sábado, 18 de abril de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 38



ISOLAMENTO  SOCIAL "INVOLUNTÁRIO"

Passo para lá e olho.  Regresso e volto a olhar ...
Aquele simulacro de "residência" já ali existia bem antes da Covid 19.  Aliás, acho que existe ali, desde sempre !
Calha-me no caminho da mata.
Quem a habita, nunca vi ... mas eles, os dois cães companheiros de desdita, sempre por ali estão, com a típica fidelidade, na defesa do território do dono.
Há camas improvisadas bem debaixo da varanda do prédio, na tentativa de que a chuva, quando cai, os não atinja.  Também existe uma casota, para o caso de intempérie brava.  Comida e água, nunca me apercebi que tivessem.  Não sei se alguma alma caridosa se atravessa ...

Passo ... mas passo ventando.  Aliás, neste momento as pessoas correm, caminham pressurosas, como se fugissem, desviam a rota se cruzam outras.
O isolamento social prudente, a distância social de segurança e todas as medidas divulgadas insistentemente pelo SNS e por todos os órgãos de comunicação social, a isso nos remetem.
Há que respeitá-los sem vacilações, irresponsabilidade ou comodismo.

Pois ...
Como se cumprem aqui e em muitas realidades análogas, essas medidas ?!
Aperta-se-me profundamente o coração.  Afinal, cá, como na América, no Reino Unido, como em muitos outros países, sempre serão os mais desfavorecidos, os que neste contexto, engrossam as valas comuns ...

Estamos no terceiro, e à partida último período de vigência do estado de emergência decretado pelo Presidente da República, e não será de bom aviso deitar a perder todo o esforço desenvolvido até aqui, com incontestáveis bons resultados.
Se tudo correr como é desejável, se pouco nos fugir ao controle, depois de 2 de Maio o país abrirá, repito ( dentro de baias devidamente acauteladas ), as medidas ferozes da  contenção que temos vivido.

Esse período de transição, essa ponte de alcance de alguma normalidade, será, do meu ponto de vista, mais difícil ainda de atravessar, do que a nossa realidade diária.
No estado actual, conhecemos claramente as regras. Aliás, elas estão já tão assimiladas, que praticamente desenham alguma rotina nas nossas vidas.
Sabemos claramente o que podemos ou não, fazer, até onde devemos ou não, avançar. 
É fácil obedecer !
Mas como a criança ou o jovem que cumpre directivas paternas, reclamando, esticando, explorando uma brecha possível, e que de um dia para o outro fica entregue a si próprio, à sua responsabilidade, ao seu livre arbítrio, à sua desejável maturidade... que de um dia para o outro, sente em si as dores do crescimento e a seriedade do momento ... que de um dia para o outro, sente finalmente como é caminhar no arame sem rede ... assim me sinto eu, na eminência de uma porta aberta lá ao fundo, que hesito transpor ... no receio de me ofuscar com a luz que ilumina o fundo deste interminável túnel ...
E tenho medo ... muito medo !

Receio a solidão que nos deixa o esvaziar desta ânsia, que agora sentimos e desejamos.
Receio o vazio desta euforia que agora nos reergue, queda após queda.
Receio a escuridão de águas turvas que não nos deixam divisar o fundo ... que não conhecemos exactamente ...
Olho os meus gatos ... observo atentamente a reacção de qualquer felino se, de repente, se lhe abre a porta da jaula, se lhe libera o confinamento.
No desconhecido, caminha como se pisasse nuvens de algodão.  Testa, tacteia, analisa, cheira ... silenciosamente não arrisca, desconfiando para acreditar ...
Assim me sinto eu e certamente muitos de vós, desconhecendo o dia de amanhã ...

Lembrei Drumond de Andrade, no seu poema " José", de que seleccionei este pequeno excerto.
Sinto que ele traduz com muita fidelidade, aquilo que neste momento experimento e me assusta !...


 "José" 

E agora, José ?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José ?
E agora você ?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta ?
e agora, José ?


Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !





Anamar

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