !...
E partiu ...
A Madalena vive sozinha com oito gatos, um cão, e tenta ajudar outros animais em desgraça, nas ruas. .
É jovem também. Tem trabalho, modesto.
Foi fiadora de alguém que não pagou, numa dívida de cerca de dois mil euros. A Madalena tem o vencimento em parte, penhorado, e não tem cerca de dois mil euros.
Já teve que deixar a casa onde vivia, para outra mais modesta ainda. Deixará de ter frigorífico, e outros "necessários", de início ... mas "lá se arranjará", diz.
Deitou mão a alguns trabalhos de bricolage, que tenta vender pela Internet, porque "não irá desistir" ... também diz.
A Madalena tem mais de trinta anos, e uns olhos grandes, tristes, mas inocentes, das crianças que ainda acreditam ...
A Carla é mãe solteira, do Rodrigo, que tem três anos.
Tem uma doença óssea, incapacitante. Não trabalha, já faz tempo. Sobrevive, vá-se lá saber como ...
A Carla tem vergonha de pedir. Tem "muita vergonha" de expor a sua situação, mas o Rodrigo pede-lhe leite e bolachas ... e ela não tem ...
E chora. Chora muito, porque se perder o filho para uma instituição, então não lhe "valerá a pena, viver" !...
Enquanto isso, enquanto Portugal se nos desfila assim, à frente dos olhos, neste atoleiro de miséria e de infortúnio, nestas vidas gretadas de desertos silenciosos, o país foi a eleições, e eu, não sei se devo sequer festejar os resultados ...
Sinto que esta terra, morreu há muito ...
Sinto que as Sandras, as Madalenas e as Carlas, proliferam por aí, nos becos esconsos, nas casas de miséria, sujas e tristes, com prateleiras vazias, com bolsos vazios, com estômagos vazios, com gelo nas almas ...
Sei que são dedos apontados, silenciosamente, a todos nós, que ainda vamos estando deste lado, que ainda vamos tendo a água só pelo queixo ... mercê da sorte, dos desígnios dos destinos, das vidas ....
Até quando ??!!...
Sei tanta gente a viver no limite, a sobreviver no limiar da maior e sinistra angústia ... um só dia de cada vez, porque a força e a coragem não chegam para mais ...
Sei de humanos a apodrecerem diariamente, porque a esperança e a luz no olhar, se apagaram faz tempo ...
Sei de velhos que desejam partir o quanto antes, porque esgotaram a capacidade de resistência, as pensões de miséria não chegam para a farmácia, e não podem ser tropeços na vida dos seus ... quando os têm ...
Sei de crianças que comem diariamente o que lhes é dado nas escolas ... e pouco mais ...
E de mães, peritas em malabarismos culinários, para tornarem principescos, repastos de desgraça ...
Enfim, sei de tudo isto. Sabemos de tudo isto !!!...
E lá fora, o nevoeiro agiganta-se e fecha-nos a vista, limita o horizonte, entristece-nos o coração, ao sonegar-nos o azul do céu, que pelo menos é esperançoso ... e grátis ...
Igualzinho ao nevoeiro que temos aqui dentro, nesta impotência atroz, de continuarmos teimosamente a acreditar que vale a pena !!!...
Anamar
domingo, 29 de setembro de 2013
" DEMASIADO TARDE "
É tarde ...
Cada vez é mais tarde. O Outono já chegou, e não tarda que o tempo de partir, nos visite.
Os dias azuis já foram. O sol vem a correr, com pressa, e nem o pássaro já canta, no castanheiro junto à nossa janela
Sabes, custo a lembrar como era o tempo do riso ... o tempo em que eu colhia esperança nas ramadas das madressilvas, pelas veredas
Até a voz do mar, que deixava algodão doce no areal agora deserto, ficou severa e tenebrosa.
Açoita-me a alma, em vez de me acariciar o corpo
E tu, perdeste o caminho de casa, esqueceste as minhas estradas, os montes e os vales ... não bebes mais nas minhas fontes
A minha nudez oferecida pelas madrugadas, vive solteira na margem deste rio ... e queima ... ainda queima !
Mas fica cada vez mais tarde ...
Um destes dias, quando acordarmos, um de nós foi indo ... ao cantar do galo, no dealbar do novo dia ...
Ter-nos-emos perdido, meu amor !
Anamar
sábado, 28 de setembro de 2013
" NAVEGO À BOLINA "
Dia de Inverno , ou melhor, de um Outono zangado.
Sê-lo-ia integralmente, se esquecermos a temperatura, que continua para roupas leves, e a chuva que também não insiste, ainda.
Atravesso um dos períodos mais escurecidos da minha vida, da maior insatisfação que alguma vez já experimentei. Insatisfação e indiferença, beirando a raia de um amorfismo e cansaço, preocupantes.
Arrasto-me diariamente, acordando e dormindo, acordando e dormindo, sem uma só motivação que me faça abrir os olhos.
Plano por cima das coisas, que aliás não encontro, e por isso não agarro ; vegeto numa dormência patológica, num arrastar de dias que me começam tarde, e que nesta altura do ano, acabam cedo.
Nada mos justifica, nada faz com que eles me valham a pena.
Sinto-me anestesiada perante a vida, que já não me entusiasma, encanta, deslumbra ou emociona.
Quase deixei de escrever. Aliás, acho fazê-lo, irrelevante, desnecessário, entediante.
Passei a achar que na verdade, nada tenho a acrescentar a tanto de que já falei, e até para mim mesma, o que tenho a dizer, levo o dia a fazê-lo, numa dialéctica muda, em que o diapasão é o meu peito ... e nada mais.
"Seca", é o termo que me define !
O que seca não tem vida. Eu, não vivo, a bem dizer !...
Farta ... estou farta !
Farta de romper dias iguais, de silêncios constantes, das solidões dos claustros das abadias.
No meu mundo, ouvem-se os meus passos, ouve-se a minha raiva, pressente-se o meu desespero, apalpa-se o meu cansaço ...
E depois, sou eu e eu ... quem mais ?...
Sonhos ? Não, já os alienei faz tempo, ou melhor, fugiram de mim para paragens de Primaveras radiosas ...
As metas, as que existiram e as que eu inventei, já foram cortadas há muito, quase sempre longe dos melhores tempos, nos lugares de trás. Ou simplesmente me deixei ficar a ver os outros ir ...
Foi assim !...
As velas do meu veleiro, recolhi-as.
Não há vento que o empurre. Navego à bolina, no vaivém das ondas passantes.
Tenho comigo a incerteza do alto mar.
Perdi bússola, esqueci norte, e como estamos num Outono zangado, nem o sol nem as luas me visitam !
As estrelas também dormem, e só a cerração se baixa e me envolve, por pena ... p'ra me dar guarida e berço ...
O cais ... os cais da vida, ficaram tão longe, mas tão longe, que deles, a neblina não se compadece ... nem de mim, figura errante, recortada no nada .
Apenas a maresia se faz presente, cáustica, corrosiva ... ácida !
O gargalhar manso dos salpicos, nos cascos curtidos pelos tempos, é melopeia ... não é bem canção !
E uma gaivota, só uma - esculpida no indefinido, no abandono e no vazio - não me deixou viajar sozinha ...
E comigo, tenho a ausência de esperança de um navegador à bolina, e a certeza de não chegar a lugar nenhum mais !...
Deve ser doce morrer no mar, assim, num dia de Outono zangado ...
Esfumar-se no cinzento fantasmagórico do desconhecido, como nos braços de um amante dedicado ...
Dissolver-se na lentidão dos silêncios das memórias, que ficaram ...
Adormecer nos esgares de todos os fantasmas, das histórias vividas ...
Ou simplesmente errar, languidamente, vagueando pelas notas impressas pelo coração enquanto ainda bate, pelo sopro do vento enquanto ainda açoita as escarpas, pelos pingos da chuva a tamborilar, largados de infinitos ...
Deve ser doce ...
Anamar
terça-feira, 24 de setembro de 2013
" SONHO "
" SONHO "
Quero partir contigo, amor,
Soltar âncora, abrir velas,
Pelas ruas e travessas,
pelas pracinhas ... sem pressas,
pelos becos e vielas
Quero olhar contigo, amor,
os craveiros pelas sacadas,
co'as sardinheiras floridas
e com os gatos ronceiros,
poetas das madrugadas ...
ver as roupas coloridas
largadas pelos estendais ...
Quero ouvir contigo, amor,
os canários das gaiolas,
desgarrando p'los quintais !...
Quero dar-te a mão e seguir
junto ao rio, em passo lento ...
quero embarcar na canoa,
quero contigo ver Lisboa,
prender no cabelo, o vento !
Contigo andar pela serra,
quero beber o cheiro da terra,
embriagar-me de sol ...
Deitar-te amor, no meu leito,
beijar-te bem ao meu jeito ...
olhar a luz do farol
a varrer a penedia,
até que a noite seja dia
e desperte a claridade ...
P'ra enfim, dormires no meu peito,
num amor mais que perfeito,
sem ter pressa, nem idade !
Quero dar-te o meu corpo, amor ...
porque a alma já levaste ...
Já que são a minha sina,
que eles sejam mote e rima,
dos versos que semeaste !...
Quero dar-te o riso e o abraço,
o meu colo, o ombro e o passo
lado a lado com o teu ...
Quero andar contigo a estrada,
naufragar nesta enseada,
Quero ser "nós" ... e não ser "eu" !!!...
Anamar
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
" HISTÓRIAS DESTE MUNDO E DO OUTRO " ( a propósito da primeira cremação a que assisti )
Ali logo à passagem, estavam dois anjos.
Não daqueles anjos das igrejas. Esses, tínhamos dispensado de virem !
Mas ainda assim, eram dois querubins de caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas.
Nisso, eles eram anjos normais, iguais aos outros todos, embora se pudesse pensar, serem de contrafacção ...
Mas não !...
Um, estava ali para lhe dar a mão. O outro, para lhe carregar a rima pesada dos livros.
Eram duas crianças, que vieram receber aquele menino que se vestia de ancião !
Mas eu sei que ele era um menino ... Senão, por que leria ele tantas histórias ? Senão, por que faria questão de se fazer acompanhar de uma pasta tão pesada de livros ?!...
Percebi que aquilo ali, era um palco, porque de repente, houve uma cortina pesada que tombou, à passagem do menino.
Obviamente estávamos numa peça teatral. Do lado de cá, estavam os espectadores, que eram muitos e continuavam sem arredar pé.
Não percebi por que tinham rostos tão fechados, mesmo estando uma linda tarde de sol ...
Do outro lado, eram os bastidores. Lá, ninguém podia aceder, depois do pano corrido, depois da peça terminada ...
E na verdade, quando o menino cruzou aquela passagem, a dramatização acabou, porque o pano fechou-se !
Nós bem espreitávamos ... Bem esgueirámos os pescoços, a tentar perceber, onde é que ficava a cancela do jardim. Porque eu sei que para lá, ia haver relva, flores, aromas, montanhas, pássaros sem pressa, água corrente a cantar ...
E borboletas, muitas borboletas que eu sei ... andavam por lá, também ...
E havia de haver sol, outra vez ... por que não ??
E eu sei ainda, que o menino ia ser feliz de novo.
Com o vento que ele amava, com todos os amiguinhos que o esperavam, e que já brincavam no jardim, fazia tempo, a dançar de roda, e com as histórias sem fim, dos livros sem fim, que levou consigo ... aquele menino não precisava de nada mais ...
Era um sortudo !!!...
Apenas, aquele jardim, no alto daquela colina, deixava que ele olhasse, com a curiosidade da criança que espreita pelo buraco da fechadura. E essa era a única coisa triste, que amargurava o menino.
Na paz e na alegria das brincadeiras intermináveis e soltas, podia ver a angústia, o cansaço, o sonho perdido, e a escuridão, de tudo o que ficara antes da cortina que atravessara ... e tinha pena !...
E o tempo foi passando, e não havia dias, nem horas, nem noites ... nem mesmo tempo, do lado de lá ...
Por isso, o menino-ancião, que agora também tinha caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas, carregado de livros e histórias no coração, passou a ter uma tarefa destinada : ia sempre àquela passagem, buscar, também ele, pela mão, todos os que iam chegando.
E para os tranquilizar, logo ali lhes contava uma das suas lindas histórias de ninar !...
Daquelas histórias que contou e recontou, quando ainda não era um menino de caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas ... histórias essas, que já então, ele amava de paixão !!!...
Anamar
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
" REFLEXÕES EM DOURADO "
O sol já começou a pôr-se para a esquerda, lá ao fundo, no horizonte.
Significa que está mais baixo, e significa também, que vêm por aí os dias em que ele vai começar a hibernar, e a sombra a descer-me cedo, no quarto.
Daqui a dez dias, o Outono volta uma outra vez, para todos quantos, ao fim de um ano, por cá continuam para o recepcionarem, no ciclo repetido da Vida.
Para mim, o Outono é uma estação esmagadoramente bela e terrífica.
O ocre, o dourado, os vermelhos sanguíneos, ou os verdes fechados, aconchegantes e quentes com que se veste, criam um leito de paz, doçura e aconchego, no meu coração.
Inicia-se o tempo dos silêncios, o tempo da interioridade, o tempo da introversão, do adormecimento, da hibernação, da melancolia e de uma nostalgia profundas !
É tempo de colheita, seguido de pousio.
Colher o que se semeou e estará a dar frutos ... pousio, de descanso e reflexão, para o eclodir estonteante de vida, na renovação seguinte ...
Sempre assim, ano após ano, geração após geração ... vida após vida !...
A Natureza é perfeita.
Tem o ciclo de um ano para cumprir todas as metas e objectivos, do nascimento à morte. E reinicia-se sempre, pujante, renovada, jovem !!!...
O Homem, não !
A sua vida equivale a um único, dos ciclos do Universo.
A Natureza sabe que depois da morte do Inverno, uma nova Primavera a espera. Nada, para ela, finaliza !
Às lágrimas da estação fria, vão suceder-se sorrisos descarados, provocadores, confiantes, de uma outra Primavera.
Depois do luto que se abate, do desconforto e da escuridão, vai chegar outra vez o sol, a claridade, a alegria, o chilreio dos pássaros, o amor do ninho a reconstruir-se ...
O branco que tudo cobriu, abre cortinas, p'ra mostrar os verdes tenros e promissores, que já espreitam.
A vida pulula, inicialmente tímida, para se tornar exuberante, num passe de mágica.
O branco, o negro e o cinzento, completam-se generosamente, com toda a palete de cores. Os cheiros e os sons despertam, a energia renova-se ...
E tudo recomeça, de facto ... novinho em folha ... numa festa sem restrições, numa orgia de sensações ... estonteante !!!...
E sempre assim será !!!...
O Outono que agora começa, acerta o passo com a minha vida.
É o terceiro estágio, entre o nascimento e a morte. É exactamente esse, o estádio da vida, que atravesso.
Deveria ser um período de maturação, de calmaria, da paz que nos traz, a colheita do plantado ... sem demais sobressaltos, angústias ou incertezas.
Assim deveria ser, numa sequência normal de vivências.
Era justo que assim fosse ; o ser humano merece usufruir essa fase da sua vida, saboreando o que realmente é de saborear, o que vale a pena degustar, com a sabedoria conferida pelo tempo, sem os arrobos e as inseguranças dos verdes anos, sem os percursos da maratona da média idade, em que os olhos estão no caminho e não nas margens do mesmo, sem a ansiedade da loucura do pico da montanha, a alcançar a qualquer custo, mas sim com a paz e a plenitude dos percursos longos e planos, de horizontes visíveis e abertos.
Seria um caminhar à medida do seu passo, ao ritmo das suas pernas, com todo o tempo do mundo para olhar a paisagem, para desfrutar da cor e do cheiro, para parar na berma, numa pedra, sob a copa de uma árvore, e simplesmente deixar abrir o coração e a alma, ao aqui e agora ...
Seria escutar o canto das aves, ou o gorgolejar do ribeiro por entre as pedras ...
Seria estar desperto e bem acordado, para as emoções, os afectos e as partilhas ... por ser um tempo de disponibilidade, entrega e completude ...
Por ser na verdade, o ÚLTIMO tempo de qualidade de que dispomos ... porque o "Inverno" se avizinha rápido, e esse, já é o tempo do recolhimento total, do fechar de janelas, o tempo da imobilidade, do silêncio, da solidão e das perdas ...
Seria !!!...
Porque esse é, afinal, o tempo da recordação de uma outra Primavera, que o ser humano, de facto, não voltará a ter !!!...
Anamar
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
" ESTE ESTRANHO DIA "
E por estranho que pareça, ano após ano, sempre sinto a mesma coisa, no dia de hoje.
O Homem é um animal de hábitos, o Homem interioriza o que repete. E quando a repetição é de uma vida, as emoções instalam-se algures por aqui, e não há quem tire ...
Inicia-se mais um ano escolar.
Há quatro que me afastei da escola.
2009, foi o último ano da minha carreira, que abri e não fechei.
Iniciei-o, mal suspeitando que dois meses depois, estaria a encerrar portas, por razões de saúde.
Desde então, foi como se tivesse tomado um qualquer antídoto, que me imunizasse numa espécie de protecção quase irracional, contra mais de trinta e seis anos de ensino ... a minha vida !
Quem é, ou foi professor, sabe bem que trinta e seis anos de ensino, correspondem a trinta e seis anos de vida, porque os tempos de entrega e dedicação, são nesta profissão, absolutamente integrais e absorventes. É seguramente maior, o cômputo horário passado na e para a escola, do que o dispendido em casa, ou com a família.
Todos sabem isso, mesmo os que tentam escamoteá-lo.
Saí por razões de saúde, como disse, potenciadas e agudizadas, por todas as reformulações de má memória, implementadas pelos sucessivos Ministérios, de uma forma arbitrária, prepotente e cirúrgica , que não sossegaram até que uma sangria de docentes, com ou sem condições de aposentação se iniciasse e se estendesse até aos dias de hoje, numa liquidação liminar do Ensino Público.
Atropelo de medidas absurdas, de reformas arbitrárias, de leis idiotas, que burocratizaram inapelavelmente a docência, reduzindo-lhe qualidade, retiraram a exequibilidade da concretização e avaliação da sua aplicabilidade, criaram conflitos entre os pares ( estimulando, por sobrevivência, o pior que as pessoas tinham dentro de si ), descaracterizaram as escolas, que deixaram de ser as "nossas" escolas, e se tornaram impessoais e desumanizadas, quase locais de tortura !...
A insegurança e a incerteza dos futuros profissionais dos docentes, ano após ano, conferiram-lhes inerente cansaço, desmotivação, raiva, tristeza, desaposta ... estimularam-lhes alguma indiferença ( porque afinal, há que sobreviver ), e instalaram-lhes patologias das mais diversas naturezas.
O abandono desencadeado, e inevitável por parte de quem pôde, a qualquer preço, pegar uma bóia e saltar para a água, atingiu níveis inaceitáveis !
E aí temos nós, milhares e milhares de pessoas absolutamente válidas, experientes, sabedoras, dedicadas ... tristemente irradiadas por "moto próprio", indignamente tratadas socialmente, em condições economicamente débeis ( comparativamente a outros profissionais, em igualdade de competências ), a viverem o seu desencanto, a sua mágoa ... a sua saudade ... na busca do esquecimento, do apagar da vida, do virar da página, afinal !!!
E depois chegam dias como o de hoje !
Todos os anos há um dia igual a hoje ...
E queiramos ou não ( sei que não é seguramente exclusiva, esta sensação de desconforto e melancolia ), sente-se um remexer das entranhas, sente-se um subir da ansiedade no peito, um aperto na garganta, que não desce ... sente-se uma estranha afobação, uma espécie de premência horária, como se já fossem horas, como se já estivéssemos atrasados, como se nos esperassem ... alguém, algures ... e não pudéssemos faltar à chamada !
E bate uma saudade !...
Sim ... bate uma saudade !...
Já olhei com olhos distantes e nublados - distância de anos, distância de vida - a pasta dependurada ainda, na cadeira da sala, naquela última noite, e que eu nem adivinhava então ser a última, recheada com tudo o que continha, e que não desmanchei, porque me queima as mãos ... ou melhor, penso que me queima o coração ...
Juntamente com os dossiers, as borrachas, os lápis e as canetas, secas dos tempos, ela está pesada dos sonhos que foram, das esperanças alimentadas, dos afectos que por lá ficaram, das recordações que se recusam a morrer ...
Ela tem lá dentro, mais de metade de uma vida, a minha, muito do melhor de mim, todas as minhas vitórias, o meu esforço, as minhas tristezas, as alegrias e as frustrações também ... A realização pessoal que consegui alcançar.
E tem lá dentro, ainda, pedaços de muitas outras vidas, que o destino determinou que haveriam de cruzar a minha ...
Com elas, desenhei o meu, compus a minha história, fiz-me a mulher que sou ... e a elas, por isso, sou profundamente grata, sou eternamente grata !!!...
Hoje, os meus três pequeninos rumaram de novo à escola.
A minha "turminha" de coração, nos seus 6, 9 e 12 anos, de uniforme vestido, mochila nas costas, muita alegria nos rostos, euforia, e entusiasmo, nos sonhos e espectativas que os norteiam ... como "bando de pardaia à solta" ... lá foi ...
Na fila de trás, bem cá atrás, a humilde "mestre escola" que eu fui, torce, para que os responsáveis deste País, se conscientizem da "matéria" delicada e sensível, que possuem nas suas mãos : a enorme, incontornável, e inalienável responsabilidade de serem os mentores sérios, do futuro destas gerações, e do futuro de um país, que é também o deles.
Em suma, de serem os norteadores de jovens que têm direito a um amanhã aqui,, no chão que os viu nascer, junto da sua gente que os ama, num Portugal que neles está a investir, e que neles revê a esperança de se agigantar outra vez !!!...
Anamar
quarta-feira, 11 de setembro de 2013
" HAVERÁ UM TEMPO ... "
Alguém escreveu : " Hoje voltou a aparecer uma folha de nespereira no meu quintal. Não foi o Mirtilo, mas podia ser ... - Mirtilo, o "gato ecológico", que já me deixou "
Porque os afectos sempre nos deixam folhas de nespereira no nosso quintal ...
"HAVERÁ UM TEMPO ... "
Haverá um tempo ...
a vida é feita de tempos
em que as horas lembram coisas,
em que os dias lembram sonhos,
em que os sorrisos nos rostos
se acendem, já só tristonhos,
porque morrem de saudade,
da ausência de vontade
de viverem sem sentido ...
Como um barco em alto mar,
vejo o sol a naufragar,
por de mim, já teres partido ...
E os dias ficarão longos ...
a noite nunca termina ...
Nesse tempo, ao acordar,
quando me erguer e olhar,
só verei a nablina
a descer lenta ... da serra,
trazendo-me os cheiros da terra
e o salgado da maresia ...
Porque tu és monte e mar,
fizeste-me acreditar
que o mundo me pertencia !...
Haverá também um tempo,
que o vento forte, ao soprar
vai trazer notícias tuas ...
sopra do lado do mar,
onde adormecem as luas ...
E quando a porta bater,
cansada da ventania,
a rosa morre no pé,
quando a noite vira o dia ...
E já só fica a lembrança,
naquele som pela sala,
naquela sombra que passa,
naquela dor que se cala ...
na garganta que emudece
os soluços, que se escapam,
no arrepio que estremece,
no abraço que apetece,
e que os dedos não agarram !!!...
Haverá um tempo, então,
em que as rosas que trouxeste,
morreram na minha mão,
quando a gaivota voou
e levou-me o coração !...
Corri lesta ao roseiral,
p'ra outra rosa colher ...
Perdi-te na luz da lua ...
Não sei já, como é ser tua ...
Nada mais pude fazer !!!...
Anamar
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
" A GENTE QUE NÓS SOMOS "
O tempo continua insuportável.
A minha casa parece uma câmara de incineração, antecipada ... E contra tudo o que gosto, me agrada e sempre defendo, resolvi ir à praia ... da Linha, e ao domingo !!! :(
Um cúmulo de incoerências minhas, decididamente ... o que me relembra, que nunca se diga "nunca" !
As praias da Linha, são, como sabemos, ponto de convergência de multidões, devido à proximidade e fácil acessibilidade, da Linha de Cascais, e da Linha de Sintra também.
Fui ao domingo, porque em desespero de causa, recusei passar outro dia enfiada entre quatro paredes, na meia obscuridade das janelas fechadas, por via do calor, a esperar apenas o escoar das horas.
Pelo menos, com um sol ofuscante bem por cima da moleirinha, e no meio de milhares de pessoas que seguramente ali demandaram, consegui abstrair do que me rodeava, e com a minha música nos ouvidos, consigo ilhar-me, às vezes admiro-me, o quanto !!!
Bom, mas escolhi uma praia "de verdade", sem sombra de dúvida. E aos domingos, é obviamente mais "de verdade" ainda ...
Passo a explicar : decidi-me por Carcavelos, grande areal, água mansa, uma brisa a favorecer.
Ao longe, nas costas do mar, com uma bordadura de palmeiras, abaixo da linha da Marginal ( onde os carros aceleram a qualquer hora ), brinca de praia tropical, de palmeiras e coqueiros.
É só fechar os olhos, e imaginar !
À hora a que cheguei, oito da manhã, a ausência de gente, e as areias apenas povoadas por gaivotas e pombos ainda adormentados, até colaboravam .
A minha raiva começou a aumentar, à medida que o pessoal, invadindo o areal, desatou a ocupar todos os centímetros quadrados de areia, que pôde. O bando das gaivotas bateu mar adiante, o que é sinónimo de que o seu sossego terminou ... e o meu também, obviamente .
Mas dizia eu, que fui a uma praia "à séria".
De facto, trata-se de uma praia democrática, multicultural, bem internacionalizada.
A "marabunta" compõe-se de autóctones, em maioria ( embora entre eles, se distinga claramente a presença de alentejanos e de tripeiros ... está a ver-se porquê ... ), africanos ( em chusmas ), chineses, indianos, e significativa presença de cidadãos de leste ( e aí, só por adivinhação se concluiria da real nacionalidade, porque as "curvas" da língua são as mesmas ).
São famílias inteiras e acólitos, são crianças e criancinhas.
Gente "autêntica", que fala aos berros, não se furta ao vernaculismo da linguagem, e distribui tabefes e safanões pelas crianças, que como quaisquer crianças que se prezem, são malcriadas, insubordinadas e reivindicativas.
A praia é um local óptimo, para, na sombra abençoada do chapéu de sol, se falar horas no telemóvel.
Tem-se todo o tempo do mundo, e essa é a melhor altura para se porem em dia, as novidades acumuladas, se "despachar" em matéria laboral, se contarem - para o nosso receptor, e já agora todos os receptores a meio metro de nós - as mágoas, as desgraças, as aventuras ... enfim, todos os acontecimentos que fariam manchetes interessantes, do Correio da Manhã do dia seguinte !...
Ali não há "mise-en-scènes", nem " faz de conta ", ora essa !...
Ali, o "povão" é povão real, mesmo ! Nada dessas figurinhas virtuais, estilizadas, dos "jet-sets" das badaladas praias algarvias, de noites brancas e festas absolutamente "inn", dos clubes onde convém aparecer.
Ali, não há silicones nas mamas, nem corpinhos bulímicos de sereias desfilantes. Em suma, não há gente de plástico !
Ali, os machos exibem-se como a Natureza os programou ... Nada das depilações absurdas, que lhes revelam peitinhos e braços, de verdadeiras damas ebúrneas !!!
Ali, desfila o músculo e a gordura, a celulite e a flacidez, as barrigas e os estômagos de cerveja, as peles pendentes e o encarquilhamento dos anos ... tudo ao vivo e a cores, sem "maquilhagens" ou disfarces ... a vida ao natural !!!
Por outro lado, o "povão" é expressivo e exuberante. O povo não se coíbe nas manifestações que exterioriza, não tem as preocupações do socialmente correcto, do adequado, da censura de classe ... as "frescurinhas" do bem parecer ... O "povão" tem direitos ... "que gaita" ! "Quem está mal, que se mude ... era o que faltava !! " ...
E ali, a praia é de todos, e muito mais, "sua" ...
Por instantes, tive um flash do "Pátio das Cantigas", do saudoso Vasco Santana ...
Por instantes, revi Fellini, na Sicília , anos vinte .... Por que seria ???!!!...
Uma constatação assaz interessante, que me surpreendeu pela incidência verdadeiramente perturbadora, foi a progressiva rentabilização que as pessoas inteligentes fazem, dos metros quadrados da pele de que dispõem, na exibição de obras de arte espantosas, assim, gratuita e generosamente ...
Um contributo para a democrática "arte de rua" !!!
Sabe-se que nas ruas e avenidas, existem outdoors que devem custar os olhos da cara, a quem, neles, pretenda publicitar imagens, ideias, frases, propaganda política emocionantemente criativa ... tudo isso ...
Ora se o ser humano dispõe de verdadeiros painéis de exposição, inteiramente à borla, por que não mostrar ao mundo, tatuagens comoventes, pictogramas criativos, mensagens emotivas ???
Há que aproveitar cada recanto, cada pedacinho mesmo recôndito, cada superfície devoluta dos corpos, para expor, expor, expor ... o dragão, a fénix, o peixinho, a ave planante, os amores todos que se foram, em corações de cupidos trespassados, o escorpião, a borboleta, emaranhados arbóreos de floresta virgem, tudo, tudo ... generosamente, numa mostra gratuita ao mundo ... como aliás, deverá ser a cultura !!!
E como há imensos gordos ( está provado que a obesidade é actualmente, das mais graves pechas da humanidade ), os metros quadrados de pele, disponíveis, aumentam portanto, exponencialmente.
E porque a beleza de uma obra de arte deve ser usufruída indistintamente por todos, e há que veicular a cultura de um povo ... os corpos recobrem-se de "pinturas rupestres", de alto a baixo, ao alcance de qualquer olhar !...
Assim se vê bem, o espírito de mecenato da nossa gente !...
Também na morte, o ser humano é bem diverso !
Ontem fui a um funeral.
Tratava-se de alguém relativamente novo ainda. Pertencendo a uma classe média-alta, e sendo administrador de uma multinacional, inseria-se claramente num estrato social economicamente elevado, com um círculo de relações consequentemente condicente.
Não me era muito próxima, a pessoa em causa.
Estive presente portanto, por cordialidade, por norma de convivência, apenas. Ocupei por isso, uma posição confortável, de espectadora do circundante, sem que o envolvimento emocional me perturbasse.
Não havia lágrimas, não havia desespero, não havia drama.
Tudo muito civilizado, bem contido, correctamente enquadrado ...
Tudo muito "frio", muito apropriado, muito notícia da "Hola" ...
Tudo demasiadamente "cool" !...
Na verdade, nada que se assemelhasse a um funeral "a sério", portanto ... ( pensava eu ) !!!...
Mas o que é facto, é que esta também é " a gente que nós somos " !!!...
Bom, e já dissertei que chegasse, sobre ela, sobre as personagens que nos cruzam, e que são a nossa própria realidade.
Penso que tudo isto é nacionalmente genético, é herança cultural, é especificidade de se ser português, de sermos este povo aqui, neste retalhinho de terra, entre o mar e a montanha ...
Tudo isto é muito " a nossa cara", o que transportamos nas veias, e o que contemos na alma, nesta Europa de sul, visceral e sanguínea, impulsiva e autêntica ...
Tudo isto é a genuinidade da nossa gente, do tal "povão", que mesmo espartilhado pelas condicionantes com que a sociedade o limita e castra, pelas regras que lhe impõe e dita ... sempre é igual a si próprio, sempre é autêntico e verdadeiro, em qualquer lugar !!!...
Anamar
sexta-feira, 30 de agosto de 2013
" O PIGALLE "
O Pigalle está a morrer aos poucos.
Com uma existência de mais de cinquenta anos, este "dinossauro" da Amadora, tem ido dando sinais de que o seu tempo está no fim.
O seu espaço físico "demodé", não foi renovado, ou se algumas benfeitorias sofreu, foram desfavoráveis ao cativar de clientela.
Cheira-se no ar uma desaposta ao investimento, sente-se um clima de doença terminal, exactamente nessa fase ... terminal !
Como uma árvore das matas cerradas, de troncos alargados e recobertos de musgos perenes, que nas intempéries dos Invernos, vão perdendo braços e folhas, assim este espaço tem ido sendo amputado, de valências que detinha.
Não que fosse um café que se impusesse, actualmente, nem pela qualidade do serviço, que se degradou ( pelo menos nos largos últimos anos ), nem pelo espaço físico em si, que nada de prazeiroso possui, ou sequer pela frequência.
À semelhança dele mesmo, a vetustez dos "habitués", é a nota dominante.
É portanto e simplesmente, um café de tradição, transversal a gerações ... o rosto de uma cidade !...
É um café de silêncios. De silêncios interiores, e não exteriores.
Um café de gente que fala entre si, dos assuntos desagradáveis da vida, das suas dificuldades, das doenças suas, do futebol e do país ... porque esses são os temas privilegiados, pela faixa etária para que está vocacionado, e o frequenta.
Ou então, de gente que não fala, porque simplesmente se isola em mesas, que ao longo dos tempos se tornaram quase "reservas" de alguns utentes, ao ritmo do próprio café, e que lê, escreve, ou se isola ouvindo música, e se afasta do que a cerca, por desinteresse.
Espantosamente existem clientes fiéis, dependendo da hora.
São resistentes, que aparecem por hábito, rotina, comodismo, ou porque os sapatos já os orientam no caminho, tenho a certeza.
Cumprimentam-se, cumprimentamo-nos, por vezes temos saudações mais ou menos cordiais, alguns diálogos curtos, nada que justifique um convite para partilha de mesa ... ou oferecem-se jornais ou revistas, depois de lidos ...
De resto, o tempo amodorra por aqui, na escuridão das salas, já que de espaço interior se trata, apenas iluminado por luz artificial ... e dorme-se, ou morre-se um bocadinho todos os dias ...
O Pigalle, o velho Pigalle dos bilhares, ponto de encontro da tertúlia amadorense, anos passados, local onde cadetes da Academia Militar se desfardavam às sextas-feiras, antes de iniciarem o rumo de regresso a casa, aos fins de semana, local onde muitos jovens desta terra se encontraram, se conheceram, e onde iniciaram futuras relações familiares ... o Pigalle, de pastelaria excelente e variada, dos serviços de casamento em sala própria ... foi-se "apagando" aos poucos.
Os bilhares desapareceram há muito, os empregados foram "sumindo", mesmo aqueles que eram rosto do café ...
As mesas deixaram de se cobrir com toalhas de pano, desapareceu o espaço inicialmente destinado a fumadores, os televisores ( três ), reduzem-se apenas a um, a funcionar.
O ar condicionado raramente é ligado, mesmo quando o calor torna incómoda a permanência, e hoje, por aviso afixado na sala, soube-se que a partir de amanhã, o serviço será em regime de pré-pagamento ao balcão, sendo os clientes a transportar a sua própria bandeja, para as mesas .
Já não há serviço de cozinha, porque a única empregada da copa, que garantia a confecção dos pratos, também saíu ...
Quase ninguém na sala ...
Vive-se um clima de morte anunciada. Os empregados que restam ( dois, apenas ), exibem rostos fechados, penalizados, apreensivos ...
Não podem, obviamente, falar de nada ... mas percebe-se ...
Tenho um aperto no peito. As lágrimas assomam-me aos olhos.
Pode parecer que exagero. "Estupidez" ... dirão alguns.
Mas sinto exactamente como se mais uma parte de mim, se fosse, no vórtice do Tempo, na injustiça da crise, nas dificuldades da Vida !
É como se um pouco da minha identidade se desmoronasse também, porque afinal, o Homem é uma súmula de tudo o que forma o seu edifício estrutural, em todas as vertentes da sua existência !...
O " gigante ", quiçá o café mais emblemático da Amadora, que atravessou épocas e gerações, que prestou o seu indiscutível serviço à cidade, com o carisma típico dos anos 50/60, não teve uma bóia de salvação que lhe deitassem, ao contrário de tantos outros espaços congéneres ( lembro a Brasileira, a Versalhes, o Califa, o Galeto, o Café Saudade ( Sintra ), o Martinho da Arcada, o Tavares Rico, o Café Arcada ( Évora ), a Mexicana ) ... e claudicou de cansado, desistiu, e breve morrerá !...
É pena que as autarquias, que deviam estar atentas a estas situações, na obrigação de preservação do património cultural dos Municípios, património esse que não pode dispensar também, estes locais, não estejam atentas a encontrarem soluções de reversão , não apostem na reabilitação e na preservação dos mesmos, já que tudo isto é também, sem dúvida, a memória de um povo, o espólio de um País ...
Não sei por que venho aqui.
Creio que é por imobilismo, por encolher de ombros, acomodação ... espantosamente, alguma saudade já percepcionada ...
Acho injusto, que depois do Escudeiro ter fechado portas há já alguns anos ( e com ele, porque foi minha "segunda casa", como costumava dizer ... se ter selado um grande pedaço de mim, e da minha história ), o Pigalle, "adoptado" por mim, com alguma resistência inicial ... vá agora, despedir-se também, apagando-se mais um rosto identitário desta cidade, que aos poucos, está a perder a sua história, a alienar as suas memórias, a entristecer os seus mais velhos habitantes, aqueles a quem restará tão só, olhar as fotografias a sépia ou a preto e branco, para recuperarem na mente e no coração, tantos recantos e locais, que foram ...
Apenas já só ... FORAM !!!...
Anamar
domingo, 25 de agosto de 2013
" A BOLA DE BERLIM "
E ali estava eu, como em menina, deliciada e lambareira, a comer uma Bola de Berlim ...
Há quantos anos eu deixara de as saborear ?!
Recordo que em Albufeira, sete, oito anos, tempos de praia em férias sem fim ( parecia ... nessa altura ), era repasto de areias.
Eram trazidas nos cestos de verga com duas tampas, revestidos por toalhas alvas, enfiados nos braços da vendedeira, a sra. Júlia, descalça e também ela vestida de branco, que calcorreava a praia de ponta a ponta, com os pés enfrentando a areia escaldante.
A "Bola de Berlim", a batata frita e "olha ó Olá" ... ecoavam, e eram pregões obrigatórios, das praias de então ... ah ... é verdade ... e a "Língua da sogra" ou "A bolacha amaricana", também ...
Ainda não havia sogras, ainda não havia angústias, ainda não havia a gordura, a celulite ... o dia de amanhã !...
Era o tempo, em que debaixo do toldo se jogava ao prego e ao anel, era o tempo do balde de lata vermelho com bonecos, da pá, do ancinho, e das forminhas para os bolinhos de areia, em folha, também !
Era o tempo das construções sonhadas e mágicas, dos castelos encantados, decorados com algas e conchas da maré baixa.
Castelos com fossos à volta, com água de verdade e pontes, e com bandeirinha na torre de menagem ...
Era o tempo dos grandes mergulhos, e da bóia obrigatória, no banho.
Tive uma, amarela, com uma cabeça de pato ... lembro-me bem !
E "maillot" ... usava-se, e dizia-se, "maillot" ... O biquini ainda não existia.
Os meus, eram sempre azuis. A minha mãe devia gostar dessa cor.
E ela, bom, ela não vestia fato de banho. Ela usava vestido ou saia, e subia-os, pudicamente, quando ia vigiar-me à beira-mar, e aproveitava para molhar os pés.
Eu tinha um chapéu de palha amarelo, como o dos chinezinhos, e não havia ordem de o tirar da cabeça, por razão nenhuma, não fosse o sol molestar-me.
Ia-se para a praia cedinho. Vinha almoçar-se a casa, depois do que eu deveria fazer sesta obrigatória.
Pelas cinco da tarde, regressava-se à praia, para completar o dia.
As senhoras faziam rendas, e trocavam entre si, segredos e amostras das mesmas ...
A garotada brincava em bandos ... e era feliz !!!
Bom, e ali estava eu !
Agora, com o mar em fundo, e a praia lá em baixo, aos pés, no fundo da arriba.
Não estava em Albufeira, não !
E também, se estivesse, já lá não estava aquele marzão azul, aquela areia, aquele sol ...
Os meus castelos, já teriam ido, há muito, levados pelas ondas e pelo vento, tal como o foi também, aquela que eu era, arrastada no vórtice do tempo !
A "barrigudinha" do maillot azul, chapéu amarelo na cabeça, e balde de lata na mão, já não existe há séculos ... ela, e os seus sonhos de menina !
Outra vendedeira, no lugar da sra. Júlia, talvez percorra o areal, mais ou menos da mesma forma, com os pregões imortais, e transversais às gerações.
A criançada, já não joga ao prego nem ao anel. Passa demasiadas horas, a gastar os olhos, nos jogos electrónicos, nos IPads, tablets, e todas essas maravilhas da tecnologia, cujos nomes e variedade não conheço ...
As construções na areia, já não têm o mesmo virtuosismo.
São os pais que as fazem, para os mais pequeninos, sem suspeitarem, que na verdade são eles que procuram o seu passado, outra vez, nas areias da rebentação ...
E no alto da falésia, sentada numa pedra, das muitas que por ali se semeiam a esmo, com o mato rasteiro e as flores bravias à minha volta, com a brisa a desalinhar-me o cabelo, e as gaivotas grasnindo e rasando o monte ... com o olhar perdido na distância e no tempo que correu ... deliciada e lambareira ... exactamente como então, ali estava eu, a comer outra vez, uma Bola de Berlim !!!...
Anamar
" QUANDO A PALAVRA É SOLIDÃO ... "
Todos os dias, à mesma hora, oiço a mesma música, no mesmo café, com as mesmas pessoas presentes, quatro ou cinco ... com as mesmas histórias ... com as mesmas sensações a atropelarem-me .
Todos os dias faço "rewind" no mp3, para buscar exactamente os mesmos temas musicais, como uma espécie de ladainha ou terço, que devesse desfiar ... e não sei porquê ...
Talvez porque são acordes mansos, doces e magoados, como uma espécie de eco do meu eu interior ...
Porque são molduras perfeitas para o silêncio que me percorre ...
Porque são melodias como o som do vento no meu cabelo, quando me sento numa pedra e apenas olho o mar ... Passa, afaga-me, não me agride, não me exige, não me acorda ... só me embala ...
Todos os dias vejo os mesmos rostos, troco os mesmos olhares, devolvo as mesmas saudações, numa harmonia perfeita ... mais que perfeita ...
E por isso, quase adivinho o que vão dizer a seguir, qual a cor dos seus sorrisos, ou o porquê da circunspecção dos seus semblantes ...
Todos os dias cruzo a minha história com histórias que não conheço, tranço a minha solidão com solidões vizinhas, pinto o meu desamparo com o vazio de desconhecidos, e falo, e conto e digo, apenas para dentro de mim, cem vezes, mil vezes ... um milhão de vezes ... digo tudo e digo nada ... só por dizer ...
E por isso, existe uma solidariedade institucional, muda e secreta, entre mim e todos eles, aqueles anónimos que por ali pairam !...
E de repente, sinto ânsias de narrar àquele homem que se senta de costas na mesa seguinte, o meu conto de vida, o que me estrangula a garganta e me sufoca o peito .... que não lhe interessaria, mas que eu não tenho com quem partilhar ...
Mas afinal, para quê ... se ele terá certamente outro, para trocar com o meu ?...
Outro igualmente desinteressante, injusto, descolorido, de silêncios e solidões também !...
E de repente, sinto urgência de abanar os que me cercam, e gritar-lhes : " porra ... estou aqui ...estou a passar por aqui, e ninguém me vê, ninguém me sabe, ninguém me sente ...
A minha vida é esta ... Eu sofro e choro e desespero-me, e morro ... morro um bocadinho em cada instante que passa !... Nada disso interessa ... mas é a minha vida ... e eu ... sou gente " !...
Oh vã prosápia, arrogância desmedida ... oh tonteria absoluta ... oh loucura inconsciente !!!...
"Eu ... sou gente " !!!
Mas o que é isto ... "eu sou gente" ? E isso lá é alguma coisa ? Isso tem alguma relevância ?
Menos que um grão de poeira no deserto ... menos que uma poalha estelar do Universo ...
Hoje, matéria ... amanhã, nada !
Que diferença faz a volatilidade da Vida, o fugaz da existência ?!
Nascemos condenados ao esquecimento, ao silêncio, ao nada !
Circulamos numa praça gigante, onde somos tantos que nem nos vimos, nem nos olhamos, nem nos falamos, apenas nos acotovelamos, nos esbarramos, nos atropelamos !
Somos desconhecidos até de nós mesmos. Somos anónimos no meio de anónimos. E circulamos como autómatos, como fantasmas, distantes, imateriais ... quase transparentes !
E quando um falta, o equilíbrio mantém-se inalterável, porque nenhum é suficientemente importante, nenhum é determinante, nenhum é suficientemente alguém, ou mais que nada ... apenas NADA !...
E quando ( porque o tempo corre e se escoa na contabilidade temporal dos humanos ), partem, sinto-me estranhamente defraudada. Sinto-me lesada ... como se me tivessem deixado à deriva, como se tivessem largado uma criança na esquina de uma rua, desprotegida, como um náufrago que perdesse o tronco salvador ... sozinha, mais sozinha ainda !...
E é quando percebo, que vou ter que enfrentar mais vinte e quatro horas, para , à mesma hora, no mesmo café, ouvir a mesma música, com as mesmas pessoas presentes, com as mesmas históriias, e povoada das mesmas sensações ...
E é quando realmente percebo, o que significa a palavra "solidão" !...
Anamar
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
" A RUÍNA "
O caminho serpenteava, desde o portão ...
Sempre serpenteiam, os caminhos ... não se percebe porquê ...
Talvez na intenção onírica, do Homem projectar naquela vereda, a sinuosidade de um rio de sonhos e devaneios.
O óbvio, o directo, o despido de mistério, são de evitar. Afinal, a vida também tem curvas, também tem esquinas, também tem cotovelos que escondem o imprevisível, e que só se desvendam depois de virados ...
Por isso, aquele caminho ondulava pelo meio das terras bravias.
Há muito abandonadas, haviam respeitado a estrada, caminho de pé posto já só, e ladeavam-no de silveiras, amoras bravas cobertas de pó, e flores que não carecem de justificação para nascerem.
Os aloés livres, na agonia da morte, faziam subir aos céus, a haste erecta que lhes garantiria a disseminação da espécie, pela libertação das sementes, ao vento e aos pássaros.
E parecia realmente um grito de desespero e solidão, mas também de resignação e entendimento ... ali, no alto da falésia silenciosa, em recorte no mar ...
As piteiras bravas, carregavam-se de figos coloridos pelo amadurecimento, e saciariam as aves que por ali rasavam.
Os muros de pedra sobre pedra, imemoriais, aguentavam-se como podiam, com desenho aleatório, a esmo pelos campos.
Talvez já tivessem protegido culturas, dos ventos desabridos . Agora, já só amparam o mato rasteiro, e acoitam animais selvagens, e caçadores que se atrevam ...
De resto, é apenas a brisa abençoada que corre por ali ( como uma criança em recreio de escola ), é o zumbido de um ou outro zângão, que pouse nas flores amarelas dos cardos de ninguém, é o volteio de uma borboleta passante, e claro ... é o voo espreguiçado e dolente das gaivotas, que desafiam a mente humana, e levam consigo, presos das asas esticadas na aragem, os sonhos mais insatisfeitos do Homem, que sempre voa com elas, com o olhar que alonga e estica, até onde o horizonte lho permite ...
Lá muito em baixo, o mar, como um luzeiro prateado, acende-se pelo sol, que o pincela de turquesas transparentes, verdes intensos e azuis ...
Da casa, já só existia uma ruína, que o vento destelhara, e as silvas e urtigas dominaram.
As janelas esventradas, ainda exibiam aqui e ali, a caixilharia de madeira podre, pela chuva dos Invernos rigorosos, pela maresia e pelo salitre do mar ...
Ironicamente, alguns vidros ou apenas pedaços, permaneciam nas molduras, lembrando que através deles, os olhos atravessaram de dentro para fora e de fora para dentro, há muito ...
Da chaminé imensa, outrora, restava já só um amontoado de pedras, que servia de ninho aos passaritos, ou talvez a roedores ou rastejantes.
As teias de aranhas adivinhadas, eram cortinas e rendas pesadas, dependuradas das traves, nos cantos e nos barrotes do tecto ...
O que fora o pavimento, era agora um emaranhado de ervas, raízes, silvados, musgos e líquenes ... urzes e zimbros, plantas bravias, que espantosamente floriam, no meio do silêncio, do abandono e da morte ...
As divisões ainda se demarcavam claramente.
Agora, sem paredes que as limitassem, caminhava-se de umas para outras, livremente ...
Do quarto para a cozinha, com a lareira definida, da sala virada a poente, para o alpendre das buganvílias, em que o banco de encosto, talhado num tronco centenário, ainda jazia, onde ficara adormecido ...
A mó de moinho encostada cá fora, tombara, e fora tomada pelo tempo, também ... a floreira das lavandas era um destroço, e o seu aroma e a sua cor, existiam já só no coração e na mente dela ...
Por que fora até ali ? Por que percorrera o serpenteado do caminho, até àquela ruína ???...
Não voltara mais, desde então ! Não passara nem por perto, como se aquele ar e aquele chão, a queimassem por dentro ...
Mas agora que ia partir, um apelo estranho de despedida, chamara-a até lá ... como se quisesse certificar-se, de que embora partisse, a certeza de perenidade ficava ali ... naquelas pedras, naquele silêncio, naquela morte que rondava ...
... onde pululara vida, onde se construíram sonhos, se ouviram sons, se contaram histórias, se chorou, se gargalhou ... se existiu ... antes do Tempo ser apenas Tempo !...
Hoje, ela sabia que a sua vida era igual àquela ruína ...
Anamar
quinta-feira, 15 de agosto de 2013
" CINCO LETRAS APENAS "
Hoje, sem nenhuma vontade de escrever, sem nenhuma inspiração, sem nenhuma razão válida para o fazer, e relendo Eugénio de Andrade, o "poeta triste" como lhe chamo, pelas palavras de quem, sinto tão bem passarem as minhas ... escolhi este poema, de que gosto particularmente ...
Talvez já o tenha trazido a este espaço. Não sei !
Talvez já tenha achado, que ele representava sabiamente um instante, uma etapa, um timing da minha vida ...
Afinal, as vidas são feitas de despedidas ...
A cada momento dizemos adeus a alguém, alguma coisa, algum lugar, algum sentimento ... ou tão só, a palavras ditas que ficaram para trás ... ou mais ainda, à pessoa que somos, e deixamos de ser, por cada frémito de respiração ...
ADEUS
"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus."
Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”
"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus."
Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”
Anamar
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